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Abrantes, 2004
Quem és tu?
- Espero que tenha razão, Alfredo. Quando chove dentro de uma igreja com
cerca de quatrocentos anos, ficamos sempre alarmados, sobretudo se trata de uma
assim, com tantas riquezas e tesouros. Bem, para lhe dizer a verdade, isto já nos
aconteceu duas ou três vezes, em pleno estio.
- Ai sim?...
- Tu viste-me, ontem…
- Oh… Raios!
O querubim riu-se. Depois franziu o sobrolho.
- Quem te fez?
- Quem me fez?... Sei lá. A minha mãe e o meu pai. A minha mãe pelo menos,
que saí da barriga dela.
- Ah… A mim foi só o meu pai, mais quatro ajudantes. Um pintava e doirava,
outro cortava madeiras à medida para o meu pai entalhar esta gente toda, mais os
cachos, as parras, os galhos, as volutas, as voltas, os torcidos, este mundo todo, enfim.
Outro ajuntava e pregava tudo e outro punha tudo no lugar. Quando me fez a mim, o
resto já estava feito, fui um dos últimos. Ouvi o meu pai falar sobre isso com o pintor.
Tinham ajustado com a confraria um número de querubins, já não me lembro
quantos, basta que os contes. E faltava um. Na verdade eu já estava feito, mais uns
tantos, todos escondidos por debaixo de um monte tábuas e barrotes, pois o mestre
fazia sempre mais uma dúzia com a madeira que ajustava, que metia depois em outras
obras.
Passaram uma manhã inteira a disputar aonde me haveriam de meter. Por isso
fiquei apertado e sufocado ali no meio daqueles, que já pouco espaço tinham para se
acomodar, sempre a sacudir-me, para verem se me desenfiavam. Então resolvi que
andaria por aí, por onde bem me apetecesse e sobejasse lugar.
Ando por aí, falo com todos, mas ninguém fala comigo. Sou um vadio.
De vez em quando rezo.
- Rezas?... A quem?
- Eu não sou mono algum, sou um homem de carne e osso, que vê, que ouve e
que fala.
O querubim deu uma gargalhada, esvoaçou durante uns minutos pelas alturas
da abóbada, balançou-se durante uns momentos num lanternim e voltou ao lugar.
E sumiu-se.
E no dia seguinte foi Francisco logo pela manhã e do querubim nem rasto, não
apareceu. Procurou-o em todos os cantos, espreitou por todo o lado, nada. Ficou
mesmo um tanto inquieto e desiludido, pois passara a noite na expectativa de saber
que espécie de mono haveria um querubim de pensar que ele era. E assim se passaram
três dias.
E no quarto, que era Domingo, em que Francisco só ia pela tardinha para
escapar aos ajuntamentos das missas, já nem pensava no querubim, aquilo era o peso
dos anos a causar-lhe distúrbios nos miolos. Começou a ouvir uma cantoria celestial
em surdina, que foi subindo de intensidade até encher a nave toda de encanto e de
magia. E lá estava o querubim, de perna cruzada, sentado na balaustrada de pau-santo
do altar, diluído na penumbra.
- E então?
- Que sabes tu dos homens, para poderes julgar o que lhes interessa?
- Sei mais do que tu. Estou aqui há quase trezentos anos, no lugar onde todos
revelam as suas intimidades. Quem, mais do que eu, saberá de ti? Mas tu és muito
sisudo e circunspecto. Mesmo a ti próprio, escondes mais do que revelas.
- Já agora… como não tenho nada para fazer, conto-te uma história. Se não te
interessar a história, atiro-te com mais um cântico.
- Eu preferia o cântico, tens uma voz celestial. Mas sei que estás ansioso para
contar a tua história.
- E tu aprendeste com o teu pai, fora do tempo em que andas por aí a arreliar
toda a gente, pareces também um padre a pregar um sermão. Usas ainda, para ti de
um privilégio, para ou outros de um incómodo, ouves sermões dos padres há trezentos
anos, deves ter os miolos cheios deles para despejares quando vem em jeito.
- Bem, eu não tenho miolos. O meu pai fez-me só por fora, por dentro já
estava feito. Que espécie de mono és tu, que pensas que é nos miolos que se guardam
os sermões? Miolos tem também o burro.
Mas tens alguma razão. Há por aí muito sermão que nem disputar pode com o
zurrar de um burro. O problema não reside na espécie dos miolos, senão na espécie
dos monos.
- Agora vou cantar. Amanhã digo-te que espécie de mono sou. Não… dir-me-
ás tu que espécie de mono pensas que sou.
Só lhe faltava mais essa, passou Francisco toda a noite a pensar, que raio de
mono haveria de dizer ao querubim que era? Queriam lá ver que ainda teria que
admitir face a face com o querubim que não lhe parecia que fosse um mono, de
espécie alguma…
Tinha que arranjar uma história perspicaz para arremessar ao querubim e o
deixar sem resposta, tal como o matreiro fizera. Para já tinha três dias para a inventar,
sujeitá-lo-ia à ausência a que ele o sujeitara. Bastava que fosse durante três dias à hora
de maior movimento e afluência, em que o querubim não se atrevesse a revelar-se em
conversa amena com um crente sem criar uma balbúrdia.
E assim foi. E ao quarto dia tinha já uma história para arreliar o querubim.
Entrou depois do almoço, à hora da sesta, nem uma mosca bulia na penumbra do
templo. O querubim demorou uns bons dez minutos a revelar-se, ficou porventura a
espreitar emboscado entre os seus semelhantes, só para criar a suspeita de que não se
revelaria. Depois foi-se aproximando, em três ou quatro voos, e por fim poisou no
degrau da soleira do altar.
- Ai sim?... Porquê? Parece-me que não queres é saber que espécie de mono
és?
- Estás enganado. Tenho mais certezas do que tu sobre esse assunto, o de saber
que não fui eu quem te inventou. E devo dizer-te que, se tivesse que inventar um
querubim para cavaquear, nunca inventaria um tão presunçoso e tão loquaz, preferiria
um que fosse mais sisudo e menos palrador, para ter eu mais direito à palavra. E
vamos lá a ver se não acabamos por concluir que foste tu quem me inventou a mim,
que és quem não tem por aqui ninguém que te possa sequer dar os bons dias ou as
boas noites. É isso, se calhar foste tu quem me inventou.
- Não vamos ficar a tarde toda a disputar quem inventou quem, porventura
fomos os dois inventados por um qualquer que não tinha mais ninguém com quem se
lamentar.
Vamos ao que interessa, que raio de mono pensas tu que sou, ou que
inventaste para eu ser? Na verdade, estou hoje tão perturbado, que nem me apetece
perder muito tempo com conversas, senão arrumar este assunto. Se não tens nada para
me dizer, vou cantar um bocado.
- Ao menos começa lá tu por despejar o saco, que confissão foi essa que assim
te perturbou?
- Como, de facto, não são dirigidas a ninguém, faço eu de contas que sou o
confessor. Se assim não fosse, ninguém tinha confessor. Nem os que se confessam
aos padres, pois eu bem os vejo, se não forem temas e assuntos que lhes despertem a
concupiscência, se se tratar apenas dos infortúnios de gente azarada que só necessitara
de um pouco de ânimo, até ressonam.
