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HESÍODO E A VIDA DO CAMPO

(Retirado de: JAEGER, Werner. A Formação do Homem Grego. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes,
1995. pp. 85-105.)

Os Gregos colocaram ao lado de Homero, como seu segundo poeta, o beócio Hesíodo, Nele se
revela uma esfera social totalmente diversa do mundo e cultura dos nobres. Principalmente o último e mais
arraigado à terra dos poemas de Hesíodo que se conservaram, os Erga, apresenta a mais viva descrição da
vida campestre da metrópole grega no final do séc. VIII e completa essencialmente a representação da vida
mais primitiva do povo grego que aprendemos do jônico Homero. Homero acentua, com a maior nitidez,
que toda a educação tem o seu ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, o qual nasce do
cultivo das qualidades próprias dos senhores e dos heróis. Em Hesíodo revela-se a segunda fonte da cultura:
o valor do trabalho. O título de Os Trabalhos e os Dias, dado pela posterioridade ao poema rústico didático
de Hesíodo, exprime isso perfeitamente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre
os cavaleiros nobres e os seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra
dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação
do Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço
pelo trabalho. A vida despreocupada da classe senhorial, em Homero, não deve induzir-nos em erro: a
Grécia exige dos seus habitantes uma vida de trabalho. Heródoto expressa-o através de uma comparação
com outros países e povos mais ricos1: A Grécia foi sempre um país pobre, mas baseia nisso a sua areté.
Alcança-a pelo engenho e pela submissão a uma lei austera. É por ela que a Hélade se defende da pobreza
e da servidão. O seu solo é formado de múltiplos vales estreitos e paisagens cortadas por montanhas. Quase
não tem as vastas planícies, fáceis de cultivar, do norte da Europa, o que obriga a uma luta incessante com o
solo para arrancar dele o que só assim ele consegue dar. A agricultura e o pastoreio foram sempre as
ocupações mais importantes e mais características dos Gregos. Só no litoral prevaleceu, mais tarde, a
navegação. Nos tempos mais remotos predominou em absoluto a atividade agrícola.
Mas Hesíodo não nos põe ante os olhos só a vida do campo como tal. Também nele descortinamos
a ação da cultura nobre e do seu fermento espiritual — a poesia homérica — nas camadas mais profundas da
nação. O processo da formação grega não se consuma pela simples imposição ao resto do povo das maneiras
e formas espirituais criadas por uma classe superior. Todas as classes dão a sua contribuição. O contato com
a formação mais elevada da classe dominante desperta nos camponeses rudes e toscos a mais viva reação.
Naquele tempo, os arautos dessa vida superior eram os rapsodos que recitavam os poemas de Homero.
Hesíodo conta no conhecido proêmio da Teogonia como despertou para a vocação de poeta: era um simples
pastor e guardava os seus rebanhos no sopé do Hélicon, quando um dia recebeu a inspiração das musas, que
lhe puseram nas mãos o bastão do rapsodo. Mas o poeta de Ascra não se contentou em difundir somente o
esplendor e a pompa dos versos de Homero, diante das turbas que o ouviam nas aldeias. O seu pensamento
estava profundamente enraizado no solo fecundo da existência campesina e, dado que a experiência pessoal
o conduzia para além da vocação homérica e lhe outorgava uma personalidade e uma força próprias, foi-lhe
concedido pelas musas desvendar os valores próprios da vida do campo e acrescentá-los ao tesouro
espiritual da nação inteira.
