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O artigo examina o Canto I da Ilíada,de Homero, à luz da Poética, de Aristóteles, com foco nos conceitos de meio, objeto e modo da mimese poética, de verossimilhança a de catarse.
O artigo examina o Canto I da Ilíada,de Homero, à luz da Poética, de Aristóteles, com foco nos conceitos de meio, objeto e modo da mimese poética, de verossimilhança a de catarse.
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O artigo examina o Canto I da Ilíada,de Homero, à luz da Poética, de Aristóteles, com foco nos conceitos de meio, objeto e modo da mimese poética, de verossimilhança a de catarse.
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O CANTO I DA ILÍADA DE HOMERO À LUZ DA POÉTICA DE ARISTÓTELES:
MEIOS, OBJETOS, E MODOS DA MIMESE POÉTICA, VEROSSIMILHANÇA E CATARSE1
Valéria Moura Venturella2
A Poética, de Aristóteles, embora seja uma obra inacabada, consiste no primeiro
tratado sistemático sobre o discurso literário e é reputada, no ocidente, como o texto fundador da teoria da literatura (COSTA, 2003). A Poética pode ser considerada um guia prescritivo de redação literária, uma vez que coloca a poesia como uma técnica, uma construção segundo certas regras, que servem tanto para a criação quanto para a avaliação de obras literárias. Por sua vez, a Ilíada, que inspirou e auxiliou Aristóteles na composição de sua Poética, é uma obra que, ao longo dos séculos, oscilou em relação tanto a sua autoria quanto a seu texto. Originada na tradição oral, essa epopéia é atribuída a Homero, uma figura histórica da cultura clássica. Seu cânone começou a se estabelecer no século VI a.c., com os concursos de declamação em Atenas, e a definição de seu texto se deu através dos trabalhos desenvolvidos no século III da era cristã pelos filósofos da Biblioteca de Alexandria, quando então a obra se estabeleceu na forma que conhecemos hoje 3. Os vinte e quatro cantos da Ilíada compõem uma estrutura desmontável, embora coesa, uma vez que foram idealizados não para serem apresentados de uma só vez, mas em episódios, possivelmente separados um do outro no tempo e no espaço. Este trabalho propõe uma leitura do Canto I da Ilíada, que descreve os eventos que desencadearam a cólera de Aquiles, segundo as descrições e prescrições para as obras poéticas de qualidade, tais como colocadas por Aristóteles em seu tratado. Na Poética, um conceito de importância primordial é o de mimese, que junto com o mito e a catarse constituem os fundamentos da teoria da arte poética (COSTA, 2003). Embora a obra não a defina claramente, é possível depreender do texto que mimese significa imitação. Mas essa imitação não significa, para o autor, a mera reprodução da realidade, porém uma representação – segundo um processo construído a partir de certas regras e visando efeitos específicos (COSTA, 2003) – de eventos humanos como eles são, como os outros dizem que são (como elas parecem ser), ou como eles deveriam ser (ARISTOTLE, 1971), desde que esses eventos estejam guiados pelo critério da 1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos de Narrativa, ministrada pela Profa. Dra. Regina Zilbermann no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de março a julho de 2005. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana. 3 Informação verbal disponibilizada pela professora Regina Zilberman em exposição realizada no dia 22 de março de 2005 na disciplina Tópicos de Narrativa para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. verossimilhança, ou seja, que eles sejam possíveis de serem aceitos por seu público. Aristóteles coloca que mais importantes que a mimese em si são as ações imitadas. A mimese não busca a igualdade, mas a identidade entre os objetos representados e a arte da representação. Desse modo, a obra poética representa a vida dos seres humanos – suas paixões, seu caráter, seu comportamento, seus atos – ultrapassando os limites do real e se estendendo