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— Por que vai a uma missa de sétimo dia de uma mulher que nem mesmo

conhecia? – indagou Paul Rice.

Naquela mesma tarde, ele e Annalisa estavam jantando no La

Grenouille. Paul adorava o famoso restaurante francês, não pela comida,

mas simplesmente por que era ridiculamente caro (66 dólares pelo

linguado de Dover), e perto do hotel, o que o inspirava a referir-se a

ele como “A cantina”.

— Ela não é apenas uma mulher qualquer – disse Annalisa. – A Sra.

Houghton era a mais importante socialite da cidade. Billy Litchfield me

convidou, e pelo jeito é um convite bastante exclusivo.

Paul examinou a carta de vinhos.

— Quem é mesmo esse Billy Litchfield?

— Amigo da Connie – disse Annalisa. E ficou ligeiramente

aborrecida. – Lembra? Passamos o fim de semana com ele.

— Ah, sim – disse Paul. – O boiola careca.

Annalisa sorriu. Aquele comentário era uma tentativa da parte de

Paul de fazer um gracejo.

— Gostaria que não dissesse esse tipo de coisa.

— O que há de errado com o que eu disse? Ele é gay, não é?

— Alguém pode te ouvir. E ficar com má impressão a seu respeito.

Paul olhou em torno de si, para as outras mesas do restaurante.

— Quem? – perguntou ele. – Não tem ninguém aqui.

— Billy diz que provavelmente vai conseguir o apartamento da Sra.

Houghton para nós. Dizem que é espetacular, três andares, com terraços

em torno do andar inteiro, e o prédio é um dos melhores da cidade.

O sommelier veio até a mesa.


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— Pode trazer o Bordeaux – pediu Paul. Entregou ao garçom a carta

de vinhos e continuou dizendo à Annalisa: — Ainda não entendi. Por que

tem que ir a uma missa fúnebre para conseguir esse apartamento? Não

basta pagar com dinheiro vivo?

— Não é bem assim que a coisa funciona – disse Annalisa, arrancando

um pedacinho de pão. – Pelo jeito, é preciso conhecer as pessoas

certas. É por isso que eu vou. Conhecer alguns dos outros moradores.

Você vai acabar tendo que conhecê-los também. E quando os conhecer, por

favor não chame ninguém de bicha.

— Quanto é que ele cobra? – indagou Paul.

— Quem?

— Esse tal de Billy Litchfield.

— Não sei.

— Você contrata o cara em nem pergunta qual é a comissão dele?

— Ele não é um objeto, Paul. É uma pessoa. Não quis dar uma de

grossa.

— Ele é um auxiliar – disse Paul.

— Você é que é o dono do dinheiro, você fala com ele – disse

Annalisa.

— Mas os auxiliares é você quem contrata – disse Paul.

— Agora nós temos atribuições, é?

— Teremos. Quanto tivermos filhos.

— Não me provoca, Paul.

— Não estou provocando – respondeu ele. – O sommelier voltou à mesa

e abriu o vinho com grande espalhafato, colocando um pouco na taça do

Paul. Paul o provou e aprovou-o. – Aliás, estive pensando. Agora seria

uma boa hora para começar.

Annalisa provou o seu vinho.


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— Ih, não sei se estou pronta.

— Pensei que queria ter filhos.

— E quero. Mas só não estava pensando em ter um tão cedo.

— Por que não? – disse o Paul. – Temos dinheiro que basta. E você

não está trabalhando.

— Pode ser que eu volte a trabalhar.

— Mas nenhuma outra das esposas trabalha – disse Paul. – É

inconveniente.

— Quem disse? — indagou Annalisa.

— Sandy Brewer.

— Sandy Brewer é um idiota. – Annalisa tomou mais um gole de vinho.

– Não é que eu não queira ter um filho. Mas nem mesmo temos um

apartamento ainda.

— Isso não vai ser problema – disse Paul. – Sabe que vai conseguir

o apartamento dessa tal Sra. Houghton, se realmente for fundo. – E

pegou o cardápio, lendo-o e distraidamente lhe acariciando a mão.

— Você não vai trabalhar hoje? – indagou James Gooch à sua mulher

na manhã seguinte.

— Eu já lhe disse. Vou à missa fúnebre da Sra. Houghton.

— Pensei que não tivesse sido convidada – disse James.

— E não fui – disse Mindy. – Mas desde quando isso já foi empecilho

para mim?

No andar de cima, Philip Oakland batia à porta da tia. Enid o

cumprimentou, de calças pretas e blusa preta bordada com aplicação de

contas.
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— Falei com o Sam Gooch ontem – disse ela, enquanto desciam de

elevador. – Ele disse que tinha uma mocinha no seu apartamento.

Philip riu.

— E se tinha mesmo?

— Quem era ela? – indagou Enid.

— Uma mocinha – disse Philip, provocando-a. – Veio ser entrevistada

por mim.

— Ai, Philip – disse Enid. – Desejaria que você não entrevistasse

ninguém. Está chegando a uma idade em que precisa começar a ser sensato

quando se trata de mulheres.

As portas do elevador se abriram, e vendo Mindy Gooch na portaria,

Enid deixou de lado suas preocupações com a vida amorosa do Philip.

Mindy também estava de preto, e Enid por isso desconfiou que Mindy ia

entrar de penetra na missa da Sra. Houghton. Enid decidiu que deixaria

isso passar também.

— Alô, Mindy, minha querida – disse a ela. – Dia triste, hoje, não?

— Se pensa assim – disse Mindy.

— Algum interessado de fora no apartamento? – indagou Enid, como

quem não quer nada.

— Ainda não. Mas tenho certeza de que vai aparecer alguém –

respondeu Mindy.

— Não se esqueça do nosso interesse – disse Enid, com delicadeza.

— Como posso esquecer? – disse Mindy. E saiu do prédio a largas

passadas, antes de Enid e Philip, soltando fumaça pelas ventas.

A missa foi na Igreja de Santo Ambrósio, na Broadway com Rua Onze.

Havia um pequeno engarrafamento diante da entrada; uma cacofonia de

buzinas soando se fez seguir de uma sirena ululante, quando um carro de

polícia tentou dispersar os veículos.


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Mindy tapou os ouvidos.

— Silêncio! – gritou. Depois desse rompante, sentiu-se um pouco

melhor. Confundiu-se com a multidão diante da igreja, procurando passar

entre as pessoas para entrar. Passou por uma fileira de barricadas

policiais, atrás das quais estava o grupo costumeiro de paparazzi.

Quando ela chegou aos degraus, foi detida por um guarda de segurança

musculoso.

— O convite, por favor? – pediu ele.

— Deixei em casa – disse Mindy.

— Queira por favor ficar ali daquele lado – disse o guarda.

— A Sra. Houghton era muito minha amiga. Morávamos no mesmo prédio

– disse Mindy.

O segurança fez sinal para mais pessoas passarem, e Mindy

aproveitou para tentar entrar com o grupo que passou à sua frente. O

guarda a viu e colocou-se à sua frente.

— Por favor, minha senhora, fique ali do lado.

Mindy, humilhada, colocou-se ligeiramente à direita, onde teve o

prazer de ver Enid e Philip Oakland que estavam a ponto de passar por

ela. No último segundo, Enid viu Mindy, e, passando entre as pessoas,

tocou-lhe o braço.

— Aliás, querida, esqueci de lhe dizer, Sam ontem me ajudou muito

com o computador. Graças a Deus pelos jovens. Nós, as velhas, não

sobreviveríamos neste mundo tecnológico sem eles.

Antes de Mindy poder reagir, Enid passou, e a irritação de Mindy

quase atingiu o ponto de ebulição. Não só Enid a ofendera insinuando

que ela e Mindy eram da mesma idade (“velhas”, dissera Enid), mas tinha

cruel e deliberadamente deixado Mindy de fora. Enid podia ter

facilmente ajudado Mindy a entrar na igreja, pois ninguém dizia não a


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Enid Merle. Enid era o que as menininhas pequenas chamam de amiga só

para as horas boas, pensou Mindy, e planejou retribuir o favor algum

dia.

Passeando pela Rua Onze, Billy Litchfield viu Mindy Gooch parada à

margem da multidão. Providência divina, pensou ele, satisfeito. Podia

ser nada menos que um sinal da própria Sra. Houghton de que Annalisa

Rice é que devia ficar com o apartamento. Billy andava torcendo para

ter uma oportunidade de apresentar a Annalisa a Enid Merle, e através

da Enid apresentá-la aos moradores do Número Um. Mas Mindy Gooch, a

presidente da diretoria do condomínio, era um peixe bem maior, embora

menos glamouroso. Aproximando-se dela, Billy não pôde deixar de pensar,

coitada da Mindy. Ela antes era relativamente bonita, mas com o passar

dos anos, suas feições tinham se tornado mais angulosas, e as faces

tinham afundado, como se literalmente devoradas pela amargura.

Procurando comportar-se como se devia para uma cerimônia fúnebre, pegou

as mãos da Mindy e beijou-a em ambas as faces.

— Olá, Mindy, minha querida – disse.

— Billy!

— Vai entrar? – indagou ele.

Mindy desviou o olhar.

— Achei que era minha obrigação comparecer.

— Ah – concordou Billy, percebendo imediatamente a verdade. Ele

sabia que não havia como a Sra. Houghton ter convidado a Mindy para a

missa; embora ela fosse a presidente da diretoria do condomínio, a Sra.

Houghton nunca a havia mencionado, e provavelmente nem sabia, nem tinha

procurado tomar conhecimento da sua existência. Mas Mindy, sempre

orgulhosa e decidida a fazer valer a sua vontade, mesmo que fosse


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inconveniente, devia estar achando necessário comparecer, para

solidificar seu status.

— Estou esperando uma amiga – disse ele. – Talvez você queira

entrar conosco.

— Mas claro – disse Mindy. Podiam dizer o que quisessem do Billy

Litchfield, mas ele pelo menos sempre se portava como um cavalheiro.

Billy pegou o braço da Mindy.

— Era amiga muito chegada da Sra. Houghton?

Mindy olhou-o, sem pestanejar.

— Para dizer a verdade, não – disse. – Via-a na portaria, quase

sempre. Mas você era, não?

— Muito amigo – disse Billy. – Eu a visitava pelo menos duas vezes

por mês.

— Deve sentir saudades – disse Mindy.

— Sinto – disse Billy, suspirando. – Era uma mulher fenomenal, mas

todos sabemos disso. – E fez uma pausa, para avaliar a disposição

psicológica da Mindy, resolvendo então tentar a sorte. – E aquele

apartamento dela – disse ele. – Fico imaginando o que vai ser dele.

A jogada valeu. Mindy estava muito mais interessada em falar no

apartamento da Sra. Houghton do que sobre a Sra. Houghton em si.

— Boa pergunta essa – disse ela. Inclinando-se para a frente, ela

cochichou alto – Tem umas pessoas no prédio que querem dividi-lo.

Billy recuou um passo, chocado.

— Isso seria um absurdo – disse ele – Não se pode dividir um

apartamento assim. É um imóvel de importância histórica, aquele.

— É o que eu acho – disse Mindy, enfaticamente, satisfeita por

descobrir que ela e Billy pensavam a mesma coisa.

Billy falou mais baixo.


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— Pode ser que eu possa ajudá-la. Conheço alguém que seria perfeito

para comprar esse apartamento.

— É mesmo? – disse Mindy.

Billy confirmou.

— Uma linda moça de Washington, capital. Eu só contaria isso a

você, minha querida, porque vai entender exatamente o que eu quero

dizer. Mas ela definitivamente é uma de nós.

Mindy sentiu-se lisonjeada mas fez o maior esforço para não deixar

isso transparecer.

— Ela pode pagar 20 milhões pelo apartamento?

— Naturalmente, ela tem marido. Financista. Minha querida – disse

Billy depressa – ambos sabemos que o Número Um tem uma grande tradição

de ser habitado por gente criativa. Mas também sabemos o que houve com

o mercado de imóveis. Ninguém do campo das artes vai poder mais pagar

um apartamento desses. A menos, como disse, que se concorde em dividi-

lo.

— Nunca vou deixar isso acontecer – disse Mindy, cruzando os

braços.

— Muito bem – disse Billy, aprovando. – De qualquer forma, pode

conhecer minha amiga. – E olhando por cima do ombro de Mindy, viu

Annalisa saindo de um táxi. – Aí vem ela.

Mindy virou-se. Uma jovem alta, de cabelos castanho-avermelhados

presos num rabo-de-cavalo mal-ajambrado estava se aproximando. Tinha um

rosto sério, porém interessante, o tipo de rosto que outras mulheres

considerariam bonito, possivelmente por que era o tipo de beleza que

parecia estar associada a uma personalidade.

— Esta é a Mindy Goocy – disse Billy a Annalisa. – Mindy mora no

Nümero Um da Quinta Avenida. Também era amiga da Sra. Houghton.


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— Prazer em conhecê-la – disse Annalisa. Apertou a mão de Mindy com

firmeza, e Mindy gostou do fato de Annalisa não tentar beijá-la no

rosto à maneira fingida dos europeus, e de Billy ter se referido a ela

como amiga da Sra. Houghton. Billy, pensou Mindy, era o exemplo

perfeito de como os moradores da Quinta Avenida civilizados deviam se

comportar uns em relação aos outros.

Dentro da igreja, eles se sentaram em um dos bancos do meio. Duas

filas adiante, Mindy reconheceu a parte de trás do penteado alto e

oxigenado da Enid (ela antes era morena, mas os cabelos grisalhos

acabaram predominando), ao lado dos cabelos até os lóbulos das orelhas

do Philip. Que tipo de homem de meia-idade insistia em andar por aí com

os cabelos assim compridos? Eles formavam um par ridículo, decidiu

Mindy, uma solteirona já idosa e o sobrinho boboca, com suas

malcriações e arrogância. Era demais. Enid Merle precisava aprender uma

lição.

Os sinos da igreja tocaram dez vezes, pesarosos. Depois alguém

começou a tocar órgão, e dois sacerdotes, de paramentos brancos,

balançando os incensários, desceram pelo corredor central, seguidos

pelo bispo, de paramentos azuis1 e mitra. A congregação ficou de pé.

Mindy abaixou a cabeça. Billy inclinou-se para ela.

— Quem quer dividir o apartamento? – cochichou.

— Enid Merle. E o sobrinho dela, o Philip.

Billy confirmou com a cabeça. O bispo chegou ao altar, a

congregação sentou-se. A cerimônia católica tradicional, que era o que

a Sra. Houghton tinha pedido, continuou em inglês e latim. AS palavras

entravam por um ouvido do Billy e saíam pelo outro. Aparentemente,

1
Azul não é uma das cores litúrgicas da Igreja Católica, embora permitido em ocasiões
festivas para comemorar uma festa mariana, o que podia ser uma devoção especial da
falecida. O normal seria roxo por ser uma missa fúnebre. NT
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achava difícil crer que Enid Merle iria querer dividir o apartamento da

Sra. Houghton. Mas havia um bom motivo pelo qual Enid tinha sobrevivido

quase 50 anos como colunista social. Não era tão bondosa quanto

aparentava ser, e embora todos geralmente achassem que Enid e Louise

Houghton tinham sido amigas do peito, Billy suspeitava que não era bem

isso. Ele se lembrava de alguns desentendimentos entre elas, sobre a

madrasta da Enid, que poderiam ter sido resolvidos quando a madrasta se

mudou do Número Um. Era possível que Enid Merle não estivesse nem um

pouco interessada em preservar o legado da Louise Houghton.

Mesmo assim, a situação apresentava um dilema moral. Billy não

queria se indispor com a Enid, o que podia ser perigoso, pois Enid

ainda controlava um segmento da opinião pública, através da coluna

distribuída pelas agências. Por outro lado, aquele apartamento tinha

sido causa de orgulho e a alegria da Sra. Houghton. Ela tinha mandado

na sociedade de Manhattan inteira daquele seu poleiro perto do céu, e

mesmo nas décadas de setenta e oitenta, quando o centro perdeu o brilho

e o Upper East Side passou a ser o fino, a Sra. Houghton não pensou em

se mudar. Quando ela deu essa informação a Billy, bateu no chão com a

bengala com castão de mármore. “Este é o centro da sociedade de Nova

York”, dizia, referindo-se aos Upper East Side e West Side de

Manhattan. “Você sabia que antes se levava um dia inteiro para se

chegar ao Dakota?2 E aí era preciso passar a noite naquela

monstruosidade gótica.” E depois voltava a bater com a bengala no chão.

2
O Dakota, construído em 1880-84, é um edifício residencial no estilo alemão
renascentista, com forte influência francesa, tombado pelo Patrimônio
Histórico. Chamado com esse nome porque na época de sua construção. Segundo uma
lenda urbana, recebeu esse nome por se situar em um lugar ermo na época em que
foi construído e considerado tão distante quanto o território de Dakota. NT.
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“A Sociedade começou aqui, e terminará aqui. Nunca se esqueça das suas

origens, Billy.”

Uma parte significativa da sociedade se extinguiria se a Enid Merle

conseguisse rachar o apartamento, pensou Billy. Sua missão era clara:

por mais que admirasse a Enid Merle, precisava ser leal aos desejos da

Sra. Houghton.

Continuaram as preces, e a congregação ajoelhou-se. Mindy ficou de

mãos postas diante do rosto.

— Eu estava pensando – cochichou o Billy atrás das palmas unidas. –

O que vai fazer depois da missa? Talvez possamos ir até o Número Um dar

uma olhada no apartamento.

Mindy olhou para Billy, surpresa. Tinha desconfiado que havia um

motivo atrás daquela súbita bondade dele, mas não esperava que ele

chegasse ao ponto de fazer negócios no templo do Senhor. Só que ali era

Nova York, nada era sagrado. Ela espreitou entre os dedos as partes de

trás das cabeças dos vizinhos, e sentiu seu rancor aumentar. O bispo

liderou os presentes, fazendo o sinal da cruz.

– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo – disse Mindy.

Sentou-se no banco, e, olhando direto para a frente, murmurou para

Billy: — Acho que podemos fazer isso, sim.

Enid tinha convidado vinte pessoas para irem almoçar no

restaurante Village na Rua Nove, depois da missa, e Philip Oakland

acompanhou a tia. Embora o restaurante normalmente não abrisse para o

almoço, como ela já era freguesa de lá havia anos, juntamente com quase

todos que moravam no bairro, eles abriram uma exceção para Enid,

naquela ocasião de luto. Philip conhecia bem os amigos da Enid, que

antes eram dos melhores e mais inteligentes de Nova York. Essa gente e
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seus rituais específicos, que incluíam falar com a mulher à sua direita

durante os aperitivos e a mulher à esquerda durante o prato principal;

trocar informações exclusivas sobre política, negócios, meios de

comunicação e arte; e, por último, ficar de pé e discursar durante o

café, era uma parte tão comum da vida de Philip que ele mal notava como

tinham envelhecido todos aqueles poderosos.

A conversa, como sempre, era animada. Embora a tragédia do

acidente infeliz da Sra. Houghton e sua morte extemporânea – “ela ainda

ia viver mais cinco anos pelo menos”, concordava a maioria – também

fizesse parte dos debates, acabaram falando das eleições iminentes e da

recessão inevitável. Sentado ao lado de sua tia estava um homem idoso

com as costas retinhas como uma tábua. Ex-senador e redator dos

discursos de Jack Kennedy, ele procurava discorrer sobre as diferenças

entre os estilos de oratória dos candidatos democratas. O segundo prato

foi servido, carne de vitela com molho de manteiga e limão – e, sem

perder o fio da conversa, Enid pegou a faca e o garfo e começou a

cortar a carne do senador. Aquele seu ato de bondade aterrorizou

Philip. Examinando todos os convivas em torno da mesa, aquela cena toda

lhe pareceu subitamente extravagante, uma velharia grotescamente

burlesca.

Ele deixou o garfo de lado. Era isso que o esperava; aliás, não

estava muito longe de chegar àquele ponto. A realidade que tinha

percebido o fez entrar em pânico, e tudo que tinha acontecido de errado

com sua vida recentemente veio para o primeiro plano. Seu roteiro atual

estava sendo contestado; haveria problemas com o seguinte, e se

houvesse um seguinte, também; e se houvesse mais um livro, ele também

teria problemas com ele. Um dia ele estaria sentado ali, um saco de
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vento impotente e insignificante, precisando de alguém para lhe cortar

a carne. E nem mesmo tinha uma mulher para confortá-lo.

Levantou-se e pediu licença. Tinha que participar de uma

conferência telefônica de Los Angeles que não tinha como evitar, tinha

acabado de receber uma mensagem sobre o assunto no seu BlackBerry.

— Não pode ficar para a sobremesa? – indagou Enid. Depois exclamou:

— Mas que chato, agora o número ficou desigual. – A ausência dele

significava que passaria a haver mais mulheres do que homens à mesa.

— Não posso evitar, Nini – disse ele, beijando-a na face que ela

lhe ofereceu. – Vai conseguir se virar.

Ele ligou para Lola antes mesmo de chegar à metade do quarteirão. O

alô informal fez seu coração disparar, e ele disfarçou, soando mais

sério do que pretendia:

— Aqui quem fala é o Philip Oakland.

— Tudo bem? – disse ela, embora parecesse gostar de ter notícias

dele.

— Quero lhe oferecer a vaga. De minha pesquisadora. Pode começar

esta tarde?

— Não – disse ela. – Estou ocupada.

— Que tal amanhã de manhã?

— Não dá – disse ela. – Mamãe vai embora, e eu preciso me despedir.

— A que horas ela vai? – disse ele, perguntando-se como é que tinha

se metido naquele papo de desesperado.

— Não sei. Talvez à dez? Ou onze?

— Por que não vem ao meu apartamento à tarde?

— Acho que posso – disse Lola, parecendo não ter muita certeza.

Sentada à beira da piscina no Soho House, ela mergulhou o dedão do pé

na água morna e escura. Queria aquele emprego, mas não queria parecer
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que muito ansiosa. Afinal, muito embora o Philip fosse ser seu patrão,

era homem. E em se tratando de homens, sempre era importante ficar por

cima.

— Às duas horas está bem?

— Perfeito? – disse Philip, aliviado, e desligou.

No Soho House, o garçom aproximou-se de Lola e avisou-a de que não

se permitiam celulares no clube, nem mesmo no terraço. Lola lançou-lhe

um olhar gélido antes de digitar uma mensagem de texto para a mãe lhe

dando a boa notícia. Aí besuntou-se um pouco mais de protetor solar, e

deitou-se em uma espreguiçadeira. Fechou os olhos, inventando fantasias

sobre Philip Oakland e o Número Um da Quinta Avenida. Talvez Philip se

apaixonasse por ela e se casasse com ela, e aí ela também moraria lá.

— É lindo – disse Annalisa, ao entrar no vestíbulo do apartamento

da Sra. Houghton.

Billy levou a mão ao coração.

— Está uma bagunça. Devia ter visto esse apartamento quando a Sra.

Houghton era viva.

— Eu vi – disse Mindy. – Era bem o estilo velha senhora.

Todas as antigüidades, pinturas, tapetes e cortinas de seda tinham

sido retirados do apartamento; haviam restado só poeira acumulada e

papel de parede amarelado. No meio da tarde, o apartamento estava

inundado de luz, revelando a tinta descascada e os pisos de parquê

arranhados. O pequeno vestíbulo levava a um vestíbulo maior com um sol

entalhado no chão de mármore; ali começava uma grandiosa escadaria.

Três pares de portas de madeira altas davam para uma sala de estar, uma

sala de jantar e a biblioteca. Billy, perdido em suas lembranças,

entrou na mostruosa sala de estar. Ela tomava toda a frente do


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apartamento, dando vista para a Quinta Avenida. Dois pares de portas

envidraçadas levavam a um terraço de três metros de largura.

— Ah, as festas que ela deu aqui – disse ele, gesticulando pela

sala. – Ela mandou decorar este salão ao estilo europeu, com sofás e

canapés e conjuntos estofados para as pessoas se sentarem para

conversar. Nem dava para sentir que cabiam cem pessoas nesta sala.

Ele conduziu o grupo até a sala de jantar.

— Ela convidava todos para o jantar. Lembro de um jantar em

particular. A Princesa Grace. Ela era lindíssima. Ninguém fazia a menor

idéia de que, um mês depois, ela estaria morta.

— Geralmente não é possível imaginar isso mesmo – disse Mindy, em

tom seco.

Billy deixou passar.

— Havia uma longa mesa posta para quarenta pessoas. Acho uma mesa

comprida muito mais elegante do que essas mesas redondas para dez que

todos usam hoje em dia. Infelizmente, não há remédio. Ninguém tem mais

sala de jantar grande, embora a Sra. Houghton sempre dissesse que nunca

se devia convidar mais de quarenta pessoas em um jantar à mesa. Devia-

se fazer os convidados sentirem que faziam parte de um grupo seleto.

— Onde é a cozinha? – indagou Mindy. Embora ela tivesse estado no

apartamento antes, tinha sido apenas uma visita breve, e agora estava

sentindo inveja e intimidação. Não fazia idéia de que a Sra. Houghton

tinha uma vida assim tão suntuosa, mas essa suntuosidade parecia ter

acontecido antes de Mindy e James se mudarem para o prédio. Andando na

frente, entre portas de vaivém, Billy apontou para o lugar onde era a

copa e mais adiante a cozinha em si, surpreendentemente tosca, com piso

de linóleo e balcões de fórmica.


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— Ela nunca entrava aqui, é claro – explicou Billy. – Ninguém

entrava aqui, a não ser os empregados. Era considerado uma espécie de

respeito.

— E se ela quisesse um copo d’água? – perguntou Annalisa.

— Ligava para a cozinha. Havia telefones em todos os cômodos, cada

cômodo com sua própria linha. Isso era considerado muito moderno no

início dos anos oitenta.

Annalisa olhou para Mindy, viu que ela também estava olhando para

ela e sorriu. Até ali Mindy não sabia o que pensar da Annalisa, que

conseguia parecer controlada e autoconfiante sem revelar nem um pingo

de informação sobre si mesma. Talvez Annalisa Rice tivesse senso de

humor, afinal.

Eles subiram até o segundo andar, examinaram o quarto maior, que

era o da Sra. Houghton, o banheiro grande e sua saleta de visitas,

onde, Billy observou, ele e Louise tinham passado muitas horas

agradáveis. Deram uma espiada nos três outros quartos que havia mais

adiante no corredor e subiram ao terceiro andar.

— E aqui – disse Billy, abirndo duas portas almofadadas – está a

piéce-de-résistance. O salão de baile.

Annalisa atravessou o piso de mármore preto e branco, como um

tabuleiro de xadrez, e ficou de pé no meio da sala, admirando o teto em

cúpula, a lareira, e também as portas envidraçadas. A sala era

fantasticamente bela, ela nunca teria imaginado que existiria uma sala

assim, num apartamento assim, em um edifício em Nova York. Manhattan

era cheia de maravilhosos segredos e surpresas. Olhando em torno de si,

deslumbrada, Annalisa pensou que jamais tinha desejado tanto uma coisa

na vida antes como desejava agora ter aquele apartamento.

Billy aproximou-se às suas costas.


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— Eu sempre digo que se não se puder ser feliz neste apartamento,

não se pode ser feliz em lugar nenhum. – Até Mindy foi incapaz de fazer

um comentário diante dessa afirmativa. O clima estava cobiçoso, pensou

Billy, o que ele chamava de “o anseio”. Fazia parte da dor de viver em

Manchattan, aquele anseio avassalador por imóveis de grande valor.

Podia fazer as pessoas agirem de qualquer forma, mentir, continuar

casadas quando já não havia mais amor, prostituírem-se, até cometerem

assassinato.

— O que acha? – perguntou a Annalisa.

O coração de Annalisa batia acelerado. O que pensava era que ela e

Paul precisavam comprar o apartamento agora, naquela tarde, antes que

qualquer outra pessoa o visse e também o quisesse. Mas sua mente

condicionada de advogada prevaleceu, e ela se controlou.

— É maravilhoso. Certamente nós pensaremos no caso.

E olhou para Mindy. A chave para conseguir o apartamento estava nas

mãos daquela mulherzinha nervosa e neurótica de olhos ligeiramente

saltados. – Meu marido, Paul, é muito exigente – disse Annalisa. – Ele

vai querer ver as contas do edifício.

— É um edifício de primeira categoria – disse mIndy. – Temos as

melhores credenciais em termos de hipoteca. – E abriu as portas

envidraçadas, saindo ao terraço. Olhando para o lado, via perfeitamente

uma esquina do terraço da Enid.