- Pois então eu vou contar uma história e dela deduzirás, ou não, conforme te
convier, que espécie de mono penso que és. Se não te interessar a história, posso
também atirar-te com um cântico, que sei ainda alguns, dos tempos em que
acompanhava a minha mãe às missas.
- Não, não! Conta lá a história. Tens cara de animar subitamente estes monos
todos se desatas a cantar e provocas uma debandada.
- A história, então.
Nunca conheci o meu pai, senão pelas histórias que a minha mãe contava dele.
Ausentou-se, ou teve que se ausentar para parte incerta ainda eu mal abrira os olhos,
mas isso é uma história muito comprida, que fica para outra altura, porque nada
adianta ao nosso assunto de saber que espécie de mono é cada um de nós. Só
interessaria para saber que espécie de mono era ele.
- Pois, mas há por aí muitos que dizem que a espécie de mono que cada um de
nós é decorre, em certa medida, ninguém sabe bem qual nem quanta, da espécie de
mono que foi o nosso pai.
- Ah…
- Fui eu, meu filho, mais o teu pai. Mais eu do que o teu pai, ele foi mais o
autor da ideia, mas quem te fez medrar dentro da minha barriga fui eu.
- Como?
- Como? Sei lá eu como, meu filho. Só sei que te sentia medrar dentro da
minha barriga, cada dia pesavas mais, depois saíste para fora, continuaste a medrar, já
não pesavas cá dentro, mas pesavas fora, que era um peso mais penoso ainda de
suportar, sobretudo quando abrias boca a pedir paparoca. Como, meu filho, essas
coisas são assim e não mudam, as mães fazem os filhos, sem saberem nunca bem
como. Talvez saiba o teu pai, que foi quem teve a ideia, ou alguém que trabalha sem
que ninguém o veja.
- És um mono muito presunçoso, tu. Não sei se volto a falar contigo nos
próximos dias. Vieste hoje aqui para me humilhares. Para um dia só, já foi demais.
Vou chorar um bocadinho, para trás de umas parras.
Raios, não tenho culpa de que não tenhas pai.
- Perdoa-me, meu querubinzinho. Tens razão, por vezes sou um mono muito
mesquinho. Raios!... já reparaste que nunca tive, até agora, ninguém a quem me
confessar, senão estes monos que me ouvem tanto como a ti. Se vais chorar, eu
também vou. Não queria magoar-te, estávamos apenas a arreliarmo-nos um ao outro.
E o que queria dizer-te, com a minha história, é que não és mono algum. E é isso que
terás que me explicar, como é que um velho e ressequido cavaco de carvalho pode
gerar algo que não seja um mono. Tens que me falar mais desse mestre de talha, ou
de quem quer que tenha realizado essa magia.
E ausentou-se de novo Francisco durante dois pares de dias, para cogitar, sem
a presença implicativa do querubim, no que faria com a matéria.
Não teria sido o seu ressentimento contra a sorte e o destino que fizera
despontar o querubim no seu mundo? Não seria essa a mera finalidade do querubim e
do seu destino, a de estar ali trezentos anos à espera que lhe aparecesse a talhe de
foice um desgraçado desapontado com o mundo, com todos e consigo próprio, para se
desagravar também da sorte que lhe coubera, de ficar vadio e sem lugar naquele
cárcere silencioso em que cada mono tinha o seu?
E se assim fora, que paz pudera haver entre um mono de carne e osso e um
querubim de carvalho, cujos destinos se cruzavam meramente por ressentimento?
Nem havia lobo pelas redondezas em que residisse a esperança de que saltasse de
súbito das sombras do matagal para acudir a quem quer que fosse, devorando o outro.
Tinha então que enfrentar o querubim, ou arranjar entendimento com ele. Para
já, o que havia para fazer era pôr o querubim a falar, destravar-lhe a língua.
E entre todas estas cogitações, só por acaso, ou por espontânea iluminação,
Francisco despertou para as suas obrigações inadiáveis e incontornáveis, mais uns
problemas sérios que não tinha meios para resolver e teriam que aguardar por melhor
conjunção dos astros. As contas da electricidade, da água, do gás, da mercearia e a
sua velha mãe que definhava imobilizada no leito e já nem tinha fôlego, nem ânimo,
para se queixar.
Aquele querubim poderia bem vir a ser a sua derradeira desgraça.
E como padecia de arrebates poéticos, Francisco abriu o seu velho caderno,
quase completamente preenchido com odes, sonetos, décimas e quadras soltas, tudo
alinhadinho em caligrafia de guarda livros, e escreveu:
- Não fales muito alto. Aquele anda de olho em mim. Cá para mim até já sabe
que ando por aqui, mas faz de contas que não vê nada, para me apanhar com a boca
na botija.
- Ora.. deixa-te de peças. Sabes bem que não existes senão na minha cabeça,
como haveria o sacristão de desconfiar do que quer que fosse? Eu não o conheço
senão daqui e nunca lhe dirigi a palavra.
- Então, hoje vens com essa… Passaste dois dias a magicar na maneira de te
conciliares com um querubim que sabes bem que existe, tanto dentro, como fora da
tua cabeça. Como existe fora da tua cabeça, não te consegues livrar dele. Vens então
agora com essa, como toda a gente, tudo o que existe fora da tua cabeça e te
importuna é porque reside exclusivamente dentro dela, é criação tua, que podes
extinguir num ápice, como o mesmo desempeno com que o criaste. Ou podes atribuir-
lhe o destino que te for mais oportuno.
Pode bem ser até que assim seja, mas vais ter que te confrontar com o
infortúnio de, cada vez que aqui entrares, eu te surpreender com uma novidade que a
tua laboriosa cabeça não previu, na direcção que atribuiu ao meu destino, ou ao teu na
tua relação comigo.
- Não tens que me aturar. Tens por aqui em redor um ror de igrejas como esta
onde podes realizar o que tenhas imaginado quando resolveste começar a vir todos os
dias a esta. Mas continuas a vir a esta e não a outra porque sabes que cá estou, para te
aturar a ti.
- E tu, porque não te escondes no meio desta barafunda de arremedos dos
defeitos da obra do criador e me procuras sempre que aqui entro, para me aturares?
- Bem… A ideia que tenho do sepulcro que se estende para lá destas paredes,
é a de um cárcere onde todos vivem desterrados e sem lugar. Mas tu pareceste-me o
mais desterrado de todos os que aqui se refugiam. E nota que é bem possível que cada
mono de madeira que aqui ficou encarcerado tenha escolhido um mono de carne e
osso com o mesmo fim e pelas mesmas razões. Se um dia vires outro querubim em
cavaqueira com outro parvo como tu, fecha os olhos e faz de contas que tudo não se
passou senão na tua cabeça.
Não faças como o sacristão, que não consegue chegar à fala com ninguém
aqui dentro, seja de madeira ou de carne e osso, e ocupa o seu tempo a fingir que
alinha os castiçais e as sacras nos altares, só para me espiar, a ver se me apanha para
descarregar o seu despeito. Porventura, ainda o descarregará sobre ti também. É
muito traiçoeiro.
