Terras indígenas e o STF: análise de decisões numa perspectiva decolonial (2009-2018)
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Terras indígenas e o STF - Luiz Henrique Matias da Cunha
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (PPGDH/UnB), onde desenvolvi a pesquisa de mestrado que resultou na publicação desta obra. Ao programa de bolsas de Pós-Graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), cujo auxílio foi de extrema importância para a permanência na universidade.
A minha orientadora, Profa. Ela Wiecko, pelo apoio durante todo o curso. Aos membros das bancas de qualificação e defesa, pelas valiosas contribuições.
Por fim, agradeço a minha família, aos amigos e a todos que contribuíram com a minha trajetória acadêmica.
PREFÁCIO
A você Luiz, que me dedicou a dissertação de mestrado, eu retribuo com este prefácio. A dissertação virou um livro e eu desejo mostrar o quanto ele é inovador e importante como referência para outros trabalhos.
Este livro faz uma análise das decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas após o julgamento da ação contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima, a Petição n. 3.388. Embora não seja uma análise sobre argumentos jurídicos, não deixa de ser uma análise jurídica, pois mostra como os julgadores aplicam normas jurídicas em situações concretas que demandam prestação jurisdicional. O objeto da análise são os argumentos utilizados pelos ministros da mais alta Corte do país nas decisões que proferem. Não com as lentes das teorias hermenêuticas, mas com as lentes da teoria social da colonialidade do poder, de Aníbal Quijano, um sociólogo peruano.
As teorias hermenêuticas do Direito buscam a coerência na construção dos argumentos utilizados para uma decisão, tendo em conta as leis, os princípios gerais do Direito e, em especial, os princípios estabelecidos pela Constituição que rege o País. Quando se utilizam teorias sociais para analisar uma decisão judicial não se busca a coerência ou pertinência entre meios jurídicos e os fins normativos, mas o porquê foi decidido assim e não de outra forma. São lógicas completamente diferentes. A primeira conclui pela confirmação ou pela negação dos argumentos sem, no entanto, questionar a sua legitimidade ou autoridade. A segunda persegue a visão ideológica, que é expressa pelas decisões judiciais, sobre o conflito objeto da prestação jurisdicional e sobre o papel do Judiciário. É uma lógica que questiona as bases do processo da argumentação e pode inclusive concluir pela ausência de legitimidade.
A análise de Luiz Henrique Matias da Cunha se insere na segunda perspectiva, pois responde às seguintes perguntas: 1) como o marco temporal firmado na Pet n. 3.388/RR para os direitos territoriais dos povos originários é construído nos argumentos/fundamentos apresentados pelos ministros do STF, a partir da publicação do acórdão (25/9/2009) até 30/6/2018, data em que o autor iniciou o levantamento da jurisprudência do STF? 2) esses argumentos/fundamentos são compatíveis com uma visão de aceitação do modo de vida das sociedades indígenas em pé de igualdade com o da sociedade nacional não indígena?
Esse tipo de análise não é comum para o/a pesquisador/a de formação jurídica.
Em 2013, Pedro Ferreira¹ defendeu uma dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Economia da UnB, em que partiu de uma pergunta diferente, mas semelhante no que diz respeito à perspectiva questionadora: o que influencia a decisão de um juiz em julgamento? O seu objeto de análise também foram decisões do STF. Explica que várias teorias buscam responder à questão e definir os determinantes do comportamento judicial. Na sua percepção de economista, os pesquisadores da área jurídica fazem uma abordagem mais normativa do assunto, enquanto cientistas políticos e economistas optam por uma abordagem que chama de positiva. Destaca três modelos de comportamento judicial: o jurídico, o atitudinal e o estratégico, e afirma que o cerne da diferença está no papel da política nas decisões judiciais. Juristas costumam ter uma predileção pela abordagem normativa, que valoriza decisões judiciais tomadas com independência, a partir dos fatos e das leis apenas. Não há espaço para visões pessoais do juiz nem para influência de agentes externos, porque inexiste discricionariedade na decisão. Já os cientistas políticos e economistas veem a concepção normativa como idealista, pois enxergam fatores políticos na decisão. Nas abordagens positivas, um juiz pode, por exemplo, votar de acordo com sua ideologia ou votar satisfazendo a pressão de atores políticos. Em resumo, discute-se como os juízes se comportam
, enquanto nas abordagens normativas se discute como os juízes deveriam se comportar
.
Há uma vasta literatura estadunidense sobre análises do comportamento judicial atitudinal e estratégico. No Brasil, em especial na área jurídica, a literatura é pequena, e com abordagem normativa. Daí a relevância da dissertação de mestrado do jurista Luiz Henrique Matias da Cunha, não só porque envereda por uma abordagem positiva, mas também porque utiliza um marco teórico crítico de análise.