— Já viu esta vista? – gritou para Annalisa.

Annalisa saiu ao terraço. Estar ali era como estar na proa de um

navio sobre um mar feito de telhados de Manhattan.

— Sensacional – disse ela.

— Então, você é de...? – indagou Mindy.


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— Washington – disse Annalisa. – Nós nos mudamos para cá por causa

do trabalho do Paul. Ele é financista – Billy Litchfield tinha lhe

murmurado na igreja para evitar a expressão “gerente de fundos de

hedge” e usar o vago e mais aristocrático termo “financista” em vez

disso. “Quando falar com a Mindy, procure mostrar que é igual a todo

mundo”, aconselhou Billy.

— Há quanto tempo mora aqui? – indagou Annalisa, educadamente,

procurando desviar o assunto da sua pessoa.

— Dez anos – disse Mindy. – Adoramos este edifício. E o ponto. Meu

filho estuda no Village, então é realmente muito à mão.

— Ah – disse Annalisa, concordando, sabiamente.

— Tem filhos? – perguntou Mindy.

— Ainda não.

— Aqui as crianças são bem-vindas — disse Mindy. – Todos adoram o

Sam.

Billy Litchfield veio para perto delas e Annalisa decidiu que agora

era hora de atacar.

— Seu marido é James Gooch? – perguntou a Mindy, com toda a

naturalidade.

— É. Como o conhece? – idnagou Mindy, olhando surpresa para ela.

— Li o livro mais recente dele, O Soldado Solitário – disse

Annalisa.

— Só duas mil pessoas leram esse livro – retrucou Mindy.

— Eu adorei. Entre outras coisas sou obcecada por história

americana. Seu marido é um excelente escritor.

Mindy recuou um passo. Não sabia se acreditava em Annalisa, mas

gostou do fato de Annalisa estar se esforçando. E considerando-se o

golpe do James, de agora estar sendo patrocinado pela Apple, talvez


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Mindy estivesse errada sobre seu talento sobre escritor. Era verdade

que James tinha sido antes um escritor maravilhoso; era um dos motivos

pelo qual havia se casado com ele. Talvez ele estivesse para se tornar

um escritor maravilhoso outra vez.

— Meu marido vai publicar outro livro – disse ela. – O pessoal da

área editoral diz que vai fazer mais sucesso que Dan Brown. Se é que se

pode crer nisso.

Depois de dizer isso em voz alta, e gostar do que tinha dito, Mindy

agora começava a crer que o sucesso de James era uma distinta

possibilidade. Isso realmente iria mostrar ao Philip Oakland que ele

não era o maior, pensou ela. E se os Rice comprassem o apartamento,

seria bem feito para a Enid e o Philip.

— Preciso voltar ao escritório – disse Mindy, estendendo a mão para

Annalisa. – Mas espero conversar com você de novo em breve.

— Estou impressionado – disse Billy a Annalisa, quando desceram

para a calçada diante do Número Um. – A Mindy Gooch gostou de você, e

ela não gosta de ninguém.

Annalisa sorriu e fez sinal para um táxi.

— Você leu mesmo O Soldado Solitário? – indagou Billy. – Esse livro

tinha umas 800 páginas e era seco como uma torrada.

— Li – disse Annalisa.

— Então sabia que James Gooch era marido da Mindy?

— Não. Consultei o Google antes de vir para a igreja. E achei um

artigo dizendo que o James Gooch era marido dela.

— Esperteza sua – elogiou Billy. Um táxi parou ao lado deles, e ele

ajudou a abrir a porta.

Annalisa sentou-se no banco de trás.

— Eu sempre procuro me informar – disse ela.


155

Como já era de se imaginar, o emprego de pesquisadora do Philip era

fácil. Três tardes por semana, às segundas, quartas e sextas, Lola

encontrava-se com o Philip no seu apartamento ao meio-dia. Sentada a

uma mesinha minúscula na sala imensa e ensolarada dele, Lola fingia

trabalhar; durante os primeiros dias, pelo menos. Philip trabalhava no

seu escritório com a porta aberta. De vez em quando, ele punha a cabeça

para fora e pedia a ela para encontrar alguma coisa para ele, como o

endereço exato de algum restaurante que ficava na Quinta Avenida

durante a década de 80. Lola não podia entender por que ele precisava

dessa informação; afinal de contas, estava escrevendo um roteiro,

portanto por que não podia simplesmente inventar tudo, como tinha

inventado os personagens?

Quando ela o questionou sobre o assunto, ele se sentou ao lado dela

no braço da poltrona de couro diante da lareira e lhe deu uma lição

sobre a importância da autenticidade na ficção. A princípio Lola ficou

intrigada, depois entediada, depois fascinada. Não pelo que Philip

estava dizendo, mas pelo fato de ele estava falando com ela como se ela

também possuísse os mesmos interesses e o mesmo conhecimento dele. Isso

aconteceu algumas vezes, e quando ele voltava de repente para o seu

escritório, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa, e

começava a batucar no teclado, Lola prendia o cabelo atrás das orelhas

e, franzindo a testa de concentração, tentava procurar pelo Google as

informações que ele havia pedido. Mas ela não era capaz de concentrar

sua atenção em uma só coisa durante muito tempo, e dentro de alguns

minutos já estava fazendo alguma coisa totalmente diferente, como ler

Perez Hilton, ou verificando sua página do Facebook, ou assistindo a

episódios do The Hills, ou procurando vídeos no YouTube. Se ela tivesse


156

um emprego convencional em um escritório, Lola sabia que essas

atividades não seriam aprovadas, aliás, uma de suas amigas de faculdade

tinha recentemente sido despedida do emprego de assistente de um

escritório de advocacia justamente por essa infração, mas Philip não

parecia se importar. Aliás, o que acontecia era exatamente o contrário.

Ele parecia considerar isso parte das atribuições de sua assistente.

Na segunda tarde dela, enquanto assistia a vídeos no YouTube, Lola

encontrou um clipe de uma noiva de vestido de noiva tomara-que-caia

atacando um homem com um guarda-chuva no acostamento de uma estrada. Ao

fundo via-se uma limusine branca; pelo jeito o carro tinha quebrado, e

a noiva estava descarregando em cima do motorista.

— Philip? – chamou Lola, espiando para dentro do escritório dele.

Philip estava curvado sobre o computador, os cabelos castanho-

escuros caindo-lhe sobre a testa.

— Hã? – disse ele, olhando para ela e afastando os cabelos da cara.

— Acho que encontrei uma coisa que pode te ajudar.

— O endereço do Peartree’s?

— Coisa melhor – disse ela. E mostrou-lhe o vídeo.

— Caramba – disse Philip – isso é verdade?

— Mas claro – E eles escutaram a noiva xingando o motorista de

todos os nomes possíveis e imagináveis. – Isso sim é que é

autenticidade – disse Lola, recostando-se na sua cadeirinha.

— E tem mais vídeos desses aí? – indagou Philip.

— Provavelmente centenas – respondeu Lola.

— Bom trabalho – disse Philip, impressionado.

Philip, deduziu Lola, era um cara intelectual, mas apesar do seu

desejo de redigir algo autêntico, não parecia saber muito a respeito da


157

vida real. Por outro lado, sua própria vida real em Nova York não

estava exatamente saindo como ela esperava.

Na noite de sábado, ela tinha saído pela noite com suas amigas que

tinha conhecido no departamento de recursos humanos. Embora Lola as

considerasse “sem graça” eram as únicas moças que ela conhecia em Nova

York. Sair à noite no Meatpacking District era ao mesmo tempo

empolgante e deprimente. No princípio da noite, duas boates as

impediram de entrar, mas elas conseguiram encontrar uma terceira na

qual poderiam entrar se esperassem na fila. Durante 45 minutos, elas

aguardaram atrás de uma barricada policial enquanto gente que chegava

de Town Cars e SUVs parava na entrada e era admitida imediatamente,

sentindo inveja de não pertencerem àquele clube restrito, mas enquanto

esperavam viram seis famosos em carne e osso, entrando. A fila começava

a vibrar como o rabo de uma cascavel e aí, de repente, todos já estavam

pegando o celular e tentando tirar uma foto do famoso. Dentro do clube,

havia mais separação entre os Famosos e os Joões e Marias-Ninguéns. Os

Famosos tomavam garrafas de vodca e champanhe em mesas situadas em

andares isolados por cordão, protegidos por guardas de segurança

enormes, ao passo que os Joões e Marias-Ninguém eram obrigados a se

aglomerar diante do bar como se estivessem assistindo a um concerto de

rock na fila do gargarejo. Levaram mais meia hora para conseguir um

drinque, que era preciso proteger dos outros ciosamente como se fosse

um bebê, pois não se sabia se seria possível obter outro.

Aquilo não era vida. Lola precisa encontrar um jeito de entrar em

um círculo dos glamourosos de Nova York.

Na segunda quarta-feira do emprego Lola estava estendida no sofá da

sala ampla do Philip, lendo revistas de fofocas sobre artistas. Philip

tinha ido à biblioteca escrever, deixando-a sozinha no apartamento,


158

onde ela devia estar lendo o argumento do seu roteiro, procurando erros

tipográficos. “Você não usa corretor ortográfico?”, indagou ela, quando

ele lhe entregou o roteiro. “Não confio nele”, tinha dito Philip. Lola

começou a ler o roteiro, mas lembrou-se de que aquele era o dia em que

saíam todos os novos tablóides. Deixando o roteiro de lado, saiu para

ir à banca da Universidade. Adorava entrar e sair da Quinta Avenida, e

quando passava pelos porteiros agora, cumprimentava-o com uma vênia,

como se morasse ali.

Mas os tablóides daquela semana não tinham nada de novo, nenhum

famoso tinha ido para a clínica de reabilitação nem ganhado (ou

perdido) vários quilos ou roubado o marido de alguém, e Lola jogou as

revistas para um canto, entediada. Procurando pelo apartamento do

Philip, percebeu que enquanto o Philip não estava havia algo muito mais

interessante para fazer: espionar.

Ela foi até a parede oculta por estantes. Havia três prateleiras

inteiras só para o primeiro livro do Philip, Manhã de Verão, em várias

edições e línguas. Uma outra prateleira consistia em primeiras edições

em capa dura dos clássicos; Philip havia lhe dito que colecionava

clássicos, e tinha pago cinco mil dólares por uma primeira edição do O

Grande Gatsby, o que Lola achou uma loucura. Na prateleira de baixo

havia uma coleção de jornais e revistas antigos. Lola pegou um exemplar

de The New York Times Review of Books de fevereiro de 1992. Foi

folheando o jornal até ver uma resenha do livro de Philip, Estrela

Negra. Coisa mais chata, pensou, e colocou o jornal de volta na

prateleira. Debaixo de tudo ela viu um velho exemplar de Vogue. Pegou-o

e olhou a capa. Setembro de 1989. Uma das manchetes dizia: OS NOVOS

CASAIS PODEROSOS. Que revista Vogue era aquela que o Philip estava

guardando? perguntou-se ela, abrindo-a para descobrir.


159

Lá pelo meio da revista ela encontrou a resposta. Havia uma matéria

de dez páginas sobre Philip quando era bem mais jovem e Schiffer

Diamond muito mais jovem, de pé diante da Torre Eiffel, colocando

croissants um na boca do outro em um café ao ar livre, passeando por

uma rua de Paris de vestido de baile e de smoking, e a manchete dizia:

AMOR NA PRIMAVERA: A ATRIZ VENCEDORA DO OSCAR, SCHIFFER DIAMOND E O

AUTOR GANHADOR DO PRÊMIO PULITZER PHILIP OAKLAND, EXIBINDO AS NOVAS

COLEÇÕES DE PARIS.

Lola levou a revista até o sofá e examinou as fotos com mais

cuidado. Não fazia idéia de que Philip Oakland e Schiffer Diamond

tinham namorado antes, e ficou muito enciumada. Na semana anterior, ela

havia sentido momentos de atração por Philip, mas sempre hesitava por

causa da sua idade. Ele era vinte anos mais velho do que ela, afinal de

contas. E embora parecesse mais jovem e em boa forma, pois ia à

academia malhar todo dia de manhã, e houvesse milhares de mulheres mais

jovens casadas com famosos mais velhos, por exemplo, a mulher do Billy

Joel, Lola ainda se preocupava pensando que se “avançasse o sinal” com

ele, podia ter uma surpresa desagradável. E se ele tivesse manchas

senis? Ou brochasse?

Mas à medida em que folheava a Vogue, olhando as fotos, foi

perdendo todos aqueles preconceitos contra ele, e começou a calcular

como poderia seduzi-lo.

Às cinco da tarde, Philip saiu da biblioteca e voltou ao Número Um

da Quinta Avenida. Lola já devia ter ido embora, pensava ele, e assim

mais um dia teria se passado sem que ele tentasse levá-la para a cama.

Sentia atração por ela, coisa que era inevitável, por ser ele homem. E

ela parecia sentir atração por ele, a julgar pela forma como olhava

para ele com uma mecha de cabelos sempre caída sobre o rosto, que
160

ficava torcendo, como se fosse tímida. Mas era um pouco jovem demais

até mesmo para ele, e, apesar de conhecer tudo sobre famosos e a

Internet, não sabia muito ainda sobre a vida. Até ali, não tinha tido

nenhuma experiência marcante, e era meio imatura.

Ao subir até o seu andar pelo elevador, ele sentiu uma inspiração e

apertou o botão do nono andar. Havia seis apartamentos nesse andar, e o

de Schiffer era no fim do corredor. Ele percorreu o corredor,

lembrando-se de quantas vezes tinha vindo até ali a todas as horas do

dia ou da noite. Tocou a campainha dela e depois sacudiu a maçaneta.

Nada. Ela não estava em casa, naturalmente. Nunca estava em casa.

Subiu para o seu apartamento, e, girando a chave na fechadura,

assustou-se ao ouvir Lola chamando:

— Philip?

Logo ao abrir a porta ele viu uma malinha de couro envernizado cor

de rosa. Lola estava no sofá da sala de estar. Ela espiou sobre o

encosto.

— Ainda está aqui? – disse Philip. Estava surpreso, mas não estava

se sentindo irritado ao vê-la, constatou.

— Aconteceu uma coisa horrível, mas muito horrível mesmo - disse

ela. – Espero que não se zangue.

— Que foi? – indagou ele, alarmado, achando que tinha a ver com seu

roteiro. Será que a chefe do estúdio tinha ligado de novo?

— Não tem água quente no meu prédio.

— Ah – disse ele. E tentando adivinhar o que aquela malinha

significava, arriscou um palpite: — Precisa tomar banho aqui?

— Não é só isso. Alguém me disse que eles vão passar a noite

inteira trabalhando nos encanamentos. Quando fui para casa, estavam

fazendo um barulhão.
161

— Mas certamente vão parar. Depois das seis, imagino.

Ela sacudiu a cabeça.

— Meu prédio não é como o seu. É apartamento alugado, portanto eles

fazem o que quiserem. Quando querem – acrescentou, para dar ênfase.

— O que quer fazer? – perguntou ele. Será que ela estava querendo

perguntar se podia passar a noite no seu apartamento? Isso poderia ser

uma ótima ou péssima idéia.

— Eu estava pensando em te pedir para dormir no seu sofá. É só uma

noite. Amanhã eles já devem ter terminado.

Ele hesitou, perguntando-se se os canos teriam sido apenas uma

desculpa. Se eram, ele seria bobo de resistir.

— Claro – disse ele.

— Ah, legal! – exclamou ela, pulando do sofá e apanhando a mala. –

Nem mesmo vai lembrar que estou aqui, prometo. Vou só ficar sentada no

sofá assistindo à televisão. E pode trabalhar, se quiser, ou fazer

qualquer outra coisa que deseje.

— Não precisa agir como se fosse uma menininha órfã – disse ele. –

Vou levá-la para jantar fora.

Enquanto ela estava no chuveiro, ele foi ao escritório e verificou

suas mensagens de correio eletrônico. Havia várias às quais ele sabia

que devia responder, mas ao ouvir o chuveiro ligado e imaginar Lola

nua, não conseguiu concentrar-se, e tentou ler a Variety em vez disso.

Depois ela apareceu à porta, ainda meio molhada, mas com um vestido

curto sem mangas, secando os cabelos com uma toalha.

— Onde quer jantar? – indagou ela.

Ele fechou o computador.


162

— Achei que o Knickerbocker seria bom. Fica bem aí na esquina, e é

um dos meus restaurantes prediletos. Não é luxuoso, mas a comida é

ótima.

Um pouco mais tarde, sentada com ele em um reservado, Lola já

estava examinando o longo cardápio e sorrindo para ele, sôfrega.

— Já tomou um aperitivo de ostra? Eles pegam uma ostra e colocam em

um copo de aperitivo e acrescentam vodca e molho de coquetel. Nós

tomávamos isso o tempo todo quando eu estava em Miami.

Philip não soube como reagir, pois nunca tinha tomado aperitivo de

ostra, que parecia uma coisa repelente mas provavelmente fazia sentido

para uma moça de vinte e dois anos.

— E depois, o que acontecia – perguntou ele. Foi uma pergunta feita

sem qualquer segunda intenção, mas que exigia uma resposta.

— Bom – disse ela, apoiando os cotovelos na mesa, e descansando o

queixo nas mãos – todo mundo ficava num porre de fazer gosto. E uma

menina, que não era amiga minha, mas que estava no grupo, ficou tão

bêbada que tirou a blusa para o Girls Gone Wild. E o pai viu. E ela

teve um ataque. Não é um horror, saber que seu pai assiste a Girls Gone

Wild?

— Talvez ele tenha ouvido dizer que ela tinha feito isso. E queria

se certificar.

Ela franziu a testa.

— Ninguém conta ao pai que participou do Girls Gone Wild. Mas

algumas definitivamente fazem isso para conseguir namorado. Acham que

agir assim mostram que são sensuais.

— E você, o que acha? – indagou ele.

— É uma burrice. Sim, o cara vai e te leva para a cama, mas e

depois?
163

E depois, mesmo, pensou Philip, imaginando com quantos caras ela já

teria dormido.

— Você já fez isso? – indagou ele.

— Girls Gone Wild? De jeito nenhum. Eu talvez tirasse a roupa para

a Playboy. Ou Vanity Fair, porque são revistas de classe, né. E as

fotos passam por um processo de aprovação.

Philip tomou um gole de vinho e sorriu. Ela definitivamente queria

ir para a cama com ele. Por que outro motivo estaria falando sobre sexo

e tirar a roupa? Ia deixá-lo maluco se não parasse.

Um anjinho cochichou para ele, porém, lembrando que ele não devia

trepar com ela, ao passo que o diabinho do outro lado disse: “por que

não? Ela obviamente já deu para outros, e provavelmente com bastante

freqüência”. Para conciliar esses dois impulsos, ele procurou fazer o

jantar durar o máximo possível, pedindo mais outra garrafa de vinho,

sobremesa e bebidas após a refeição. Quando chegou o momento inevitável

e era hora de voltar para casa, Lola ficou de pé e tateou procurando a

bolsa de couro de cobra, obviamente embriagada. Ao sair do restaurante,

Philip passou o braço ao redor dos ombros dela para ampará-la, e quando

saíram ela passou o braço ao redor da cintura dele, encostando-se nele

e dando risadinhas juvenis. Imediatamente o pênis dele avolumou-se,

roçando-lhe contra a coxa.

— Foi muito divertido – disse ela, mas depois, ficando série,

acrescentou: — Não fazia idéia que trabalhar com cinema era tão difícil.

— Mas vale a pena – disse ele. Depois do papo sobre sexo, e

sentindo-se mais descontraído por causa do vinho, ele tinha lhe contado

todos os seus problemas com o estúdio, enquanto ela ouvia, encantada.

Passou a mão do ombro dela para a nuca.


164

— Agora está na hora de você ir para a cama – disse ele. – Não

quero que tenha ressaca amanhã.

— Eu já vou ter mesmo – disse ela, rindo de novo.

De volta ao apartamento, ela deu todas as pistas de que estava indo

se trocar no banheiro, enquanto ele trazia um travesseiro e um cobertor

para o sofá. Eles dois sabiam que ela não ia dormir ali, mas

provavelmente era melhor fingir, pensou Philip. Ela saiu do banheiro

descalça, de baby-doll curtinho com decote debruado com fitinha de

seda, desabotoado apenas o suficiente para se pudesse entrever o sulco

entre os seios. Philip suspirou. E, reunindo todas as suas forças,

parou diante dela, deu-lhe um beijo na testa e foi para o seu quarto.

— Boa noite – disse. E obrigou-se a fechar a porta, sem saber como.

Tirou as roupas, ficando só de cueca samba-canção e deitou-se na

cama, deixando a luz acesa e pegando um exemplar de Os Buddenbrooks.

Uma vez mais não conseguiu concentrar-se, sabendo que a Lola estava do

outro lado da porta vestida com aquele baby-dollzinho minúsculo.

Franzindo a testa para a página, recordou-se de que ela só tinha 22

anos. Podia dormir com ela, e depois? Ela não ia poder mais trabalhar

para ele se eles trepassem. Ou ia? Ele podia demiti-la e encontrar

outra pesquisadora se ela não pudesse. Afinal de contas, era

provavelmente mais fácil encontrar outra pesquisadora do que encontrar

uma mocinha gostosíssima de vinte e dois anos disposta a se entregar.

Mas e agora? Será que devia ir lá falar com ela? Por um momento,

ele teve um pensamento inquietante: e se estivesse errado? E se ela não

quisesse trepar com ele, coisa nenhuma, e a desculpa dos canos da água

quente no prédio dela fosse verdade? E se ele saísse e ela o

rejeitasse? Seria provavelmente duas vezes pior trabalhar com ela, e aí


165

ele realmente ia precisar demiti-la. Passaram-se mais um ou dois

minutos. E então ele obteve uma resposta, uma batida à porta.

— Philip? – chamou ela.

— Entre – disse ele.

Ela abriu quando ele tirou os óculos de leitura. Agindo como se não

quisessse perturbá-lo, ela encostou-se no batente da porta com as mãos

cruzadas diante de si, como uma criança.

— Posso tomar um copo d’água?

— Claro – disse ele.

— Pode pegar para mim? Não sei onde estão os copos.

— Siga-me – disse ele, levantando-se da cama, e percebendo que

estava só de cueca, e nem se importando com isso.

Ela não tirava os olhos do peito dele, coberto de pêlos

encaracolados e negros que formavam um desenho uniforme sobre os

músculos peitorais.

— Desculpe incomodá-lo. Não foi minha intenção.

— Você não me incomoda – disse ele, indo à cozinha. Ela o seguiu, e

ele pegou um copo e encheu-o de água da torneira. Quando se virou, ela

estava de pé logo ao seu lado. Estava para lhe entregar o copo, quando

subitamente o deixou de lado e passou o braço em torno dos ombros dela.

— Ai, Lola – disse. – Vamos parar de fingir.

— Como assim? – indagou ela, timidamente, pondo a mão nos pêlos do

peito dele.

— Quer dormir comigo? – murmurou ele. – Por que eu quero dormir com

você.

— Mas claro – disse ela, encostando seu corpo no dele quando se

beijaram. Ele sentiu seus seios fartos e firmes através do tecido fino

do baby-doll; até deu para sentir que os bicos estavam durinhos.


166

Metendo a mão sob o baby-doll, foi acariciando a pele dela até os lados

da calcinha, subindo pela barriga, chegando aos seios, cujos bicos

estimulou com os dedos. Ela soltou um gemido, inclinando-se para trás,

e ele lhe tirou o baby-doll pela cabeça. Como era bonita, rapaz, pensou

ele. Ergueu-a, sentando-a no balcão da cozinha, e separando-lhe a

pernas, ficou de pé entre elas, beijando-a. Depois sua mão deslizou até

a virilha dela e afastou a calcinha bordada, também de seda, para um

lado, mas, surpreso pelo que encontrou, parou e recuou.

— Ih, não tem pêlo nenhum aí? – disse.

— Claro que não – disse ela, orgulhosa. Como todas as moças que

conhecia, ela fazia uma depilação cavada uma vez por mês.

— Mas por quê? – disse ele, acariciando a pele exposta.

— Porque os homens gostam – disse ela. – Acham sensual. – E

respirou fundo. – Não me diga que nunca viu uma assim antes? – e riu.

— Gostei – disse ele, examinando a vulva dela, sem pêlo nenhum. Era

como um daqueles gatos macios e carecas, pensou ele. Ergueu-a de novo

nos braços e levou-a para o sofá. – Você é espetacular – elogiou.

Colocando-a sentada bem na beiradinha do sofá, abriu as pernas dela

e começou a lamber aquela pele arroxeada.

— Pára – disse ela, de repente.

— Por quê? – perguntou ele.

— Não gosto disso.

— É só porque até agora ninguém fez direito – disse ele. – Ele

pareceu levar horas beijando-lhe o “lá embaixo” até que finalmente ela

gozou, as pernas tremendo e a vagina pulsando. Depois, emocionada,

desatou a chorar.

Ele beijou-a na boca, e ela sentiu seu gosto nos seus lábios e

língua. A razão disse-lhe que devia sentir nojo, mas não foi tão ruim;
167

mais ainda, ela achou que parecia roupa úmida que tinha acabado de sair

da secadora.

Pôs as mãos nos cabelos dele, mais macios e finos do que os seus.

Olhou-o nos olhos. Será que ele diria que a amava?

— Gostou? – murmurou ele.

— Gostei sim – disse ela.

Depois ele foi à cozinha.

— Acabou? – perguntou ela, enxugando as faces e rindo. – Você não

vai...?

Ele voltou com dois copos de vodca.

— Isso é pra dar sustância – disse ele, entregando-lhe o copinho. –

Não tem ostra aí, mas funciona. – E pegou-lhe a mão, levando-a para o

quarto e tirando a cueca samba-canção. Seu pênis era volumoso, com uma

veia grossa embaixo, e seus testículos balançavam ligeiramente no saco

de pele rosa e espinhenta. Ela deitou-se de costas e ele empurrou as

pernas dela encostando seus joelhos no peito, e ajoelhou-se entre suas

pernas. Quando enfiou o pênis na vagina dela, Lola preparou-se para

sentir dor, mas surpreendentemente não sentiu nada, só uma onda de

prazer.

— Lola, Lola, Lola – repetiu ele. Depois seu corpo se retesou, suas

costas arquearam-se, e ele se deixou cair sobre ela. Lola abraçou-o,

beijando-lhe o pescoço.

No meio da noite, ele a acordou, e eles voltaram a se amar. Ela

adormeceu, e na manhã seguinte, ao despertar, viu-o contemplando-a.

— Ai, Lola – disse ele. – E agora, o que vai ser de você?

— De mim?

— De você e de mim.

Lola não sabia se tinha gostado de ouvir isso.


168

— Philip? – disse ela, timidamente, lhe acariciando o pênis com a

ponta de uma unha. No segundo seguinte ele já estava em cima dela outra

vez. Lola abriu as pernas, e depois que ele gozou, e ficou deitado

sobre ela, exausto, ela sussurrou. – Acho que te amo.

Ele levantou a cabeça de repente, olhando-a surpreso. Sorrindo e

beijando-lhe a ponta do nariz, ele disse:

— “Amar” é uma palavra um pouco forte demais, não, Lola. – E,

espreguiçando-se, saiu da cama. – Vou pegar alguma coisa para comermos

no café da manhã. Que tal bagels? De que tipo você gosta?

— Qual é o melhor? – perguntou Lola.

Ele riu, sacudindo a cabeça diante dessa pergunta.

— Não há tipo melhor. O que você quiser.

— Do que você gosta?

— Com gergelim.

— Eu também quero com gergelim.

Ele vestiu as calças jeans e, olhando Lola deitada nua ali na sua

cama, sorriu. Era isso que era legal em Nova York, pensou. Nunca se

sabia o que ia acontecer no momento seguinte. A vida de uma pessoa

podia melhorar literalmente da noite para o dia.

Enquanto ele estava fora, Enid Merle, depois de ter escutado

barulhos suspeitos no apartamento do Philip na noite anterior, decidiu

ir verificar se tudo estava bem com ele. Passou pelo portãozinho entre

os terraços dos dois e bateu à porta envidraçada. Seus piores temores

se confirmaram quando uma jovem, vestida com o que parecia ser uma das

camisetas do Philip e provavelmente sem nada por baixo, veio até a

porta. Olhou curiosa para Enid.

— Sim? – disse.

Enid passou direto por ela.


169

— O Philip está?

— Não sei – disse a moça. – Quem é a senhora?