Graças às descrições de Hesíodo podemos representar-nos com clareza a situação do campo no seu
tempo. Embora não se possa, num povo tão multiforme como o grego, generalizar a partir da situação da
Beócia, as condições desta são, em grande medida, típicas. Os detentores do poder e da formação são os
nobres terratenentes. Mas os camponeses não deixam de ter uma independência espiritual e jurídica
considerável. Não existe a escravatura e nada indica, mesmo remotamente, que aqueles camponeses e
pastores que viviam do trabalho das suas mãos descendessem de uma raça subjugada na época das grandes
migrações, como acontecia na Lacônia. Todos os dias reuniam-se no mercado e na λέσχη para discutirem os
seus assuntos públicos e privados. Criticavam livremente a conduta dos seus concidadãos e até dos altos
senhores, e “o que o povo diz” (φἥμη) tinha importância decisiva para o prestígio e prosperidade do homem
comum. Só na massa ele podia defender a sua posição e criar prestígio.
O tema exterior do poema de Hesíodo é o processo com o seu irmão Perses, invejoso, briguento e
preguiçoso, que, depois de ter malbaratado a herança paterna, insiste constantemente em novos pleitos e
reclamações. Da primeira vez conquistou a boa vontade do juiz por meio de suborno. A luta entre a força e o
1
Nota do autor [doravante NT do A]: HERÓDOTO,VII, 102.
1
direito que se manifesta no processo não é, evidentemente, um assunto meramente pessoal do poeta; este
torna-se, ao mesmo tempo, porta-voz da opinião dominante entre os camponeses. O seu atrevimento é tão
grande, que chega a lançar no rosto dos senhores “devoradores de presentes” a sua ambição e o abuso brutal
do poder. A sua descrição não se pode comparar com a descrição ideal do domínio patriarcal dos nobres em
Homero. Este estado de coisas e o descontentamento que ele origina já existiam antes, naturalmente. Mas
para Hesíodo o mundo heróico pertence a outra época, diferente e melhor do que a atual, “a idade do ferro”
que descreve com cores tão sombrias nos Erga. Não há nada de tão característico no sentimento pessimista
do povo trabalhador como a história das cinco idades do mundo, que começa com os tempos dourados, sob
o domínio de Cronos, e leva, pouco a pouco, em Unha descendente, à subversão do direito, da moral e da
felicidade humana nos duros tempos atuais. Aidos e Nêmesis velaram-se e abandonaram a terra para
voltarem ao Olimpo, com os deuses. Só deixaram entre os homens sofrimentos e discórdias sem fim.
Num ambiente como esse não pode surgir um ideal puro de formação humana, como aconteceu
nos tempos mais afortunados da vida nobre. Por isso torna-se tanto mais importante verificar qual a
participação do povo no tesouro espiritual da classe nobre e na elaboração da cultura aristocrática, de modo
a convertê-la num tipo de formação adequado à nação inteira. Para tanto é decisivo que o campo ainda não
tenha sido esmagado e dominado pela cidade. A cultura feudal arcaica ainda não é sinônimo de atraso
espiritual, nem é avaliada através dos moldes citadinos. “Camponês” ainda não quer dizer “inculto”. As
próprias cidades dos tempos antigos, principalmente na metrópole grega, são acima de tudo cidades rurais e
continuam a sê-lo mais tarde, na sua maioria. Assim como a lavoura todos os anos extraía novos frutos das
profundezas da terra, por toda a parte também desabrocha uma moralidade viva, pensamentos originais e
crenças religiosas. Ainda não existe uma civilização nem um modelo de pensamento citadino que tudo
iguale e tolha impiedosamente qualquer peculiaridade e originalidade.
A mais elevada vida espiritual do campo dimana naturalmente das camadas superiores. Como já
mostram a Ilíada e a Odisséia, a epopéia homérica foi cantada, primitivamente, por trovadores ambulantes
nas residências dos nobres. Mas até Hesíodo, que cresceu num ambiente camponês e trabalhou no campo,
teve conhecimento de Homero, antes de despertar para a vocação de rapsodo. O seu poema dirige-se
primordialmente aos homens da sua condição e parte do princípio de que os seus ouvintes entendem a
linguagem artística de Homero, que é a que ele próprio emprega. Nada revela tão claramente como a
estrutura do poema de Hesíodo a essência do processo espiritual que se realiza através do contato daquela
classe com a poesia homérica.