Essa escolha é relevante porque nosso autor fez a pesquisa no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB. Existem disputas concretas e teóricas sobre o conceito de direitos humanos que indicam um confronto entre a teoria tradicional do Direito e dos Direitos Humanos e a teoria crítica do Direito e dos Direitos Humanos. A disputa no campo jurídico reflete uma disputa mais ampla que se dá na esfera da teoria social e na própria teoria do conhecimento.
Enquanto a teoria tradicional parte da compreensão de que existem desajustes na estrutura social que precisam ser corrigidos, a teoria crítica tem o grande desafio de desnaturalizar o mundo e a maneira como funciona. Daí a necessidade de construir uma racionalidade política, ética e social preocupada com a efetivação dos direitos humanos, oposta à racionalidade hegemônica de mercado globalizada².
A teoria da colonialidade do poder de Aníbal Quijano é justamente uma teoria crítica que nos permite compreender a construção e a permanência de relações sociais de dominação europeia sobre os povos originários das Américas.
Quijano localiza a colonialidade como um elemento que constitui e é específico do padrão mundial de poder capitalista. Parte de uma classificação racial/étnica dos povos do mundo, como eixo demarcador desse padrão de poder, que opera em vários âmbitos e dimensões (materiais e subjetivas), da existência cotidiana e social, se originando e mundializando a partir da América Latina³. Colonialismo e modernidade estão imbricados, tendo como base a hegemonia eurocentrada e a racionalidade moderna, esta como única racionalidade válida às necessidades cognitivas do capitalismo⁴. O eurocentrismo não se constitui perspectiva cognitiva exclusiva dos europeus ou dos detentores do poder do capitalismo mundial, mas também daqueles que foram ensinados, educados sob sua hegemonia, a qual naturalizou a experiência dos povos sob este padrão de poder e se firmou pelo mito da superioridade europeia, tendo a Europa e os europeus o nível e o momento mais avançado do caminho linear, unidirecional e contínuo da espécie humana⁵.
Considerando que o sistema jurídico é moldado pelo contexto material e social no qual está inscrito, o jurista, deve ter consciência de que suas ações moldam esse contexto, fato que pode permitir que as reivindicações das lutas sociais sejam reconhecidas juridicamente e sejam traduzidas na forma de direitos.
Alinhando-se com Herrera Flores⁶, para que os direitos humanos sejam efetivamente colocados em prática e não utilizados para eternizar as desigualdades e os obstáculos que o modo de relações sociais baseado na acumulação de capital impõe, deve-se adotar estratégias que sirvam de guia de uma ação emancipadora e cumprir três condições: (i) afirmar constantemente as estratégias de reprodução das relações de força hegemônicas que colocam pessoas e coisas em posições desiguais tanto em nível local quanto global, em relação ao acesso aos bens materiais; (ii) mostrar que tais estratégias de reprodução/dominação cumprem as funções de: perpetuação das mesmas, geração de obrigações morais frente à estrutura hegemônica de posições e disposições, bem como sistemas de garantias jurídicas, políticas e econômicas de dita reprodução/dominação, que se apresentam como cláusulas pétreas; (iii) denunciar e visibilizar constantemente as manipulações simbólicas que essas estratégias promovem por meio dos processos educativos, culturais e midiáticos.
Somente com essa visão é possível superar as abstrações que sustentam a teoria tradicional dos direitos humanos e propor uma reflexão que impulsione, sistematize e complemente as práticas sociais em um sentido crítico, subversivo e transformador.
Na medida em que o autor analisa o discurso presente nas decisões do STF sobre os direitos territoriais dos povos originários do Brasil em uma perspectiva teórica crítica, ele desnaturaliza o mundo e a maneira como funciona. Em outras palavras, contribui para a decolonialidade do poder e o estabelecimento de padrões horizontais de relação da sociedade nacional com os grupos étnicos que dela fazem parte e têm o direito de preservar sua diferença cultural.
Com este prefácio espero ter mostrado o quanto é importante o trabalho de pesquisa realizado por Luiz Henrique Matias da Cunha, e incentivado a que outros/as pesquisadores/as trilhem o caminho de desnaturalizar a colonialidade tão arraigada nas relações sociais e reproduzida nas decisões judiciais.
Ela Wiecko V. de Castilho
Professora dos Programas de Pós-graduação de Direito e de Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília (UnB)
Subprocuradora-geral da República
1 FERREIRA, Pedro Fernando de Almeida Nery. Como decidem os ministros do STF: pontos ideais e dimensões de preferência. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Economia. Brasília: UnB, 2013.
2 BERNER, Vanessa Oliveira Batista; LOPES, Raphaela de Araújo Lima. Direitos humanos: o embate entre a teoria tradicional e teoria crítica. CONPEDI/UFPB (Org.). Filosofia do direito. 1.ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014. v. III, p. 3.