sobre o campo do possível. Aristóteles inicia o texto propondo um estudo dos diferentes tipos de poesia, categorizados de acordo com sua finalidade. Como ponto em comum entre as diferentes espécies artes poéticas, o autor ressalta o fato de que todas elas são construções miméticas, ou seja, imitações. E elas diferem entre si segundo seus meios, objetos e modos de imitação. Os meios característicos das artes poéticas, diz Aristóteles, são o ritmo, a linguagem e a harmonia, usados tanto isoladamente quanto em certas combinações. O autor reforça, porém, que na abordagem das artes poéticas, seu objeto é um critério mais relevante que seu meio. O objeto das artes miméticas é constituído por “ações, cujos agentes são necessariamente homens (sic) bons ou maus” (ARISTOTLE, 1971, p. 681). Essas pessoas em ação, imitadas pelas artes poéticas, serão seres humanos portadores de vícios e de virtudes, indivíduos melhores, piores ou iguais a nós, pessoas comuns. Essa diferença entre pessoas melhores ou piores que nós, na Poética, se coloca também como a distinção entre a tragédia da comédia: “esta faria seus personagens piores; aquela, melhores que os homens (sic) de agora” (ARISTOTLE, 1971, p. 682). Assim, Aristóteles associa a mimese, no domínio poético, à transformação ética do objeto para melhor, nas tragédias, ou para pior, nas comédias (COSTA, 2003). É interessante notar que a representação de seres humanos semelhantes aos comuns, embora mencionada pelo autor, não constitui um gênero poético específico na estudo sistematizado colocado na Poética. O terceiro aspecto da imitação é o modo como ela é realizada. O modo se refere à maneira como o narrador desenvolve sua história e, segundo Aristóteles, há dois modos distintos de representação: o narrativo e o dramático. No modo narrativo, a mimese se dá pela voz de um personagem, seja ela em primeira ou terceira pessoa. Já no modo dramático, os próprios imitadores atuam como se “estivessem realmente fazendo as coisas descritas” (ARISTOTLE, 1971, p. 682). Os eventos desencadeadores da ira de Aquiles, que acabaram por determinar o destino da guerra dos exércitos Aqueus contra Tróia, são descritos no Canto I da Ilíada não necessariamente como eles ocorreram – não sabemos, na realidade, de que modo esses fatos se deram – mas como poderiam ter acontecido. O compromisso do autor não é com a realidade dos fatos, mas com a verossimilhança. Neste canto, os modos narrativo em terceira pessoa e dramático são mesclados de maneira harmoniosa para compor a história. Embora existam momentos – como a manifestação da ira de Apolo e a viagem a Crisa, liderada por Ulisses, para devolver Criseide a seu pai – em que a narrativa assume grande importância, ao descrever ações e sentimentos dos personagens, na maior parte do canto a narração se limita a uma linha entre longas falas dos homens, em que o narrador aponta para o estado de espírito dos personagens, indicando a maneira como devemos ler suas palavras e também seus movimentos, como o de sentar e levantar. Podemos, assim, reconhecer no narrador, mesmo quando tem sua atuação reduzida, uma figura onisciente, que nos conduz a diferentes núcleos da história, costurando-os em um todo. É, porém, nas falas que ocorre grande parte do desvelamento, para o leitor, das características, dos ânimos e das ações dos personagens. A estrutura do texto na forma de diálogos confere dinamicidade e dramaticidade ao canto, assemelhando-o a uma tragédia. Quanto aos meios – o ritmo, a linguagem e a harmonia – o estudo do Canto I é dificultado pelo fato de estarmos lidando com uma tradução do texto, da língua grega para a portuguesa. Embora essa tradução seja reconhecidamente fiel4 e se esforce para conservar a elaboração, a riqueza e a força da linguagem homérica, possivelmente o ritmo e a harmonia dos versos tiveram se ser sacrificados ou, pelo menos, submetidos à prioridade da preservação do caráter elaborado da linguagem. Aristóteles considera