- Está bem, vai então brincar um bocado por aí, ou atira para o ar uma
cantoria, enquanto eu fico a chorar um quarto de hora. Hoje é a minha vez.
- Choramos os dois, então. Ensino-te uma cantoria para chorar. Mas tu cantas
baixinho, só para ti, tens cara de nem para chorar saberes cantar.
- Canta então tu e chora por mim. Se desatasse a chorar haverias de ver que
sou tão desafinado a chorar, quanto a cantar. A minha mãe nunca me ensinou a
chorar. Quando adivinhava que ia começar, dizia: - Canta, filho, canta. Quem canta,
seus males espanta.
Ficava logo sem vontade, nem para chorar, nem para cantar.
- Ela quis, eu é que não gosto de cantar. Se desatasse a cantar, arranjaria mais
um problema.
- Um problema?...
- Nem mais, um problema. Não seria senão mais uma forma de me convencer
que os males da minha vida se espantariam e se afastariam em debandada, só por eu
cantar. Acabava a cantoria, olhava à volta e eles lá continuariam a apertar o cerco.
Para problemas, a acrescer àqueles com que a vida me atormenta, já me basta
um querubim presunçoso.
- Lá te sais outra vez com essa! Não sou nenhum querubim presunçoso. Sou o
teu querubim, quero dizer, o querubim que te calhou em sorte, na justa medida do que
tu precisas e desejas, ou mereces, para poderes desabafar as tuas agruras. Se sou
presunçoso, ou se tal te pareço, é só o modo de tu dizeres a ti próprio que te saiu um
querubim que te devolve os coices que, por despeito, tu vens para aqui atirar-me.
Pensas tu que alguém me ensinou a chorar? Ou a cantar? A um querubim
ninguém ensina nada. Todos os que aqui aparecem andam à espera que um querubim,
ou outro mono qualquer, lhes ensine alguma coisa. Mas, na verdade, o que eles
esperam é poder ensinar qualquer coisa a um querubim.
Que pretendes tu ensinar-me, por despeito de nunca teres aprendido nem a
chorar, nem a cantar?
Porventura, o que me pretenderias ensinar era a ser um parvo como tu,
desencantado com a vida e incapaz de a virar do avesso. Ora, isso eu já sei, não
preciso de ninguém para me ensinar.
Tanto eu como tu só teríamos uma solução para virarmos as nossas vidas do
avesso. Era tornarmo-nos nuns monos de madeira quedos como estes que nos
rodeiam, pregados nos seus lugares, que ninguém disputa.
E, afinal, parece-me que sou eu quem te continua a ensinar alguma coisa.
- Pois… mas o que me ensinas não tem utilidade alguma. De entre nós, não
serás tu quem poderia pregar-se aí num lugar qualquer, nem que fosse a ornamentar o
remate de uma sanefa, quedo e calado, sem importunar alguém? Não o fazes porque
não queres. Eu não o faço porque não posso, tenho a minha mãe à espera do jantar.
- Tens frio?...
- Pois… frio. Todos estes monos têm frio. Como o aguentam? Não sei… esse
é o mistério que não decifrei. Se o tivera decifrado, nunca chegarias a conhecer um
querubim de verdade. Nem eu um parvo como tu.
- Ora… Como é que um homem como tu poderá alguma vez fazer as pazes
com um querubim como eu? Para tal fora preciso que as fizeras contigo próprio.
E se assim fosse?... E depois?... Depois tínhamos feito as pazes, nada nos
restava para fazer.
Só continuamos a comparecer um perante o outro, porque pensamos que um
dia viremos a fazer as pazes. Não tu comigo, ou eu contigo, porque nem temos
matéria para guerras, mas cada um consigo próprio.
Não faças as pazes comigo agora. Se as fizeres, nunca mais deixarás de viver
em guerra contigo.
- Ora. Não conheces ninguém que aqui mora. Conheces de ouvir falar, como
eu conheço a tua mãe. Nunca te vi falar com ninguém, nem sequer com o padre ou o
sacristão. De resto, ninguém te liga, senão eu. Tudo o que sabes sobre a minha casa
fui eu quem te contou.
Sabes lá tu se é verdade. Eu nem acredito que tu tenhas mãe. Inventaste-a,
como me inventaste a mim, para teres um pretexto para regressares a casa todos os
dias. Se não tivesses esse pretexto, ficavas por aqui o dia todo, a olhar para o tecto,
até morrias de fome. Se não me tivesses inventado a mim, ficavas por casa a olhar
para a tua mãe.
O que tu sabes é que eu não me posso deslocar a tua casa. Imagina um
querubim a esvoaçar pelas ruas, com a passarada toda atrás em cortejo e os gatos à
carreira para ver qual seria o primeiro a chegar ao lugar onde pousasse. Os monos da
tua laia não falariam noutra coisa durante um par de semanas.
Está assim estabelecido. Vós podeis invadir a nossa casa, como se alguém vos
convidara. Os santos e os querubins, serafins e outros anjos dos céus não podem
irromper pela vossa.
Portanto vós sois meramente aquilo que nos vindes aqui contar. Perante isto, o
mais simples, para nós, é fingir que vós nem contastes nada, nós inventámos e
contámos tudo.
Aí tens. É o que pensa de vós cada um dos monos que aqui mora. É por isso
que não falam, só ouvem, como se monologaram consigo próprios.
- Não. Só farás as pazes comigo, quando as fizeres contigo. Se assim não fora,
ficaria eu em vantagem, porque continuarei a fazer-te a guerra.
O que subsiste e o que se devanece na história da vida de um homem
E lá regressou Francisco a casa, cogitando que não havia remédio, tinha que
manter aquele corrosivo jogo de canelada e bofetão com um querubim. E era para
isso que um querubim irrompia de súbito na vida de um homem, já tão macerado pela
vida…
Mas quando entrou em casa teve uma sensação imediata de alívio, aquele era
um raro dia em que folgava da rotina entediante da sua vida solitária com a mãe. O
aroma do estufado exalava da cozinha invadindo toda a casa. Joana viera.
Como sempre preparara o jantar, já tinha a avó lavada e inundada em água de
colónia, a mesa estava posta, a louça lavada. Era assim a Joana, mas só raramente,
quando vinha.
Não falaria sobre a matéria, por ora. Ficava de reserva para surpreender o
presunçoso, quando viesse ao caso. Até então, ele tinha mãe, o querubim tivera pai. A
coisa estava equilibrada. Mas como iria reagir o querubim quando soubesse que ele
tinha uma coisa que um mono de madeira, mesmo irrequieto e buliçoso como aquele,
nunca pudera ter, uma filha. Mesmo uma filha assim, que entrava na sua vida em
breves e inesperados episódios, quando calhava. Nunca partia de Francisco a
iniciativa de um encontro, estava assim ajustado. Quando a filha queria, ou lhe
calhasse, aparecia. Era um consolo aquela harmonia.
