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Ivan Marsiglia
O economista Marcelo Neri faz
questão de avisar que não é tu-
cano nem petista. Esquivo à es-
tridência política que prenun-
cia a disputa ao Planalto, e que o
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva gostaria de transformar
em plebiscito entre PSDB e PT,
Neri é partidário das linhas de
continuidade entre os dois últi-
mosgovernos do Brasil. De olho
nosnúmerosdaPesquisaNacio-
nal por Amostra de Domicílio
(Pnad), que radiografa anual-
mente as condições de vida de
norte a sul do País, atribui o mo-
mento promissor da economia
brasileira tanto à herança rotu-
lada de “maldita” do ex-presi-
dente Fernando Henrique Car-
doso quanto à fé propalada por
Lula, todo santo dia, em seus
programas sociais. Em espe-
cial, o Bolsa-Família – segundo
Neri, “uma plataforma que veio
para ficar”, embora possa e de-
va ser aperfeiçoada.
Chefe do Centro de Pesqui-
sas Sociais da Fundação Getú-
lio Vargas, no Rio de Janeiro, o
carioca Marcelo Cortes Neri,
de 47 anos, é um dos mais res-
peitadosespecialistas empolíti-
cas públicas do País. Ph.D pela
Universidade Princeton e pes-
quisador do Ipea (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada)
na década de 90, foi um dos pri-
meiros a comprovar a diminui-
ção da pobreza pelo Plano Real
– contrariando à época o prog-
nósticodeeconomistas vincula-
dos aos círculos petistas.
Na entrevista a seguir, Neri NERI – ‘Há uma tradição de linha marxista que abomina o crescimento do capital no Brasil como se ele fosse o problema. Precisamos é de um choque de capitalismo para os pobres’
destrincha o que batizou como
“o segundo Real”. Em outros zação do trabalho. De 2003 a efeitoextra. Oqueaconteceu de a chegar ao mercado de traba- ção de levar os filhos à escola,
termos,aoapostarnaestabiliza- 2009, o número de empregos “A agenda fato foi o que já chamei de “o lho mais bem preparados e in- fazer exames médicos, etc. –
ção e dar escala aos programas formais novos foi de 8,5 mi- segundoReal”. Ogrande marco formados, obtendo salários mas na prática elas não têm
sociais de seu antecessor, Lula lhões,oquemostraqueoempre- do próximo dagestãodopresidenteFernan- maiores e com mais chances de grande efeito no Bolsa-Família.
tirou dapobreza 19,3 milhões de sário, que é o símbolo e a força do Henrique Cardoso foi o Pla- obter empregos formais. É por As crianças pobres já estão na
indivíduos e alavancou outros dinâmica do capitalismo, está Bolsa-Família no Real. No Ipea, nós fomos os isso que o aumento da escolari- escola desde FHC. A agenda do
32 milhões na pirâmide social. apostando. Parece que a socie- primeiros a mostrar que o Real dade também influencia na for- próximo Bolsa-Família deveria
Um movimento que trouxe à dade brasileira como um todo, deveria se tinha diminuído a pobreza. Um malizaçãodaeconomia.Oesfor- se concentrar não na chamada
luz essa tão falada nova classe que sempre aceitou a desigual- ganho veio da estabilidade, do ço para se colocar as crianças “porta de saída da pobreza”,
média – uma metade de Brasil dade, agora aceita menos. concentrar fato deo cidadãopoderprever o na escola, na década passada, uma expressão que não acho
que não só deve influenciar a futuro, sair da inflação de 40% foi o segundo grande marco dos boa, mas em uma “porta de en-
economia como pode fazer dife- Porque o senhordiz que aatual dé- não na ao mês. Em certo sentido, isso anos FHC, além do Plano Real – trada” nos mercados. O pobre
rença nas urnas. se repetiu em 2003, quando Lu- e explica em parte o que está não quer sair de nada: ele quer é
cada se caracteriza ‘menos pelo
crescimento generalizado da ren- chamada la assumiu a Presidência e mos- havendo nesta década. FHC entrar. Falta criar dispositivos
trou aos mercados que mante- criou o Bolsa-Escola, Lula deu para distribuir serviços sociais
Na pesquisa ‘A Nova Classe Mé-
dia’, o senhor afirma que a catego-
daparatodososestratosdapopula-
ção, do que pela redução da desi- ‘porta de ria as regras e contratos. De- escala a ele. Primeiro, com um e produtivos aos beneficiários.
pois vieram os programas so- passo atrás, no Fome Zero. De-
riarepresentahoje52%dasocieda-
de brasileira. Essa classe C tem
gualdadeobservada’?