Reflete-se nele o processo da formação interior do poeta. Toda a elaboração poética de Hesíodo se
sujeita, sem vacilar, às formas estilizadas por Homero. Aceita dele versos inteiros, fragmentos, palavras e
frases. O uso de epítetos épicos pertence também à linguagem de Homero. Daqui resulta um notável
contraste entre o fundo e a forma do novo poema. No entanto, para estes elementos não populares
penetrarem na existência dos camponeses e pastores simples e ligados à terra, e elevarem os seus velados
pressentimentos e desejos a uma claridade consciente e a uma inspiração moral, era preciso dotá-los de uma
expressão convincente. O conhecimento da poesia homérica não significa para os homens do mundo
hesiódico só um enriquecimento enorme dos meios de expressão. Apesar do seu espírito heróico e patético,
tão oposto ao estilo de vida deles, abria-lhes, pela precisão e clareza com que exprimia os mais elevados
problemas da vida humana, o caminho espiritual que os conduzia para fora da estreiteza opressiva da sua
dura existência, até a mais alta e mais pura atmosfera do pensamento.
O poema de Hesíodo permite-nos conhecer com clareza o tesouro espiritual que os camponeses
beócios possuíam, independentemente de Homero. Na grande massa das sagas da Teogonia encontramos
muitos temas antiqüíssimos, já conhecidos de Homero, mas também muitos outros que nele não aparecem.
E nem sempre é fácil distinguir o que já estava elaborado em forma poética daquilo que corresponde a
simples tradição oral. Hesíodo manifesta-se na Teogonia mais como pensador construtivo, enquanto nos
Erga está mais próximo da realidade e da vida do campo. Mas também aqui quebra sem hesitar o fio do seu
pensamento para contar longos mitos, na certeza de agradar aos ouvintes. Também para o povo os mitos
eram um assunto de interesse ilimitado, incitavam a uma infinidade de narrações e reflexões e constituíam
toda a filosofia daqueles homens. Assim, na escolha inconsciente do assunto das sagas manifesta-se a
orientação espiritual própria dos camponeses. Os preferidos são os mitos que exprimem a concepção da vida
realista e pessimista daquela classe ou as causas das misérias e necessidades da vida social que os oprimem:
o mito de Prometeu, no qual Hesíodo encontra a solução para o problema do cansaço e dos sofrimentos da
vida humana; a narração das cinco idades do mundo, que explica a enorme distância entre a própria
2
existência e o mundo resplandecente de Homero, e reflete a eterna nostalgia do Homem por melhores
tempos; o mito de Pandora, que é alheio ao pensamento cavalheiresco e exprime a concepção triste e
prosaica da mulher como fonte de todos os males. Não creio que estejamos errados ao afirmar que não foi
Hesíodo o primeiro a popularizar estas histórias entre os camponeses. Mas foi ele, sem dúvida, o primeiro a
situá-las decisivamente no vasto contexto social e filosófico com que aparecem nos seus poemas. O modo
como, por exemplo, conta as histórias de Prometeu e Pandora pressupõe nitidamente que já eram conhecidas
dos seus ouvintes. Em face destas tradições religiosas, éticas e sociais, o interesse dominante pela epopéia
homérica passa no ambiente de Hesíodo para segundo plano. A atitude original do Homem perante a
existência ganha forma nos mitos. Por isso é que todas as classes sociais possuem o seu próprio tesouro de
mitos.
Ao lado dos mitos, o povo guarda a sua antiga sabedoria prática, adquirida pela experiência
imemorial de incontáveis gerações e que se compõe de conhecimentos e conselhos profissionais, e de
normas morais e sociais, concentradas em fórmulas breves, de modo a permitir conservá-los na memória.