a tragédia como a arte mimética por excelência, contrapondo esse gênero literário à epopéia. O autor, coloca, porém, que “os critérios que definem uma tragédia como boa ou má definem também uma epopéia como tal” (ARISTOTLE, 1971, p. 683). A tragédia é definida como uma obra poética de magnitude completa em si mesma, que tem como objeto ações humanas elevadas, ou seja, pessoas superiores às comuns. Seu meio é a linguagem ornamentada – parte em verso, parte em canto – e seu modo é o dramático. A mimese trágica inclui ainda, segundo Aristóteles, um quarto critério de definição, que é a catarse, ou seja, o efeito depurador que é capaz de exercer sobre as emoções do público através da suscitação de compaixão e temor. “A tragédia é uma imitação de (...) incidentes que provocam piedade e medo” (ARISTOTLE, 1971, p. 686). Aristóteles explica que, enquanto a piedade é ocasionada por um infortúnio desmerecido, o medo é causado pelas ações de uma pessoa como nós. Segundo o autor, o melhor tipo de tragédia imita “uma pessoa que não é preeminentemente virtuosa ou justa, mas cuja infelicidade lhe é trazida, não por vício ou depravação, mas por algum erro de julgamento por parte de alguém que goza de grande reputação e prosperidade” (ARISTOTLE, 1971, p. 687). Segundo Aristóteles, para que o mito da tragédia seja perfeito, 4 Informação verbal disponibilizada pela professora Regina Zilberman em exposição realizada no dia 15 de março de 2005 na disciplina Tópicos de Narrativa para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “a mudança na sorte do personagem deve ser não da infelicidade para a felicidade, mas ao contrário, da felicidade à infelicidade, e sua causa deve residir não em alguma depravidade, mas em algum grande erro de sua parte” (ARISTOTLE, 1971, p. 687). O Canto I, embora integre uma história maior, pode ser reconhecido como uma narrativa de magnitude completa. Ele inicia com a vinda de Crises aos comandantes Aqueus para pedir que libertem sua filha, fato que desencadeia as demais ações do canto – e também da epopéia como um todo – e termina com o banquete e com o sono dos deuses do Olimpo, o que se configura como um fechamento desta parte da história. Os diferentes eventos narrados entre o início e o final estão habilmente conectados a eles, o que confere ao canto uma unidade integral. Segundo Aristóteles, as tragédias e as epopéias têm como objeto as ações humanas elevadas, realizadas por seres humanos melhores do que nós, enquanto as comédias tratam de seres humanos piores do que nós, “não no que tange todo e qualquer tipo de defeito, mas somente no que tange um tipo particular, o Ridículo, que é uma espécie do Feio” (ARISTOTLE, 1971, p. 683). Neste canto, à primeira vista, temos dificuldade em reconhecer traços nobres e sublimes nas ações dos personagens, tanto humanos quanto divinos. O motivo central da querela entre Aquiles e Agamenon é a posse de Briseida, que nada mais é para eles do que um prêmio de guerra. Também é possível reconhecer o ridículo em muitas das ações e falas dos dois heróis. Ao ouvir Calcas explicar aos Aqueus o motivo das mortes que assolam os exércitos, Agamenon reage: “Vate funesto, a mim nunca anunciaste o bem” (CAMPOS, 2001, p. 37, v. 100). A disputa verbal entre Agamenon e Aquiles é, em muitos momentos, uma troca de insultos e acusações de teor muito pouco elevado: “és quem mais eu detesto” (CAMPOS, 2001, p. 41, v. 176) “olho de cão e coração de cervo” (CAMPOS, 2001, p. 43, v. 225). Já o choro de Aquiles e seu apelo para que sua mão interceda por ele junto a Zeus pode parecer ao leitor uma ação bastante infantil. Também no Olimpo há falas e ações realizadas pelos deuses que pouco têm de grandiosas. As divindades apresentam sentimentos e comportamentos terrenos e prosaicos, muito assemelhados aos humanos. Quando Hera acusa Zeus de conspirar com Tétis quando ela não está por perto, Zeus ameaça bater na esposa se ela não o deixar em paz: “Se eu lançar