Nos números da Pnad de 2001 a saída da ciais em grande escala e a volta pois,comdoisà frente,noBolsa- O governo anunciou esta semana
2008, se observa uma queda do crescimento econômico. A Família – que é um Bolsa-Esco-
uma base de renda achatada?
Claro que a classe média brasi- muito forte na desigualdade. pobreza’, classe C no Brasil aumentou de la 2.0, mais evoluído. Seeu fosse
que vai enviar ao Congresso até
março o projeto de consolidação
leira que ascendeu nos últimos Ela só tinha se alterado signifi- 32% para 37% com o Plano Real. tucano, estaria pensando no
anos não é igual à americana ou cativamente no Brasil uma vez: expressão Com o “segundo Real”, agora, Bolsa-Escola 3.0 para a eleição
das leis sociais. Pela sua experiên-
cia com o tema, que aspectos dos
à europeia. Mas a renda média nos anos 60, e paracima. A desi- passou de 37% para 52%. de 2010. E se fosse petista, no
no Brasil é muito próxima da gualdade aumentou na época que não Bolsa-Família2.0.OPaísnãopo-
atuais programas sociais merece-
riam status de lei no País?
rendamédia mundial.Sãofamí- do milagre econômico. Por isso de ficar sentado nos louros. Ainda não conheço o projeto
lias que recebem mensalmente o (economista) Edmar Bacha considero Por que o senhor diz que a renda
dos mais pobres teve ‘crescimento em detalhes. Sou francamente
entre R$ 1.115 a R$ 4.808. Como cunhou o termo “Belíndia” (se- favorável ao estabelecimento
definimosessa“novaclasse mé- gundooqual,emtermossócio-eco- boa, mas chinês’ no País?
O crescimento da renda per ca-
Oque contribuiumais paraaqueda
da desigualdade: o Bolsa-Família de metas sociais para aumen-
dia”? Na virada da década, ela nômicos,oBrasilseriaumamistu- pita dos pobres de 2001 a 2008 tarodesempenhoedartranspa-
sesituavaentreos 50%maispo- ra de Bélgica e Índia). Apenas de em uma foi de 72%. Fazendo uma conta
ouosaumentosnosaláriomínimo?
No estudo sobre o Real em 1996, rência a esses programas. O
bres, das classes D e E, e os 10% 2004paracá, 32 milhões de bra- simples, dá quase 10% ao ano – notamos que boa parte da redu- que a Constituição de 1988 fez?
mais ricos, da classes A e B. Re- sileiros subiram para a classe ‘porta de semelhante aos índices chine- ção da pobreza se deu em maio Estabeleceu direitos e definiu
presentava 40% da população. ABC. Em cinco anos, 19,3 mi- ses. Com uma diferença. O (eco- de1995,quandohouveforte rea- em que áreas o município, o Es-
Hoje, ela é majoritária: 52%. lhões saíram da pobreza. En- entrada’ nos nomista Carlos Geraldo) Lango- juste do salário mínimo. Já os tado e a União deveriam inves-
tão, a boa notícia é que dá para ni (diretor do Centro de Econo- aumentos ocorridos sob Lula, tir – mas não exigiu que eles
Quesignificadotemessamudança? transformar o País rapidamen- mercados. mia Mundial da FGV), que este- de2005para2006,tiveramefei- mostrassem que gastam bem.
A primeira importância é eco- te, aos saltos. A má é que a desi- ve na China recentemente, me tos menores no combate à desi- Fixar metas significa não ape-
nômica. Ela passou a ser a gualdade continua grande: ela O pobre não disse queela parece o Brasil dos gualdade.Foi oaumentoda ren- nas dar um choque de gestão
maior concentradora de poder aindaprecisa cairtrêsvezes pa- anos 60: crescendo muito, mas da do trabalho o responsável nos projetos sociais, mas tam-
de compra. A classe C é respon- raconvergiraonívelnorte-ame- quer sair de com a desigualdade aumentan- por quase 1/3 da melhora obser- bém uma oportunidade de co-
sável hoje por 46,5% do bolo de ricano, que já é muito alto. do. O crescimento geral da eco- vada. Em seguida, 17% se de- brança para a população.
renda do País, enquanto a clas- nada: ele nomia brasileira é menor em vem ao Bolsa-Família e 15% à
se AB tem 43%. Então a classe C quantidade, mas melhor em previdência, aí incluído o salá-
passa a ser estratégica para as
EconomistascomoClaudioDedec-
ca, da Unicamp, afirmam que não quer é entrar” qualidade, em relação à China. rio mínimo. Os resultados são
Como isso pode ser feito?