Era o único lenitivo na vida de Francisco. Da mãe de Joana perdera o rasto.
Erradicara todos os tons tenebrosos da memória e aferrolhara apenas os raros
episódios de luminoso alento. A mãe de Joana era uma fotografia a sépia amarelecida
pelo tempo, como aquelas dos bisavós que conhecemos dos episódios de bonomia que
os nossos pais escolheram para nos contar. Com Joana nunca se falava sobre a mãe,
ficara também assim ajustado.
Joana era então quase um querubim, menos implicativo. Bastava-lhe não ir à
igreja, ou ir pela hora de maior buliço, para não ter que aturar o querubim. A Joana
bastava-lhe não aparecer durante dois meses, ou três, para não ter que aturar o pai.
- Que vai fazer com a avó, pai? – interrogou de súbito Joana, enquanto lhe
servia a sopa e lhe passava as mãos pelos cabelos revoltos.
- Sei lá, filha... sei lá... Que farás tu com o teu pai, quando chegar à idade e ao
estado da tua avó?
- Está a desconversar, pai. Sabe bem que deixarei tudo para ficar a seu lado.
- E que faço eu, senão isso? Que hei-de fazer, senão isso?
- Ora... sabe bem ao que me refiro. Podia arranjar um lar para a avó. Um bom
lar. Sentir-se-ia mais acompanhada.
- Então será isso que farás comigo. Para me arranjares companhia, claro. Não.
A tua avó morrerá em sua casa, tem esse direito, na companhia do seu filho, que é um
sujeito maçador, mas é a que prefere, para além da tua, de que só esporadicamente
usufrui.
Não faço isto para que um dia te sintas obrigada a velares pelo teu pai até
sucumbir. Faço-o porque é a minha mãe e, para além de ti, mais ausente, não tenho
mais ninguém.
Podes até dizer que só mantenho a tua avó aqui porque sou eu quem precisa
dela.
- Ora, pai. Esqueça o que eu disse. Tem todo o direito à companhia da avó, se
é assim que quer. E ela à sua. Só penso que por vezes deve ser para si uma carga
pesada.
- É por vezes nessas circunstâncias que se vive mais solitário. Bem… sabes
muito bem do que falo.
- Claro que sei. Não quer que eu comece agora, que tudo estava acordado
entre nós, a falar da minha mãe… Ou de outra companhia qualquer. Quando eu quiser
companhia, arranjo-a. De resto, sei que terei sempre a sua.
- Arruma-se também essa matéria. Quando e se tiver novidades, logo lhe digo.
Porque me interroga tanto sobre a minha vida e não fala um pouco sobre si?
- A conversa começou por tua iniciativa, a falares tu sobre mim e sobre a tua
avó. Quando um burro fala, os outros abaixam as orelhas. Que queres tu que te diga
sobre mim? Continua tudo na mesma, excepto que arranjei um querubim, para falar
sobre mim. E sobre ele.
- Um querubim?...
- Não vejo doidos em lado algum, muito menos no manicómio onde trabalho.
Penso até, por vezes, que, com o seu génio e a sua astúcia, o pai faz por lá muita falta.
Aqueles que vão parar ao manicómio são os que resolveram dar solução à sua solidão
e ao seu sofrimento. Vivem em paz, embora pareça por vezes que foram lá metidos
pela força.
Mas tem que me apresentar esse querubim. Aonde mora?
- Eu encontro-o numa igreja, mas é bem possível que more aqui, na minha
cabeça. Ainda não sei. É de madeira. Mas fala, canta e voa. Talvez… talvez um dia te
leve até ele. Se ele quiser. É muito arredio. E muito dissimulado.
- Lá vens tu com a tua mãe… Já nos entendemos sobre essa matéria. Nada
pretendi da tua mãe, mais do que ela pretendeu de mim. Eu beneficiei, porque fiquei
contigo. Ela ficou sem nada, com a ilusão, porventura, de que ficou com tudo. Esta
matéria já estava arrumada. Vai-me custar mais adormecer, hoje. Por isso e por
castigo, se a tua avó já está a dormir, vamos jogar qualquer coisa, para entrarmos na
madrugada sem pesadelos. Dormes hoje por cá.
- Está bem, pai. Fico a fazer penitência. O que vai ser hoje?
- Xeque-mate.
- Ora essa... xeque-mate?
- Nem mais. Xeque-mate. Há quanto tempo lhe dura esse delírio do querubim?
- Ora aí está. Não é delírio nenhum... Há quase três meses que o pai não me
ganha um jogo, perde-os todos sem chegar a perceber como. Parece, de resto, que já
tanto se lhe faz ganhar ou perder.
- Eu não esgotei os meus argumentos. Ainda hás de comer muita broa, para
me conseguires esgotar.
- Talvez não. Só que desde há três meses que os aplica em disputas com um
querubim. Por acaso, o seu querubim não saberá jogar xadrez?
- E aonde foste buscar essa ideia, de que os meus colóquios com o querubim
não são senão disputas?
- Bem, pai, para além da avó, ninguém o conhece melhor do que eu. Vamos
então a outro jogo, mas deixe lá o querubim em paz por umas horas e concentre-se, a
ver se desfaz o enguiço e ganha um.
- Está bem. Então vou mostrar-te como se disputa com uma rapariga
presunçosa num tabuleiro de xadrez. Jogas com as brancas.
- Pai, vossemecê não está bem. Não vejo nem há aqui querubim algum.
- Meu caro amigo, que vais mais inventar? Não está aqui ninguém senão tu e
eu, não tens sequer uma filha, porventura nem uma mãe. O que me andas a esconder é
que a única pessoa que permaneceu na tua vida foi o teu pai.
- Como sabes?
- Já te disse que não tenho miolos, nem preciso deles para deduzir que os teus
de pouco te servem. Mas não me digas que andas já por aí a falar de mim a toda a
gente. Um dia destes irrompe pela igreja o povo todo da cidade em romaria, para
conhecer um querubim irrequieto.
Tinhas prometido não contar a ninguém.
- Não, fica descansado. Vou trazer-te só uma rapariga que está muito doente e
anda muito solitária.
- Mas esse era já o teu papel nesta história. Porque hás-de agora arranjar uma
rapariga para complicar tudo?
- Uma filha. Tens então uma filha, para além de uma mãe. Não a terás
inventado, também? Joana… Havia uma, foi santa, espanhola, que tinha uns arrebates
de colóquio com Jesus, para mitigar a sua solidão. Ouvi contar a história muitas
vezes, quando ainda havia catequese a sério.
Não, estou já a confundir as histórias todas. Essa era Teresa, tinha um
companheiro nos delírios que era João. Joana era uma princesa, que ficou
enclausurada num convento, como eu aqui.
Bem, e essa tua filha foste tu só quem a fez, de um cavaco velho, ou tiveste só
a ideia como o teu pai? Como foi? Um dia destes ainda me apareces com duas mães, a
tua e a dela.
- Pois estava. E o caro amigo não estaria, por acaso, também a sonhar
acordado?... Continuo a não ouvir cantoria alguma.
- Ena, homem! Porque é que há de rachar quem quer que seja? E, afinal, está a
falar de quem?