sobre ti minhas mãos invencíveis, nenhum dos imortais poderá socorrer-te” (CAMPOS, 2001, p. 63, v. 566-567). Nesses episódios, envolvendo divindades ou seres humanos, em que traços ridículos dos personagens se evidenciam, a história se assemelha mais à comédia do que à tragédia ou à epopéia. Por outro lado, do ponto de vista da trajetória de Aquiles ao longo do canto, a narrativa se caracteriza como uma tragédia capaz de nos levar à catarse – à purificação de nossas paixões – pela vivência não do terror, mas da piedade, oferecida pelo desenrolar da história. Sabemos que Aquiles está condenado a uma vida curta: “te espreita a Moira, tens vida breve” (CAMPOS, 2001, p. 55, v. 416-417), lhe diz Tétis, sua mãe, revelando-se impotente contra a força do destino já traçado para seu filho. A brevidade da vida do herói, em si, já se configura como uma desgraça infundada contra o qual ele, sua mãe e mesmo deuses mais poderosos do Olimpo nada podem fazer. Temos também conhecimento de que Aquiles não está nesta guerra contra Tróia por interesses pessoais: “A mim não me roubaram gado, nem cavalos, nem em Ftia, nutriz de heróis, solo fecundo, devastaram plantios” (CAMPOS, 2001, p. 39, v. 152-156), diz ele, sobre os troianos. O herói, assim, se sente injustiçado e pouco reconhecido em sua atuação no conflito. “No tumulto da luta o legado mais duro compete a minhas mãos; quando vem a partilha, teu prêmio é bem maior: o meu, de pouco preço” (CAMPOS, 2001, p. 41, v. 165- 167), afirma ele, lembrando que, embora seja o guerreiro mais valoroso do exército, tem direito a poucos ganhos como resultado de seu esforço. Neste episódio da Ilíada, Agamenon exige publicamente que Aquiles lhe entregue o prêmio que lhe coube – Briseida – em troca do ganho que deve entregar para aplacar a fúria de Apolo – Criseida – embora o herói nada tenha a ver com a afronta a Crises e com a ira de Apolo contra os Aqueus, que é, a princípio, um problema de Agamenon. Sabemos, porém, que os poderes de Aquiles contra o chefe Atreide são limitados pela proteção que este recebe dos deuses, e que então terá de se curvar às exigências de Agamenon. A trama apresentada neste primeiro canto, vista por inteiro, se apresenta ao leitor como um infortúnio que Aquiles enfrenta injustamente. Sua frustração e sua infelicidade com a humilhação a que Agamenon lhe submete ao tomar seu prêmio de guerra e com sua impotência frente à situação são causadas por fatores alheios às suas decisões: a ofensa de Agamenon a Crises, a fúria de Apolo contra os Aqueus, a necessidade de entregar Criseida ao pai e a ganância de Agamenon. O grande erro de Aquiles, que o levou à infelicidade que vivencia, foi o de querer saber por que os exércitos Aqueus estavam sendo dizimados pela peste. Nesse ponto, Aquiles se configura como um herói trágico por completo: um ser humano imperfeito cuja infelicidade é causada por decisões tomadas por uma pessoa poderosa e protegida pelos deuses, e contra quem ele pouco pode fazer. A tragédia se compõe, segundo a Poética, de seis partes qualitativas – o mito, o caráter, a elocução, o pensamento, o espetáculo e a melopéia. Os meios da mimese são a melopéia (o canto coral) e a elocução (as falas dos personagens). O caráter (a qualidade moral dos personagens, o que eles procuram ou evitam), o pensamento (o que eles dizem quando querem estabelecer um argumento ou enunciar uma verdade) e o mito (a combinação dos incidentes ou dos atos dos personagens na história) se constituem no objeto da representação. Já o espetáculo cênico é o modo da tragédia. Segundo Aristóteles, a tragédia não necessita do modo – do espetáculo – para provocar o efeito trágico, ou seja, a catarse. Sua força deve residir na composição do caráter, do pensamento e especialmente do mito, expressos na melopéia e na elocução, de modo que, mesmo que o público não tenha acesso ao espetáculo cênico, a mera audição – ou leitura – da história deve lhe propiciar a purificação do espírito