— Quem é você? – disse Enid, sem antipatia.

— Sou namorada do Philip – disse ela, orgulhosa.

— É mesmo? – disse Enid, pensando que dessa vez tinha sido rápido

demais. – Eu sou tia dele.

— Ah – disse a moça. – Não sabia que Philip tinha uma tia.

— E eu não sabia que ele tinha namorada – disse Enid. – Ele está?

A moça cruzou os braços, caindo em si, e lembrando que estava quase

nua.

— Ele saiu para comprar bagels.

— Avise a ele que a tia dele passou aqui, sim?

— Claro – disse Lola. E seguiu Enid até a porta envidraçada e

assistiu a ela saindo pelo portão e indo para seu próprio terraço.

Lola entrou e sentou-se no sofá. Então o Philip tinha uma parente

que morava ali ao lado. Ela não esperava por essa, tinha presumido,

sabe-se lá por quê, que o Philip Oakland não tinha famíla. Abrindo uma

revista, ao acaso, ela lembrou-se da expressão fria da Enid, mas disse

consigo mesma que não imporava. A tia era velhíssima. Será que uma

velhota daquelas seria capaz de criar tanto caso assim?


170

— James qual é o seu problema? – indagou Mindy na manhã seguinte.

— Acho que não nasci para ser famoso – disse James. – Nem mesmo

consigo planejar o que vou vestir.

Mindy rolou na cama e olhou para o relógio. Eram pouco mais de seis

da manhã. Estou deprimida, pensou ela.

— Dava para fazer um pouco menos de barulho? – disse ela. – Preciso

descansar.

— Não é culpa minha.

— Por que é que está fazendo tanto estardalhaço com esses cabides?

Não dá para experimentar as roupas em silêncio?

— Por que não se levanta e me ajuda, hein?

— Você já é crescidinho, James. Devia ser capaz de planejar o que

vai vestir.

— Ah, é assim, é? Vou usar o que sempre uso. Meu jeans e uma

camiseta.

— Podia experimentar ir de terno – disse Mindy.

— Faz três meses que não vejo o meu terno. Deve ter sumido no

tintureiro – disse ele, ligeiramente acusador, como se a culpa talvez

fosse dela.

— Por favor, James. Pára com isso. É só uma foto, mais nada.

— Minha foto para a campanha publicitária.

— Por que vão fotografar você assim tão cedo?

— Eu já lhe disse. É um fotógrafo de moda famoso que vai tirar a

foto. E ele só pode me fotografar das nove às onze.


171

— Meu Deus do céu. Eu podia ter tirado sua foto. Com o celular. Ai,

por favor – disse Mindy. – Não dá para fazer silêncio? Se eu não

conseguir dormir, vou ficar maluca.

Se é que já não está, pensou James, apanhando um monte de roupas e

saindo do quarto, amuado. Era o seu grande dia. Porque a Mindy

precisava sempre pensar apenas nela mesma?

Levou o monte de roupas para o seu escritório e deixou-as em uma

cadeira. Vistas assim, daquele ângulo, suas roupas pareciam alguma

coisa que se encontraria no carrinho de um sem-teto. A agente do

Redmon, que possuía o improvável apelido de Cereja, tinha-o instruído a

trazer três trajes. Três camisas, três calças, um ou dois paletós e

dois pares de sapatos. “Só que eu costumo usar só tênis Converse” –

disse James. “Traga o melhor que tiver”, foi a resposta do Cherry. “A

foto deve mostrar o que você realmente é.”

Excelente, pensou James. Vai ser uma foto de um cara de meia-idade,

já ficando careca. Entrou no banheiro e examinou sua aparência. Talvez

ele devesse ter raspado a cabeça. Mas aí ia parecer com todos os outros

caras de meia-idade que estavam ficando carecasa e tentando disfarçar.

Além disseo não acreditava que tivesse uma cara que combinasse com uma

careca. Tinha feições irregulares; seu nariz parecia que tinha sido

quebrado e tinha sarado mal, mas era só o nariz dos Gooch, passado de

geração em geração de privações normais. Ele desejava ser parecido com

alguém específico, porém, teria ficado satisfeito se tivesse um rosto

meditabundo e misterioso de um artista. Semicerrou os olhos e virou os

cantos da boca para baixo, mas isso só o fez parecer que estava fazendo

uma careta. Resignado com sua cara, James meteu tantas roupas quanto

pôde em um dos sacos da Barneys que a Mindy dobrava tão cuidadosamente,

e saiu para a portaria.


172

Estava chovendo. A cântaros. Das janelinhas dos fundos do

apartamento, era difícil imaginar como o tempo estava, portanto podia-

se chegar lá fora e descobrir que estava bem melhor, embora em geral

estivesse muito pior, do que se esperava. Não eram ainda sete horas da

manhã, e James já estava se sentindo derrotado pelo dia. Voltou para o

apartamento para pegar um guarda-chuva, mas só conseguiu encontrar no

caos que era o armário do corredor um guarda-chuva tipo japonês,

daqueles pequenos e frágeis que se dobram todos, e que, quando se

abria, revelava quatro varinhas aguçadas. No vestíbulo, James espiou

nervoso a chuva torrencial. Um SUV preto estava passando próximo do

meio-fio, bem devagar. Atrás dele, o porteiro Fritz estava desenrolando

um plástico protetor sobre a passadeira. Fritz parou um instante e veio

se colocar ao lado de James.

— Está mesmo chovendo à beça lá fora – disse ele, com cara de

preocupado. – Precisa de um táxi?

— Não, tudo bem – disse James. Precisava de um táxi, mas nunca

permitiria que os porteiros chamassem um. Sabia que os porteiros não

gostavam das quantias que a Mindy lhes dava de gorjeta, e sentia-se

culpado por lhes pedir para desempenhar as obrigações normais que

desempenhavam para os outros residentes que lhes davam gorjetas

melhores. Se ele ganhasse bastante dinheiro com o livro, pensou,

compensaria este ano a penúria dos anteriores.

A porta do elevador abriu-se e Schiffer Diamond saiu. James de

repente se sentiu empolgado e diminuído. Ela estava de rabo-de-cavalo,

capa impermeável verde vivo e jeans, com botas pretas de salto baixo.

Não parecia necessariamente uma estrela de cinema, pensou James, mas

parecia melhor que uma pessoa normal, não sabia por quê, portanto, para

onde quer que fosse, as pessoas pensavam, essa mulher é importante, e


173

olhavam curiosos para ela. James não sabia como uma pessoa podia

suportar isso, ser sempre admirada assim. Mas deviam se acostumar com

isso. Não era por isso, acima de tudo, afinal, que as pessoas viravam

atores e atrizes, para que os outros os fitassem boquiabertos?

— Tempo horrível, né, Fritz? – disse Schiffer.

— Só vai piorar.

James saiu e ficou sob o toldo. Olhou para um lado da rua. Nada.

Nenhum táxi à vista.

Schiffer Diamond saiu depois dele.

— Para onde vai? – perguntou ela.

James deu um pulo.

— Chelsea – disse.

— Eu também. Vem comigo, eu te dou uma carona.

— Não, eu...

— Deixa de bobagem. O carro está vazio. E está chovendo canivetes.

– Fritz saiu e abriu a porta. Schiffer Diamond sentou-se no banco

traseiro.

James olhou para o Fritz. Que se dane, pensou, e entrou no carro.

— Duas paradas – disse ao motorista. – Para onde vai? – disse ela,

virando-se para o James.

— Eu, hã, não sei direito – disse ele, remexendo o bolso do jeans à

procura do papelzinho onde tinha escrito o endereço. – Industria Super

Studios?

— Eu também – disse ela. – Então vamos ficar no mesmo lugar –

informou ela ao motorista. Tirou um iPhone da bolsa. James ficou

sentado ao lado dela, rígido; felizmente havia um console entre eles,

portanto não foi tão desconfortável quanto poderia ter sido. Lá fora a

chuva continuava pesada, e ouviam-se trovoadas. Excelente, pensou


174

James. Imagina só, nunca ter que se preocupar em pegar um táxi. Nem em

tomar o metrô.

— Tempo mais horroroso, esse, né? – comentou ela. – Chuva demais

para o mês de agosto. Não me lembro de ter chovido tanto assim no verão

antes. Lembro de um calor de 36 graus e da neve no Natal.

— É mesmo? – disse James. – Em geral agora aqui só neva em janeiro.

— Acho que tenho lembranças românticas de Nova York.

— Faz anos que não neva – disse o James. – É o aquecimento global.

– Estou parecendo um babaca, pensou ele.

Ela sorriu para ele, e James perguntou-se se ela seria uma dessas

atrizes que seduzem todos os homens. Lembrou-se de uma história de um

amigo jornalista, um cara desses realmente sem nada de mais, que tinha

sido seduzido por uma famosa estrela de cinema durante uma entrevista.

— Você é o marido da Mindy Gooch, não é? – indagou ela.

— James – disse ele. Ela claramente não ia se apresentar, sabendo,

obviamente, que não era preciso.

Ela concordou.

— Sua esposa é...

— Presidente da diretoria. Do condomínio do edifício.

— Ela escreve aquele blogue – disse Schiffer.

— Você acompanha o blogue?

— Acho comovente – disse Schiffer.

— É mesmo? – e James esfregou o queixo, aborrecido. Até mesmo ali,

num SUV com uma estrela de cinema, a caminho de uma sessão de fotos,

ainda se falava só na sua mulher. – Eu tento não lê-lo – disse ele,

afetado.

— Ah – disse Schiffer, concordando. James não fazia idéia do que

aquele gesto de cabeça significava, e durante alguns quarteirões, eles


175

viajaram no mais constrangido silêncio. Depois Schiffer quebrou o gelo,

voltando a falar da esposa dele:

— Ela não era presidente da diretoria do condomínio quando me

mudei. Naquele tempo a presidente era a Enid Merle. O prédio era

diferente. Não era tão... silencioso.

James estremeceu ao ouvir o nome da Enid.

— Enid – disse.

— Ela tem uma personalidade maravilhosa, não tem? Eu a adoro.

— Eu não a conheço, para dizer a verdade – disse James, com

cautela, sem saber se traía a esposa ou se indispunha com a artista de

cinema.

— Mas deve conhecer o sobrinho dela, o Philip Oakland – insistiu

Schiffer. Lá vinha ela de novo tocar no nome do Philip, procurando

obter informações. – Não é romancista também? – perguntou.

— Somos diferente. Ele é muito mais... comercial. Escreve roteiros.

E eu sou mais... literário – disse James.

— E por isso a editora só vendeu cinco mil exemplares dos seus

livros – disse Schiffer. James ficou arrasado, mas tentou não

demonstrar isso. – Por favor – disse ela, tocando-lhe o braço. – Eu

estava brincando. Meu senso de humor é meio negro. Tenho certeza de que

é um excelente escritor.

James não sabia se concordava ou discordava.

— Não leve nada que eu digo a sério. Eu nunca levo – disse ela.

O carro parou num sinal vermelho. Era sua vez de encontrar um

pretexto para conversa, mas James não se lembrou de nenhum.

— O que está acontecendo com o apartamento da Sra. Houghton? –

perguntou ela.

— Ah – disse ele, aliviado. – Venderam-no.


176

— É mesmo? Rápido, não é?

— A diretoria vai se reunir esta semana. Minha esposa diz que eles

certamente vão aprovar. Ela gostou do casal. Supostamente são bastante

honestos. Com milhões de dólares, é claro – acrescentou ele.

— Mas que chatice – comentou Schiffer.

O carro chegou ao seu destino. Enquanto eles estavam esperando o

elevador o constrangimento se insinuou entre eles de novo.

— Está trabalhando em um filme? – perguntou ele.

— Numa série de tevê – disse ela. – Eu nunca pensei que ia um dia

trabalhar na televisão. Mas aí a gente olha para os colegas e pensa, “é

assim que eu quero terminar”? Fazendo mil plásticas, adotando crianças

e escrevendo livros malucos contando a sua vida tintim por tintim, e

que ninguém realmente quer ler? Ou então arranjando um marido sem graça

e pula-cerca?

— Deve ser difícil sim – disse James.

— Gosto de trabalhar. Parei um pouco uma época, e senti saudades.

Entraram no elevador.

— É aqui que estão filmando a série? – indagou, educadamente.

— Vim tirar umas fotos. Para a capa de uma dessas revistas de

balzaca.

— Não está nervosa? – disse James.

— Só finjo que sou outra pessoa. É esse o segredo para passar por

tudo isso. – A porta do elevador se abriu, e ela saiu.

Uma hora depois, James, depois de deixar seu rosto ser besuntado e

empoado pela maquiadora, sentou-se em um banco diante de um rolo de

papel azul, o rosto exibindo um sorriso parado de máscara mortuária.

— Você é autor famoso, non? – indagou o fotógrafo, que era francês

e, embora tivesse bem uns dez anos mais do que James, ainda tinha todos
177

os cabelos da cabeça, bem como uma esposa trinta anos mais moça, de

acordo com a maquiadora.

— Não – disse James, entredentes.

— Mas logo vai ser, non é? – disse o fotógrafo. – Senon seu editor

non irria me pagar suas fotos. – E deixou de lado a câmera, chamando a

maquiadora, que estava por ali. – Ele está muito tenso. Parece um

cadáver. Não posso tirrar foto de cadáver – disse a James, que sorriu,

meio aborrecido. – Prrecisamos fazer alguma coisa. Anita vai tentar te

relaxar. – A maquiadora colocou-se atrás de James e pôs as mãos nos

ombros dele.

— Não, pode deixar, eu estou bem – disse James quando a jovem

começou a pressionar-lhe as costas com os dedos. – Sou casado. No duro.

Minha esposa não gostaria disso.

— Sua esposa não está aqui, está? – disse Anita.

— Não, mas ela...

— Psiu!

— Estou vendo que non está acostumado com a atenção de moças

bonitas – disse o fotógrafo. – Mas vai aprrender. Quando for famoso, as

mulherres vão dar em cima de você.

— Duvido – disse James.

O fotógrafo e a maquiadora começaram a rir. Depois, pelo que James

viu, todos no estúdio também começaram a rir. James ficou vermelho. De

repente sentiu-se como se fosse um garotinho de oito anos. Estava

jogando na liga infantil de beisebol no campo do bairro e tinha deixado

a bola sair rolando entre as pernas pela terceira vez seguida. “Qual é,

rapaz” disse o técnico para ele, enquanto todos riam e ele saía do

campo. “Você tem que ter imaginação. Precisa se imaginar como vencedor.

Então pode até ser que vire um.” James passou o resto do jogo sentado
178

no banco de olhos congestionados e nariz escorrendo (estava com febre

do feno) e tentou “imaginar-se” rebatendo a bola e marcando um ponto.

Mas só via a bola rolando entre as pernas, vezes e mais vezes seguidas,

e o pai lhe perguntando: “Como foi o jogo, filho?”, e James

respondendo: “Foi uma droga.” “De novo?” “Isso, pai, uma droga.” Mesmo

tendo oito anos, tinha ficado óbvio para ele que nunca ia ser mais do

que Jimmy Gooch, o menino que nunca fazia nada direito.

James ergueu os olhos. O fotógrafo estava escondido atrás da

câmera. Tirou uma foto.

— Excelente, James. – elogiou. – Está parecendo tristonho.

Comovedor.

Estou? pensou James. Talvez ele não fosse pisar na bola naquele

lance de ser autor famoso, afinal.

Naquela noite, Schiffer bateu à porta do Philip de novo, na

esperança de encontrá-lo em casa. Ao ver que ele não atendia, tentou a

porta da Enid.

— Philip? – gritou a Enid, abrindo a porta.

— É a Schiffer.

— Estava pensando quando você viria me visitar – disse Enid,

abrindo a porta.

— Não tenho nenhuma desculpa para lhe dar.

— Talvez tenha pensado que eu tinha morrido – disse Enid.

Schiffer sorriu.

— Tenho certeza de que o Philip teria me dito.

— Você já falou com ele?

— Só no elevador.

— Que pena. Não foi jantar lá?


179

— Não – disse Schiffer.

— É aquela danada daquela mocinha – disse Enid. – Eu sabia que isso

acontecer. Ele contratou uma palerma para ser pesquisadora dele, e está

dormindo com ela.

— Ah – disse Schiffer, balançando a cabeça. Por um momento, ficou

surpresa. Então o Billy tinha razão, afinal de contas. Ela deu de

ombros, tentando não mostrar sua decepção. – O Philip nunca vai mudar.

— Nunca se sabe – disse Enid. – Algum dia pode ser que tome uma boa

cacetada da vida e se manque.

— Duvido muito – disse Schiffer. – Tenho certeza de que ela o

considera fascinante. É a diferença entre as meninas e as mulheres. As

meninas acham os homens fascinantes. As mulheres é que sabem como são

as coisas na realidade.

— Você também achava o Philip fascinante antes – disse Enid.

— Ainda acho – disse Schiffer, sem querer ferir os sentimentos da

Enid. – Mas não da mesma maneira. – E rapidamente mudou de assunto. –

Ouvi dizer que um casal novo vai se mudar para o apartamento da Sra.

Houghton.

Enid suspirou.

— Isso mesmo. E não estou lá muito satisfeita com isso. É tudo

culpa do Billy Litchfield.

— Mas o Billy é um doce de pessoa.

— Ele causou o maior rebuliço no prédio. Foi ele que encontrou esse

casal e o apresentou à Mindy Gooch. Eu queria o andar de baixo do

triplex para o Philip. Mas a Mindy não quis saber. Convocou uma

assembléia especialmente para aprovar esse casal na base do braço. Ela

prefere estranhos no prédio. Eu a vi na portaria, e disse “Mindy, sei o

que está planejando, com essa mudança da assembléia” e ela respondeu:


180

“Enid, você pagou seu condomínio atrasado três vezes no ano passado”.

Ela tem alguma coisa contra o Philip – continuou Enid. – Por que o

Philip é bem-sucedido, e o marido dela não é.

— Então nada mudou.

— Nem um pouco – disse Enid. – Não é uma maravilha? Mas você mudou.

Você voltou.

Alguns dias depois, Mindy estava no seu escritório de casa,

examinando os documentos dos Rice. Uma das vantagens de ser presidente

da diretoria de um condomínio era o acesso aos dados financeiros de

todos os residentes que tinham se mudado para o prédio nos últimos dez

anos. O prédio exigia que os moradores pagassem 50% do preço do imóvel

que estava à venda em dinheiro vivo; também exigia que tivessem essa

mesma quantia nas suas contas bancárias, bem como aplicada em ações,

fundos de aposentadoria e outros bens; basicamente, em dinheiro e bens,

qualquer pessoa que se candidatasse a ser morador ali teria que possuir

o equivalente ao preço total do apartamento. Antes de Mindy e James

virem morar no prédio, as regras eram diferentes. Os candidatos

precisavam apenas de 25% do preço do apartamento e tinham que provar

apenas que possuíam bens com valor líquido suficiente para pagar o

condomínio durante cinco anos. Mas Mindy pediu uma votação para mudar.

Havia, segundo ela argumentava, muitos moradores preguiçosos no

edifício, resquício indecoroso dos anos oitenta, quando o prédio havia

se enchido de cantores e músicos de bandas de rock-and-roll, atores e

modelos, assim como de gente do mundo da moda, que conhecia Andy

Warhol, e era o lugar predileto para as festas da cidade. Durante o

primeiro ano da Mindy como presidente da diretoria, dois dos moradores

faliram, um terceiro morreu de overdose de heroína, e outra ainda


181

cometeu suicídio enquanto seu filho de cinco anos estava dormindo.

Tinha sido modelo no passado e era namorada de um famoso baterista que

tinha se casado com outra pessoa e se mudado para o Connecticut,

abandonando a namorada e sua filha em um apartamento de dois quartos

cujo condomínio ela não podia pagar. Ela tinha tomado pílulas para

dormir e metido na cabeça um saco plástico desses de tinturaria,

segundo Roberto havia relatado.

— O prédio vale o que valem seus moradores – disse Mindy no que

considerou seu famoso discurso à diretoria. – Se nosso prédio tiver uma

reputação ruim, todos nós sofremos. Nossos apartamentos se

desvalorizam. Ninguém quer morar em um prédio onde vivem parando

viaturas policiais e ambulâncias.

— Nossos moradores são criativos, com vidas interessantes –

argumentou Enid.

— Aqui moram crianças. Overdoses e suicídios não são

“interessantes” – redarguiu Mindy, fuzilando-a com o olhar.

— Talvez você se desse melhor em um prédio no Upper East Side. Lá

só moram médicos, advogados e banqueiros. Ouvi dizer que eles nunca

morrem – disse a Enid.

No fim a Enid perdeu de cinco a um.

— Claramente, temos valores bastante diferentes – disse Mindy.

— Claramente – disse Enid, concordando.

Enid era quase 40 anos mais velha que Mindy. Então como é que

sempre fazia a Mindy se sentir como se ela é que fosse a cidadã de

terceira idade?

Pouco depois, Enid tinha saído da diretoria. No seu lugar, Mindy

colocou o Mark Vaily, um senhor homossexual, educadíssimo, do Meio-

Oeste, que desenhava cenários e tinha o mesmo parceiro havia 15 anos, e


182

uma linda menininha latina adotada no Texas. Todos no prédio

concordavam que Mark era uma pessoa muito simpática, e acima de tudo,

sempre concordava com Mindy.

A reunião com os Rice incluiria Mindy, Mark e uma mulher chamada

Grace Waggins, que já participava da diretoria havia vinte anos,

trabalhava na Biblioteca Pública de Nova York, e levava uma vida

sossegada em um apartamento de um quarto com dois cachorrinhos poodle

toy. Grace era uma dessas pessoas que nunca mudavam, só envelheciam,

sem expectativas visíveis nem ambições que não fossem que sua vida

permanecesse sempre a mesma.

Às sete horas, Mark e Grace vieram ao apartamento da Mindy para uma

prévia da reunião.

— O importante é que eles vão pagar em dinheiro – disse Mindy. –

Têm uma ficha limpa na praça. Possuem mais ou menos uns quarenta

milhões em seu nome...

— E qual a idade deles? – indagou Grace.

— São jovens. Trinta e poucos anos.

— Sempre torci para a Julia Roberts querer comprar esse

apartamento. Não seria uma beleza a Julia Roberts morando aqui?

— Nem mesmo a Julia Roberts deve ter vinte milhões em dinheiro para

comprar esse apartamento – disse Mark.

— Uma pena, não é?

— As atrizes não são boas condôminas – disse Mindy. – Vejam a

Schiffer Diamond, por exemplo. Deixou o apartamento vago durante anos.

Causou um problema de infestação de ratos horrível. Não – prosseguiu,

sacudindo a cabeça. – Precisamos de um casal simpático e estável que vá

morar no prédio durante vinte anos. Não queremos mais saber de atores

nem de socialites, nem de ninguém que vá atrair a atenção. Já foi ruim


183

quando a Sra. Houghton morreu. A última coisa que precisamos é de

paparazzi acampados aí na frente da portaria.

Os Rice chegaram às sete e meia. Mindy os trouxe para a sala de

estar, onde Mark e Grace estava sentados rigidamente no sofá, e fez

sinal para os Rice se sentarem. Paul era mais atraente do que Mindy

tinha imaginado que seria. Era sensual, com o tipo de cabelos

castanhos-escuros encaracolados que faziam Mindy se lembrar do Cat

Stevens quando era mais jovem. Mindy distribuiu garrafinhas de água e

foi sentar-se entre Mark e Grace.

— Podemos começar? – disse, formalmente.

Annalisa pegou a mão de Paul. Ela e Paul tinham visitado o

apartamento várias vezes com a corretora, a Brenda Lish, e Paul se

apaixonou por ele tanto quanto Annalisa. O futuro deles jazia nas mãos

daqueles três velhos que estavam olhando para eles impassíveis,

ligeiramente hostis, mas Annalisa não estava com medo. Tinha passado

por entrevistas rigorosas para conseguir empregos, aparecido em debates

na tevê, e até conhecido o presidente da república.

— Como é que é o dia de vocês, normalmente? – indagou Mindy.

Annalisa olhou de relance para o Paul e sorriu.

— O Paul se levanta cedo e vai trabalhar. Estamos pensando em ter

filhos. De modo que logo devo ficar ocupada, cuidando de um bebê.

— E se o bebê chorar a noite inteira? – indagou Grace. Ela não

tinha filhos, e embora adorasse crianças, quando alguma delas estava

por perto, em carne e osso, ela ficava nervosa.

— Eu espero que ele... ou ela... não chore tanto assim – disse

Annalisa, tentando quebrar o gelo. – Mas vamos ter uma babá. E no

começo, uma enfermeira especializada em bebês.


184

— Certamente o apartamento é grande o bastante para acomodar uma

enfermeira para o bebê – disse Grace, concordando, satisfeita.

— Sim – disse Annalisa. – E o Paul também precisa descansar.

— O que fazem à noite? – indagou Mindy.

— Não gostamos muito de tumulto. O Paul chega em casa mais ou menos

às nove, e ou saímos para jantar ou comemos alguma coisa em casa mesmo

e vamos para a cama. Paul precisa se levantar à seis da manhã.

— Têm muitos amigos? – indagou Mark.

— Não – disse Paul. Estava para dizer “não gostamos de muita

gente”, mas Annalisa apertou-lhe a mão. – Não somos de ir a muitas

reuniões. Só saímos no fim de semana. Às vezes viajamos.

— Sair da cidade de quando em vez é uma necessidade – concordou

Mark.

— Tem algum hobby do qual devamos tomar conhecimento? – indagou

Grace. – Tocam algum instrumento musical? Fiquem sabendo que há uma

regra no prédio segundo a qual se proíbe tocar instrumentos musicais

depois das onze da noite.

Annalisa sorriu.

— Essa regra deve ter remanescente da era do jazz. E o Número Um

foi construído um pouquinho antes de terminar a farra, não foi? Em

1927? O arquiteto foi... – E fez uma pausa, fingindo refletir, embora

soubesse a resposta de cor e salteado. – Harvey Wiley Corbett –

continuou. – A firma dele projetou grande parte do Rockefeller Center.

Era considerado um visionário, embora seus planos para calçadas

elevadas na área comercial não tenham dado certo.

— Estou impressionada – disse Grace. – Pensei que eu fosse a única

que conhecesse a história deste prédio.


185

— Paul e eu amamos este prédio – disse Annalisa. – Queremos fazer

todo o possível para preservar a integridade histórica do apartamento.

— Muito bem – disse Mindy, olhando para Grace e depois para Mark –

acho que todos concordamos, então. Mark e Grace aprovaram, balançando

as cabeças. Mindy levantou-se e estendeu a mão. – Sejam benvindos ao

Número Um da Quinta Avenida – anunciou.

— Foi fácil. Foi tão fácil, não? – disse ela ao Paul, no Town Car,

na volta para o hotel.

— Como é que eles iam conseguir nos rejeitar? – disse Paul. – Viu

só a cara deles? São todos doidos.

— Pois para mim pareceram perfeitamente simpáticos.

— E a tal da Mindy Gooch? – indagou Paul. – É uma dessas mulheres

carreiristas e amargas.

— Como sabe?

— Vejo-as o tempo todo, lá no escritório.

Annalisa riu.

— No seu escritório não há mulheres. Não há quase mulheres no seu

ramo.

— Há, sim – contestou Paul. – E são todas iguais à Mindy Gooch.

Umas cascas sem miolo, secas, que passam a vida inteira tentando ser

iguais aos homens. E sem conseguir – acrescentou.

— Não julgue as pessoas com esse rigor todo, Paul. E que diferença

isso faz? Provavelmente nem vamos vê-la.

No hotel, Annalisa sentou-se na cama, lendo os estatutos do prédio,

que Mindy tinha coligido e mandado imprimir, fazendo um folheto

apresentável para os novos moradores. – Escuta só – disse Annalisa,


186

enquanto Paul escovava os dentes e passava fio dental. – Temos um

depósito no porão. E o prédio tem uma vaga de estacionamento. No Mews.

— É mesmo? – disse Paul, tirando as roupas.

— Talvez não – disse Annalisa – continuando a leitura. – É uma

loteria. Todo ano eles sorteiam um nome. E essa pessoa ganha uma vaga

durante aquele ano.

— Nós precisamos de uma vaga – disse Paul.

— Não temos carro – disse Annalisa.

— Vamos comprar um. Com motorista.

Annalisa deixou o folheto de lado e envolveu a cintura dele com as

pernas, brincalhona.

— Não é excitante? – disse ela. – Vamos começar uma nova vida.