Nos seus Erga, transmitiu-nos Hesíodo um grande número destas preciosas tradições. Esses fragmentos da
obra fazem parte, pela concisão e originalidade da linguagem, das realizações poéticas mais bem-sucedidas
do poema; embora as amplas exposições filosóficas da primeira parte tenham maior interesse do ponto de
vista da história pessoal e individual, é na segunda parte que encontramos todas as tradições do campo:
velhas regras sobre o trabalho dos campos nas várias épocas do ano, uma meteorologia com preceitos sobre
a mudança apropriada de vestuário e regras para a navegação, tudo envolto em vigorosas máximas morais e
em preceitos e proibições colocadas no princípio e no fim. Antecipamo-nos ao falar da poesia de Hesíodo,
pois pretendemos apenas, por enquanto, pôr em evidência os múltiplos elementos culturais dos camponeses,
para os quais ele escreveu. Esses elementos, porém, aparecem de modo tão patente na segunda parte dos
Erga, que bastaria citá-los.
A sua forma, o seu conteúdo e a sua estrutura revelam imediatamente a sua herança popular.
Opõem-se totalmente à cultura da nobreza. A educação e a prudência na vida do povo não conhecem nada
de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza
igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavalheiresco. Em
contrapartida, impõe-se uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na
vida material dos camponeses e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo
da Terra, embora lhe falte uma grande meta ideal.
Em Hesíodo introduz-se pela primeira vez o ideal que serve como ponto de cristalização a todos
estes elementos e adquire uma elaboração poética em forma de epopéia: a idéia do direito. A propósito da
luta pelos próprios direitos, contra as usurpações do seu irmão e a venalidade dos nobres, expande-se no
mais pessoal dos seus poemas, os Erga, uma fé apaixonada no direito. A grande novidade desta obra está
em o poeta falar na primeira pessoa. Abandona a tradicional objetividade da epopéia e torna-se porta-voz de
uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o direito. É o enlace imediato do poema com a disputa jurídica
sustentada contra o seu irmão Perses, que justifica esta ousada inovação. Fala com Perses e dirige a ele as
admoestações. Procura convencê-lo de mil maneiras de que Zeus ampara a justiça, ainda que os juízes da
Terra a espezinhem, e de que os bens mal adquiridos nunca prosperam. Dirige-se então aos juízes, aos
senhores poderosos, na história do falcão e do rouxinol e em outras passagens. Integra-nos de modo tão vivo
na situação do processo, e precisamente nos momentos que antecedem a decisão dos juizes, que não seria
difícil cometermos o erro de pensar que Hesíodo escreveu precisamente naquele momento, e que os Erga
são uma obra de ocasião, nascida integralmente daquela circunstância. Assim pensaram alguns intérpretes
recentes. O fato de ele não nos falar do resultado do pleito em nenhum lugar do poema parece confirmar
este ponto de vista. Parece que o poeta não teria deixado os ouvintes na ignorância, se já tivesse sido
pronunciada uma sentença. O poema foi, assim, considerado um reflexo do processo real. Fizeram-se
investigações sobre algumas mudanças de situação que se julgaram ver no poema e chegou-se à conclusão
de que a obra, pela frouxidão arcaica da sua composição, que mal nos deixa concebê-la como uma unidade,
não passa de uma série de “Cantos de Admoestação a Perses”, separados no decurso do tempo. E a
transposição para o poema didático de Hesíodo da teoria dos cantos homéricos de Lachmann2. Dificilmente
se pode conciliar com esta interpretação a existência, no poema, de extensas partes de natureza puramente
2
NT do A: O ensaio de P. FRIEDLAENDER, Hermes, 48, 558, é um início importante para a consideração unitária do poema e
para a compreensão da sua forma. Outros comentários do autor sobre o mesmo assunto (já depois de termos acabado este ca-
pítulo) aparecem em Gött. Gel, Anz., 1931.