3 QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research, VI 2, Summer Fall, 2000, Special Issue: Festchrift for Immanuel Wallerstein – Part I, p. 342.
4 Ibidem, p. 343.
5 Ibidem.
6 HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I. PERCURSO TEÓRICO
1.1. O STF E A QUESTÃO DAS TERRAS INDÍGENAS
1.1.1. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DAS TERRAS INDÍGENAS
1.1.2. O MARCO TEMPORAL E DEMAIS ENTENDIMENTOS FIRMADOS PELO STF
1.1.3. A INCOMPATIBILIDADE DESSE ENTENDIMENTO COM O TEXTO CONSTITUCIONAL E ENTENDIMENTO FIRMADO PELA CIDH
1.1.4. BREVES CONSIDERAÇÕES REFERENTES A TEMÁTICA PROBLEMATIZADA
1.2. PERSPECTIVAS DECOLONIAIS: NOVAS LEITURAS DO MUNDO A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DA AMÉRICA
1.2.1. A COLONIALIDADE DO PODER E O NOVO PADRÃO DE PODER MUNDIAL
1.2.1.1. A IDEIA DE RAÇA
1.2.1.2. O CAPITALISMO
1.2.1.3. A NOVA INTERSUBJETIVIDADE MUNDIAL
1.2.1.4. O EUROCENTRISMO
1.2.1.5. A MODERNIDADE
1.2.1.6. O ESTADO-NAÇÃO E A AMÉRICA LATINA
CAPÍTULO II. PERCURSO METODOLÓGICO
2.1. RESULTADOS DA PESQUISA
2.1.1. ARGUMENTOS SELECIONADOS
CAPÍTULO III. A COLONIALIDADE QUE EMERGE DA ANÁLISE DAS DECISÕES DO STF
3.1. A ORGANIZAÇÃO DOS ARGUMENTOS/FUNDAMENTOS
3.1.1. ALDEAMENTOS EXTINTOS
3.1.2. DIREITOS ORIGINÁRIOS
3.1.3. MARCO TEMPORAL
3.1.4. POSSE INDÍGENA
3.1.5. TERRITÓRIO INDÍGENA
3.1.6. TRADICIONALIDADE
3.2. A COLONIALIDADE NAS DECISÕES DO STF
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
APÊNDICES
APÊNDICE A - PLANILHA FEITA NO EXCEL PARA ORIENTAR E REGISTRAR PRIMEIRA ETAPA DO LEVANTAMENTO
APÊNDICE B – REFERÊNCIAS DOS AUTOS SELECIONADOS PARA L EVANTAMENTO DOS ARGUMENTOS
APÊNDICE C – RELATÓRIO DA SELEÇÃO DE ARGUMENTOS COM O TERMO TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Bibliografia
INTRODUÇÃO
O tema deste livro é o entendimento elaborado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as terras indígenas, a partir de 25/9/2009, data da publicação do julgamento proferido, em 19/3/2009, na Pet n. 3.388 (Caso Raposa Serra do Sol), até 30/6/2018, momento que se inicia o levantamento das decisões.
Nessa decisão o STF estabelece um marco temporal para reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas: a data da promulgação da Constituição, e condiciona o exame da tradicionalidade a esse marco temporal. O STF também define que somente a caracterização de renitente esbulho, consistente em conflito possessório existente em 5 de outubro de 1988, por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada, pode suprir a falta da ocupação das terras por indígenas em razão do marco temporal.
A partir de então foram ajuizadas inúmeras ações no país com o objetivo de anular demarcações homologadas ou em curso. A Terra Indígena Guyararoká, no Município de Caarapó, Mato Grosso do Sul, é a primeira a ter a demarcação anulada pelo STF, em 2014, em Segunda Turma. No ano seguinte, parte da Terra Limão Verde, correspondente a área situada na Fazenda Santa Bárbara, no Município de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, também é anulada, pelo STF, em Segunda Turma.
A decisão sobre o marco temporal é considerada pelos povos indígenas inconstitucional e violadora de seus direitos.
O problema de pesquisa foi traduzido nas seguintes perguntas: 1) como o marco temporal firmado na Pet n. 3.388/RR é construído nos argumentos/fundamentos apresentados pelos ministros no recorte temporal definido para pesquisa? 2) esses argumentos/fundamentos são compatíveis com uma visão de aceitação do modo de vida das sociedades indígenas em pé de igualdade com o da sociedade nacional não indígena?
Duas hipóteses nortearam a pesquisa. Primeiro, que o entendimento no Caso Raposa Serra do Sol firmou precedente sobre o tema e, em conjunto com o entendimento que gerou a Súmula n. 650/STF, cria um obstáculo para o reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas. Já a segunda hipótese é de que o entendimento do STF sobre terras indígenas é