Vendo que ela queria ter relações, Paul beijou-a durante alguns

instantes, depois passou a lhe lamber a vulva. O sexo entre os dois era

ligeiramente rotineiro, e as carícias eram sempre as mesmas. Vários

minutos de cunilíngua, até Annalisa ter o seu orgasmo, e mais ou menos

três minutos de coito em si. Aí o Paul arqueava-se para trás e gozava.

Ela o abraçava, então, lhe acariciando as costas. Depois de mais um

minuto, ele rolava de cima dela, ia ao banheiro, vestia as cuecas

samba-canção, e se deitava na cama. Não era lá muito empolgante, mas

satisfatório, pois o orgasmo era garantido. Naquela noite, porém, Paul

estava desatento, e brochou.

— Qual é o problema? – indagou ela, erguendo-se e apoiando-se em um

cotovelo.

— Nada – disse ele, vestindo a cueca. E começou a andar de um lado

para outro pelo quarto.

— Quer que eu te faça um boquete? – perguntou Annalisa.

Ele sacudiu a cabeça.


187

— Só estou pensando naquele apartamento – disse.

— Eu também.

— E naquela vaga. Por que é que tem que ser por loteria? E porque a

pessoa só fica com ela um ano?

— Sei lá? São as regras, acho eu.

— Temos o maior apartamento do prédio. E pagamos o condomínio mais

alto. Devíamos ter preferência – disse ele.

Três semanas depois, quando a Annalisa e o Paul Rice já haviam

comprado o apartamento, o advogado da Sra. Houghton ligou para Billy

Litchfield e pediu que ele comparecesse ao seu escritório.

A Sra. Houghton podia ter escolhido um advogado de uma família

tradicional novaiorquina para tratar de seus assuntos legais, mas em

vez disso tinha escolhido o Johnnie Toochin, um sujeito alto e

combativo, que havia se criado no Bronx. Louise tinha “descoberto” o

Johnnie em um jantar onde ele estava participando de um julgamento como

o mais promissor e brilhante jovem advogado da cidade, no caso onde a

cidade processou o governo com relação à verba escolar. Johnnie venceu

a parada, e seu futuro ficou duplamente garantido quando a Sra.

Houghton o contratou com exclusividade. “Há tantos criminosos no

‘sistema’ como nos guetos”, gostava de dizer ela. “Nunca se esqueça de

que é fácil alguém esconder suas más intenções quando está bem vestido.”

Felizmente, para a Sra. Houghton, Johnnie Toochin jamais tinha

andado bem vestido, mas depois de ter começado a ganhar dinheiro e

andar em boas companhias, tinha definitivamente se integrado no

sistema. Seu escritório ficava perto de um museu de móveis e arte

modernos, contendo duas cadeiras Earmes, uma mesa de centro revestida e

couro de tubarão e nas paredes um Klee, um DeKooning e um David Salle.


188

— Devíamos nos rever com mais frequência – disse Johnnie ao Billy,

atrás de uma mesa imponente. – Mas não assim. Do jeito que costumávamos

nos encontrar nas festas. Minha esposa vive me dizendo que devíamos

sair mais. Mas não sei por quê, não achamos mais tempo. Só que você

continua frequentando as altas rodas, não?

— Não tanto quanto antes – disse Billy, sem gostar muito da

conversa. Era a mesma conversa que costumava ter agora, toda vez que

encontrava alguém que fazia anos que não via, e provavelmente não iria

ver no futuro.

— Ah, estamos todos envelhecendo – disse Johnnie. – Vou fazer 60

anos este ano.

— Melhor não falar nisso – disse Billy.

— Ainda mora no mesmo lugar? – perguntou Johnny.

— Na parte baixa da Quinta avenida – disse Billy, desejando que o

Johnnie começasse logo a falar no motivo pelo qual o havia convocado

para aquela reunião.

Johnnie balançou a cabeça.

— Morava perto da Sra. Houghton. Ela te adorava, sabe? Deixou uma

coisinha para você. – E levantou-se. – Insistiu para que eu lhe

entregasse essa coisa em pessoa. Daí essa visita ao meu escritório.

— Não tem problema – disse Billy, educadamente. – Foi um prazer

revê-lo.

— Muito bem – disse Johnnie. E pondo a cabeça para fora da porta

chamou sua assistente. – Poderia por favor pegar a caixa que a Sra.

Houghton deixou para o Billy Litchfield? – E virou-se para o Billy. –

Uma pena não ser muita coisa. Considerando-se todo o dinheiro que ela

tinha.
189

Melhor também não falar nisso, pensou Billy. Não seria educado da

sua parte.

— Não estava mesmo esperando que ela me deixasse nada – disse ele,

com firmeza. – Sua amizade sempre foi suficiente para mim.

A assistente entrou com uma caixa de madeira tosca, que Billy

reconheceu imediatamente. Ela vivia sobre a mesa da Sra. Houghton,

incongruente entre incontáveis bibelôs inestimáveis.

— Acha que vale alguma coisa? – indagou Johnnie.

— Não – disse Billy. – É só um objeto de valor sentimental. Ela

guardava as bijuterias nessa caixa.

— Talvez as bijuterias valham alguma coisa.

— Duvido muito – disse Billy. – Além do mais, eu não a venderia.

Ele pegou a caixa e saiu, equilibrando-a cuidadosamente nos

joelhos, na volta de táxi para casa. Louise Houghton sempre tinha se

orgulhado do fato de que vinha do nada. – Éramos fazendeiros em

Oklahoma, não tínhamos um tostão furado no bolso – dizia. A caixa tinha

sido um presente do seu primeiro namorado, que a tinha feito para ela

na época da escola. Louise tinha levado a caixa consigo quando foi

embora, aos 17 anos, até a China, onde trabalhou como missionária

durante três anos. Depois veio para Nova York, em 1928, para levantar

fundos para a causa, e conheceu seu primeiro marido, Richard

Stuyvesant, com quem se casou, para grande consternação de sua família

e da sociedade de Nova York. “Consideravam-me uma fazendeirazinha reles

que não sabia qual era meu lugar” tinha dito ao Billy nas longas tardes

que costumavam passar juntos. E estavam certos. Eu não conhecia o meu

lugar. Se alguém se recusa a entender qual é o seu lugar, não se sabe o

que essa pessoa poderá fazer no mundo.”


190

De volta ao seu apartamento, Billy colocou a caixinha na sua mesa

de centro. Abriu a tampa e tirou dela um colar comprido de pérolas

plásticas. Até sendo uma menina sem tostão, Louise tinha gosto, fazendo

suas próprias roupas de retalhos de tecido e adornando-se com contas de

vidro, metais baratos e plumas. Era uma dessas raras mulheres que

podiam pegar o objeto mais comum e, usando-o com autoconfiança, fazê-lo

parecer caro. Naturalmente, depois que ela dominou Nova York, não

precisou mais usar bijuterias baratas e adquiriu uma coleção legendária

de jóias que guardava em um cofre no seu apartamento. Mas nunca se

esqueceu de suas raízes, e a caixa de bijuterias estava sempre à

mostra. À tarde, quando eles se sentavam no quarto dela, onde Louise

sentia que era seguro trocar confidências, ela e Billy às vezes

começavam a vestir-se com diversos trajes, só para se divertirem, e

adornarem-se com várias bijuterias fingindo que eram outras pessoas.

Naquele instante, porém, Billy, ficando de pé, e olhando-se no espelho

sobre o consolo da lareira, colocou o colar no pescoço e fez uma

careta. “Não, não”, teria dito a Louise, rindo. “Você parece aquela

horrorosa da Flossie Davis. Não devia usar colar de pérolas, meu amor.

Que tal uma pluma?”

Billy voltou ao sofá e começou a colocar cada peça com todo cuidado

na mesa de centro. Algumas bijuterias tinham 90 anos, e estavam se

desmanchando. Billy decidiu embrulhar cada uma em papel de seda e

depois em plástico de bolhas para que não sofressem mais nenhum dano.

Depois pegou a caixa, na intenção de colocá-la na sua escrivaninha,

onde seria a última coisa que ele veria antes de ir dormir à noite, e a

primeira coisa que visse de manhã; dessa forma, poderia manter Louise e

sua lembrança mais próximas dele. Quando ele levantou a caixa, a tampa

fechou-se sobre o seu dedo. Billy abriu a tampa e deu uma olhada dentro
191

dela. Nunca tinha visto aquela caixa vazia, e agora estava notando uma

fechadurinha embutida na parte de trás. Não admira que a Louise sempre

tivesse guardado aquela caixa, pensou ele. Devia tê-la considerado

romântica, uma caixa com um compartimento secreto. Devia ter sido uma

coisa quase mágica para uma menina inteligente de 14 anos que só nutria

seus sonhos com contos de fadas.

Era uma fechadura pequena e simples de bronze, uma lingüeta presa

por uma saliência minúscula. Billy abriu a fechadura, e usando uma lixa

de unhas como alavanca, ergueu a prateleira de madeira. Havia mesmo

alguma coisa no compartimento, algo em um saco macio e cinza amarrado

com um cordãozinho preto. Billy tratou de precaver-se, dizendo a si

mesmo para não se animar demais; conhecendo Louise, provavelmente era

um pé de coelho.

Desamarrou o cordão e espiou dentro do saco.

O que viu o fez imediatamente sentir vontade de amarrar o saco de

novo e fingir que nunca tinha visto aquilo. Mas uma curiosidade

perversa prevaleceu, e devagar ele tirou o objeto do saquinho. Tinha

esmeraldas e rubis rusticamente lapidados e era feito de ouro antigo,

com um diamante lapidado a mão no centro. A peça era tão grande quanto

sua mão. Billy começou a tremer de empolgação, e logo, também de medo e

confusão. Ergueu a peça e levou-a à janela, onde podia examiná-la mais

de perto, na luz. Mas tinha certeza absoluta de que sabia o que tinha

nas mãos. Era a Cruz da Rainha Mary, a Sangüinária.


192

Segundo Ato

Enid Merle gostava de dizer que nunca conseguia ficar zangada com

uma pessoa durante muito tempo. Naturalmente havia exceções, como a

Mindy Gooch. Vendo-a ali na portaria, deliberadamente virou a cabeça

para outro lado, para lhe dar um gelo, como se literalmente não a

visse. Contudo, acompanhava tudo que ela fazia através do Roberto, o

porteiro, que sabia tudo sobre todos no prédio. Descobriu que a Mindy

tinha comprado um cachorro, um cocker spaniel miniatura, e os Rice

estavam querendo instalar aparelhos de ar condicionado do tipo que

exige fazer buracos nas paredes no apartamento deles, uma permissão que

Mindy planejava negar. Por que é que, pensava a Enid, a primeira coisa

que todos queriam ultimamente era ar condicionado?

Embora ela não tivesse ainda perdoado a Mindy, a ira da Enid contra

os Rice tinha diminuído quando chegou o calor em agosto. Principalmente

porque a Enid achava Annalisa Rice intrigante, com aqueles cabelos

castanho-avermelhados e sua boca larga e curiosa. Várias vezes por dia,

Enid entrevia a Annalisa Rice no seu terraço, vestida com uma camiseta

manchada e shorts, descansando da tarefa de abrir caixas. Annalisa

debruçava-se sobre a balaustrada do terraço, tentando pegar um

ventinho, soltando os longos cabelos e sacudindo-os um instante, antes

de torcê-los e prendê-los outra vez no alto da cabeça. Na quinta-feira,

a tarde mais quente do ano até ali, Enid deixou um recado para o

Roberto para passar para a “Sra. Rice.”

Sempre solícito, Roberto entregou o envelope para a Sra. Rice em

mãos. Ao lhe entregar a missiva, tentou, de maneira não muito sutil,


193

espiar por cima do ombro dela, na esperança de ver de relance o

apartamento. Sem mobília nem tapetes, parecia vasto e cheio de ecos,

embora Roberto fosse capaz de ver apenas o segundo vestíbulo e a sala

de jantar lá atrás. Annalisa agradeceu a Roberto, fechou a porta com

firmeza e abriu o envelope. Dentro dele estava um cartão azul-claro, em

cujo cabeçalho lia-se o nome ENID MERLE, em relevo, escrito em fonte

simples dourada. Sob ele vinha a frase: “QUEIRA POR FAVOR ACEITAR ESTE

CONVITE PARA UM CHÁ EM MINHA CASA HOJE, DAS TRÊS ÀS CINCO”.

Annalisa imediatamente começou a se preparar, para fazer boa

figura. Aparou as unhas, lixou-as e esfregou-se toda com uma bucha. Pôs

calças esporte e uma blusa branca, amarrando as pontas dela em torno da

cintura. Era um visual despretensioso porém elegante.

O apartamento da Enid não era o que a Annalisa esperava. Ela tinha

pensado que estaria cheio de móveis forrados de chintz e cortinas

pesadas como o de Louise Houghton, mas em vez disso era um museu de

móveis e objetos decorativos elegantes da década de setenta, com

tapetes felpudos brancos na sala de estar e um quadro do Warhol acima

da lareira.

— Seu apartamento é lindo – disse Annalisa, depois de ter apertado

a mão de Enid e ser convidada para entrar.

— Obrigada, querida. Gosta de chá Earl Gray?

— Qualquer coisa para mim serve.

Enid entrou na cozinha, e Annalisa sentou-se no sofá de couro

branco. Dentro de alguns minutos, Enid voltou, com uma bandeja de

papel-machê, que pôs na mesinha de centro.

— Estou encantada de poder recebê-la como o figurino manda – disse

ela. – Em geral costumo conhecer nossos vizinhos novos antes de todos,

mas infelizmente isso não foi possível no seu caso.


194

Annalisa colocou uma colher de açúcar no chá, mexendo-o.

— Foi tudo muito rápido – concordou Annalisa.

Enid fez um gesto, para mostrar que não importava.

— Não é sua culpa. Mindy Gooch fez questão de apressar o processo

de aprovação no seu caso. Tenho certeza de que tudo vai correr bem.

Ninguém quer um mundo de compradores em potencial andando para cá e

para lá no prédio e fazendo tumulto, pois é trabalho extra para os

porteiros e irrita os outros moradores. Mas nós gostamos de levar um

certo tempo para aprovar os candidatos. Houve um senhor que teve que

esperar um ano.

Annalisa sorriu, tensa, sem saber o que Enid Merle realmente

queria. Sabia quem ela era, mas dados os comentários da Enid sobre sua

entrada no edifício, Annalisa ainda não sabia se ela era inimiga ou

amiga.

— Ele era um especialista em fertilidade, como dizem por aí –

continuou Enid – e nós estávamos certos em esperar. Acabamos

descobrindo que ele engravidava as pacientes com seu próprio esperma.

Eu vivia dizendo à Mindy Gooch que havia algo muito suspeito naquele

sujeito, embora não conseguisse identificar o que era. Mindy não foi

capaz de perceber nada, mas não foi culpa dela, coitadinha. Ela estava

tentando engravidar naquela época, e não podia mesmo pensar com

clareza. E quando o escândalo estourou, ela teve que admitir que eu

estava certa o tempo todo.

— Mindy Gooch parece ser muito boa pessoa – disse Annalisa,

cautelosamente. Estava esperando uma brecha para falar mais sobre

Mindy. Paul mencionava a vaga no Mews dia sim, dia não, e Annalisa

queria encontrar uma forma de garantir a vaga para ele, imaginando que

Mindy Gooch era a chave.


195

— Ela sabe ser boa quando quer – disse Enid, tomando um golinho do

chá. – Mas também sabe ser difícil. Teimosa. Ela é muito determinada.

Infelizmente, é o tipo de determinação que nem sempre leva ao sucesso.

– E inclinou-se para a frente, murmurando: – A Mindy não sabe lidar bem

com as pessoas.

— Acho que sei o que quer dizer – disse Annalisa.

— Mas ela é cordial com elas, a princípio – disse Enid. – Sempre é

cordial, contanto que esteja conseguindo o que quer.

— E o que ela quer? – indagou Annalisa.

Enid riu. Sua risada foi inesperada, um grito alto e jubiloso.

— Boa pergunta – disse ela. – Quer poder, suponho, mas fora isso

acho que ela não faz a menor idéia. E esse é o problema da Mindy. Ela

não sabe o que quer. Nunca se sabe o que vai acontecer, quando se trata

dela. – Enid serviu-se de mais chá. – Por outro lado, o marido, James

Gooch, tem coração de ouro. E o filho deles, Sam, é brilhante. É um

gênio da informática, sabe, mas hoje em dia todas as crianças são

assim, chega a ser assustador, não acha?

— Meu marido é o que se pode chamar de gênio da informática também.

— Naturalmente – concordou Enid. – Ele é financista, não é? E eles

fazem tudo pelo computador hoje em dia.

— Ele, na verdade, é matemático.

— Ah, números – disse Enid. – Eles me deixam de olho vidrado. Mas

sou só uma velha boba a quem mal ensinaram umas coisinhas na escola.

Não ensinavam matemática às meninas, fora a soma e a subtração, para

que pudessem calcular um troco, se necessário. Mas seu marido parece

ter se dado bem. Ouvi dizer que ele trabalha para uma firma de

investimentos em fundo de hedge.


196

— Sim, é um novo sócio – disse Annalisa. – Mas por favor não me

pergunte o que ele faz. Eu só sei que gira em torno de algoritmos. E do

mercado de ações.

Enid ficou de pé.

— Vamos deixar de brincadeira – disse ela.

— Como disse? – reagiu Annalisa.

— São quatro horas da tarde. Trabalhei o dia inteiro, e você passou

o tempo todo abrindo caixas. E lá fora está um calor de 36 graus. O que

precisamos mesmo é tomar um gim com tônica, dos bons.

Vários minutos depois, Enid já estava contando a Annalisa a

história dos antigos moradores do apartamento de cobertura.

— Louise Houghton não gostava nem um pouco do marido – disse ela. –

Randolf Hoghton era um cafajeste. Mas era seu terceiro marido, e por

isso se mudaram para o centro, antes de mais nada. Louise presumia,

corretamente, que uma mulher que já havia se divorciado duas vezes não

seria totalmente aceita pela sociedade no Upper East Side. Convenceu

Randolf a mudar-se para cá, um prédio considerado muito boêmio e

original, e fez todos se esquecerem de que Randolf era seu terceiro

marido.

— Por que ele era um cafajeste? – indagou Annalisa, educadamente.

— Pelos motivos de sempre – sorriu Enid, terminando seu coquetel. –

Bebia. Pulava a cerca. Dois defeitos com os quais uma mulher conseguia

conviver naquele tempo, exceto pelo fato de que era impossível conviver

com o Randolf. Ele era um grosseirão arrogante, e possivelmente

violento. Tinham brigas terríveis. Acho que ele devia até bater nela.

Havia criados na casa naquele tempo, mas ninguém nunca dizia uma

palavra.

— E ela não se divorciou dele?


197

— Não precisou. Louise teve sorte. Randolf morreu.

— Entendo.

— O mundo era muito mais perigoso naquele tempo — continuou Enid.

Ele morreu de septicemia. Estava na África do Sul, tentando começar a

carreira de negociador de diamantes, quando cortou o dedo. Enquanto

viajava de volta para os Estados Unidos, o corte infeccionou. Ele

conseguiu chegar ao Número Um, mas morreu alguns dias depois.

— Não acredito que o marido dela morreu por causa de um corte –

disse Annalisa.

Enid sorriu.

— Estafilococos. É uma bactéria muito perigosa. Nós tivemos um

surto aqui no prédio antes. Faz anos. Espalhou-se por causa de uma

tartaruga que era bicho de estimação de alguém. Ninguém devia ter

criaturas aquáticas em um edifício residencial. Mas não importa. Louise

ficou com o seu apartamento imponente e todo o dinheiro do Randolf, e o

resto da vida para viver sem desimpedida, livre dos vínculos

matrimoniais, o que foi considerado uma bênção.

Naquela noite, Annalisa comprou uma garrafa de vinho e uma pizza e

pôs a mesa para Paul em pratos de papel.

— Hoje foi um dia super interessante – disse ela, ávida, sentada de

pernas cruzadas na sala de jantar, sobre os pisos de parquê recém-

reformados. O sol poente fazia a madeira brilhar como as últimas brasas

de uma lareira. – Conhecia a Enid Merle. Ela me convidou para o chá.

— Ela sabe alguma coisa sobre aquela vaga?

— Espera, eu chego lá. Quero lhe contar tudo. – Annalisa mordeu um

pedaço de pizza. – Primeiro tomamos chá e depois gim com tônica.

Acontece que Enid Merle não se dá bem com a Mindy Gooch. Enid diz que o

único motivo pelo qual os Gooch entraram no edifício foi por causa da
198

depressão no mercado imobiliário no início da década de noventa. A

diretoria decidiu vender seis comodozinhos no térreo que antes eram a

chapelaria e quartos de dormir apertadinhos para os empregados, e

depósito onde se guardava a bagagem quando o edifício era um hotel. “Se

não fosse a bagagem, os Gooch nem morariam aqui”, disse Annalisa,

imitando a voz da Enid. – Devia tê-la visto, ela é uma figura.

— Quem? – indagou Paul.

— Enid Merle, Paul – disse Annalisa. – Será que pode, por favor,

prestar atenção?

Paul olhou para ela, e tentando satisfazer a esposa, disse:

— Contanto que não vá nos causar problema.

— Por que é que ela iria nos causar algum tipo de problema?

— Por que é que alguém iria nos causar problema? – disse Paul. – Eu

acabei de falar com a Mindy Gooch. Ela me contou que não poderíamos

instalar aparelhos de ar condicionado embutidos na parede do

apartamento.

— Que besteira – disse Annalisa. – Pelo menos ela foi cordial?

— Cordial? Como assim?

Annalisa pegou os pratos de papel sujos depois da refeição.

— Não a contrarie, só isso. Enid disse que a Mindy é meio

contraditória. Pelo jeito, através do filho vamos conseguir que ela

seja nossa aliada. Ele é um gênio da informática, trabalha nos

computadores de todos daqui. Eu podia lhe enviar uma mensagem pelo

correio eletrônico.

— Não – disse Paul. – Não vou querer nenhum pentelhinho mexendo no

meu computador. Sabe o que tem no meu disco rígido? Informações

financeiras que valem bilhões de dólares. Eu seria capaz de destruir um

país pequeno inteiro se quisesse.


199

Annalisa virou-se e abaixou-se para beijar Paul na testa.

— Sei que vocês rapazes gostam de brincar de espião – disse ela. –

Mas eu não estava pensando em deixá-lo mexer no seu computador. Estava

pensando em pedir a ele para verificar o meu.

Quando ela se virou para entrar na cozinha, Paul lhe disse:

— Não dá para fazermos isso à moda antiga? Não podemos subornar

alguém do prédio?

— Não, Paul – disse Annalisa. – Não vamos fazer isso. Não podemos

exigir tratamento especial só porque temos mais dinheiro. Vamos tentar

à moda da Enid. Estamos em um prédio novo, e precisamos respeitar a

cultura do lugar.

No térreo, na cozinha do sufocante apartamento dos Gooch, Mindy

Gooch estava cortando legumes.

— O Paul Rice praticamente me disse para ir tomar naquele lugar –

disse ela ao James.

— Ele usou essas palavras “vai tomar naquele lugar”? – disse James.

— Não. Mas devia ter visto a expressão dele quando disse que não

dava para eles instalarem aparelhos de ar condicionado nas paredes. A

expressão dele dizia “vai tomar naquele lugar.”

— Deixa de ser paranóica – disse James.

— Eu não sou – disse Mindy. Seu novo cachorrinho, o Skippy, pulou

na sua perna. Mindy lhe deu um pedaço de cenoura.

— Não devia dar comida de gente ao cachorro – disse James.

— É comida saudável. Ninguém nunca ficou doente por comer cenoura –

E ela pegou o animalzinho, abraçando-o carinhosamente.

— Você é que insistiu em aceitá-los no prédio – disse James. – Eles

são sua responsabilidade.


200

— Não seja ridículo – disse Mindy. E levou o bichinho para a porta,

colocando-o no pátio de cimento. Skippy farejou as beiradas do pátio,

depois abaixou-se e urinou.

— Muito bem! – exclamou Mindy. – Viu só, James, ele fez xixi lá

fora. Faz só três dias que ele chegou, e ele já sabe que não é para

sujar a casa. Que cachorrinho esperto! – disse ela a Skippy.

— E esse aí também. O Skippy. Ele é responsabilidade sua, também –

disse James. – Não espere que eu o leve para passear. Não com tudo que

tenho que fazer agora com o lançamento do livro. – James não sabia bem

o que pensar do Skippy. Nunca tinha tido um cachorro na infância, nem

nenhum outro bicho de estimação, pois seus pais não gostavam de bichos

dentro de casa. “Criar bicho dentro de casa é coisa de camponês”, era o

que a mãe sempre lhe dizia.

— Será que não posso ter nada, James? – indagou Mindy. – Nem uma

coisinha só minha, que você vem criticar?

— Não, pode ter, sim, imagina – disse James.

O cachorrinho atravessou a cozinha correndo e foi para a sala.

James foi atrás dele.

— Skippy! – ordenou. – Vem! – Skippy ignorou-o e entrou no quarto

do Sam, onde pulou na cama do menino.

— Skippy quer te fazer uma visita – disse o James.

— Skipster! Oi, cara – disse Sam. Estava sentado à sua escrivaninha

diante do computador. – Olha só isso – disse ao pai.

— O quê? – indagou James.

— Acabei de receber uma mensagem da Annalisa Rice. A esposa do Paul

Rice. Não era com ele que a mamãe estava brigando?

— Não foi briga – disse James. – Foi uma discussão amistosa. – E

ele entrou na sua própria salinha minúscula, fechando a porta. Havia


201

ali uma janelinha alta, e na janela um velho aparelho de ar

condicionado que fungava como uma criança com coriza. James puxou a

cadeira para perto dele, e sentou-se sob o ar meio morno, tentando

refrescar-se.

Tinque, tinque, tinque, era o ruído. Eram oito da manhã e Enid

Merle olhou por sobre a balaustrada e franziu o cenho. Do lado externo

do prédio, estava subindo um andaimes estavam sendo erguidos, graças

aos Rice, que estavam para começar a reformar o apartamento. Os

andaimes terminariam de ser erguidos no fim do dia, mas era só o

começo. Depois que começassem as obras em si, durante semanas se

ouviria uma cacofonia de sons de furadeira, lixas, e martelos. Nada se

podia fazer quanto ao barulho: os Rice tinham direito de fazer obras no

apartamento. Até ali tinham feito tudo conforme as regras, inclusive

enviar avisos aos outros moradores do prédio, informando-os de que o

apartamento ia entrar em obras e da duração aproximada delas. Eles iam

trocar a fiação do apartamento e também o encanamento, para poderem

instalar uma lavadora e secadora de roupas e aparelhos com qualidade de

restaurante, e, de acordo com Roberto, “computadores de alto

desempenho”. Mindy havia ganho a primeira luta dos aparelhos de ar

condicionados, mas os Rice ainda estavam tentando obter mais. Sam disse

a Enid que tinha sido contratado pela Annalisa para fazer um website

para a Fundação Rei Davi, que oferecia aulas de arte e música para os

adolescentes carentes. Enid conhecia aquela instituição beneficente,

que tinha sido fundada por Sandy e Connie Brewer. Na festa do ano

passado, diziam que eles tinham levantado vinte milhões em um leilão no

qual os gerentes de fundos de hedge procuravam dar lances um mais alto

que o outro para ganhar prêmios como um concerto ao vivo de Eric


202

Clapton. Portanto Annalisa estava procurando entrar na nova sociedade,

pensou Enid. Ia ser um outono bastante movimentado e barulhento.

No apartamento ao lado, Philip e Lola foram despertados pelo

barulho.

— Que é isso? – reclamou Lola, tapando os ouvidos. – Está me dando

nos nervos, espero que pare logo.

Philip rolou para um lado e olhou para o rosto dela. Não havia nada

como aquelas primeiras manhãs despertando ao lado de uma nova mulher,

pensou ele, sentindo-se feliz e surpreso ao vê-la.

— Vou fazer você se esquecer do barulho – disse ele, levando as

mãos aos seios dela, que eram especialmente firmes, devido aos

implantes. Ela havia recebido essa plástica de presente dos pais ao

completar 18 anos, ritual que agora era considerado um marco padrão

para as mocinhas que estavam se aproximando da idade adulta. A cirurgia

tinha sido comemorada com uma festa na piscina onde Lola tinha revelado

seus novos seios para suas amigas do ensino médio.

Lola empurrou a mão dele.