Por exemplo, vinculando parte
empresasemsuasdecisões.Ou- sepodefalaremquedadedesigual- Somos uma democracia – e vi- atéequilibrados, só queoBolsa- da distribuição de verbas a ga-
tra importância é política: se to- dade, uma vez que a diferença en- mos ao longo da década de 80 o Família custa bem menos: 0,4% nhosde eficiência.Ou como São
da ela votasse em um só candi- tre a renda do capital e do trabalho quanto aprender a ser uma de- do PIB, enquanto as aposenta- Paulo e Pernambuco estão fa-
dato, a classe C decidiria sozi- continua crescendo no País... da família ganha de pensão, do mocracia gera custos econômi- dorias representam 12% do zendo com os professores esta-
nha a eleição. Evidentemente Discordo. Primeiro porque a valor recebido dos programas cos–,nossotratamentoambien- PIB. A cada real gasto com o duais. Se o aluno progride,
que isso é improvável, pois seu gente não sabe bem o que houve sociais. Para o cidadão comum, talé melhor, ainda quecom pro- Bolsa-Família, a pobreza cai quem ensinou tem direito a bô-
perfil não é homogêneo. Mas se com a desigualdade entre capi- é isso o que importa: o conforto blemas,eocaráterdessecresci- três vezes e meia mais do que o nus. Premiar, com critérios de
na maioria dos países a classe tal e trabalho: há problemas de que ele leva para a casa da famí- mento é outro, distributivo. equivalente investido no salá- mercado, as boas ações. Já que
média costuma ser o fiel da ba- medição, é muito difícil captá- lia. E você nota que o bolso do rio mínimo. Além disso, o pro- exigir frequência à escola no
lança de uma eleição, aqui ela la. E existe toda uma tradição pobre cresceu mais, proporcio- A educação continua crítica? grama beneficia mais a classe Bolsa-Família é uma condicio-
passou a ser mais do que isso. de linha marxista com esse fo- nalmente, que o do rico. O índice Gini mostra que a desi- E, enquanto é a classe B que ga- nalidade fraca, por que não
co, que abomina o crescimento gualdade de educação também nha nos reajustes de salário mí- criar metas de proficiência, que
É um fenômeno sustentável, que do capital no Brasil como se ele Outra vertente de críticas afirma caiu ao longo das duas últimas nimo e a classe AB nas aposen- envolvam tanto o estudante co-
veio para ficar? fosse o problema. Minha linha é que teria havido não propriamente décadas e o nível dessa educa- tadorias acima dele. Para fins mo sua família? Vários upgra-
Oquecresceusignificativamen- outra: precisamos de um “cho- melhorianarenda,masmaiorcapa- ção começa a melhorar – embo- de redução da desigualdade, o des podem ser dados ao Bolsa-
te no País foi renda do trabalho, que de capitalismo” para os po- cidade de consumo pelo endivida- rasejamuitobaixoainda.Noco- Bolsa-Família dá de goleada. Família, que é uma plataforma
nãoaquelaprovenientedospro- bres. A pergunta da Pnad é sim- mento, por causa do crédito. E aí? meçodosanos90,15%dascrian- que veio para ficar. Nos últimos
gramas sociais – o que já garan- ples: Quanto dinheiro você tem O crédito pode ter feito a roda ças brasileiras estavam fora da Como ele pode ser aperfeiçoado? anos a gente deu os pobres ao
te certa sustentabilidade. Ou- no bolso? É a soma da renda do da economia girar mais, geran- escola. Hoje, são menos de Muitagenteexalta muito astais mercado.Faltaagoradaromer-
trofatoréoaumentodaformali- trabalho, do que o aposentado do mais renda. Mas esse é um 2,5%. Esses jovens começaram condicionalidades – a obriga- cado aos pobres. ●
DOMINGO, 7 DE FEVEREIRO DE 2010
O ESTADO DE S. PAULO ALIÁS J5