- De um anjolas que anda por aí, a mangar comigo. Desses de madeira, como
aqueles daquele magote. Eu alinho os castiçais, as jarras, as sacras dos altares e ele
vem por detrás e troca tudo. Até me esconde as chaves, por vezes. Passa a vida nisso.
- Ah… Então tem por aí um anjolas de madeira, que lhe desalinha a tralha.
Não será desculpa sua, para ter pretexto para ocupar o tempo a voltar a arrumá-la. Se
assim não fosse, o que faria por aqui?
- E porque não fala com ele? Poderia até deixar-lhe por aí uma malga com
sopas de leite, podia ser que ele viesse de mansinho a ronronar. É assim que se
apanham os gatos… Sei lá?...
O que vossemecê precisa é de companhia. Se assim não fosse, porque viria
acordar-me, para me expor essa trapalhada?
- Eu não o acordei. O senhor caiu do banco abaixo. Até se podia ter aleijado.
O senhor pensa que eu ando maluco. Mas faça-me o obséquio de se entreter a
contar os bonecos todos que estão por aí espalhados, para ir passando o tempo, em
vez de dormir, que não foi para isso que foram feitas as igrejas.
Depois, quando um dia eu lhe mostrar um anjolas de madeira quebrado em
quatro ou cinco bocados, haverá de me dizer de onde saiu, se não couber no rol.
- Se calhar, já tirou daí algum e o tem guardado, para fazer essa parte.
Vossemecê tem raiva a querubins.
- Foi o que me calhou na vida. Viver os dias aqui sepultado, entre gente morta
há milhares ou centenas de anos. E ainda por cima anda por aí um mais vivo do que
eu, a cantar e a gargalhar às escondidas e a mangar comigo. Se o apanho, racho-o.
Ao senhor calhou-lhe o quê na vida?
- Nada. Nada… Uma mãe entrevada, uma filha doente, um sacristão com
maus fígados, capaz de descarregar o fel sobre um querubim indefeso.
Nada mais. Uma vez por outra, um raio de sol a romper as nuvens.
- Vá para o diabo que o carregue. As igrejas não são albergues aonde venha
dormitar quem não tem cama. Agora, reze ou desande.
- Vou rezar, homem. Pela sua salvação… e pela minha. E pela de um
querubim que, se não se acautela, acaba esmigalhado pela fúria de um sacristão.
- Nunca devia ter daqui saído, filho. Sempre o disse. Já somos tão poucos e
tão sós, os três. O que tem ela?
- Não sei, mãe. Não me disse. Tem o génio da mãe dela, instável, irrequieta,
casmurra, ninguém sabe, em cada momento, o que fará no seguinte. E é também
muito orgulhosa, ou soberba, se quiser.
- Tinha-te prometido não falar mais sobre esse assunto. Afinal, és tu quem o
traz aqui agora.
- Vossemecê não é azeda, mãe, é uma mulher triste. Por vezes penso que
nunca foi, fez essa parte para me fazer sentir a falta do meu pai, sem todavia falar
dele. Talvez a mãe fosse uma mulher cheia de alegria, a voltear em bailaricos e
romarias, que teve que se tornar numa mulher triste. Sei lá…
- Pai. Tem o café quente. Levante-se, que temos um querubim à nossa espera.
- Temo que assim seja. Não imagina, porém, como espero estar enganada.
- Não, pai. O que adiantaria isso? O que tiver que ser será, quer o pai saiba ou
não. Não tem o poder para mudar nada. A não ser que exista mesmo um querubim.
Bem… mesmo que não exista, basta-me que exista o meu pai, capaz de inventar um.
- Vamos então. Tens que ter cuidado. Se houver por lá mais gente e ele
aparecer, finges que não o vês. Sobretudo se por lá estiver o sacristão. É um sujeito
muito traiçoeiro, ansioso por fazer mal a quem quer que seja. Nunca o viu, mas
também sabe do querubim.
- Bem, pai, há por aqui uns centos de querubins, todos quedos e impávidos, só
cá falta aquele que vossemecê inventou para entabular as conversas que não quis ter
com mais alguém. Deve ser um qualquer. O que interessa é que este sítio é muito
bonito, não lhe perdoo só agora me trazer cá. Quanto ao resto, se o pai escolheu um
querubim para entabular conversa, eu posso escolher o meu.
- E, I, O, U. Joaninha avoa, avoa, que o teu pai está em Lisboa. Quero dizer,
na igreja de São Roque, sentado mesmo ao teu lado.
E hás de estar a pensar que o teu pai não inventou afinal querubim algum,
como eu estou surpreendido, porque não inventou uma filha.
Se calhar, o teu pai inventou-nos aos dois, não está aqui senão ele, a falar ora
pelo querubim, ora pela filha.
- E porque não inventámos nós, eu e tu, o meu pai? Se assim fora, podíamos
agora dispensá-lo e edificar a nossa própria intimidade.
- Pois é. Mas, por isso mesmo, tens que prometer-me que não me trazes mais
ninguém. Não quero conhecer mais monos como vós. Fazemos os três uma sociedade,
secreta e confidencial, não entra mais ninguém.
- Pois. E também tem a voz muito idêntica à deste cavalheiro. Presumo que
seja seu pai.
- Mas se a menina pensa passar a vir aqui todos os dias, rezar ou dormitar,
como o seu pai, fico de ouvido atento para não perder uma só nota emanada pela sua
divina garganta. E de olho à espreita, para ver se reza ou se dormita.
- Assim seja. Mas o senhor, por acaso, já reparou que os castiçais do altar-mor
estão todos tombados? Não seria melhor começar a pôr a tralha em ordem?
O sacristão deu meia volta para olhar para o altar, enquanto os dois se
escapuliam pelo corredor lateral da nave. Quando olharam para trás, o sacristão, rubro
de raiva, perscrutava as alturas da abóbada.
- Grande tonto, pai, que é este homem. Como poderá alguém encontrar aqui,
entre tanto arrebique, um querubim que se queira esconder?
- Deixe lá isso, pai, que aquele querubim sobrevive aqui há quase três séculos,
porventura à raiva de muitos sacristães.
- Vale mais nem falarmos sobre a matéria, pai. Sobre o que se passou hoje.
Nem tentarmos decifrar quem inventou quem, se eu um pai e um querubim, se o pai
uma filha e um querubim, se o querubim dois tontos que mitiguem a sua solidão de
três séculos.
O que me interessa, pai, é que agora que vou morrer me apaixonei por um
querubim. Pode rir-se, rebolar pelo chão a gargalhar, mas não preciso de mais nada,
porque me apaixonei por um querubim. Bem, preciso de si, porque foi vossemecê
quem o inventou, ou descobriu. Talvez nem lá estivesse, mas vossemecê fez-me
descobri-lo, ou inventá-lo, vai dar no mesmo.
- Vais morrer?...
- Talvez, pai. Mas não importa. Tenho agora um querubim. Para onde eu for,
ele vai comigo.
- Pode inventar a mãe dela. Foi o que fez a sua mãe, pai. Inventou o seu pai.