— Não consigo me concentrar – disse ela. – Parece que estão

martelando a minha cabeça.

— Ahá – disse Philip. Embora ele e Lola fossem amantes apenas havia

um mês, ele tinha notado que ela tinha uma sensibilidade fora do normal

para todos os mal-estares físicos, tanto verdadeiros quanto

imaginários. Costumava ter dores de cabeça, sentir-se cansada ou sentir

uma estranha dor no dedo, provavelmente, segundo Philip lhe dissera, o

resultado de digitação excessiva na BlackBerry. Suas dores exigiam

repouso ou assistir a programas na tevê, na maior parte do tempo no seu

apartamento, ao que Philip não objetava nem um pouco, porque aqueles

períodos de repouso costumavam acabar na cama.


203

— Acho que você está de ressaca, mocinha – disse Philip, beijando a

testa dela. Saiu da cama e foi ao banheiro. – Quer uma aspirina?

— Não tem alguma coisa mais forte, como um Vicodin?

— Não tenho não – disse ele, uma vez mais impressionado pelas

peculiaridades da geração da Lola. Ela era uma filha da farmacologia,

tinha crescido com um enxame de pílulas receitadas por médicos, para

todo mal de que ela pudesse sofrer. – Não trouxe nada na bolsa? –

indagou. Tinha descoberto que Lola nunca ia a lugar nenhum sem um

estoque de comprimidos, entre eles Xanax, Ambien e Ritalin. – Parece

até o Vale das Bonecas – disse ele, alarmado.

— Deixa de ser burro – disse ela. – Até criança toma esses

remédios. Além disso as mulheres do Vale das Bonecas eram viciadas em

drogas. – E depois estremeceu.

Naquele momento, na cama, estava dizendo:

— Talvez – e rastejando sobre a cama, pendurando-se da beirada dela

de um jeito sedutor e procurando no chão a sua bolsa de couro de cobra.

Puxou-a para a cama e começou a procurar um comprimido dentro dela. Ao

ver o corpo nu dela, bronzeado a spray e perfeitamente modelado (sem

querer ela havia deixado escapar que também tinha mandado fazer lipo

nas coxas e no ventre), Philip regozijou-se. Desde que Lola tinha

aparecido no seu apartamento naquela tarde de julho, sua sorte tinha

mudado. O estúdio tinha adorado sua revisão de Damas de Honra

Revisitadas, e ia começar a filmar em janeiro; além disso, seu agente

tinha lhe conseguido um outro trabalho para escrever um roteiro para um

filme histórico sobre uma rainha inglesa meio desconhecida chamada Mary

a Sangüinária, pelo qual ele receberia um milhão de dólares. “Você está

com sorte, rapaz” disse seu agente depois de lhe dar a notícia. “Sinto

que vem um Oscar por aí.”


204

Philip tinha recebido o telefonema no dia anterior, e tinha levado

Lola ao Waverly Inn para comemorar. Era uma dessas noites em que todos

estavam lá e os reservados estavam cheios de famosos, alguns dos quais

eram velhos amigos. Logo chegou mais gente para dividir a mesa com

eles, incluindo um grupo glamouroso e barulhento que atraiu olhares

invejosos dos outros clientes. Lola ficou se apresentando o tempo todo

como pesquisadora do Philip, e ele, de tão saciado de tudo que bom que

havia na vida, corrigia-a dizendo que ela era sua musa, apertando-lhe a

mão sobre a mesa. Beberam garrafas e garrafas de vinho tinto, e

finalmente voltaram cambaleantes para casa, às duas da matina, em uma

noite quente e enevoada que fazia o Village parecer uma pintura

renascentista.

— Olha aqui, sua dorminhoca – disse ele, naquela manhã, entregando-

lhe duas aspirinas.

Ela se meteu debaixo das cobertas e encolheu-se, ficando em posição

fetal, e estendendo a mão para pegar os comprimidos.

— Não dá para eu ficar na cama o dia inteiro? – pediu, olhando-o

suplicante, como se fosse um lindo cão que sempre conseguia o que

queria. – Estou com dor de cabeça.

— Precisamos trabalhar. Eu preciso escrever e você precisa ir à

biblioteca.

— Não pode tirar o dia de folga? Eles não estão mesmo esperando que

você comece a escrever agora, estão? Acabaram de ligar lhe encomendando

o roteiro. Não significa que pode tirar duas semanas de férias? Já sei

– disse ela, sentando-se. – Vamos fazer compras. Eu podia ir à Barneys.

Ou à Avenida Madison.

— Não – disse ele. – Ia ter que fazer revisões das Damas de Honra

Revisitadas até começarem a rodar a série, e ia precisar terminar o


205

primeiro argumento do roteiro de Mary a Sanguinária até dezembro. Os

filmes históricos sobre personalidades da realeza estavam na moda,

segundo seu agente, e o estúdio queria começar a produção assim que

fosse possível. – Preciso dessa pesquisa – disse Philip, puxando-lhe o

dedão, de brincadeira.

— Vou encomendar uns livros no site da Amazon. Então posso ficar

com você aqui o dia inteiro.

— Se ficar aqui comigo, não vou trabalhar. Portanto, vou precisar

ir para a biblioteca. – E vestiu um jeans e uma camiseta. – Vou sair

para comprar bagels. Quer alguma coisa?

— Dá para me trazer uma VitaWater de chá verde e maçã? – pediu ela.

– E por favor, tem que ser chá verde e maçã, hein, detesto o chá verde

com manga. Manga é enjoativo. Ah, e me traz também uma barra Snickers

gelada, tá? Estou com fome.

Philip saiu, sacudindo a cabeça diante da infantilidade que era

comer um torrone de chocolate com amendoim congelado no café da manhã.

Na calçada esbarrou na Schiffer Diamond, que estava saindo de um

furgão branco com a ajuda de um caminhoneiro.

— Opa! – disse ele.

— Você está de bom humor – disse ela, beijando-o no rosto.

— Vendi um roteiro ontem. Sobre a Mary, a Sangüinária. Devia

trabalhar nesse filme.

— Quer que eu faça o papel de um coquetel?3

— Não, não estou falando de um Bloody Mary. Estou falando da

Rainha. A primogênita do Henrique VIII. Ah, vai – insistiu Philip. –

Você seria aquela que manda cortar a cabeça de todo mundo.

3
Em inglês, Mary a Sangüinária é Bloody Mary. Daí o nome do coquetel, que é feito com
suco de tomate, e, portanto, vermelho. NT
206

— E no fim cortam a minha? Não, obrigada – disse ela, dirigindo-se

à entrada do Número Um. – Acabei de passar a noite inteira numa

filmagem naquela bendita igreja da Madison, sem ar condidionado. Estou

de saco cheio de tudo que seja católico no momento.

— Estou falando sério – disse ele, percebendo que ela seria

perfeita para o papel. – Pelo menos pensaria no caso? Vou entregar o

roteiro pessoalmente quando terminar, junto com uma garrafa de Cristal

e uma banheira cheia de caviar.

— Cristal está fora de cogitação, estudante. Se me pagar uma Magnum

Grande Dame, pensarei no caso – gritou ela, ao afastar-se. Vivia se

afastando dele, pensou Philip. Querendo continuar o papo, perguntou

aonde ela estava indo.

Ela uniu as mãos, inclinando-as para um lado e encostando o dorso

de uma delas no queixo.

— Dormir – disse ela. – Vão me ligar às seis da tarde.

— Até mais, então – disse Philip.

Ao afastar-se, ele se lembro por que nunca tinha dado certo o seu

romance com Schiffer. Ela não tinha tempo para ele. Nunca tinha tido

nem nunca teria. Era isso que era bom na Lola. Ela estava sempre

disponível.

No apartamento de Philip, Lola arrastou-se para fora da cama e foi

até a cozinha. Pensou vagamente em surpreender Philip fazendo café, mas

depois de encontrar o saco de grãos de café ao lado de um moedor,

decidiu que ia dar muito trabalho. Entrou no banheiro e escovou os

dentes com todo o cuidado, depois arreganhou os lábios, fazendo careta,

para ver se estavam bem brancos. Pensou na viagem até a biblioteca na

rua 42, durante o que seria um outro dia quente, e sentiu-se irritada.

Por que ela tinha aceitado aquele emprego como pesquisadora do Philip?
207

E por que ela precisava de emprego, afinal de contas? Ia parar assim

que eles se casassem. Mas sem noivado, a mãe não a deixaria ficar em

Nova York sem emprego, pois “ia ficar parecendo coisa de piranha”

segundo as palavras dela. Continuando a raciocinar coisas a esmo, Lola

recordou-se de que se não tivesse aceitado o emprego, não teria

conhecido o Philip e se tornado, conforme ele mesmo dizia, sua musa.

Era incrivelmente romântico, ser a musa de um grande artista, e o que

sempre acontecia era que o artista se apaixonava pela musa, insistia em

casar-se com ela, e tinha com ela uma linda prole.

Até ali, conhecendo as panelinhas e a ordem social, Lola já podia

ver que no mundo do Philip esse negócio de ser musa talvez não fosse

suficiente. Uma coisa era estar perto de gente famosa, outra essas

pessoas aceitarem você como se fosse uma delas. Ela se lembrava de uma

certa interação da noite anterior com o astro de cinema

internacionalmente famoso que havia se sentado à mesa deles. Não era um

homem de meia-idade particularmente atraente que estava distintamente

adiante do tempo dela; não podia se lembra exatamente de quem era nem

de que filmes tinha feito. Mas como todos estavam badalando o homem,

ouvindo cada palavra dele como se ele fosse o próprio Jesus Cristo, ela

entendeu que tinha que se esforçar um pouco. Ele estava espremido numa

cadeira ao seu lado, e quando terminou um monólogo longo sobre a beleza

dos filmes da década de setenta, ela lhe perguntou: “Faz muito tempo

que mora em Nova York?”

Ele virou a cabeça devagar olhando espantado para ela, e o fato de

que levou aproximadamente um minuto para terminar o gesto a fez se

perguntar se devia sentir medo dele. Não sentia, e se ele pensava que

era capaz de intimidar Lola Fabrikant com um olhar, era melhor pensar

duas vezes.
208

— E o que você faz? – indagou ele, imitando o tom de voz com que

ela havia feito a pergunta. – Não me diga que é atriz.

— Sou pesquisadora do Philip – respondeu ela, com aquele seu tom

sarcástico que costumava fazer os estranhos se calarem. Mas esse cara,

não. Ele olhou para ela e para Philip, e voltou a olhar para ela.

Depois deu um amplo sorriso.

— Pesquisadora, é? – riu ele. – E eu te contei que eu sou o Papai

Noel?

A mesa inteira irrompeu em risadas, inclusive o Philip. Percebendo

que não era um bom momento para ter um acesso de cólera, Lola riu

também, aceitando aquilo com espírito esportivo, mas na verdade, foi

demais. Não estava acostumada a ser tratada assim. Ia deixar passar

daquela vez, mas nunca mais. Naturalmente planejava conversar com

Philip a respeito daquilo, mas mediria as palavras ao fazer isso. Em

geral, não costumava ser bom reclamar dos amigos de um homem com ele,

pois podia magoá-lo, e aí ele passaria a associá-la a negatividade.

Entrementes, pensou ela, encontraria uma forma de ser levada um

pouco mais a sério. Nenhum homem queria uma mulher que outros achavam

que era uma boboca, e nesse caso seria melhor mesmo ir à biblioteca.

Quando Philip voltou ao apartamento, porém, descobriu que Lola

tinha voltado para a cama, e parecia estar profundamente adormecida.

Entrou no escritório e rapidamente escreveu cinco páginas. Ouviu Lola

ressonando, no outro cômodo. Ela era muito natural, mesmo, pensou ele.

E relendo suas páginas, que tinham saído excelentes, decidiu que ela

era seu pé de coelho.

O apartamento dos Rice estava tomando forma pouco a pouco. A sala

de jantar, antes vazia, agora contava com uma mesa de madeira


209

trabalhada e seis cadeiras Rainha Anne que Billy havia misteriosamente

conjurado do depósito de um amigo em algum lugar no Upper East Side. A

mesa era emprestada, até que se pudesse encontrar uma mesa adequada (ou

seja, maior). Enquanto isso, estava coberta de livros sobre decoração e

amostras tanto de tecido quanto de tinta, e folhas impressas no

computador onde se viam várias figuras de móveis pesquisadas na

Internet. Annalisa olhou para a mesa e sorriu, lembrando-se de algo que

o Billy Litchfield tinha dito a ela semanas antes.

— Minha querida – tinha admoestado ele, quando ela tocou no fato de

que no futuro podia voltar a trabalhar como advogada – como é que vai

conseguir dar conta de dois empregos?

— Como assim?

— Já tem um emprego – explicou ele. – De agora em diante, seu

emprego é sua vida com seu marido. – E corrigiu-se. – É mais que um

emprego. É uma carreira. Seu marido ganha o dinheiro e você cria a

vida. E vai ser preciso se esforçar. Vai acordar todas as manhãs e se

exercitar, não simplesmente para parecer atraente, mas procurar ganhar

mais resistência física. A maioria das senhoras prefere ioga. Depois

vai se vestir. Vai tratar da sua agenda e enviar mensagens de correio

eletrônico, depois vai a uma reunião de uma instituição beneficente de

manhã, ou talvez visitar um marchand ou um estúdio. Depois almoça, e à

tarde se reúne com decoradores, bufês e estilistas; pinta o cabelo duas

vezes por mês e faz escova três vezes por semana. Vai visitar museus e

lê, espero eu, três jornais por dia: The New York Times, The New York

Post e The Wall Street Journal. No fim do dia, vai se preparar para

sair à noite, ou seja, ir a dois ou três coquetéis e um jantar. Às

vezes há eventos de caridade aos quais se deve comparecer com trajes

formais, de vestido de festa, sem nunca repetir os vestidos. Vai


210

precisar ir ao salão cuidar dos cabelos e da maquiagem. Vai também

planejar férias e viagens nos fins de semana. Pode ser que compre uma

casa de campo, que também vai precisar organizar e decorar, e para a

qual vai ter que contratar criadagem. Vai conhecer as pessoas certas e

cortejá-las, ao mesmo tempo de modo sutil e descarado. E depois, minha

querida, vêm os filhos. Portanto – concluiu Billy – vamos começar.

E eles começaram mesmo. Havia tantos detalhezinhos dos quais

cuidar: azulejos de banheiro feitos à mão na Carolina do Sul para

complementar os pisos de mármore (o apartamento tinha cinco banheiros,

e cada um deles precisava ser decorado de um jeito), tapetes, cortinas,

até mesmo maçanetas das portas. A maioria dos dias de Annalisa

transcorria no bairro de lojas de móveis, na altura das ruas Vinte em

diante, leste e oeste, mas também nos antiquários da avenida Madison,

que precisavam ser explorados, bem como as casas de leilões. E depois

vinham as reformas em si. Um a um foram se removendo a pintura e o piso

dos cômodos, reinstalando-se as fiações, reaplicando-se o reboco, e

repintando-se e recolocando-se o piso em todo o apartamento. Durante o

primeiro mês, Annalisa e Paul tinham passado um colchão inflável de um

quarto para outro para poder ficar longe das obras, mas mas agora, pelo

menos o quarto do casal estava pronto, e ela, como Billy dizia, esava

“começando a compor o seu guarda-roupa”.

O intercomunicador tocou exatamente ao meio-dia.

— Está aqui um homem para falar com a senhora – disse Fritz, o

porteiro.

— Que homem? – indagou Annalisa. Mas o Fritz já havia desligado. O

intercomunicador ficava na cozinha, no primeiro andar do apartamento.

Annalisa passou correndo pela sala de estar quase vazia e subiu as

escadas até o quarto, onde rapidamente tentou terminar de vestir-se.


211

— Maria? – gritou Annalisa, pondo a cabeça para fora pela porta do

quarto e gritando no corredor, tentando chamar a atenção da

arrumadeira, que tinha ouvido trabalhando em um dos quartos dos fundos.

— Sim, Sra. Rice? – perguntou Maria, saindo no corredor. Maria era

de uma agência e cozinhava e limpava a casa, também executando tarefas

necessárias e, até mesmo, se fosse necessário, saindo para passear com

o cachorro, caso a patroa tivesse um, mas até ali Annalisa não tinha

tido coragem de lhe pedir para fazer muita coisa, pois não estava

acostumada a ter uma criada na casa o tempo todo.

— Alguém está subindo aí – disse Annalisa. – Acho que é o Billy

Litchfield. Pode abrir a porta para mim?

E voltou para o quarto, entrando do imenso armário embutido, que

era um verdadeiro quarto de vestir. O guarda-roupa do qual Billy tinha

falado não era bem o armário em si, mas seu conteúdo. De acordo com

Billy ela ia precisar ter uma série de sapatos, bolsas, cintos, jeans,

blusas brancas, terninhos para almoços, vestidos de coquetel, vestidos

de noite, roupas informais para férias nas montanhas ou em ilhas, e

qualquer esporte do qual a pessoa fosse convidada a participar: golfe,

tênis, equitação, parasailing, rapel, canoagem e até hóquei. E para

ajudá-la a compor seu guarda-roupa, Billy tinha contratado uma famosa

estilista chamada Norine Norton, que escolheria as roupas e as traria

até seu apartamento. Norine era ocupadíssima, e eles só iam poder falar

com ela dali a duas semanas, mas Billy ficou encantado.

— Norine é como uma das melhores cirurgiãs plásticas. Em geral só é

possível marcar uma entrevista com ela para daqui a seis meses, e isso

só para uma consulta.

Nesse meio tempo, uma das seis assistentes da Norine tinha começado

a compor o vesturádio da Annalisa, e em uma prateleira mais baixa havia


212

várias caixas de sapatos com uma foto do sapato colada na frente da

caixa. Annalisa selecionou um par de escarpins pretos com salto dez.

Detestava usar altos altos durante o dia, mas Billy tinha dito que era

necessário.

— As pessoas querem ver a Annalisa Rice, portanto precisa lhes

apresentar a Annalisa Rice.

— Mas quem é a Annalisa Rice? – perguntou ela de brincadeira.

— Isso, minha querida, é que o que vamos descobrir. Não é

divertido?

Naquele momento o visitante não era o Billy Litchfield mas sim o

homem que vinha montar o aquário do Paul. Annalisa levou-o para cima,

até o salão de baile, e olhou de relance, arrependida, para o teto,

onde se via pintada aquela visão celestial italiana extravagante, com

nuvens arredondadas e uma aura cor de rosa, sobre as quais sentavam-se

querubins gorduchos. Às vezes, quando tinha uma folga, Annalisa subia

ali para descansar um pouco, deitada no chão, em um trecho iluminado

pelo sol, absolutamente satisfeita, mas Paul havia declarado o salão de

baile seu espaço particular, e planejava transformá-lo em “central de

comando”, de onde, segundo Annalisa gostava de dizer para provocá-lo,

ele podia dominar o mundo. As janelas envidraçadas iam ser recobertas

com um novo composto elétrico para que ficassem completamente opacas ao

toque de um botão, e assim evitassem que a sala ou as ações de seu

ocupante pudessem ser fotografados de um helicóptero com uma lente de

longo alcance. Uma tela tridimensional iria ser instalada acima da

lareira. No telhado, uma antena especial iria bloquear transmissões por

celular e satélite. Seria instalado um aquário de última geração, com

seis metros de comprimento por dois de largura, onde Paul poderia

dedicar-se ao seu novo passatempo de colecionar peixes raros e caros.


213

Era uma pena destruir a sala, mas Paul não quis saber de nenhum

argumento contra a idéia.

— Pode fazer o que quiser no resto do apartamento – disse ele. –

Mas essa sala é minha.

O homem do aquário começou a medir o espaço e a fazer perguntas a

Annalisa sobre a voltagem e a possível construção de uma plataforma sob

aquele andar para sustentar o peso do aquário. Annalisa fez o possível

para responder a suas perguntas, mas depois desistiu e fugiu para o

andar de baixo.

Billy Litchfield já havia chegado, e, cinco minutos depois, estavam

sentados no banco traseiro de um Town Car novinho em folha, a caminho

da cidade.

— Tenho uma surpresa de boas-vindas para você, querida – disse ele.

– Depois de toda aquela mobília, achei que ia querer dar um tempo para

descansar. Hoje vamos ver uns objetos de arte. Na noite passada tive

uma idéia espetacular – E respirou fundo. – Estou pensando em escolher

umas peças de arte feminista para você.

— Sei.

— Você é feminista?

— Mas claro – disse Annalisa.

— Seja como for, não importa. Por exemplo, duvido que seja cubista,

também. Mas pense só como arte cubista hoje em dia está pela hora da

morte. Não há como comprar.

— Mas o Paul pode – disse Annalisa.

— Nem o Paul pode – disse o Billy. – Só para os multimilionários, e

você e o Paul ainda são candidatos a candidatos à categoria de

multimilionários. Mas arte cubista não é chique. Não para um jovem

casal. A arte feminista, essa sim, é o futuro. Está para estourar nas
214

paradas, e a maioria das obras realmente excepcionais ainda está

disponível. Hoje vamos dar uma olhada numa foto. Um auto-retrato da

artista amamentando o filho. Um potencial maravilhoso de valorização,

por causa do impacto. Cores impressionantes. E sem lista de espera.

— Pensei que era bom que a obra tivesse lista de espera – disse

Annalisa, desconfiada.

— A lista de espera é excelente – disse Billy. – Principalmente se

for uma lista particularmente difícil de se entrar. E é preciso pagar

adiantado por um quadro que nunca se viu. Mas com o tempo chegamos lá.

Enquanto isso, precisamos de uma ou duas peças espetaculares que irão

se valorizar no futuro.

— Billy? – indagou Annalisa. – O que é que você ganha com tudo

isso?

— Prazer – disse ele. E olhou para ela, dando-lhe tapinhas

carinhosos na mão. – Não precisa se preocupar comigo, querida. Sou um

esteta. Se pudesse, passava o resto da minha vida só admirando obras de

arte, e seria feliz. Toda obra de arte é única, feita por uma pessoa,

uma mente, um ponto de vista. Neste mundo onde tudo se fabrica em

série, creio que me consolo com isso.

— Não foi isso que eu quis dizer – disse Annalisa. – Qual é sua

compensação financeira?

Billy sorriu.

— Sabe que não gosto de falar sobre minhas finanças.

Annalisa concordou. Tinha tentado falar no assunto várias vezes,

mas toda vez em que tocava nele, Billy mudava de assunto.

— Billy, preciso saber, senão não é correto, você está passando

tanto tempo comigo, as pessoas devem receber o que têm direito pelo seu

trabalho.
215

— Ganho uma comissão de dois por cento sobre todas as obras de arte

que ajudo a vender. Do marchand – disse Billy, comprimindo os lábios.

Annalisa ficou aliviada. Billy ocasionalmente mencionava uma venda

de milhões de dólares na qual tinha participado, e depois de calcular,

percebeu que a comissão dele devia ter sido de vinte mil.

— Você já deve estar rico, Billy – disse ela, meio na brincadeira.

— Minha querida – disse Billy – Mal consigo sustentar esse estilo

de vida de Manhattan.

Naquele instante, na galeria, Billy recuou e, cruzando os braços,

balançou a cabeça para a foto, aprovando-a.

— É muito moderna, mas a composição é a clássica mãe com a criança

no colo – disse ele. Era uma foto de cem mil dólares. Annalisa,

sentindo aquela pontada de culpa sempre presente no fundo, pela sorte

que tinha, comprou-a. Pagou com seu MasterCard, que Billy disse que

todos usavam para compras maiores porque assim obtinham milhagem nas

companhias aéreas. Mas ninguém daquele nível precisava de milhagem,

pois a maior parte das pessoas da sua classe viajava de jatinho

particular. Contudo, ao sair da galeria com a foto embrulhada em

plástico bolha na mala do carro, Annalisa recordou-se de que Billy

tinha faturado dois mil dólares. Era o mínimo que ela podia fazer.

Lola estava sentada ao longo balcão do Starbucks, lendo um artigo

que tinha encontrado na Internet e imprimido. No final, não tinha

conseguido reunir coragem de ir à biblioteca. Conforme desconfiava,

teria sido um desperdício de tempo mesmo. Havia informações suficientes

na Internet. Lola ajeitou os óculos e preparou-se para ler. A caminho

do Starbucks, tinha comprado uns óculos de leitura com armação preta,

para parecer mais séria. Pelo jeito, o óculos estava funcionando.


216

Enquanto ela lia sobre a obsessão da Rainha Mary com o catolicismo, um

jovem com cara de nerd sentou-se ao seu lado abriu um laptop e ficou

espichando o pescoço por cima da tampa dele para poder vê-la. Lola fez

o possível para fingir que não estava notando o cara, continuando de

cabeça baixa, e fingindo estar absorta no texto. Pelo que pôde

entender, a Rainha Mary, que era descrita como “doentia e frágil”, o

que Lola interpretou como anoréxica, era uma espécie de fanática por

moda do século XVI que sempre aparecia em público usando milhões de

dólares em jóias para fazer as massas se lembrarem do poder e da

riqueza da Igreja Católica. Lola ergueu o olhar e viu que o cara do

computador estava olhando direto para ela. Ela olhou para os papéis, e

quando tornou a olhar para ele, viu-o ainda ali, de olho nela. Tinha

cabelos louro-avermelhados e sardas, mas era mais bonito do que o havia

considerado ao olhá-lo pela primeira vez. Finalmente, ele falou.

— Sabia que são para homem? – disse ele.

— O quê? – disse ela, lançando-lhe um olhar enfezado que devia tê-

lo feito se afastar.

O chato não se deixou intimidar.

— Seus óculos – disse ele. – São para homem. São mesmo óculos de

verdade?

— Claro que são – disse ela.

Ele revirou os olhos.

— Você os comprou com receita? Ou são só para você fazer tipo?

— Não é da sua conta – disse ela, acrescentando, só para garantir –

se sabe o que eu quero dizer.

— Vocês garotas todas usam óculos agora – disse o rapaz, ainda sem

desanimar. – E sabe que são só para inglês ver. Quantas meninas de 22


217

anos precisam de óculos? Óculos é para gente velha. Mais uma dessas

coisas falsas que as garotas colocam.

Ela recostou-se na cadeira.

— E daí?

— E daí que eu estava pensando se você seria uma dessas garotas

cheias de coisas falsas, sabe. Parece que você é falsa. Mas pode ser

que seja de verdade.

— Por que isso te interessaria?

— Acho você bonitinha, né – disse ele, sarcasticamente. – Será que

podia me dizer seu nome, para eu lhe deixar uma mensagem no Facebook?

Lola lançou-lhe um sorriso frio de desprezo.

— Eu já tenho namorado, obrigada.

— Quem disse que eu quero ser teu namorado? Meu Deus, essas meninas

de Nova York são tão arrogantes!

— Você é ridículo – disse ela.

— Hum-hum disse ele. – E você, então? De roupas de grife num

Starbucks, cabelo todo penteado, e ainda por cima bronzeada com spray.

Provavelmente da City Sun. São só eles que têm essa tonalidade de

bronzeado.

Lola perguntou-se por que aquele cara saberia sobre as sutilezas

dos sprays bronzeadores.

— E você, parece até que pode falar dos outros – respondeu ela, no

seu tom de voz mais arrogante. – De calças xadrez.

— De época – disse ele. – Tem uma diferença.

Lola apanhou seus papéis e levantou-se.

— Vai embora? – indagou o rapaz. – Assim de repente? – E então se

levantou e procurou alguma coisa no bolso de trás das suas calças

xadrez horríveis. Nem mesmo era xadrez da Burberry, pensou Lola, coisa
218

que ela podia ter desculpado. Ele lhe entregou um cartão. THAYER CORE,

dizia. No canto inferior direito, via-se um telefone código de discagem

212.

— Agora que sabe meu nome, pode me dizer o seu? – perguntou ele.

— Por que eu lhe diria? – indagou Lola.

— Nova York vive te pregando peças – disse ele. – E eu sou o

curinga.4

4
Curinga é o palhaço, o versátil, o que pode substituir qualquer um. Coringa é uma vela
de embarcação ou uma pessoa raquítica e feia. Mas o personagem do Batman, Coringa, passou
a chamar-se assim por decisão da editora brasileira que achou a palavra “curinga” feia.
Neste sentido, é curinga o que Thayer quer dizer.NT
219

Algumas semanas depois, James Gooch estava na editora.