através do horror e da comiseração. Como a tragédia trata da felicidade e da miséria humanas na forma de ações, o caráter e o pensamento dos personagens são elementos que devem justificar os atos causadores do sucesso ou do fracasso humanos, mas o mito – o arranjo sistemático das ações em um todo encadeado de maneira coerente que corresponde a uma certa extensão que possa ser retida pela memória – representa a própria ação na obra e é seu elemento preponderante, configurando-se como o fundamento da mimese e a razão de ser da tragédia. A tragédia e a epopéia, segundo Aristóteles, se assemelham em seu objeto, que são pessoas superiores a nós. Elas diferem, entretanto, quanto a seus meios, sendo que alguns são comuns aos dois gêneros e outros são peculiares à tragédia. Enquanto a epopéia utiliza apenas o verso, a tragédia faz uso tanto do verso quanto da melopéia, ou seja, do canto, e também do espetáculo cênico, que – embora não seja um fator determinante da catarse – contribui para que os efeitos da narrativa sobre o espectador sejam mais intensos. As principais diferenças entre a epopéia e a tragédia, no entanto, residem em seus modos e em suas extensões. A epopéia se desenvolve de modo narrativo; já a tragédia se constrói de modo dramático. A tragédia é um poema relativamente curto, e tem sua ação limitada, restrita a um único conjunto de ações humanas. “Como uma fórmula geral aproximada, uma extensão que permita que o herói passe por uma série de estágios prováveis e necessários da infelicidade à felicidade, ou da felicidade à infelicidade” (ARISTOTLE, 1971, p. 685). Já a epopéia, embora também se componha de uma ação inteira e completa, é um poema sem limite fixado para sua extensão e abrange vários episódios, ou seja, diferentes partes de um mito que ocorrem simultânea ou sucessivamente. “Há menor unidade na imitação dos poetas épicos, (...) se eles tomam o que é na verdade uma única história, ela soa tosca quando narrada de modo breve, e frágil e diluída quando narrada na escala de comprimento usual a seu verso” (ARISTOTLE, 1971, p. 699). Uma vez que a tragédia se concentra em um único mito e se estende por um tempo menor, ela tem melhores condições de levar o público à catarse. Um aspecto essencial das artes miméticas, segundo Aristóteles, é a verossimilhança, definida como a coerência interna e externa da obra poética imprescindível para que a mimese produza seus efeitos. “O que convence é o possível” (ARISTOTLE, 1971, p. 686). Para ser verossímil, então, a representação deve persuadir a audiência de que poderia ter acontecido, mesmo que não o tenha. Segundo o fundamento interno da verossimilhança, o mito deve ser construído de modo a respeitar os critérios da causalidade e da necessidade. “Em poesia, a história, como imitação de uma ação, deve representar uma ação, um todo completo, com seus diversos incidentes conectados de maneira tão estreita que o deslocamento ou a supressão de qualquer um deles altere ou desloque o todo” (ARISTOTLE, 1971, p. 685-686). O mito deve ser composto, assim, segundo um arranjo coeso e solidário de eventos. Já em seu aspecto externo, a verossimilhança aponta para a recepção da obra poética, ou seja, ela deve convencer o público de que a história narrada poderia ter, de fato, ocorrido. Dessa forma, o critério da verossimilhança funda, na Poética, uma teoria da representação que é peculiar: o realismo se torna irrelevante à medida que o critério de qualidade da obra não é a verdade, mas a capacidade de persuasão do público 5. Do poeta não são exigidos nem a criação original nem a fidelidade à realidade, mas apenas o que convence a audiência. No Canto I da Ilíada, tanto o caráter quanto os pensamentos dos personagens determinam o desencadear das ações que levaram à injustiça contra Aquiles e sua conseqüente cólera. O espírito vingativo de Apolo, a arrogância e a rudeza de Agamenon, e o destemor e o espírito de liderança de Aquiles, revelados através