- Já tinha saudades de passar uns dias com a tua impertinência. Então a tua avó
inventou o meu pai. Eu nunca tive pai, a tua avó concebeu do Espírito Santo, ou de
um querubim qualquer.
- Pois olhe que é uma pena, que as mulheres não possam conceber de um
querubim, ou coisa assim. Os pais inventavam-se depois para os filhos, que é a quem
fazem falta.
- Às vezes. O meu só me fez falta porque a tua avó o inventou, como dizes. Se
assim não fosse pensaria até que nem tinha. E a tua mãe? Há quanto tempo a não vês?
Nem podes dizer que fui eu quem a inventou, foste tu. Eu tratei de esquecer aquela,
esbater a memória e aplicar-lhe um filtro, para que pudéssemos inventar uma só com
as cores que te conviessem. A tua mãe é uma fotografia, que eu realizei em estúdio há
vinte e tantos anos.
- Não penso por ora voltar a trabalhar, o que juntei vai-me chegando para me
manter na companhia da tua avó e da tua agora, também. E o meu pai deixou-me
algum, em que nunca toquei, por precaução. É o único vestígio material e concreto
que me ficou do meu pai.
E quanto à fotografia do querubim está fora de questão. Imagina só que eu
disparava a máquina, o diafragma abria-se, o querubim entrava pela objectiva dentro
e impressionava a película, encavalitado no teu ombro, ainda por cima, para certificar
o momento e o lugar. Não deixaria então de ser um querubim?
A única coisa em que poderíamos acreditar, depois, era nos sussuurros, que a
película é inapta para captivar.
- Chega, filha, tens que me dizer o que tens. Não podemos continuar assim.
Tem que se fazer qualquer coisa.
- Já lhe disse que é assim que fica. Que pode o pai fazer? O milagre que podia
fazer, já o fez.
Francisco começava a perder o alento face à situação, sabia que com a filha
não valia a pena medir forças, o que decidira e porquê ficaria no segredo da sua
intimidade, sempre assim fora.
Francisco interrogava-se sobre se não teria sido ele quem suscitara aquele
espírito e temperamento na filha. Sempre lhe dera todo o afecto, entregara-se
integralmente à sua mãe e à sua filha. Mas dera-lhe também toda a liberdade e
autonomia. Por vezes martirizava-o a ideia de que a dádiva da liberdade poderia velar
simplesmente o desdém, ou a indiferença.
Mas não havia já nada a fazer.
- Pronto. Não se fala mais nisso. Vamos, ampara-te no meu braço e vamos
devagarinho, que o dia ainda vai menino e a tua avó ficou tratada.
- Pois. Mas agora basta. Se voltas para casa porque estás doente, é para
repousares. E o teu trabalho?
- Vou trabalhar hoje à tarde, volto a meio da noite. Mas vou pedir dispensa
por uns dias, pelo menos.
- Vamos então. Espero que chegues, logo. A nossa conversa sobre ti não ficou
ainda arrumada.
- Apetece-me muito que espere por mim, logo, para me dar as boas noites. Há
quanto tempo não tenho ninguém à minha espera?... Mas a nossa conversa sobre mim
ficou arrumada.
Há quanto tempo não tem o pai ninguém para esperar?...
- Estou sempre à espera de alguém, não sei bem de quem. A maioria das
vezes, dos dias e das noites, não vem ninguém. Mas eu continuo à espera.
Valeu a pena esperar. Primeiro apareceu um querubim, agora apareceste tu.
Infelizmente. Pelas razões que apareceste, preferia eu ficar à espera.
- Já sei que pensa que apareci, simplesmente, porque estou doente. Não é
verdade. Apareceria, estivesse ou não doente.
O que eu estava era farta de esperar. Não aparecia ninguém.
Agora apareceu-me o meu pai, juntamente com um querubim.
- Bem, mas durante todo este tempo tiveste pelo menos um namorado... um
amigo... enfim...
- Tive vários. Um hoje, outro amanhã, outro para o mês que vem... Sabe como
é. Coisas circunstanciais, sem consistência alguma. O mesmo, ou pior do que estar só.
E só agora me aparece um querubim...
- Então, caro senhor, hoje nem vem rezar nem dormitar, vem tirar o retrato à
Senhora da Piedade, da Conceição, ou ao pobre do sacristão?
- Assim uma de sujeito distraído, que nem se apercebe do que se passa por
detrás e por de cima de si.
E o sacristão, que era matreiro, nem por isso era muito rápido na dedução. E
foi-se perfilar um metro à frente da coluna, de frente mas com a cabeça voltada a três
quartos, com ar de quem fizera parte daquela composição há mais de dois séculos. E
nessa altura já o querubim pairava um pouco por detrás e por cima do cocuruto da sua
calvície, batendo ao de leve as asas, para se imobilizar suspenso. Uma obra prima, se
a película de celulóide fosse apta para captivar a circunstância. Francisco enquadrou
com todo o rigor e disparou.
E já nem quis saber de mais nada, nem do sacristão nem do querubim, que
encontraria por lá no dia seguinte, arrumou atabalhoadamente a tralha e esgueirou-se.
Quando reentrou em casa, foi fazer uma sumária visita à mãe, para confirmar
que nada lhe faltava, e encafuou-se na única divisão da casa que conservava
aferrolhada, interior, que lhe servira desde a juventude de câmara escura para as
revelações. Passadas duas horas já tinha as provas suspensas do estendal onde ficavam
a secar. Depois de inspeccionar com detalhe o que ficaria registado, exclamou
ruborizado pela excitação:
- Apanhei-te!
- Pai?...
- Não lhe quero mal algum, pai. Que quer que lhe diga, que vossemecê não
veja? Estou doente, mais nada.
Amanhã, de manhã, vou ver o nosso querubim. Que mais pode fazer por mim?
Joana comeu lentamente, como quem cumpre uma obrigação, com uma
expressão em que era evidente o fastio. Seguidamente acendeu um cigarro o que a fez
tossicar até atingir quase a apoplexia. Apagou-o em meio.
- Vai descansar. Amanhã de manhã irás ver o teu querubim. Eu estarei por lá,
discretamente e afastado, sem me intrometer.
- Boa noite. Dorme bem. E sonha, mulher, sonha. Acabe hoje ou amanhã a
vida, a melhor coisa que dela levamos são os sonhos.
Francisco ficou quase toda a noite acordado, a ouvir a tosse seca e arranhada
da filha, sem nada fazer, senão pensar, pensar, pensar. Pensar em nada e em tudo,
num curso deambulante e labiríntico, que retornava recalcitrantemente aos mesmos
temas, às mesmas imagens, às mesmas interrogações, sempre sem resposta.
Que seria feito dos nossos sonhos, quando a vida se extinguisse? Que sonhos
animariam o sono de um querubim durante mais de duzentos anos? Ou fora
simplesmente o querubim o sonho de alguém, cuja vida se extinguira há muito, que
perdurara todavia pelo seu sonho?
Que sonhos, ou pesadelos, agitavam as noites de Joana? Que sonhos poderia
ter uma rapariga doente, convencida de que se extinguiria em breve?