— Agora os livros são como filmes – disse Redmon Richardly,

gesticulando. – A gente consegue tanta publicidade quando se pode, a

primeira semana é fantástica, e dali em diante tudo vai por água

abaixo. Nada mais dura. Não como antigamente. O público quer coisas

novas toda semana. E também tem as grandes empresas. Só se preocupam

com o que vão ganhar no fim. Fazem pressão sobre as editoras para

produzirem e colocarem os livros no mercado. Fazem-nos se sentirem como

se estivessem fazendo alguma coisa. É odioso, esse negócio de as

grandes empresas controlarem a criatividade. É pior que propaganda do

governo.

— Hum-hum – disse James.

E olhou em torno de si, para o novo escritório do Redmon, triste. O

velho escritório costumava ser um sobrado no West Village, cheio de

originais, livros e tapetes orientais desgastados que Redmond tinha

trazido da casa da avó no Sul. Havia um sofá amarelo recheado de

penugem onde as pessoas se sentavam para aguardar até Redmon poder

falar com elas, e folheavam uma pilha de revistas, olhando as mocinhas

bonitas que entravam e saíam. Redmon era considerado um dos grandes na

época. Divulgava novos talentos e ficção avançada, e seus autores iam

ser os futuros gigantes literários. Redmon fez todos terem fé na

literatura durante algum tempo, até que, por volta da década de 80,

calculou James, a Internet começou a tomar seu lugar.

James olhou atrás de Redmon pela janela de vidro espelhado. Via-se

o rio Hudson à distância, mas isso pouco o consolou do espaço frio e

genérico ao seu redor.


220

— O que estamos publicando agora é um produto de entretenimento –

prosseguiu Redmon. Redmon ainda não havia perdido sua capacidade de

pontificar sobre nada, pensou James, consolando-se com essa

constatação. – Oakland é um exemplo perfeito. Não é mais tão bom assim,

só que isso não importa. Ele ainda vende exemplares, e mesmo sendo ele,

não tantos assim. Só que acontece a mesma coisa com todo mundo. –

Redmon ergueu as mãos, continuando: — A arte não existe mais. Ficção

antes era uma forma de arte. Mas não é mais. Boa, ruim, não importa. O

público só se interessa pelo tema. “Sobre o que é?” perguntam. “E isso

importa?” digo eu. “É sobre a vida. Todos os grandes livros só falaram

sobre uma coisa: a vida.“ Mas eles não entendem mais isso. Querem saber

qual é o assunto. Se for sobre sapatos ou seqüestro de bebês, querem

ler. E não é isso que fazemos, James. Nem poderíamos, mesmo que

quiséssemos.

— Certamente não – disse James.

— Claro que não – disse Redmon. – Mas o que quero dizer é... Bom,

você escreveu um livro bom, James, um romance mesmo, mas não creio que

esteja decepcionado. Vamos definitivamente entrar na lista, agora

mesmo, espero eu. Só que quanto tempo vamos ficar na lista, aí...

— Não importa para mim – disse James. – Não escrevi o livro para

vender exemplares. Escrevi por que eu precisava contar essa história. –

E não vou me deixar corromper pelo ceticismo do Redmon, pensou. – Ainda

acredito no público leitor. Os leitores sabem a diferença. E compram o

que é bom – acrescentou, teimosamente.

— Não quero que se desiluda — disse Redmon.

— Tenho 48 anos – disse James. – Já fazem mais ou menos 40 anos que

não tenho mais ilusões.


221

— Boa notícia – disse Redmon. – Muito boa mesmo. Seu agente e eu

concordamos que eu devia ser o primeiro a lhe dizer. Posso lhe oferecer

um adiantamento de um milhão sobre o seu próximo livro. As grandes

empresas, por um lado, são ruins, mas por outro lado também são boas.

Têm dinheiro, e eu pretendo gastá-lo.

James levou um susto tão grande que ficou paralisado. Será que

tinha escutado direito?

— Vai receber um terço ao assinar o contrato – continuou Redmon,

como se concedesse adiantamentos de um milhão o tempo todo. – Com isso

e o dinheiro que vamos ganhar colocando o livro para vender nas

iStores, acho que podemos prever um excelente ano para você.

— Ótimo – disse James, ainda sem saber como reagir. Será que devia

pular da cadeira e dançar o “watusi”?

Mas Redmon ainda estava falando calmamente.

— O que vai fazer com o dinheiro?

— Economizar. Para pagar a faculdade do Sam – disse James.

— É, vai usar tudo assim – concordou Redmon. – Seiscentos,

setecentos mil dólares, aonde a gente chega com essa quantia hoje em

dia? Depois de deduzidos os impostos... Meu Deus... E aqueles caras lá

de Wall Street comprando Picassos por 50 milhões. – E ergueu as mãos,

como que tentando empurrar essa realidade para longe. – É a nova ordem

mundial, creio eu.

— Creio eu – concordou James. – Mas sempre se pode procurar obter

uma fantasia juvenil. Comprar um barco a vela no Caribe e desaparecer

alguns anos.

— Eu não – disse Radmon. – Eu me entediaria em dois dias. Mal posso

suportar tirar férias. Gosto de ficar na cidade.


222

— Certo – disse James. E olhou para Redmon. Sorte dele conhecer bem

seu próprio modo de pensar. Redmon sempre estava seguro de si, pensou

James. Mas, ele, James, não conhecia nem um pouco o seu próprio modo de

pensar, segundo percebeu.

— Vou levá-lo até a porta – disse Redmon. Ficando de pé, fez uma

careta e levou a mão ao maxilar inferior. – Porcaria de dente – disse.

– Provavelmente vou precisar fazer outro tratamento de canal. Como

estão seus dentes? É extraordinário esse negócio de ficar velho. Tão

difícil quanto dizem. – Ao saírem do escritório, deram com um labirinto

de cubículos. – Mas há vantagens – prosseguiu Redmon, recuperando sua

autoconfiança extraordinária na mesma hora. Por exemplo, agora sabemos

tudo. Já passamos por tudo antes. Sabemos que não há nada de novo. Já

notou isso? A única coisa que muda é a tecnologia.

— Só que não dá para entender a tecnologia – disse James.

— Besteira – disse Redmon. – Continua sendo um monte de botões. É

só uma questão de saber quais apertar.

— Como o botão de emergência que explode o mundo.

— Não desativaram esse ainda? – disse Redmon. – Por que não dá para

ter outra guerra fria? Era muito mais sensato do que uma guerra de

verdade. – E apertou o botão do elevador.

— A humanidade está regredindo – disse James. O elevador chegou e

ele entrou.

— Dê lembranças à família – gritou Redmon com genuína emergência

quando as portas já estavam se fechando.

A recomendação de Redmon pareceu extraordinária para James. Redmon

jamais teria pensado em família dez anos antes, quando levava uma

mulher diferente para a cama toda noite, enchendo a cara e consumindo

coca até o amanhecer. Durante anos, as pessoas haviam previsto que algo
223

horrível aconteceria com o Redmon, pois ele parecia merecer, embora que

coisa horrível seria essa, ninguém soubesse dizer; talvez a

reabilitação? Ou algum tipo de morte? Mas nada terrível tinha

acontecido com ele. Em vez disso, ele havia adotado a sua nova vida de

casado pai e executivo de grande empresa com a agilidade de um

esquiador. James jamais tinha entendido aquilo, mas achava que talvez o

Redmon, em vez de ser fonte de consternação, devia ser considerado uma

inspiração. Se o Redmon podia mudar, por que ele não poderia?

Agora tenho dinheiro, pensou James, e isso o atingiu ao mesmo tempo

que o ar frio de setembro. Pelo menos Nova York parecia estar tendo um

outono genuíno naquele ano. As ocorrências corriqueiras agora eram um

prazer e um alívio para ele, um lembrete de que, de certa forma, a vida

podia prosseguir como antes.

Mas será que prosseguiriam, agora que ele tinha dinheiro? Passando

pelas lojas de cadeia que se alinhavam ao longo da Quinta Avenida, com

seus produtos expostos em grandes vitrines como o sonho de um

consumidor de classe média, recordou-se de que não era tanto dinheiro

assim. Não era suficiente nem para comprar uma minúscula quitinete

naquela metrópole imensa e cara. Mas ele tinha um pouquinho de

dinheiro. Não era mais, pelo menos por enquanto, um fracassado.

Na Rua 16, passou pela Paul Smith, e como de hábito, parou um

segundo e contemplou as vitrines. As roupas da Paul Smith eram um

símbolo de status, a escolha dos homens urbanos e sofisticados. Mindy

tinha lhe comprado uma camisa da Paul Smith anos atrás, para lhe dar no

Natal, no tempo em que se orgulhava dele, e pelo jeito tinha decidido

que valia a pena gastar um dinheirinho a mais comprando-lhe algo caro.

Olhando para um par de calças de veludo exibidas na vitrine, ocorreu a


224

James que pela primeira vez na sua vida podia comprar alguma coisa

daquela loja. Esse novo sentimento o encorajou, e ele entrou.

Quase imediatamente seu telefone tocou. Era a Mindy.

— O que está fazendo? – disse ela.

— Compras.

— Você? Fazendo compras? – disse Mindy, fingindo estar espantada,

mas com um ligeiro tom de desdém. – O que vai comprar?

— Estou na Paul Smith.

— Não vai comprar nada aí, mesmo, vai?

— Pode ser que sim – disse ele.

— É melhor não fazer isso. Essa loja é muito cara – disse ela.

James tinha pensado em ligar para a Mindy primeiro e lhe contar do

adiantamento, mas surpreendeu-se querendo manter segredo.

— Quando vai voltar para casa? – indagou ela.

— Logo, logo.

— Como foi lá, na editora, com o Redmon?

— Ótimo – disse ele, desligando. Depois sacudiu a cabeça. Tanto ele

como Mindy abordavam o assunto dinheiro com um certo puritanismo, de um

jeito meio excêntrico. Como se sempre estivessem a ponto de ficar sem

nada. Como se não se devesse gastar nada à toa. Eses sentimentos sobre

o dinheiro passavam de pai para filho como se fosse uma coisa genética.

Seu os pais tivessem medo de gastar dinheiro, a pessoa também ficava

com medo. Mindy era de uma família da Nova Inglaterra, onde era

considerado besteira gastar muito. Ele era de uma família de

imigrantes, onde era preciso economizar para poder pagar a comida e a

educação dos filhos. Eles haviam sobrevivido em Nova York porque

economizavam e não baseavam sua auto-estima nas aparências. Só que


225

talvez essa não fosse a solução. Porque segundo James, nem ele nem

Mindy pareciam ter muita autoestima mesmo.

James olhou em torno de si, e indo até um cabide de casacos,

apalpou um sobretudo fino de caxemira. Não sabia como era ter dinheiro.

Não ter dinheiro tinha-o deixado dependente da esposa. Ele sabia disso,

tinha passado anos sabendo, tinha negado isso, racionalizado o fato, se

envergonhado disso, mas o mais vergonhoso mesmo era que jamais tinha se

disposto a fazer nada a respeito. Porque, disse a si mesmo, acreditava

na pureza de sua busca da literatura. Estava disposto a sacrificar sua

masculinidade por esse ideal mais sublime. Tinha se consolado pelo fato

de ser um lutador honrado.

Mas agora tinha dinheiro! Olhou as coisas da loja, inspirando o

odor masculino de couro e colônia. A loja era como um cenário de

teatro, com aquelas painéis de madeira nas paredes, uma cornucópia de

qualquer coisa que um homem com gosto, sofisticação e estilo poderia

querer. E, pensou ele, olhando a etiqueta de três mil dólares de um

terno de caxemira, um senso de ironia sobre o preço que se pagava para

a pessoa se vestir com roupas que a aquecessem.

Num ímpeto de desafio, ele tirou o sobretudo do cabide e o levou

para o provador. Tirou seu próprio casaco, de lã azul-escura, barato,

comprado em liquidação da Barneys fazia cinco anos, e olhou para o seu

corpo. Tinha a vantagem de ser alto, mas os membros eram ossudos e a

barriga era flácida. Suas pernas ainda estavam firmes, mas o bumbum

estava caído, e o peito era murcho (“maminha de homem”, era o termo

atual, achava ele), mas tudo isso se podia ocultar com as roupas

certas. Meteu os braços nas mangas e abotoou o sobretudo na altura do

peito. Transformou-se num homem em cuja vida estavam se desenrolando

fatos formidáveis.
226

Saindo do provador, deu de cara com o Philip Oakland. A

autoconfiança de James dissipou-se como a bruma. Aquela loja não era o

seu lugar, pensou apavorado. Até mesmo uma loja era uma tribo, e ele

não fazia parte daquela tribo; Philip Oakland certamente sabia disso.

James costumava ver o Philip no vestíbulo ou nas ruas em torno da

Quinta Avenida. Philip nunca demonstrava que o reconhecia, mas talvez

fosse precisar demonstrar isso naquela loja, com aquele sobretudo, o

tipo de sobretudo que o próprio Philip talvez usasse. E realmente o

Philip Oakland, erguendo os olhos de uma pilha de suéteres, disse, como

se eles fossem amigos do peito:

— Oi!

— Oi – disse James.

Se não fosse a mocinha, a belíssima mocinha que estava com o

Philip, e que James tinha visto entrando e saindo do prédio em horários

diferentes, a coisa teria ficado por aí. Ele sempre tinha imaginado

quem seria ela, e o que estava fazendo no Nümero Um, mas agora tudo

fazia sentido. Ela era namorada do Philip.

Ela falou, assustando James.

— Está bonito – disse a ele.

— É mesmo? – respondeu James, olhando a moça, admirado. Ela tinha a

autoconfiança irredutível de quem foi bela a vida inteira.

— Eu entendo de moda – disse ela, atrevida. – Meus amigos vivem

dizendo que eu devia ser estilista.

— Lola, por favor – disse Paul.

— É verdade – disse Lola, voltando-se para o Philip. – Você está se

vestindo bem melhor desde que eu comecei a te ajudar a escolher as

roupas.
227

Philip deu de ombros e revirou os olhos para James como quem diz

“essas mulheres...”

James aproveitou para se apresentar.

— Já o vi antes – disse Lola.

— Viu sim – disse o James. – Eu moro no Número Um também. Sou

escritor.

— Todos são escritores no Número Um – disse ela, com uma arrogância

que fez James rir.

— É melhor a gente ir embora – disse Philip.

— Mas ainda não compramos nada – protestou ela.

— Nós – disse o Philip ao James – Notou isso? Por que é que fazer

compras com mulheres é sempre um esporte coletivo?

— Sei lá – disse James. E olhou de relance para a Lola,

perguntando-se como é que ele tinha conseguido uma garota como aquela.

Ela era insolente. Ele gostou do modo como ela tinha contestado o

grande Philip Oakland, e imaginou como é que Philip recebia aquilo.

— Os homens nunca sabem o que comprar sozinhos – respondeu ela. –

Minha mãe deixou meu pai fazer compras sozinho uma vez, e ele voltou

com um suéter listrado de acrílico. Ela disse, “nunca mais”. O que você

escreve? – perguntou ao James, sem deixar a peteca cair.

— Romances – disse James. – Vai sair um livro meu em fevereiro. –

Gostou de poder lhe dar essa informação na frente do Philip. Agora

agüenta, pensou ele.

— Trabalhamos para a mesma editora – disse Philip, talvez, pensou

James, finalmente entendendo quem ele era. – Qual vai ser a tiragem?

— Não sei – respondeu James. – Mas já sei que vão duzentos mil

exemplares para as iStores na primeira semana.

Philip, para alegria de James, fez cara de preocupado.


228

— Interessante – disse.

— É sim – disse James. – Dizem que é o futuro das editoras.

Lola de repente se cansou.

— Se não vai comprar nada aqui, podemos ir à Prada, por favor?

— Claro – disse Philip. – Até mais – disse ao James.

— É – disse James.

Ao se afastarem, Lola virou-se para James.

— Devia comprar esse casaco. Cai muito bem em você.

— Vou comprar sim – respondeu ele.

James pagou pelo sobretudo. Quando o vendedor estava colocando um

saco plástico protetor sobre ele, no cabide, James subitamente teve uma

inspiração.

— Não precisa – disse ele. – Vai no corpo mesmo, para eu chegar em

casa com ele.

Naquela tarde, Norine Norton, a estilista, chegou ao apartamento da

Annalisa para seu terceiro encontro. Norine, com aquelas extensões no

cabelo e seu rosto sutilmente esticado, além do aparentemente

enciclopédico conhecimento dos mais recentes sapatos, bolsas,

figurinistas, cartomantes, treinadores e procedimentos cosméticos, não

deixava a Annalisa nada à vontade. Seu apelido, segundo ela informou a

Annalisa durante seu primeiro encontro, era “o Coelhinho da Energizer”,

uma energia que Annalisa suspeitava, devia ser induzida por drogas.

Norine nunca parava de falar; por mais que Annalisa tentasse se lembrar

que Norine era mulher, um ser humano de verdade, Norine sempre

conseguia convencê-la de que não era.


229

— Tenho uma coisa que você vai adorar – disse Norine. E estalando

os dedos, apontou para sua assistente, Julee. – O lamê dourado, por

favor.

— Aquele conjunto dourado? – indagou Jolee. Era uma mocinha frágil

com cabelos louros fracos e os olhos medrosos de um coelho.

— Sim – disse Norine, simulando paciência. Com sua assistente,

Norine parecia estar sempre a ponto de explodir a qualquer momento. Mas

quando falava com Annalisa, era com toda a solicitude de um mercador

apresentando suas mercadorias a uma grande senhora da sociedade.

Julee ergueu um cabide de plástico transparente do qual pendia uma

minúscula blusinha dourada e uma minissaia que combinava com ela.

Annalisa examinou o traje, desanimada.

— Acho que o Paul não vai gostar desse.

— Escuta, meu amor – disse Norine. Sentou-se na beirada da cama de

dossel com a cortina de seda pregueada que recentemente tinha chegado

da França, e bateu no lugar ao seu lado, no colchão. – Precisamos ter

uma conversa.

— Precisamos? – indagou Annalisa. Não queria se sentar ao lado da

Norine; nem queria um daqueles sermões dela. Até ali ela havia se

obrigado a tolerá-los, mas não estava a fim naquele dia. Olhou para a

Norine e depois para a Julee, que ainda estava de pé, segurando o

cabide como se fosse uma daquelas ajudantes de palco de programas de

tevê. Devia estar ficando com o braço cansado. Annalisa sentiu pena

dela.

— Está bem – disse, indo ao banheiro para experimentar o conjunto

de saia e blusa.

— Você é muito tímida – disse Norine, bem alto para ela ouvir.

— Hã? – disse Annalisa, metendo a cabeça pela porta.


230

— Você é muito tímida. Indo se trocar no banheiro. Devia se trocar

aqui para eu poder ajudá-la – disse Norine. – Não tem nada que eu não

tenha visto antes.

— Sei – disse Annalisa, fechando a porta. Virou-se para se olhar no

espelho e fez uma careta. Como é que tinha se metido naquela entalada?

A princípio tinha parecido uma boa idéia essa de contratar uma

estilista. Billy dizia que todos contratavam hoje em dia, ou seja,

todos que tinham dinheiro ou posição e precisavam sair e ser

fotografados. Era a única forma, segundo Billy, de conseguir as

melhores roupas. Mas a coisa agora já estava passando dos limites. A

Norine vivia ligando ou mandando anexos nas mensagens de correio

eletrônico com as roupas, acessórios e jóias que fotografava ao fazer

compras ou visitar showrooms dos figurinistas. Annalisa não fazia idéia

de que havia tantas linhas. Não só primavera e outono, mas também para

balneário, cruzeiros, verão e Natal. Cada estação exigia um visual todo

seu, e para se obter esse visual era preciso fazer um planejamento tão

complexo como o de um golpe militar. As roupas precisavam ser

escolhidas e encomendadas meses antes de serem usadas, senão a moda

passava.

Annalisa segurou o conjunto de lamê dourado diante de si,

encostando o cabide no queixo. Não, pensou. Aquilo já era ir longe

demais.

Mas talvez tudo tivesse ido longe demais. Apesar do progresso que

ela tinha feito no apartamento, Paul ainda queria mais. O sorteio da

vaga de estacionamento no Mews tinha passado, e o Paul não tinha sido o

vencedor. Além dessa notícia decepcionante, tinham recebido uma carta

da Mindy Gooch, informando-os oficialmente de que seu pedido de


231

instalação de aparelhos de ar condidicionado embutidos na parede tinha

sido negado.

— Vamos nos virar sem eles – tinha dito a Annalisa, tentando

acalmá-lo.

— Não dá.

— Mas vamos ter que nos virar.

Paul olhou-a furioso.

— É uma conspiração – insistiu. – É porque temos dinheiro, e eles

não.

— A Sra. Houghton tinha dinheiro – arrazoou Annalisa. – E morou

aqui sem qualquer problema durante anos.

— Ela era um deles – replicou o Paul. – E nós não somos.

— Paul – disse ela, com toda a paciência – do que está falando?

— Estou ganhando dinheiro de verdade agora – disse ele. – E espero

ser tratado com um certo respeito.

— Pensei que já estivesse ganhando dinheiro de verdade há seis

meses atrás – disse ela, tentando melhorar o clima na base da

brincadeira.

— Quarenta milhões não é dinheiro de verdade. Cem milhões já é mais

próximo disso.

Annalisa sentiu tontura. Sabia que o Paul estava ganhando muito

dinheiro e planejava ganhar mais. Mas nunca tinha lhe ocorrido que isso

ia se tornar realidade, não sabia por quê.

— Isso é loucura, Paul – protestou. Mas também ficou excitada, como

as pessoas se excitam ao olhar fotos pornográficas muito embora não dê

para sentir tesão e a pessoa se sinta culpada pela animação sentida.

Talvez ter dinheiro demais fosse como trepar demais. Passava dos

limites e virava pornografia.


232

— Vem, Annalisa. Abre a porta. Deixa eu te ver – disse Norine.

Também havia algo de pornográfico naquilo. Naquele negócio de ser

vista, naquela exigência incessante de constantemente ser vista em toda

parte. Annalisa sentiu-se pior do que se estivesse pelada, como se suas

partes pudendas estivessem expostas, para todos examinarem.

— Não sei – disse Annalisa, saindo. O traje de golfe de lamê

dourado consistia de uma saia que batia no meio da coxa e uma camisa de

corte pólo (quando ela pequena, eram camisas Lacoste; ela as chamava de

“blusa do jacaré”, o que mostrava que enquanto crescia não tinha

felizmente a menor noção de moda), arrematadas por um cinto largo, que

se apoiava nos quadris. – O que devo usar debaixo disso?

— Nada – disse Norine.

— Nenhuma roupa de baixo?

— Chama de calcinha, por favor – disse Norine. – Se quiser pode

usar calcinha de lamê dourado. Ou de lamê prateado. Para contrastar, né?

— O Paul jamais permitiria uma coisa desses – disse Annalisa, com

firmeza, na esperança de dar um fim à discussão.

Norine pegou o rosto da Annalisa entre as mãos, segurando-o entre

os dedos de unhas pintadas, e apertou-o como se fosse o de uma criança.

Sacudiu a cabeça, fazendo bico com os lábios.

— Nunca, nunca mais diga isso – disse ela, com voz de quem fala com

criancinha pequena. – Não importa o que o papaizinho Paulinho gosta ou

não gosta. Repita comigo: “Eu é que vou escolher minhas próprias

roupas.”

— Eu é que vou escolher minhas próprias roupas – disse Annalisa,

relutante. Agora sim, estava num beco sem saída. Norine nunca parecia

entender que quando ela dizia que Paul não gostava de uma coisa,

significava que ela não gostava, mas não queria ofender a Norine.
233

— Muito bem – disse Norine. – Já faço isso há muito, mas muito

tempo mesmo, mas o que eu sei mesmo é que os homens nunca se incomodam

com o que as mulheres vestem contanto que elas se sintam felizes. E se

sintam bonitas. Melhores do que as esposas dos outros homens.

— Mas e se não estivessem? – disse Annalisa, pensando que já estava

cansada daquele exercício.

— É por isso que me contratam – disse Norine, com uma autoconfiança

sem limites.

E estalou os dedos para a assistente.

— Uma foto, por favor – disse ela.

Julee ergueu o telefone celular e tirou uma foto da Annalisa.

— Como saiu? – indagou Norine.

— Boa – disse Jolee, claramente apavorada. Passou o telefone para a

Norine, que espiou a imagem minúscula na tela.

— Muito boa – disse Norine, mostrando a foto à Annalisa.

— Ridícula – disse Annalisa.

— Acho fabulosa – disse Norine. E entregou o telefone à Julee,

cruzou os braços e preparando-se para outro sermão. – Olha, Annalisa –

disse ela. – Você é rica. Pode fazer tudo que quiser. Não tem nenhum

bicho papão ali na esquina querendo te castigar.

— Pensei que Deus nos punisse – disse Annalisa, baixinho.

— Deus? – disse Norine. – Eu nunca ouvi falar disso. Esse negócio

de espiritualidade é só fachada. Astrologia, sim. Cartas de tarô, sim.

Mesa branca, Kundala, Cientologia, e até cristãos renascidos, sim. Mas

Deus, mesmo? Não. Isso seria inconveniente.

No seu escritório, Mindy escreveu: “Por que torturamos nossos

maridos? É necessário, ou o resultado inevitável de nossa frustração


234

inerente com o sexo oposto?” e recostou-se na cadeira, examinando a

frase com satisfação. Seu blogue era um sucesso, durante os últimos

dois meses ela havia recebido 872 mensagens de correio eletrônico

dando-lhe os parabéns por sua coragem de falar de tópicos que

geralmente se consideravam tabu, como se uma mulher realmente precisava

do marido depois de ele ter lhe dado filhos. “Trata-se de uma questão

puramente existencial”, tinha escrito Mindy. “Como mulheres, não temos

permissão de fazer perguntas existenciais. Devemos agradecer por tudo

que temos, e se não formos gratas, somos mesquinhas. Seria possível

parar de se impor a felicidade e admitir que apesar do que temos a

gente tem direito de se sentir vazia? É permitido sentir que algo falta

e a vida pode estar sem sentido? Em vez de se sentir mal por isso, por

que não podemos admitir que é normal?”

Desse mesmo ponto de vista nada sentimental ela examinava os homens

e os relacionamentos. A conclusão de Mindy era que o casamento era

feito a democracia, imperfeito mas ainda o melhor sistema que as

mulheres tinham. Certamente era melhor que a prostituição.

Mindy releu a sentença de abertura do seu blogue da semana e pensou

no que dizer em seguida. Escrever um blogue era um pouco como ir a um

psicólogo, pensou ela, obrigava a pessoa a examinar seus verdadeiros

sentimentos. Mas também era melhor que um psicólogo, porque a pessoa

podia ficar contemplando o seu próprio umbigo diante de uma audiência

de milhares de pessoas em vez de uma só. E na sua experiência, essa

pessoa, o terapeuta, em geral estava semi-adormecido e queria o seu

dinheiro.

“Esta semana, percebi que passo pelo menos trinta minutos por dia

importunando meu marido”, escreveu. “E para quê? Não há conseqüências.”


235

Olhando para cima, viu que sua assistente estava parada diante da sua

mesa.

— Tem alguma entrevista marcada com um tal Paul Rice? – perguntou a

assistente, como se Paul Rice fosse uma coisa, não uma pessoa.

Percebendo a surpresa no olhar a Mindy, ela prosseguiu: — É, eu bem que

percebi que não tinha. Vou chamar os seguranças para pô-lo na rua.

— Não – disse Mindy, um pouco sofregamente demais. – Ele mora no

meu edifício. Pode mandá-lo subir.

Ela calçou os sapatos e ficou de pé, alisando a saia e ajeitando a

blusa, sobre a qual usava um colete de lã. O colete não era nada sexy,

e ela pensou em tirá-lo, mas pensou que ficaria meio evidente que tinha

tentado melhorar a aparência. Depois percebeu que era ridículo pensar

aquilo: Paul Rice não teria como saber que ela estava de colete antes.

Tirou o colete. Sentou-se atrás da mesa e ajeitou os cabelos. Procurou

na gaveta de cima da escrivaninha e encontrou um velho brilho labial, e

passou um pouco na boca.

Paul Rice apareceu à porta da sua sala. Estava com um terno

muitíssimo bem talhado e uma camisa imaculadamente branca. Parecia,

segundo Mindy notou, um ricaço. Mais um europeu sofisticado do que um

matemático todo borrado de tinta. Mas os matemáticos não se borravam

mais de tinta. Agora trabalhavam em computadores, como todas as outras

pessoas.

Mindy ficou de pé e inclinou-se sobre a mesa para apertar-lhe a

mão.