3
didática, as quais nada têm a ver com o processo e, no entanto, são também dirigidas a seu irmão Perses e
consagradas à sua instrução, como os calendários para camponeses e navegantes, e as duas coleções de
máximas morais que os acompanham. E que influência poderiam ter tido no decurso de um processo real as
doutrinas gerais, de caráter moral e religioso, sobre a justiça e a injustiça, conservadas na primeira parte do
poema? Na realidade, o caso concreto do processo desempenhou evidentemente papel importante na vida de
Hesíodo, mas não foi para o poema senão a forma artística com que vestiu o discurso para torná-lo mais
eficaz. Sem isso não teria sido possível a forma pessoal da exposição nem o efeito dramático da primeira
parte. Essa forma tornava-se, assim, natural e necessária, uma vez que o poeta experimentava, realmente, a
íntima tensão da luta pelos próprios direitos. É esta a razão por que não nos conta o processo até o fim, dado
que o fato concreto não afeta a finalidade didática do poema.
Assim como Homero descreve o destino dos heróis que lutam e sofre como sendo um drama dos
deuses e dos homens, Hesíodo apresenta o simples acontecimento civil da ação judicial como uma luta entre
os poderes do Céu e da Terra pelo triunfo da justiça. Deste modo, eleva à nobre categoria e à dignidade de
uma verdadeira epopéia um caso real da sua vida, por si mesmo sem importância. Naturalmente, não pode
transportar os seus ouvintes para o céu, como faz Homero, porque nenhum mortal pode conhecer as
decisões de Zeus a seu respeito e a respeito das suas coisas. Só pode rogar-lhe que defenda a justiça. Por
isso o poema começa com hinos e preces. Zeus, que humilha os poderosos e exalta os humildes, deve fazer
com que seja justa a sentença dos juízes. O próprio poeta se encarrega, na Terra, do papel ativo de dizer a
verdade ao irmão extraviado e afastá-lo do caminho funesto da injustiça e da contenda. É certo que Éris é
uma divindade a quem os homens têm de pagar tributo, mesmo contra sua vontade. Mas ao lado da Éris
ruim há uma boa, que não fomenta a guerra, mas sim a emulação. Zeus atribui-lhe a morada nas raízes da
Terra. Induz no preguiçoso a cobiça em face do êxito do vizinho e assim o move ao trabalho e ao esforço
honesto e fecundo. O poeta dirige-se a Perses prevenindo-o contra a Éris ruim. Só o ricaço, que tem os
celeiros cheios e não está apertado pelo cuidado da própria subsistência, pode entregar-se à inútil mania das
disputas. Ele pode fazer maquinações contra a fazenda e os bens dos outros, e desperdiçar o tempo no
mercado. Hesíodo exorta o irmão a não enveredar outra vez por esse caminho e a reconciliar-se com ele sem
processo, pois já há tempo dividiram a herança paterna e Perses ficou com mais do que lhe pertencia, por
suborno dos juizes. Insensatos, não sabem quão verdadeira é a máxima que diz que a metade é maior que o
todo e qual ê a bênção contida na erva mais humilde que a terra faz crescer para o homem, a malva e o
asfódelo3. O poeta passa assim do caso concreto à sua formulação geral, quando dirige a sua exortação ao
irmão. Já de início se deixa entrever a ligação da advertência contra as contendas e a injustiça, e da fé
inquebrantável na proteção do direito pelas forças divinas, com a segunda parte do poema, ou seja, as
doutrinas sobre o trabalho dos camponeses e marinheiros, e as máximas relativas ao que o Homem deve
fazer ou omitir. A única força terrena que se pode opor ao domínio da inveja e das disputas é a Éris boa,
com a sua pacífica emulação no trabalho. O trabalho é, de fato, uma necessidade dura para o Homem, mas
uma necessidade. E quem por meio dele prove sua modesta subsistência recebe bênçãos maiores do que
aquele que cobiça injustamente os bens alheios.