E Francisco já nem sabia se pensava ou se sonhava, se dormia ou permanecia
em vigília, mas não deixava de ouvir a tosse de Joana e o ressonar da mãe longínquo.
E adormeceu então profundamente quando os alvores do dia rompante já se
insinuavam na janela, para acordar alagado em suor e a arfar, no meio de um
pesadelo que não conseguiu reconstituir. Durara talvez uma breve meia hora, mas
pareceu-lhe que sonhara a vida inteira. Pensou então que talvez nem tivesse acordado
e que aquela sufocante sensação fizesse ainda parte do sonho.
Alguma vez teria acordado, desde que irrompera do ventre de sua mãe? Não
teria sido tudo nada senão um sonho? Não teria meramente sonhado tudo, a mãe, o
pai, a filha, o querubim, o sacristão, o padre e o mestre de obras? Não teria começado
aí a sua vida, nesse episódio em que se lhe revelara um querubim? Não teria sonhado
tudo o que ficara para trás, para atribuir contexto à revelação de um querubim?
Ergueu-se bruscamente, fez alguns movimentos bruscos para reactivar a
circulação, dirigiu-se decididamente ao improvisado estúdio, abriu a porta e observou
durante uns minutos a fotografia revelada na véspera.
- A Joana?
- Pouco... ou nada. Aquilo que ela nos deixar fazer. A mãe sabe como é.
- Sei, filho... sei. Sou tua mãe. Talvez inventar-lhe um sonho, uma ilusão...
- Não, mãe. Eu inventei um, ela outro. E a minha mãe, não inventa outro?
- Já inventei todos os que consegui inventar. Enterrei-os bem fundo, para não
me atormentarem.
- Minha mãe... minha mãe. Agüente-se, que precisamos todos ainda de si. Da
sua presença difusa a presidir a tudo. Como se cumpríssemos um destino ou
rompêssemos um trilho que a mãe traçou há muito.
- Talvez o meu pai, que vossemecê inventou... talvez eu... sei lá... Mas
agüente-se, mãe, agüente-se.
- Pois. Mas venho para estar só, a pensar. A Joana vem daqui a pouco. Tem
paciência e espera.
- Afinal, pai, não foi o querubim que lhe roubou a filha, fui eu que lhe roubei
o querubim.
- Furtou-nos o quê?
- Logo verás.
- Então, caro Senhor, a sua filha perdeu uns parafusos... Com a barafunda que
vai por aí... Coitada.
- Ora... Estava escondido por aí, hoje de manhã, a ver se apanhava um certo
peralvilho que anda a mangar comigo, e vi-vos entrar, primeiro vossemecê, depois
ela. Foi sentar-se junto do lugar onde me escondera e ouvi muita conversa...
- E só viu isso?
- Não havia mais que ver. O que havia era para ouvir, mas não consegui ouvir
tudo. Mas o mais interessante era que mudava de voz, conforme falava ela ou o
interlocutor imaginário.
- Pois vossemecê pensa que vê tudo, nesse seu negócio de espião, mas escapa-
lhe muita coisa.
- Vi perfeitamente que lhe tirou uma fotografia. Por acaso não terei ficado
também nela e é a razão porque voltou aqui?
Murmurou Francisco.
Sentou-se, para pensar um pouco. Não tardou a surgir-lhe o querubim pelas
costas, para se sentar no espaldar do banco fronteiro.
Francisco franziu o sobrolho, anunciando que ia ralhar.
- Ora... não percebes nada. Eu existo e sou visível, como aqueles meus
semelhantes todos, que ali estão e todos vêem. A minha magia, para além de estar ou
parecer vivo, não consiste em tornar-me visível, senão em ocultar-me a quem não me
interessa que me veja. O sacristão não me vê. Não está apto para me ver.
Só me pode ver quando me meto no meio dum magote desses monos. Então
vê-me e, se me for tocar, sou de madeira como eles.
Não percebes nada. E ainda diz a tua filha que foste tu quem me inventou...
- Ora... se não fosse esse jogo e esse risco, a vida era uma maçada. Sou muito
velho.
Depois, a Joana está doente e prometi-lhe que, se morresse, a acompanharia
para onde fosse. Se me apanhar o sacristão, já lá fico à espera dela.
- Aonde?
- Está bem. Dessas coisas sabes mais do que eu. Mas acertem bem o passo,
não se vão perder pelo caminho, vais tu para um lado, ela para outro, passam o resto
da vida, ou da morte, à procura do destino da viajem de cada um.
- Estás cheio de ironias... Pois vê lá tu aonde vais parar, suspeito que serás
quem acabará por ficar só na conclusão desta história, sem saberes do paradeiro de
ninguém.
- Vai, que o sacristão deve estar a entrar por aí sem mais aviso, através de uma
porta qualquer. Eu também vou.
- Vou preparar o jantar. Vai ser uma boa canja de galinha para todos. À Joana
também fará bem.
Após o jantar, que cada um sorveu por sua vez, reuniram-se então no quarto
da mãe. Joana sentou-se na borda da cama, Francisco no cadeirão de espaldar, onde a
mãe já raramente se aconchegava por momentos breves, enquanto lhe mudavam a
roupa da cama, ou para descansar as costas, já maceradas pela imobilidade.
A anciã procurou as mãos de Joana, agarrou-as entre as suas, pressionando-as
com a pouca energia que conservava.
- Oh... avó... estou doente, é só isso. Muito doente, não sei ainda bem quanto,
mas muito.
- Ora. Isso todos já sabemos. Mas doente, com quê? És uma rapariga que
ainda nem chegou aos trinta.
- Moiro não, por acaso é um querubim. Bem loiro e encarnadinho, por sinal.
- Não vamos azedar. Lê então qualquer coisa, minha filha. E façamos uma
prece a quem acreditarmos que possa interceder. A minha é para a Senhora do
Rosário. A do teu pai a um querubim, senão a Belzebute.
Desculpa-me, meu filho, este azedume não é contra ti, é contra a vida.
- Não, respeitei muito e amei com paixão o teu pai. Ele também, a mim. Mas
era arredio como a tua filha. Nem quando ficou derradeiramente doente e soube que
se esvaía nos procurou. Morreu só, sem afecto algum.
Não trilhes esse caminho, minha filha. Agarra-te a esse querubim.
- Vai vendo.
Quando voltou com o tabuleiro, Joana estava mais apaziguada com a tosse,
tinha a mão aberta sobre as fotografias que apertava contra o peito.
- Não fui eu, minha filha, foi uma máquina fotográfica. Eu limitei-me a
enquadrar e a disparar.
- Observa bem essas fotografias. Não estás também numa e o sacristão nas
duas? Por acaso inventei-te a ti e ao sacristão? Porventura não existes, nem precisas
de um chá de limão, posso deitar este fora e inventar um para ti.
Mas, passando à frente dessa matéria, a que te devia preocupar é a presença do
sacristão a espiar os teus namoricos com o querubim.
Joana escancarou os olhos de surpresa, observando de novo a fotografia, não
notara ainda o pormenor. Franziu depois o sobrolho e ficou durante alguns minutos
calada e pensativa.