de suas elocuções e da narrativa, são características das figuras que fundamentam suas ações. Também seus pensamentos, seus estados de ânimo e o tom de suas vozes, que nos são desvendados pelas breves narrativas, justificam seus atos, conferindo verossimilhança ao mito. O mito em si, a conexão entre os diferentes acontecimentos que compõem o Canto, visto em sua totalidade, alcança a perfeição: a presença de humanos e deuses na narrativa, as falas dos personagens, as mediações do narrador, as interpenetrações dos mundos humano e divino, a presença da Moira, a sucessão dos eventos, e a maneira como eles se interrelacionam compõem uma história consistente e crível, embora fantástica, que se estende pelo tempo exato que vai da felicidade à infelicidade de Aquiles. Não parece haver elementos gratuitos no Canto. Tudo é necessário e contribui para a coerência interna da história e para seu poder de convencimento do público. Ao lermos o Canto I, somos convencidos de que aqueles eventos poderiam ter ocorrido naquele tempo e naquele local. Aristóteles atribui o nascimento da poesia a duas causas inerentes à natureza humana: a inclinação natural à imitação e o prazer que ela proporciona, tanto em sua produção quanto na recepção; e à disposição humana inata para a melodia e o ritmo. A satisfação encontrada na realização e na recepção da mimese, segundo Aristóteles, vincula-se a outro prazer humano natural: a aprendizagem, que Aristóteles define como “a apreensão do significado das coisas” (ARISTOTLE, 1971, p. 682), no sentido de reconhecimento do objeto imitado com formas originais conhecidas. Assim, segundo o filósofo, a obra poética não tem o potencial de produzir novos conhecimentos, mas apenas de nos levar a re-conhecer aquilo de que já temos ciência. 5 Informação verbal disponibilizada pela professora Regina Zilberman em exposição realizada no dia 22 de março de 2005 na disciplina Tópicos de Narrativa para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aristóteles eleva as artes poéticas a uma posição filosófica, ao afirmar que “a poesia é algo mais filosófico e de importância mais grave que a história” (ARISTOTLE, 1971, p. 686). Enquanto o historiador necessita se limitar às narrativas do que efetivamente aconteceu, o poeta tem a liberdade de narrar o que poderia ter acontecido, desde que verossímil. Desse modo, a poesia assume um caráter mais universal que o da história, oferecendo melhores condições para a abstração e para a reflexão, o que melhor se enquadra como filosofia. Ao se deparar com os eventos injustos que causaram os sentimentos de impotência e de frustração de Aquiles, e a cólera que contribuiu para o desfecho da Guerra de Tróia – e à moldagem da civilização ocidental – o leitor, embora não possa contar com a melopéia ou com o espetáculo, é levado a se identificar com o herói, a sentir por ele, a purgar seus próprios sentimentos de incapacidade, malogro e ira experienciados em sua vida real. O prazer estético proporcionado pela recepção dessa mimese leva o leitor a reflexões não apenas sobre o infortúnio de Aquiles, mas também sobre as características da essência humana representadas na obra, e suas conseqüências no destino da humanidade. O Canto I da Ilíada, ao nos levar a reconhecer naqueles personagens traços de nosso próprio caráter e coincidências entre seus destinos e os nossos, nos faz contemplar nossas vidas, nossa trajetória e os limites de nosso próprio poder para mudá-las. A obra, assim, cumpre com sua razão de ser, conforme a Poética, ao nos levar à catarse trágica, ao reconhecimento e à abstração.
REFERÊNCIAS:
ARISTOTLE. On Poetics. Translated by Ingram Bywater. In: HUTCHINS, Robert Maynard
(ed.). Great books of the Western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1971.
CAMPOS, Haroldo de. Ilíada de Homero. 4 ed. São Paulo: Arx, 2001.
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mimese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 2003.