— Alô, Paul – disse. – Que surpresa, você aqui. Sente-se. – E

indicou a pequena poltrona diante da sua mesa.

— Não tenho muito tempo – disse ele. E esticou o braço, de

propósito, para consultar o relógio, um imenso Rolex de ouro de época.


236

– Exatamente sete minutos, para ser preciso. O que deve ser tempo

suficiente para meu motorista contornar o quarteirão.

— Não às quatro e meia – discordou Mindy. – Ele vai levar pelo

menos quinze minutos na hora do rush.

Paul Rice ficou olhando para ela sem dizer nada.

Mindy começou a sentir-se ligeiramente excitada.

— O que posso fazer por você? – indagou ela. Desde que tinha

conhecido Paul na reunião dos condôminos, tinha começado a perceber que

se sentia secretamente atraída por ele. Achava-o sensual. Mindy sempre

tinha adorado homens de talento, e diziam que o Paul Rice era assim.

Além disso, tinha rios de dinheiro. O dinheiro não importava, mas

homens que ganham muito sempre eram interessantes.

— Preciso daqueles aparelhos de ar condicionado – disse ele.

— Ora, Paul – disse a Mindy, soando ligeiramente, aos seus próprios

ouvidos, como uma professorinha de escola rural. Recostou-se na cadeira

e cruzou as pernas, procurando se imaginar mais como uma Sra. Robinson.

Depois sorriu. – Pensei que tinha explicado bem na minha carta. O

Número Um é um edifício histórico. Não podemos alterar nem a fachada

nem a estrutura do prédio, de forma alguma.

— O que isso tem a ver comigo? – disse Paul, semicerrando os olhos.

— Significa que não dá para instalar ar condicionado do tipo

embutido na parede. Ninguém pode fazer isso – disse a Mindy.

— Mas pode-se abrir uma exceção.

— Não posso – disse Mindy. – É ilegal.

— Eu tenho muitos equipamentos caros de informática. Preciso manter

esses equipamentos a uma temperatura exata.

— E qual seria ela? – indagou Mindy.

— Dezessete vírgula oitenta e oito graus.


237

— Gostaria de ajudá-lo, Paul, mas não posso.

— Quanto é que custaria essa sua ajuda? – indagou Paul.

— Está querendo me subornar?

— Chame do que quiser – disse Paul. – Preciso dos meus aparelhos de

ar condicionado. E da vaga do Mews. Vamos facilitar o máximo possível

para nós dois. Diga-me qual é o seu preço.

— Paul – disse Mindy. – Dinheiro não vai mudar nada.

— Tudo é dinheiro. Tudo são números.

— No seu mundo, talvez. Mas não no Número Um – disse Mindy, no seu

tom de voz mais condescendente. – Trata-se de preservar um patrimônio

histórico. E isso, o dinheiro não pode comprar.

Paul continuou impassível.

— Paguei vinte milhões por aquele apartamento – disse ele. – E por

isso, vai aprovar meus aparelhos de ar condidionado. – E voltou a

consultar o relógio, levantando-se em seguida.

— Não – respondeu a Mindy. – Não vou. – E também se levantou.

— Nesse caso – disse Paul, avançando um passo – é guerra.

Mindy arquejou, involuntariamente. Sabia que devia ter mandado aos

Rice a carta oficial negando os aparelhos de ar condicionado fazia

meses, quando tinham apresentado os planos para a reforma, mas tinha

gostado de ter uma desculpa para conversar com o Paul ao encontrá-lo na

portaria. Mas não era assim que a coisa devia terminar.

— Como disse? – disse ela. – Está me ameaçando?

— Eu nunca ameaço ninguém, Sra. Gooch – disse Paul, sem demonstrar

emoção alguma na voz. – Simplesmente apresento os fatos. Se não aprovar

meus aparelhos de ar condicionado, nós vamos nos confrontar. E eu vou

vencer.

10
238

— Olha – disse Enid Merle na tarde seguinte. – A nova série de tevê

da Schiffer Diamond estreou com uma fatia do mercado de 2,0%. E quatro

milhões de telespectadores.

— E é bom isso? – indagou Philip.

— É a maior estréia em tevê a cabo da história.

— Ai, Nini – disse o Philip. – Por que presta atenção nessas

coisas?

— Por que você não presta? – perguntou a Enid. – De qualquer

maneira, é um sucesso.

— Li as críticas – disse Philip. – SCHIFFER DIAMOND BRILHA,

declarava uma. DIAMOND É ETERNA, dizia outra.

— Schiffer é uma estrela – disse a Enid. – Sempre foi, e sempre

será. – E deixou a Variety de lado. – Eu desejo até que...

— Não, Nini – disse Philip, firmemente, sabendo o que ela estava

para dizer. – Não vai dar.

— Mas a Schiffer é tão...

— Maravilhosa? – disse Philip, com uma ponta de sarcasmo. Enid fez

cara de magoada. – Sei que a adora – disse Philip. – Mas é impossível

viver com uma atriz. Sabe disso.

— Só que vocês dois cresceram – contradisse Enid. – E detestaria

que você...

— Terminasse com a Lola? – disse Philip. Podia acontecer isso. Lola

era louca por ele. – Desejaria que tentasse conhecê-la um pouco melhor.

Significaria muito para mim.

— Vamos ver – disse Enid.

Philip voltou para o seu apartamento. Lola estava enrodilhada no

sofá, assistindo televisão.


239

— Onde estava? – perguntou.

— Visitando a minha tia.

— Mas foi lá ontem.

Philip ficou meio irritado.

— Você liga todo dia para a sua mãe.

— Mas ela é minha mãe.

Philip entrou no escritório e fechou a porta. Depois de uns dois

minutos levantou-se da mesa, abriu a porta e meteu a cabeça para fora.

— Lola – disse – dá para abaixar o som dessa porcaria de televisão?

— Por quê?

— Estou tentando trabalhar – disse.

— E daí? – disse ela bocejando.

— Tenho que reescrever um texto que preciso entregar em dois dias.

Se não terminar, não vamos começar a rodar na data prevista.

— Qual é o problema? – indagou ela. – Eles esperam. Você é Philip

Oakland. Eles vão ter que esperar.

— Não esperam, não – disse Philip. – É um contrato, Lola. Sou um

adulto e preciso cumprir meus deveres. As pessoas estão contando com o

meu produto.

— Então escreve – disse ela. – O que é que está te impedindo?

— Você – disse ele.

— Estou só sentada aqui assistindo à televisão.

— Mas esse é que é o problema. Não consigo me concentrar com essa

televisão ligada.

— Por que eu devo parar de fazer o que estou fazendo para você

poder fazer o que quer?

— O que tenho que fazer.


240

— Se não quer fazer isso, não te faz feliz, então não faça – disse

Lola.

— Preciso que desligue a tevê. Ou pelo menos abaixe o som.

— Por que está me criticando?

Philip desistiu. Fechou a porta. Abriu-a de novo.

— Precisa trabalhar um pouco – disse ele. – Por que não vai à

biblioteca?

— Porque acabei de vir do salão e acabei de fazer as unhas das mãos

e dos pés – e estendeu um pé, mexendo os artelhos para ele inspecionar.

– Não ficou bonito? – perguntou com voz de garotinha pequena.

Philip voltou à sua mesa. O barulho da tevê continuou, sem atenuar-

se. Ele levou as mãos aos cabelos. Como é que aquilo tinha acontecido,

porra? Ela tinha dominado o apartamento, sua vida, sua concentração. O

banheiro dele estava cheio de cosméticos por todos os cantos. Ela nunca

tampava a pasta de dente. Nem comprava papel higiênico. Quando o papel

higiênico acabava, usava toalhas de papel. E olhava para ele,

acusadoramente, como se ele tivesse pisado na bola na tarefa de

facilitar a vida dela. Cada um dos dias da vida dela era uma orgia

interminável de mimos. Vivia marcando hora em salão de beleza,

massagens e aulas de exercícios em academias de artes marciais

asiáticas obscuras. Era, conforme ela explicava, tudo para se preparar

para um grandioso evento futuro, anônimo e indefinido, que

inevitavelmente aconteceria com ela, e mudaria sua vida, para o qual

precisava estar preparada. Preparada para as câmeras. E ele não

conseguia que ela saísse e voltasse para casa.

— Podia voltar ao seu apartamento – sugeriu ele.

— Mas seu apartamento é bem melhor que o meu.


241

— Seu apartaemtno é muito melhor do que o da maioria das moças de

vinte e poucos anos – disse ele. – Algumas moram lá nos confins do

Brooklyn. Ou em Nova Jérsei. Precisam atravessar o rio de barca.

— O que está me dizendo, Philip? Que é culpa minha? Então preciso

me sentir culpada pela vida dos outros? Não tenho nada a ver com as

vidas delas. Não faz sentido.

Ele tentou explicar que se devia sentir culpada pelas provações e

esforço dos outros porque era assim que as pessoas decentes se sentiam

no mundo, era uma coisa chamada consciência, mas quando ela fazia

pressão, ele precisava admitir que sentir culpa era um legado da sua

geração, não da dela. Ao contrário de gerações anteriores nas quais os

pais, como sua mãe, não tinham escolha e precisavam ter filhos, e

portanto faziam os filhos se sentirem culpados por virem ao mundo. Como

se fosse culpa do filho.

Às vezes era como tentar discutir ocm alguém de outro planeta.

Ele se levantou e tornou a abrir a porta.

— Lola! – chamou.

— Qual é o seu problema? – disse ela. – Eu não fiz nada. Você está

de mau humor porque não está conseguindo produzir o que queria. Não

ouse pôr a culpa em mim. Não vou tolerar isso. – E se levantou.

— Aonde vai? – indagou ele.

— Vou sair – foi a resposta.

— Ótimo – disse ele. E fechou a porta. Mas agora sentia-se culpado

mesmo. Ela tinha razão, não tinha feito nada de errado. E ele estava de

mau humor, não sabia por quê.

Abriu a porta. Ela estava calçando as sapatilhas, com todo o

cuidado.

— Não precisa sair.


242

— Mas vou – disse ela.

— Quando vai voltar?

— Não sei – e saiu.

No elevador, Lola verificou sua página do Facebook. E viu que havia

mesmo uma mensagem do Thayer Core. Ele deixava mensagens para ela

regularmente, embora ela raramente respondesse. Na página do Facebook,

ele havia descoberto que ela era de Atlanta, e pelas fotos que ela

tinha colocado lá parecia pensar que era do tipo festeiro. “Oi, gatinha

sulista”, tinha escrito ele. “Vamos nos encontrar”. “Por quê?” tinha

sido a resposta dela. “Por que você é louca por mim”, respondeu ele.

“Todas as meninas são.”

“CQN”, respondeu ela, querendo dizer “claro que não.”

Agora, porém, poderia ser uma boa hora para aceitar a oferta do

Thayer Core. A melhor forma de se vingar de um cara era lhe causar

ciúmes, embora ela não soubesse se o Thayer Core ia ser mesmo capaz de

fazer o Philip se tocar. Mesmo assim, Thayer era jovem, era um tesão e

era melhor que nada. “O que está fazendo?” digitou ela para o Thayer.

Recebeu uma resposta na mesma hora: “Torturando os ricos.”

“Vamos nos ver”, escreveu ela. E ele lhe enviou seu endereço na

mesma hora.

O apartamento ele era na Avenida C e rua 13, um prédio de tijolos

baixo com um restaurante chinês pé-sujo embaixo. Lola subiu de elevador

apertadinho até o terceiro andar. O corredor era revestido de quadrados

largos de linóleo marrom. Uma porta se abriu em uma extremidade do

corredor curto, e um homem, irritado e de camiseta machão manchada,

olhou para ela brevemente e voltou para dentro.

Uma outra porta se abriu e um rapaz cheio de espinhas no rosto pôs

a cabeça para fora.


243

— Veio falar com o Thayer? – indagou.

— Vim – disse a Lola. – O que foi aquilo? – e indigou o ocupante do

outro apartamento.

— Não liga. Esse cara é um viciado. Provavelmente está esperando o

traficante lhe mandar um avião com mais - disse o rapaz, com toda a

naturalidade, como se estivesse maravilhado de possuir tal

conhecimento. – Meu nome é Josh – apresentou-se ele. – Thayer divide o

apê comigo. – O apartamento era tudo que a Lola esperava e pior ainda.

Uma tábua sobre dois caixotes era a mesa de centro; a um canto havia um

sofá-cama com lençóis cor de berinjela, que mal se viam sob um monte de

roupas. Caixas de pizza, de comida chinesa, sacos de Doritos, um

cachimbo para drogas, copos sujos e uma garrafa de vodca estavam

espalhados sobre o balcão que separava a minúscula saleta de espera da

cozinha. O lugar fedia a meias sujas, poluções noturnas e maconha.

— Você é namorada do Thayer? – indagou Josh.

— Sou nada.

— O Thayer agora tem umas três ou quatro. Não consigo acompanhar e

nem ele. – Josh bateu em uma portinha de madeira fina no meio de uma

parede improvisada com compensado. – Thay?

— Mas que porra! – ouviu-se uma voz dizer lá de dentro.

— Thayer é um escritor, na boa – disse ele. – Provavelmente está

trabalhando.

— Eu já vou – disse Lola.

De repente a porta se abriu e Thayer Core apareceu. Era mais alto

do que Lola se lembrava, pelo menos um metro e noventa, e estava de

calças de algodão, havaianas e uma camisa Lacoste cor de rosa rasgada.

Um arremedo de mauricinho, pensou Lola.

— Oba – disse o Thayer.


244

— Oi – disse a Lola.

— Eu estava dizendo à Lola que você é escritor. Ele é escritor de

verdade – disse o Josh, virando-se para a Lola.

— Como assim?

— Eles me pagam pra escrever uns lances – disse ele.

— E publicam o que ele escreve – disse Josh.

— Você escreveu um livro? – indagou a Lola.

— Josh é um babaca.

— Ele escreve pro Snarker – disse Josh, orgulhoso.

— Me dá tua erva, Josh – disse Thayer.

Josh fez cara de aborrecido.

— Não sobrou quase nada.

— E daí? Dá pra mim. Mais tarde eu pego mais.

— Foi o que disse ontem à noite.

— Ah, qual é. Eu tive que ir naquele coquetel merda na Cartier,

onde não queriam deixar a gente entrar. Depois uma festa de algum

artista na Whitney, onde eles também não quiseram nos deixar entrar.

Depois no Box. Que foi maneiro. Cheio de gente boa. Mas não tinha erva.

Só coca. Porra, Josh, qual é, preciso da tua erva.

Josh relutantemente remexeu no bolso e lhe entregou uma trouxinha

de maconha.

— Você anda com ela? Mas como tu é ladino, hein, cara – disse

Thayer.

— Eu nunca sei quando posso precisar.

— Como agora – disse Thayer.

— Eu já vou – disse Lola.

— Por quê? – perguntou Thayer. – Pensei que tivesse vindo aqui me

visitar. Tem algum lugar melhor aonde ir? Esse aqui é o melhor lugar de
245

Manhattan. É o centro do universo, isso aqui. Vamos destruir Manhattan

desde buraquinho minúsculo infestado de ratos pelo qual pagamos 3.000

dólares por mês.

— Legal – disse Lola.

Thayer entregou-lhe o cachimbo e ela deu uma inalada. Não queria

fumar maconha, mas estava à mão, e ela estava ali, e pensou “por que

não?” Além do mais, o Thayer a irritava de uma forma estranha e

curiosa. Não parecia entender que ela era superior a ele.

— Cadê teu namorado? – indagou Thayer.

— Briguei com ele.

— Está vendo, Josh? – disse Thayer. – Todos os caminhos levam a

mim.

O telefone da Lola tocou. Ela olhou o número. Era o Philip.

Preferiu usar a opção de ignorar a chamada.

— Quem era? – indagou Thayer.

— Não é da sua conta.

Thayer inalou.

— Aposto que era o namorado – disse ao Josh. – Aposto que ele é um

estudante de curso preparatório de medicina daqueles bem chatos do Sul.

— Não é – disse Lola, orgulhosa. – Ele é famoso.

— Ahhhhhh, Joshzinho, meu filho. Ouviu isso? Ele é famoso. Tem que

ser do bom e do melhor para a nossa princesa sulista. Será que eu

conheço? – perguntou ele a Lola.

— Mas claro – disse ela. – Philip Oakland, o romancista?

— Aquele cara? – disse Thayer. – Mas ele é velho, gatinha.

— Deve ter mais de quarenta no mínimo – concordou Josh.

— É homem – disse Lola.

— Ouviu isso, Josh? Ele é homem, e nós não.


246

— Certamente que não são – disse Lola a Thayer.

— E o que eu sou?

— Um babaca? – disse Lola.

Thayer riu.

— Não era antes – disse ele. – Até vir para cá. Até entrar nesse

mundo corrupto e malcheiroso chamado mídia.

— Ainda tem seu livro – disse o Josh. – Thayer vai ser um grande

escritor.

— Duvido – disse Lola.

— Legal você estar dormindo com um e outro para chegar lá no alto –

disse Thayer. – Eu faria isso se pudesse. Mas não gosto que metam o pau

no meu rabo.

— É o pau metafórico que conta – disse Josh.

— Sobre o que conversa com o Oakland? – indagou Thayer. – Ele é

velho.

— Sobre o que qualquer menina conversa contigo? – indagou Josh. –

Pensei que a conversa não importasse.

— Como se você soubesse de alguma coisa – disse Thayer – olhando

para o Josh com nojo.

Passaram o tempo conversando assim um pouco, depois apareceu mais

gente. Uma das meninas era muito pálida, com cabelos tingidos de preto

e um rosto que lembrava o de um cachorrinho pug.

— Detesto rainhas da beleza – gritou ao ver Lola.

— Cala a boca, Emily. Lola é gente boa – disse Thayer.

Passou-se mais algum tempo. Thayer tocou música dos anos setenta, e

eles beberam vodca, deram uns passos de dança esquisitos, e Josh filmou

tudo com o celular. Depois entraram dois caras e uma moça. Eram todos

altos e bonitos, feito modelos, mas Thayer disse que não eram, eram
247

filhos de alguns novaiorquinos famosos, e se os filhos deles não

parecessem modelos, eles os deserdavam. A moça chamava-se Francesca e

tinha mãos longas e finas que gesticulavam enquanto ela falava. – Já te

vi antes – disse a Lola. – Naquela exibição do filme da Nicole Kidman.

— Foi – disse Lola, bem alto, por causa da música. – Eu estava com

o meu namorado, o Philip Oakland.

— Adoro a Nicole – disse a moça, suspirando.

— Você a conhece? – indagou Lola.

— Conheci a minha vida inteira. Ela veio à minha festa de

aniversário de três anos. – Francesca levou Lola para o banheiro e elas

passaram batom. O banheiro cheirava a toalhas molhadas e vômito. –

Philip Oakland é bacana – disse ela. – Como você o conheceu?

— Sou pesquisadora dele – disse Lola.

— Eu namorava meu professor quando tinha dezesseis anos. Adoro

homens mais velhos.

— Eu também – disse Lola, olhando de relance para o Thayer e o

Josh, que estava fingindo que estavam lutando boxe um com o outro. Ela

revirou os olhos e decidiu que já tinha torturado o Philip durante

tempo suficiente. – Preciso ir embora – disse.

Quando voltou ao Número Um, o Philip estava na cozinha, servindo-se

de vinho.

— Gatinha – exclamou. – E deixou o copo de lado na mesma hora,

vindo imediatamente abraçá-la, depois tentou beijá-la e levou a mão ao

seu peito. Ela ficou rígida e afastou-se.

— Que foi? – perguntou ele. – Eu tentei te ligar.

— Eu estava ocupada.

— É mesmo? – indagou ele, como se estivesse surpreso por ela pensar

em alguma outra coisa para fazer. – Onde estava?


248

Ela deu de ombros.

— Com uns amigos. – E tirou um copo do armário, servindo-se de

vinho e levando o copo consigo para o quarto.

Ele esperou um momento, depois a seguiu.

— Gatinha? – disse ele, sentando-se ao lado dela na cama. – O que

está fazendo?

— Lendo a Star.

— Não precisa se zangar – disse ele, tentando tirar-lhe a revista.

— Para com isso – disse ela, dando-lhe um tapa na mão e fingindo

concentrar-se em um anúncio de fantasias do Dia das Bruxas. – Eu podia

usar uma fantasia de Lindsay Lohan ou Paris Hilton, mas aí não sei o

que você seria. Ou podia ser uma dominadora. Aí você podia ser um

executivo feito o cara que mora na cobertura. Aquele que você odeia.

— Paul Rice? – disse Philip. – O gerente de fundos de hedge, aquele

desprezível? Lola – e acariciou-lhe a perna. – Eu faria quase tudo por

você, mas não vou me vestir para sair no dia das Bruxas, que é coisa de

criança.

Ela sentou-se e olhou-o furiosa.

— É o dia das Bruxas – disse ela, irritada, como se não fosse

possível discutir o assunto. – Eu quero ir a festas. É o que as pessoas

fazem no Dia das Bruxas. É o maior acontecimento do ano.

— Já sei – disse Philip. – Pode pôr a fantasia que quiser para mim.

Vamos ficar em casa e comemorar o Dia das Bruxas juntos.

— Não – disse Lola. – De que adianta a gente pôr fantasia se

ninguém nos vir?

— Eu vou te ver – disse Philip. – Eu sou ninguém?

Lola desviou o olhar.


249

— Quero sair na noite. Tem uma festa de Dia das Bruxas no Bowery

Hotel. O Thayer Core, meu amigo, foi quem me contou.

— Quem é Thayer Core?

— Um cara que trabalha para o Snarker.

— O que é Snarker? – insistiu Philip.

Lola deu um suspiro exagerado e pulou da cama, jogando a revista

para um lado. Entrou no banheiro. – Por que nunca fazemos o que eu

quero fazer? Por que sempre precisamos sair com os seus amigos?

— Meus amigos são muito interessantes – disse Philip. – Mas tudo

bem. Se quiser ir a essa festa de Dia das Bruxas, nós vamos.

— Vai fantasiado?

— Não – disse ele.

— Então vou sozinha.

— Tá bom – disse ele, e saiu do quarto. Por que é que estava

jogando aquele jogo? Era velho demais para aquilo, decidiu. Pegou o

telefone e ligou para o diretor de Damas de Honra Revisitadas, que

estava em casa, e começou a conversar com ele sobre o filme.

Alguns minutos depois, Lola entrou no seu escritório e ficou de pé

em frente dele de braços cruzados. Philip olhou para ela, desviou o

olhar, e voltou a conversar com o diretor. Lola foi para a sala de

estar, soltando fumaça pelos ouvidos. Tentando pensar numa forma de

fazê-lo reagir, lembrou-se das fotos dele com Schiffer Diamond na

Vogue. Tirando a revista da prateleira da sala, jogou-a na mesa de

centro, produzindo um ruído alto, e abriu-a.

Philip apareceu alguns minutos depois, olhou para ela, viu o que

estava lendo e ficou tenso.

— O que está fazendo? – disse ele, chegando perto dela, ainda de

pé.
250

— O que parece que estou fazendo?

— Onde achou isso? – disse, ameaçador.

— Estava na sua estante – disse ela, inocentemente.

— Ponha onde estava – ordenou ele.

— Por quê?

— Por que eu gostaria que pusesse – respondeu ele.

— Quem é você? Meu pai? – indagou ela, para provocá-lo, feliz de

ter conseguido que ele reagisse de uma forma mais intensa.

Ele lhe arrancou a revista das mãos.

— É proibido mexer nisso – disse ele.

— Por que, tem vergonha disso?

— Não.

— Ah, já entendi – disse Lola, semicerrando os olhos. – Ainda está

apaixonado por ela. – E ficou de pé num pulo, correndo para o quarto e

começando a socar um travesseiro.

— Pára com isso, Lola – disse Philip.

— Como pode me amar, se ainda está apaixonado por ela? – gritou

Lola, histericamente.

— Foi há muito temop. E eu nunca disse que te amava, Lola – disse

ele, com firmeza, percebendo seu erro imediatamente.

— Então não me ama? – indagou ela, num tom alto e indignado.

— Não disse que não te amava. Estou dizendo que só nos conhecemos

há dois meses.

— Mais que isso. Dez semanas. Pelo menos.

— Tá bem. – E Philip suspirou. – Dez semanas. Qual é a diferença?

— Você estava apaixonado por ela? – indagou Lola.

— Ai, gatinha, qual é – disse Philip. – Está se comportando como

uma boba. – E tentou aproximar-se dela, mas ela, sem muita convicção,
251

como Philip notou, empurrou-o. – Escuta – disse ele. – Eu gosto muito,

muito, muito mesmo de você. Mas é cedo demais para eu te dizer “eu te

amo”.

Ela cruzou os braços.

— Vou embora.

— Lola – disse ele. – O que você quer de mim?

— Eu quero que se apaixone por mim. E quero ir àquela festa de Dia

das Bruxas.

Ele suspirou. Aliviado por não falar mais dos sentimentos dele por

ela, concordou:

— Se quer mesmo ir a essa festa, nós vamos.

Isso pareceu acalmá-la e ela pôs as mãos no cós do jeans dele.

Abriu o zíper da calça dele e, incapaz de objetar, ele acariciou-lhe os

cabelos enquanto ela, ajoelhada à sua frente, lhe pagava um boquete. A

uma certa altura, ela afastou a boca do pênis dele e olhando para cima,

perguntou-lhe:

— Você vai fantasiado?

— Hã? – disse ele.

— Na Festa do Dia das Bruxas?

Ele fechou os olhos.

— Claro – disse ele, pensando que se isso lhe rendesse mais

boquetes, por que não?

Na semana antes do Dia das Bruxas, uma frente fria chegou à cidade.

A temperatura caiu ligeiramente abaixo de zero, fazendo as pessoas

comentarem que talvez o aquecimento global não existisse mesmo. Para

Thayer Core, aquele tempo simplesmente o fazia ficar de mau humor. Ele

não tinha sobretudo, e o ar gelado lhe recordava que ele estava para
252

passar pelo seu terceiro inverno em Nova York, no qual sua falta de

agasalhos apropriados o faziam odiar o frio, odiar os executivos de

casacos compridos e estolas de caxemira e mocassins grossos de sola de

couro. Detestava tudo no inverno: os acúmulos de lama gelada suja nas

esquinas, e as poças nojentas de água suja no metrô, e o casaco

acolchoado recheado de espuma acrílica que era obrigado a usar quando a

temperatura caía abaixo dos quarenta. Sua única proteção contra o tempo

gelado era um blusão de esquiador ridículo que a mãe havia lhe dado no

seu aniversário no ano em que ele tinha se mudado para Nova York. Ela

tinha ficado tão feliz com o presente que seus olhos castanhos

normalmente inexpressivos emitiram um brilho raramente visto de

expectativa, o que o magoou, por que sua mãe era ridícula, e o irritou,

por que ele era o seu filho. Mesmo assim ela o amava, por mais que ele

pisasse na bola. Ela o amava embora não fizesse idéia de quem ele era

ou o que realmente pensava. Presumia que iria adorar um blusão de

esquiador porque era prático, e isso o aborrecia, fazendo-o sentir

vontade de encher a cara e puxar fumo até a raiva desaparecer, mas

quando chegava o inverno em Nova York, ele usava o blusão. Não tinha

outra opção.

No meio do dia no meio da semana, quando ele imaginava que a

maioria das pessoas nos Estados Unidos estava desperdiçando o tempo da

empresa nos seus empregos chatos e mal-pagos, Thayer Core tomava o

metrô para a rua 51 e subia a Rua 52 até o Four Seasons, onde comia

caviar e bebia champanhe sob o pretexto de relatar como os

privilegiados preenchiam as suas muitas horas livres.

Era a terceira vez que comparecia a um almoço desses, que parecia

ser um evento que acontecia regularmente uma vez por semana, para

promover um filme (independente, muitas vezes que valia a pena e em


253

geral chato). Os convidados deviam debater o filme, como um desses

clubes de livro de senhoras de meia-idade aos quais pertencia a sua

mãe, mas ninguém jamais fazia isso. Ao contrário, ficavam o tempo todo

se elogiando mutuamente, dizendo que eram fabulosos, o que Thayer

considerava especialmente irritante, pois considerava todos velhos,

assustadores e iludidos. Porém, tinha conseguido ser convidado toda

semana por não ter ainda mencionado o evento no Snarker. Só que logo

logo ia ser obrigado a fazer isso. Mas entrementes, planejava ir

degustando seu almoço gratuito.