- Agora, por enquanto, a única certeza que ele tem é a de que tu não és boa da
cabeça, falas sozinha com namorados imaginários e escolheste uma igreja para os teus
devaneios. Sabe também que anda por lá um querubim a mangar com ele, mas não o
consegue ver, nem o associa, com a certeza da prova, a qualquer de nós, embora
desconfie.
É aqui que reside o paradoxo, o querubim não ilude uma máquina fotográfica
mas ilude qualquer um que não quer que o veja. O sacristão não consegue ver o
querubim, mesmo que se plante à frente do seu nariz. Ele explicar-te-á melhor do que
eu.
Mas, hoje ou amanhã, o sacristão arma-lhe uma cilada. Tem cuidado, não
sejas tu o isco.
Agora devolve-me as fotografias, eu guardo-as. E pensa nisto tudo, para ver se
lhe enxergas o sentido. Eu ainda não consegui.
- Porventura não tem sentido algum, senão o que cada um lhe atribuir. Já não
sei se fui eu quem inventou um pai, se vossemecê uma filha, os dois um querubim, ou
o querubim inventou-nos a todos para mitigar o seu tédio secular. Para ser sincera,
nem me interessa, basta-me saber que sempre que for à igreja encontro lá o meu
querubim enamorado.
- Sim, pai. Saio cedo amanhã, tenho uns exames para fazer.
- Posso acompanhar-te?
O outro estava tão absorvido, que se ergueu num salto e recuou dois passos,
apavorado.
- Não sei aonde quer chegar com essas blasfêmias, mas, com toda a certeza,
quer amofinar-se comigo. Corre é o risco de se amofinar com todas as pessoas
sagradas que aqui moram.
Pois eu começo pelos anjos, sobretudo pelos mais irrequietos, que poderiam já
cá não estar quando acabasse de inventariar o resto.
- Não me parece que algum desses rapazolas, com ou sem asas, se possa
escapulir do sítio onde o pregaram há centenas de anos. São de madeira.
Porventura o meu caro amigo está ansioso por fazer mal a algum deles,
qualquer que seja.
- Está bem. Mas, diz-me, tenho a certeza de que a Joana falou contigo sobre a
sua doença. Podias, pelo menos, revelar-me o que tem, para que possa fazer algo. Ela
não diz.
- Não te diz a ti e não te diz a mim. De resto, que adiantaria? Que sei eu de
doenças? Sei de doentes porque todos eles aqui vêm parar, a pedir a cura. Os casos
mais graves que conheço são os das doenças da alma, porque essas não fulminam
ninguém, encarceram as vítimas na vida e na solidão. Sobrevivem a todos os outros.
Eu sobrevivi umas centenas de anos.
Para poderes fazer algo... O quê? Tudo o que tinhas que fazer já o fizeste.
Resta-te agora esperar pelo desfecho. E não será, por acaso, senão aquele que
projectaste desde o início?
- Sim. E também sei que lá esteve, que o sacristão se muniu de uma nova arma
para surpreender o querubim e que o pai resolveu interpelá-lo acerca do assunto com
que me vai agora assediar.
Vai querer saber o resultado dos meus exames.
O que tenho, pai, não tem cura alguma, senão uns paliativos para entreter, que
causam mais dor e martírio do que alívio.
Chega-se sempre a uma altura em que não vale a pena tentar iludir o destino.
Não me terá consigo muito tempo. Uma semana, um mês, não muito mais... Quando
o fim se insinuar, tudo se precipitará num ápice.
- Minha querida filha... não faças isso. Fala comigo. Tenho dinheiro de sobra
para tentar seja o que for. Há sempre alguma coisa. Nem que seja para iludir...
- Não sei, meu filho, nunca me falou sobre a sua doença. Sabia, tão só, que era
algo nos pulmões. Sei também que sofreu mais nas mãos dos médicos do que
propriamente com a doença. Não tinha cura.
Foi a doença que o afastou de nós, para não ter que falar sobre ela.
- Pois é, meu filho... E pensas tu que tens algum sentido? Cada um tem o seu,
que é a falta dele para todos os outros. Que sentido tenho eu para ti, imobilizada numa
cama à espera da morte?
- Tem o sentido de ser a minha mãe.
- Então basta-te encontrar no teu pai o sentido de ter sido o teu pai.
- É verdade, já concluí. E foi uma pena andar tão arredio, porque poderia ter
ficado nele. A sua filha ficou. Por sorte. Se não fosse ela, tinha-me escapado uma bela
peça.
A propósito. Vinha a entrar mesmo atrás de mim. Mas subitamente reverteu a
marcha e saiu. Surgiu-lhe uma idéia qualquer...
- És um parvo.
Pela primeira vez porventura na sua vida, Francisco sentiu um arrepio subir-
lhe pelo eixo das costas até à nuca.
Virou costas e saiu, quase atabalhoadamente. Tanto, que, a meio da nave,
tropeçou num ressalto do lajedo e teve que amparar-se com as mãos, cobrindo uns
metros do percurso a gatinhar.
Entrou em casa, dirigiu-se à sala já mergulhada em penumbra e deparou com a
filha sentada de braços caídos no sofá, os olhos rasos de água, silenciosa, com o olhar
fixo num ponto longínquo, quilômetros para além das paredes. No regaço jazia, em
cavacos, quebrado em cinco pedaços, a cabeça, o tronco desmembrado, os braços e o
ventre com as roliças pernas agarradas, o querubim. Das faces evadira-se o rubor
róseo de outrora e as carnações tinham agora a tonalidade pálida de um cadáver.
- Juro-te, filha, que não inventei nada. Foste tu quem precisou de um pai
inventor de querubins. Que culpa posso ter eu, por andar por lá um sacristão?
Nos dias seguintes, Joana continuou a sair logo pela manhã, para regressar
pela tardinha, sucessivamente mais debilitada. Passava os dias na igreja, em solidão,
pois já lá não residia ninguém, senão os monos de madeira, algumas beatas e o
sacristão.
Uma manhã, já quase pela hora do almoço, Francisco foi surpreendido pelo
tocar insistente do telefone, há muito defunto, pois ninguém o utilizava e só se
mantinha na expectativa de uma emergência.
Calmamente, todavia remotamente surpreendido, levantou o auscultador. Era
a voz de uma mulher, grave.
- O próprio.
- Estou a falar do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. É o pai da Senhora
Dona Joana de Sá?
- A paciência, meu caro senhor, tem limites. Alguma vez quis saber? O senhor
é louco.
Francisco ficou plantado no meio do corredor, com uma caixa de papelão nas
mãos. Eram os pertences de Joana que o médico lhe atirara, com desprezo, para os
braços. Dentro, jaziam os fragmentos do querubim. Deu consigo a pensar, fitando o
médico que desaparecia ao fundo:
- Oxalá, não tenhas feito sofrer muito a pequena.
- Pois... que mate, ou deixe morrer os seus sonhos, ou os dos outros, quem
quer que sejam, ainda se atura... Mas porque haveria de matar um sacristão indefeso?