Para o poeta, esta experiência baseia-se nas leis imutáveis que regem a ordem do mundo,
enunciadas de forma religiosa e mítica. Já em Homero vemos a tentativa de interpretar certos mitos em
função de uma concepção do mundo. Mas esse pensa mento, fundado nas tradições míticas, ainda não se
encontra sistematizado nele, Esta tarefa estava reservada a Hesíodo, na segunda das suas grandes obras: a
Teogonia. As sagas dos heróis dificilmente participam da especulação cosmológica e teológica. Em
contrapartida, as que se referem aos deuses constituem a sua fonte mais abundante. A tendência causal
nascente encontrou satisfação na construção sagaz de uma genealogia completa dos deuses. Ora, os três
elementos essenciais para uma doutrina racional do devir no mundo aparecem também, com evidência, na
representação mítica da Teogonia: o Caos, o espaço vazio; a Terra e o Céu, fundamento e dossel do mundo,
separados pelo Caos; e Eros, a força originária criadora e animadora do Cosmos. A Terra e o Céu são
elementos essenciais de toda concepção mítica do mundo. E o Caos, que também encontramos nos mitos
nórdicos, é evidentemente uma idéia originária das raças indo-germânicas. O Eros de Hesíodo é uma idéia
especulativa original e de enorme fecundidade filosófica. Na Titanomaquia e na doutrina das grandes
dinastias dos deuses entra em ação a idéia teológica que Hesíodo tem de arquitetar uma evolução do mundo,
cheia de sentido, na qual, além das forças telúricas e atmosféricas, intervenham poderes de caráter moral. O
pensamento da Teogonia não se contenta em pôr em interação os deuses reconhecidos e venerados nos
3
NT do A: Erga, 40.
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cultos nem se atem aos conceitos tradicionais da religião em vigor. Pelo contrário, põe os dados da religião,
no sentido mais amplo do culto, da tradição mítica e da vida interior, a serviço de uma concepção
sistemática da origem do mundo e da vida humana, elaborada pela imaginação e pela inteligência. Julga
assim toda força ativa como uma força divina, o que é próprio de tal grau de desenvolvimento espiritual.
Estamos, pois, em presença de um pensamento vivo e mítico, exposto sob a forma de um poema original.
Mas este sistema mítico é constituído e governado por um elemento racional, como prova o fato de ele se
estender muito além do círculo dos deuses de Homero e do culto, e de não se confinar ao simples registro e
combinação de deuses admitidos pela tradição, mas elaborar uma interpretação criadora destes e inventar
novas personificações quando o exigem as novas necessidades do pensamento abstrato.
Estas breves referências bastam para delinear o fundo dos mitos que Hesíodo introduz nos Erga
com o fim de explicar a presença do cansaço e do trabalho na vida humana, e a existência do mal no mundo.
Assim, logo no relato introdutório sobre a Éris boa e a má vê-se que a Teogonia e os Erga, apesar da
diferença dos assuntos, não estavam separadas na mente do poeta e o pensamento do teólogo penetra o do
moralista, assim como o deste se manifesta claramente na Teogonia. Ambas as obras provêm da íntima
unidade da imagem do mundo de uma personalidade. Hesíodo aplica a forma “causai” de pensar, própria da
Teogonia, à história de Prometeu, nos Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e os
sofrimentos devem ter aparecido algum dia no mundo, Não podem ter feito parte, desde a origem, da ordem
divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes como causa a sinistra ação de Prometeu, o roubo do fogo
divino, que encara do ponto de vista moral. Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora,
mãe de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da velhice, e outros
males mil que hoje povoam a Terra e o mar.