Thayer era sempre um dos primeiros a chegar, para poder ficar

anônimo. Tirou o blusão e estava para entregá-lo na chapelaria quando

viu que o Billy Litchfield estava atrás dele. Ver o Billy encheu o

Thayer de raiva. Billy, segundo Thayer tinha resolvido, era o que podia

acontecer com uma pessoa que tinha ficado em Nova York tempo demais.

Era um dependente dos ricos e privilegiados. Será que não ficava de

saco cheio? Thayer ia a festas fazia apenas dois anos, e já estava tão

cansado que às vezes pensava que ia perder o juízo. Se não tomasse

cuidado, o tempo passaria, e ele terminaria como o Billy Litchfield.

E agora Billy tinha visto seu blusão.

— Alô, meu jovem – disse Billy, educadamente.

— Alô – resmungou o Thayer. Sem dúvida o Billy Litchfield não

conseguia se lembrar do seu nome. Estendeu a mão agressivamente,

obrigando Billy a cumprimentá-lo. – Meu nome é Thayer Core – disse – do

Snarker, lembra?

— Sei exatamente quem você é – respondeu Billy.

— Ótimo – disse o Thayer. Lançando a Billy um olhar de viés, subiu

as escadas rapidamente na frente dele, como se procurasse se recordar e

recordar a Billy que era jovem e cheio de energia. Depois sentou-se no


254

seu lugar costumeiro ao balcão do bar, de onde podia observar e

entreouvir as pessoas sem ser notado até a hora do almoço.

Billy entregou seu sobretudo ao atendente da chapelaria, desejando

ter podido evitar o aperto de mão com o Thayer Core. Por que ele estava

ali? Billy ponderou. Thayer Core era blogueiro de um desses novos

websites agressivos que havia surgido nos últimos anos, demosntrando um

ódio e uma causticidade sem precedentes na Nova York civilizada. As

coisas que os redatores de blogues escreviam não faziam sentido para

ele. Os comentários dos leitores também não. Esse era o problema da

Internet: quanto mais o mundo se abria, mas desagradáveis pareciam

ficar as pessoas.

Era um dos motivos pelos quais ele tinha começado a tomar as

pílulas. O bom e velho Prozac. “Já está aí faz 25 anos. Até os bebês

tomam”, disse o psiquiatra. “Você tem anedonia. Não sente prazer em

nada.”

— Não é falta de prazer – protestou Billy. – É mais pavor do mundo.

O consultório do médico ficava na rua Onze, em um apartamento num

sobrado geminado, de dois quartos.

— Nós nos conhecemos antes – disse o médico da primeira vez em que

Billy foi lá. — O senhor conhece a minha mãe.

— Conheço? – disse Billy, tentando deixá-lo na dúvida. Mas havia um

certo grau de consolo naquela informação.

— Cee Cee Pé-Leve – disse o médico.

— Ah, a Cee Cee – disse Billy. Conhecia Cee Cee muito bem. A musa

de um famoso figurinista que tinha morrido de AIDS na época em que os

figurinistas tinham musas. Como sentia falta daquele tempo, pensou. – O

que é de sua mãe? — indagou ele.


255

— Ah, ela ainda está por aí – disse o médico, com uma mistura do

que parecia desespero e divertimento. – Ainda tem um apartamento de um

quarto aqui. E uma casa nas Berkshires. Passa a maior parte do tempo lá.

— O que ela faz? – indagou Billy.

— Ainda é super ativa. Está se dedicando a atividades beneficentes.

Ajuda a salvar cavalos.

— Que maravilha – disse Billy.

— E você, como está se sentindo? – indagou o médico.

— Não muito bem – disse o Billy.

— Veio ao lugar certo – disse o terapeuta. – Vamos fazer você

melhorar dentro em breve.

E as pílulas realmente funcionaram! Não, não tinham resolvido os

problemas, não os fizeram desaparecer. Mas ele não se preocupava mais

tanto com eles como antes.

Billy sentou-se ao bar do hotel e pediu um copo d’água. Olhou

fixamente para o Thayer Core e sentiu pena dele por um momento. Que

forma horrível de ganhar a vida! Aquele rapaz devia se odiar. Estava

apenas a um ou dois metros de distância, mas um oceano de trinta anos

de conhecimento os separava, como dois continentes dos quais uma

população não compreendia os usos e costumes da outra. Billy decidiu

que isso também não lhe importava, e, com o copo d’água na mão, saiu

para bater papo com os convivas.

Trinta minutos depois, o almoço já estava a pleno vapor.

— Adoro seu programa na tevê – gritou uma mulher vestida de

terninho enfeitado com contas para Schiffer Diamond, inclinando-se na

frente do Billy para falar com a atriz.

Schiffer olhou para o Billy e piscou para ele.

— Pensei que ninguém fosse falar sobre a série. Me prometeram.


256

Desde que que Madame Superiora tinha começado a ir ao ar, no

Showtime, Schiffer tinha sido convidada para todos os eventos e

decidido se divertir no pequeno parque que era a sociedade de Nova

York. Todos queriam arranjar-lhe um par. Até ali tinha conhecido um

famoso bilionário que tinha se revelado mais inteligente e agradável do

que ela esperava, mas que depois de um jantar de três horas tinha dito

que não tinham nascido um para o outro e deviam cada um seguir o seu

caminho; e um famoso diretor de cinema que estava procurando

desesperadamente uma terceira esposa. Naquele dia estava sentada ao

lado de Derek Brumminger, de 63 anos, todo enrugado e com a pele

marcada (tanto pela acne quanto pela vida, segundo Schiffer deduziu),

que tinha sido demitido dois anos antes de seu cargo como diretor-

presidente de uma empresa de meios de comunicação de grande porte e

tinha recebido 80 milhões de dólares como compensação. Ele tinha

acabado de voltar de uma viagem ao redor do mundo que tinha durado um

ano, durante a qual ele tinha tentado se encontrar e não havia

conseguido.

— Percebi que não estava pronto para me aposentar. Não quero sair

do palco. E por isso voltei – disse ele. – E você?

— Não estou ainda pronta para largar o palco também – disse ela.

Na mesa ao lado, Annalisa Rice estava sentada ao lado do Thayer

Core.

— Deve ser muito interessante o seu trabalho, de redigir um blogue

– disse ela.

— Já tentou fazer um? – indagou Thayer.

— Já mandei comentários – disse ela.

— É o tipo de coisa que qualquer um pode fazer. E faz – disse

Thayer, com um misto de desdém e revolta.


257

— Tenho certeza de que não é verdade.

— Mas é – disse Thayer. – É um jeito rasteiro de ganhar a vida.

— Ser advogado pode ser pior – brincou ela.

— Pode ser – concordou ele. – Antes eu pensava que ia ser

romancista. O que achava que ia ser?

— Eu sempre quis ser advogada. Depois que a gente se torna

advogada, é sempre advogada, imagino. Mas hoje fui ver uma obra de arte

sobre a qual todos estavam falando, e no fim era só um par de tênis e

um dinossauro plástico colados em uma manta de bebê. Meio milhão de

dólares.

— Isso não te dá ódio? Eu fico com ódio. Esse nosso mundo é cheio

de calhordas mesmo.

— Acho que a manta do bebê de alguém é arte para outra pessoa –

disse Annalisa, sorrindo para ele.

— Não é um pensamento muito original – disse ele, terminando sua

terceira taça de champanhe.

— Ah, mas eu não estou tentando ser original – disse ela, sem levar

a mal o comentário dele. – Esta sala está cheia de gente original.

Estou só tentando entender Nova York.

Thayer achou Annalisa uma das pessoas mais sensatas que já tinha

conhecido em uma festa daquelas em muito tempo.

— Se você fosse um emoticon, qual seria? Uma carinha sorridente? –

indagou ele.

Annalisa riu.

— Eu estaria perplexa. Um K com dois pontos embaixo.5

5
Foi este emoticon que encontrei para perplexo :-/. Um K com dois pontos embaixo me
pareceu meio estranho como descrição pois as carinhas são feitas com sinais uns ao lado
dos outros. Mas é o que está no original. Talvez uma coisa assim: K: ou :K. NT
258

— Por causa da mantinha do bebê. Por meio milhão de dólares. Não

comprou isso, espero eu, comprou?

— Não – disse ela. – Mas meu marido está construindo um aquário

gigantesco no nosso apartamento.

— Onde você mora? – indagou Thayer, sem mostrar muito interesse.

— No Número Um da Quinta Avenida – disse ela.

Thayer juntou dois e dois: Annalisa Rice era a metade do casal que

tinha comprado o apartamento da Sra. Houghton. O marido dela era o Paul

Rice, um cara que não passava de um desses gerentes desprezíveis de

fundos de hedge que tinha só 32 anos já com milhões no bolso. A compra

tinha saído na seção imobiliária do The New York Observer.

Depois do almoço, Thayer Core voltou ao seu apartamento. Estava

especialmente deprimente, depois de vir daquele almoço glamouroso no

Four Seasons, num restaurante limpinho. As janelas estavam fechadas, e

o vapor saía chiando do velho aquecedor. Seu colega de quarto, o Josh,

estava dormindo sobre o monte de roupas que ele chamava de cama, de

boca aberta, chiando no ar mortalmente seco.

Thayer devia estar brincando. O Josh era um fracassado, nunca iria

se dar bem naquela cidade. Era os babacas que se davam bem, como o Paul

Rice, sentado no seu apartamento gigantesco da Quinta Avenida olhando

um peixe, enquanto sua bela e graciosa esposa, claramente boa demais

para ele, era obrigada a passar tempo olhando obras de arte

fraudulentas com aquele horripilante Billy Litchfield. Naquele estado

de indignação moral, Thayer entrou no seu quarto e sentou-se diante do

computador, pronto para atacar violentamente os Rice e Billy Litchfield

e o almoço no Four Seasons. Em geral sua ira lhe rendia quinhentas

palavras de hipérboles pavorosas, mas de repente sua fúria se dissipou

e foi substituída por uma circunspeção rara. Lembrou-se do rosto da


259

Annalisa, sorrindo com o que parecia ser prazer, daquele seu jeito

charmoso e completamente inocente, sem perceber suas verdadeiras

intenções. Sim, ele “odiava” essa gente, mas não tinha vindo para Nova

York se transformar em um deles?

Ele era o próximo F. Scott Fitzgerald, lembrou-se, e um dia iria

escrever o Grande Romance Americano e todos se curvariam diante do seu

gênio. Entrementes, a Annalisa Rice seria sua Daisy Buchanan.

— De vez em quando, alguém conhece uma criatura de persuasão

feminina tão natural, tão adorável, que é suficiente para fazer a

pessoa pensar em não sair desse buraco infernal que é Nova York –

escreveu.

Duas horas depois, seu texto apareceu no Blogue do Snarker,

rendendo-lhe vinte dólares. Enquanto isso a Mindy Gooch, sentada no seu

escritório comum na zona comercial de Manhattan também trabalhava no

seu blogue.

“Quando meu filho nasceu”, escreveu ela “descobri que não era a

Super-Mulher. Especialmente quanto a minhas emoções. De repente eu não

tinha mais energia emocional para todos, inclusive para o meu marido.

Todas as minhas emoções se concentraram no meu filho. Minhas emoções,

segundo aprendi, eram limitadas, não ilimitadas. E meu filho as

esgotou. Não restou nada para o meu marido. Eu sabia que devia me

sentir culpada. E me sentia. Mas não pelos motivos pelos quais devia.

Sentia-me culpada por estar perfeitamente feliz.”

Enviou o arquivo para sua assistente. Depois começou a navegar sua

lista normal de blogues: The Huffington Post, Slate, The Green Thumb

(um site pouco conhecido sobre jardinagem que Mindy achava calmante), e

finalmente, preparando-se para se sentir chocada, horrorizada e ler

coisas degradantes, o Snarker.


260

A cada semana, o Snarker fazia uma gozação do seu blogue, numa

coluna chamada “Crise da Mãe Balzaca”. Não era saudável ler comentários

odiosos sobre si mesma (alguns comentários diziam simplesmente “eu a

odeio. Gostaria que ela morresse.”) Mas Mindy sentia-se fascinada. Os

comentários alimentavam seus demônios interiores da auto-depreciação e

insegurança. Era, segundo ela pensava, a versão emocional de se cortar.

As pessoas faziam isso para sentirem alguma coisa. E sentir-se super

mal era melhor do que não sentir nada.

Naquele dia, porém, não havia nada sobre ela, e Mindy ficou

aliviada... e ligeiramente decepcionada. Aquilo tornaria sua noite com

James mais chata, sem nada sobre o que reclamar. Quando estava para

fechar a janela do website, apareceu um outro artigo. Mindy leu a

primeira frase e franziu o cenho. Era só sobre Annalisa Rice. E Paul

Rice. E o aquário dele.

Isso, pensou Mindy, era exatamente o que ela não queria que

acontecesse. Quando se tratava do Número Um da Quinta, nenhuma

publicidade era boa.

No dia seguinte, bem cedo, Mindy Gooch foi até o olho mágico, na

intenção de confrontar-se com Paul Rice quando ele passasse pela

portaria a caminho do trabalho. Skippy, o cocker spaniel, estava ao seu

lado. Talvez devido ao clima emocional na casa, não a sua personalidade

inerente, o Skippy tinha criado um hábito pernicioso. Ficava

perfeitamente feliz durante horas, e aí, sem aviso, atacava.

Às sete da manhã em ponto, Paul Rice saiu do elevador. Mindy abriu

a porta.

— Com licença – disse ela. Paul virou-se.

— Que é? – perguntou ele, irritado.


261

Nesse momento, Skippy escapuliu do apartamento. Arreganhando os

dentes, abocanhou a perna da calça do Paul. Paul empalideceu.

— Mande o seu cachorro me largar – gritou, pulando em uma perna só

enquanto tentava se livrar dele sacudindo a outra. Mindy esperou um

instante, afastando o Skippy da perna do Paul.

— Eu podia mandar te processar por isso – disse Paul.

— É permitido ter cachorros neste edifício – disse Mindy,

arreganhando os seus dentes. – Mas não sei se é permitido ter peixes.

Ah, sim – disse ela, notando o olhar surpreso do Paul. – Sei que está

construindo um aquário. Não há segredos neste prédio.

E aí entrou e beijou o alto da cabeça do Skippy.

— Muito bem, querido – elogiou. E dali por diante, isso passou a

ser rotina.

A festa de Dia das Bruxas à qual Lola insistiu em comparecer com o

Philip não era no Bowery Hotel, afinal, mas em um prédio abandonado no

quarteirão ao lado. Lola foi festida de vedete, de biquini de paetês,

meia arrastão e saltos altos. Parecia sensacional, uma verdadeira

modelo de capa de revista masculina.

— Tem certeza de que quer ir assim? – indagou Philip.

— Que há de errado com a minha fantasia?

— Você está praticamente nua.

— Não mais nua do que estaria na praia – e enrolou um boá de penas

no pescoço. – Fica melhor assim?

Tentando entrar no espírito da coisa, Philip vestiu-se de cafetão,

de terno listrado, óculos escuros de armação branca, e um chapéu

forrado de pele. Na Rua Oito, Lola lhe comprou um colar de diamante de

imitação, com um crânio incrustado de brilhantes.


262

— Não é divertido? – exclamou Lola, no caminho para a festa. As

ruas estavam cheias de gente fantasiada com todo tipo de roupa. Sim,

pensou Philip, dando a mão a ela. Era divertido. Fazia anos que ele não

se permitia se divertir fazendo coisas bobas como aquela. O que tinha

acontecido com ele? Quando tinha se tornado tão sério?

— Vai adorar o Thayer Core – disse ela, puxando-lhe a mão para

fazê-lo andar mais depressa.

— Quem é ele? – e vendo a cara de irritação da Lola, disse: — Eu

sei, eu sei, o cara que deseja ser escritor.

— Não quer ser, é – disse Lola. – Ele escreve um artigo todos os

dias para o Snarker.

Philip sorriu. Lola parecia incapaz de fazer distinções entre o

artista e o charlatão, o autêntico e o imitador. Eles tinham crescido

em uma cultura de democracia insistente na qual todos eram iguais e

todos saíam vitoriosos.

Uma grande multidão estava reunida diante de um prédio caindo aos

pedaços. Apertando a mão da Lola, Philip foi abrindo caminho entre as

pessoas. À entrada estavam dois caras com rostos cheios de piercings,

um travesti de peruca rosa e Thayer Core em pessoa, fumando um cigarro.

Ele apertou a mão do Philip.

— É uma festa de demolição, cara – disse o Thayer. – O edifício vai

ser demolido amanhã. Vamos fazer o máximo que for possível para demolir

esse lugar antes da polícia chegar.

Philip e Lola entraram e subiram uma escada de madeira. O ar estava

quente e sufocante, por causa da fumaça, e o ambiente era iluminado por

uma única lâmpada. Ouviu-se alguém vomitando e de lá em cima, de dois

alto-falantes instalados nas janelas vinha uma música. A sala estava

lotada.
263

— Para que tudo isso? – indagou Philip, no ouvido de Lola.

— Não tem objetivo – disse ela. – Não é legal?

Eles foram abrindo caminho até um bar improvisado onde receberam

uma dose de vodca e suco de oxicoco em um copinho plástico, sem gelo.

— Quando a gente vai poder ir embora? – gritou Philip, por causa da

música alta.

— Já está querendo ir? – indagou Lola.

Philip olhou em torno de si. Não conheço ninguém aqui, pensou. E

todos eram muito jovens, de cara lisa e todos metidos, se exibindo e

gritando uns com os outros. E a música era alta, um baticum sem melodia

discernível. Mas eles todos estavam dançando, movimentando os quadris

com o tronco imóvel. Não vai dar pra mim, pensou Philip.

— Lola – berrou ele no ouvido dela. – Vou voltar para casa.

— Não – gritou ela.

— E você fica. Divirta-se. Eu te encontro no apartamento daqui a

uma hora.

Voltando para o Número Um da Quinta Avenida, Philip sentiu-se

aliviado e perplexo. Não conseguia imaginar nada pior do que ficar

preso naquela festa naquela sala lotada, quente e sem higiene. Como é

que isso podia ser considerado divertimento? Mas ele já tinha ido a

festas como essa quando tinha 22 anos, e tinha achado bom. Havia caças

ao tesouro em limusines, noites intermináveis em clubes minúsculos e

cheios de fumaça ou em espaços imensos com um tema diferente a cada

noite; havia um clube numa igreja antiga onde se dançava no altar, e em

outro existia um túnel de metrô abandonado onde as pessoas iam consumir

drogas. Manhattan era um parque de diversões monstruoso onde sempre

havia música, sempre havia uma festa. Em uma noite quente de agosto,

ele e Schiffer tinham entrado de penetra em uma festa de travestis em


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um píer já caindo aos pedaços do Rio Hudson, onde várias pessoas caíram

e foram socorridas pelos bombeiros. Ele e Schiffer riram sem parar até

chorarem. “Ei, estudante”, tinha dito ela, arquejante, curvada de tanto

rir, “vamos fazer isso para sempre. Vamos parar de trabalhar e virar

festeiros vinte e quatro horas. Não seria o máximo? E quando nos

cansarmos, vamos morar em uma fazenda no Vermont.”

O que tinha acontecido àquela época? pensou ele. Entrando no Número

Um e vendo-se de relance no espelho ao lado do elevador, ele percebeu

que parecia um tolo, um homem de meia-idade tentando fingir que era

jovem. Quando tinha ficado tão velho?

— Philip? – disse uma voz. – Philip Oakland, é você mesmo? – E

depois escutou risadas familiares.

Ele se virou. Schiffer Diamond tinha entrado e estava parada com um

monte de roteiros encostados no peito. Era óbvio que tinha acabado de

chegar das filmagens, toda penteada e maquiada, de jeans, botas

felpudas e de parka laranja vivo. Estava com uma estola de caxemira

branca em torno do pescoço. Ela estava muito bem, com aquela sua

expressão de zombaria recordando-lhe o jeito que era quando ele a havia

conhecido. Como é que ela parecia não ter envelhecido nada, ao passo

que ele havia se tornado vítima tão óbvia do tempo?

— Estudante – disse ela. – É você mesmo! Que diabo é isso que está

usando?

— É Dia das Bruxas – disse ele.

— Eu sei. Mas isso aí é fantasia de quê?

Philip sentiu vergonha e se irritou.

— De nada – disse ele, apertando o botão do elevador.

As portas se abriram e eles entraram.


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— Gostei do chapéu – disse ela, olhando-o de cima até embaixo. –

Mas você nunca foi capaz de se disfarçar muito bem, Oakland. – O

elevador parou no andar dela. Ela voltou a olhar o traje dele, sacudiu

a cabeça, e saiu. E, uma vez mais, pensou, foi embora.

Com o Thayer, na festa, Lola perdeu a noção do tempo. Thayer

parecia conhecer todos e ficou apresentando-a para várias pessoas. Ela

sentou-se no colo dele.

— Dá para sentir meu pau duro? – perguntou ele.

Francesca apareceu. Ela e Lola foram para as escadas e puxaram

fumo. Depois encontraram alguém com uma garrafa de vodca. Um dos alto-

falantes caiu da janela. A festa nunca terminava.

Às três da madrugada, a sala foi iluminada pelas luzes vermelhas e

azuis de vários carros-patrulha. Os policiais entraram com lanternas, e

Lola saiu correndo tão rápido quanto podia pelas escadas, percorrendo a

Terceira Avenida. Na Rua Cinco ela parou, vendo-se sozinha na rua, na

calada da noite. Estava frio, seus pés doíam, sua boca estava seca e

ela não sabia o que fazer.

Começou a andar, abraçando-se para se aquecer. As ruas ainda

estavam cheias de gente e de táxis, e ela considerou estranho estar

assim andando lá fora só de sutiã e calcinha.

— Adoro essa tua bunda – dizia o Thayer Core para ela na festa, sem

parar. Se não estivesse com o Philip Oakland, podia ser que ela ficasse

com o Thayer. Mas isso a deixaria desesperada. Ia enlouquecer naquele

apartamento horroroso do Thayer, com aquele abominável Josh ali o tempo

todo. Era assim com a maioria das moças. Tinham sorte se encontrassem

um cara que estivesse interessado nelas, e quando acabava ele morava em

um apartamento horrível. Ela nunca seria capaz de morar em Nova York


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daquele jeito. Como sua mãe costumava dizer: “Isso não é viver, é

sobreviver.”

Finalmente conseguiu chegar à Quinta Avenida. A rua estava deserta,

amarelada e assustadora sob a luz dos postes. Ela jamais entraria no

prédio tarde assim, e descobriu que a porta estava trancada. Bateu

nela, apavorada, acordando o porteiro, que estava dormindo em uma

cadeira. Ele não a reconheceu, e lhe passou uma descompostura,

insistindo em ligar para o Philip no telefone de casa. Quando ela

finalmente subiu, Philip estava no corredor, de cueca samba-canção e

camiseta dos Rolling Stones.

— Meu Jesus divino, Lola. São três da matina – disse ele.

— Eu estava me divertindo – disse ela, dando risadinhas.

— Estou vendo.

— Tentei te ligar – protestou, inocentemente – mas você não atendeu

o telefone.

— Hum-hum – disse Philip.

— Não é culpa minha – insistiu ela. – É o que acontece quando não

atende o telefone.

— Boa noite – disse Philip, friamente. Virou-se e entrou no quarto.

— Tá certo – disse ela, e foi para a cozinha. Estava zangada. Não

era a recepção que esperava. Entrou no quarto pisando duro para

confrontar-se com Philip e exigir uma explicação sobre o seu

comportamento.

— Eu me diverti, tá? – disse ela. – Será que isso é tão horrível

assim?

— Vai dormir. Ou vai para o seu apartamento.

Ela resolveu tentar uma tática diferente. Meteu a mão sob as

cobertas e tocou o pênis do Philip com os dedos.


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— Não quer se divertir?

Ele lhe empurrou a mão, contrariado.

— Vai dormir. Por favor. Se não conseguir dormir, vai para o sofá.

— Que que há contigo? – indagou ela.

— Olha só – disse ele – eu preciso descansar um pouco. Amanhã vai

ser um dia cheio.

— Calma – disse ela. – Vou tomar uma pílula para dormir.

— Essa é sempre a solução, não é? – resmungou Philip. – Uma pílula.

— Você é que é difícil de engolir – disse Lola.

Ela não adormeceu logo de cara. Ficou deitada no escuro, odiando o

Philip. Ele não gostava de se divertir, e ela provavelmente iria romper

com ele e sair com o Thayer. Mas depois pensava de novo no apartamento

do Thayer e que ele não tinha dinheiro e era basicamente um babaca. Se

ela rompesse com o Philip, ia voltar para onde estava quando tinha

chegado a Nova York. Morar naquele apartamentozinho apertado da Rua

Onze, e ir a festas de demolição toda noite. Não iria mais a estréias

de filmes, nem a jantares no Waverly Inn, nem teria contato com o

glamour. Precisava ficar com o Philip pelo menos mais um pouquinho. Ou

até ele se casar com ela, ou alguma coisa acontecer e ela ficar famosa

por si só.

Na manhã seguinte, Philip cumprimentou-a com um gélido “Bom dia”.

Lola sentia-se como se sua cabeça fosse uma bola de boliche, mas pelo

menos para variar não se queixou, sabendo que ia precisar quebrar o

gelo dele. Arrastou-se para fora da cama e foi ao banheiro, onde ele

estava se barbeando. Sentou-se na tampa do vaso, pôs os braços entre as

pernas, e olhou para ele através dos cabelos negros embaraçados.

— Não fica zangado comigo – disse ela. – Eu não sabia que você ia

ficar tão chateado assim.


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Philip deixou de lado o barbeador e olhou para ela. Na noite

anterior, depois da vergonha de esbarrar na Schiffer e depois deitado

sozinho na cama esperando a Lola voltar para casa, ele tinha começado a

se perguntar no que tinha se metido. Talvez a Nini tivesse razão: ele

era velho demais para namorar uma jovem de 22 anos. Mas o que devia

fazer? Schiffer Diamond era obcecada por sua carreira e não precisava

dele. Devia encontrar uma mulher agradável, realizada, da sua idade,

como a Sondra, mas isso talvez significasse aceitar o fato de que a

parte excitante da sua vida sexual tinha terminado. Ele não ia poder

fazer isso. Era o mesmo que desistir.

E ali estava a lindíssima Lola Fabrikant, no seu banheiro, contrita

e dócil. Ele suspirou.

— Está bem, Lola – disse. – Mas não repita a dose, hein.

— Nunca mais – disse ela, com um pulo. – Eu prometo. Ai, Philip, eu

te amo tanto... – E voltou para a cama.

Philip sorriu. Onde ela havia aprendido essas idéias loucas sobre

amor?

— Ô Lola – chamou. – Por que não vai preparar o café da manhã para

nós dois?

Ela riu.

— Sabe que eu não sei cozinhar.

— Talvez devesse aprender.

— Por quê? – perguntou. Philip terminou de se barbear, examinando

sua pele no espelho. Tinha tido namoradas mais jovens antes, mas

nenhuma tinha sido exatamente como a Lola, pensou. Em geral, as jovens

eram bem mais conformadas. Recuou um passo e deu tapinhas no rosto,

sacudindo a cabeça. Será que queria se iludir? A Schiffer Diamond era

muito mais louca que a Lola. Mas ele estava apaixonado pela Schiffer,
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portanto as loucuras dela o deixavam maluco – um dia ela tinha até

sugerido um ménage à trois com outro homem. Ela podia estar brincando,

mas ele nunca soube com certeza. Por outro lado, ele não estava

apaixonado pela Lola, portanto, disse a si mesmo, estava seguro, suas

ações não iriam afetá-lo de verdade.

Ele entrou no quarto. Lola estava deitada de barriga para baixo,

nua sob as cobertas, como se estivesse esperando por ele.

— Ah, oi – disse ela, virando a cabeça para cumprimentá-lo.

Afastando as cobertas, ele se esqueceu da Schiffer Diamond num segundo,

ao admirar o corpo da Lola. Ela abriu as pernas, convidativamente. Ele

deixou cair a toalha e, ajoelhando-se atrás dela, ergueu-lhe os quadris

e penetrou-a por trás.

Gozou depressa e sentiu a calma sonolenta que vem depois de se

saciar. Fechou os olhos. Lola rolou e começou a brincar com seus

cabelos.

— Philip? – pediu, suavemente. – O que vai fazer no fim de semana

de Ação de Graças? Quer vir para Atlanta comigo?

— Talvez – disse ele, antes de adormecer.

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