Constitui inovação ousada interpretar o mito pelo prisma das novas idéias especulativas do poeta e
colocá-lo num lugar tão central. A sua utilização na marcha geral do pensamento dos Erga corresponde ao
uso paradigmático do mito nos discursos das personagens da epopéia homérica. Este fundamento para os
extensos “episódios” ou “digressões” míticas do poema de Hesíodo não foi devidamente reconhecido,
apesar da grande importância que tem para a compreensão do seu fundo e da sua forma. Os Erga consti-
tuem uma grande e singular admoestação e um discurso didático e, como as elegias de Tirteu ou de Sólon,
derivam diretamente, no fundo e na forma, dos discursos da epopéia homérica4. Neles os exemplos míticos
estão perfeitamente no seu lugar. O mito é como um organismo: desenvolve-se, transforma-se e se renova sem
cessar. É o poeta que realiza essa transformação. Mas não a realiza em obediência a um simples desejo arbitrário.
O poeta estrutura uma nova forma de vida para o seu tempo e interpreta o mito de acordo com as suas novas
evidências interiores. O mito só se mantém vivo por meio da contínua metamorfose da sua idéia. Mas a idéia
nova é transportada pelo veículo seguro do mito. Isto já é válido para a relação do poeta com a tradição, na
epopéia homérica. Mas em Hesíodo torna-se ainda muito mais claro, visto que nele a individualidade poética
aparece de modo evidente, age com plena consciência e serve-se de tradição mítica como de um instrumento
para o seu próprio desígnio.
Este uso normativo do mito revela-se com maior nitidez porque Hesíodo, nos Erga, coloca a narração
das cinco idades do mundo logo em seguida à história de Prometeu, mediante uma fórmula de transição que
talvez não tenha estilo, mas é sumamente característica para o que nos interessa5. Se quiseres, contar-te-ei com arte
um a segunda história até o fim . Acolhe-a, porém , ração.
no teu Nesta
co passagem do primeiro ao segundo mito tinha de
se dirigir outra vez a Perses, para inculcar na consciência dos ouvintes a unidade do objetivo didático das suas
narrações, aparentemente tão distintas. A história da antiga Idade do Ouro e da degenerescência cada vez
maior dos tempos subseqüentes devia mostrar que os homens eram originariamente melhores que hoje e viviam
sem trabalho nem dor. O mito de Prometeu serve de explicação. Hesíodo não viu que, na realidade, os dois
mitos se excluem, o que é particularmente significativo para a sua plena interpretação ideal do mito. Enumera
como causas da desventura cada vez maior dos homens o aumento da irreflexão, o desaparecimento do temor dos
deuses, a guerra e a violência. Na quinta idade, a do ferro, em que o poeta lamenta ser forçado a viver, domina
só o direito do mais forte. Nela só prosperam os malfeitores. Hesíodo cita aqui a terceira história: a do falcão e
do rouxinol. Dedica-a diretamente aos juízes, aos senhores poderosos. O falcão arrebata o rouxinol — o

4
NT do A: Os intérpretes não repararam que o início dos Erga, já desde a invocação a Zeus, que termina com as palavras “mas eu
quero dizer a verdade a Perses”, está imitado, na sua forma típica, de οὐχ ἄρα μοὖνον έην dos discursos homéricos. Mas é
precisamente disto que depende a compreensão da forma de todo o poema; é um único “discurso” emancipado e ampliado até
converter-se em epopéia, de caráter exortativo. O longo discurso de Fênix, no livro IX da Ilíada, está bastante próximo dele.
5
NT do A: Erga, 106.
5
“cantor” — e, enquanto o leva nas suas garras, através dos ares, assim responde aos seus queixumes doloridos:
Desgraçado, de que te adiantam os teus gemidos? Encontras-te na posse de quem é mais forte que tu, e seguir-
me-ás onde quiser levar-te. Depende de mim comer-te ou deixar-te em paz6. Hesíodo chama ainos a esta
história de animais. Fábulas como esta eram acreditadas por todo o povo. Exerciam no pensamento popular
uma função análoga à dos paradigmas míticos nos discursos épicos: encerravam uma verdade de ordem geral.
Homero e Píndaro chamam ainos também aos exemplos míticos. Só mais tarde o conceito se circunscreve às
fábulas de animais. Possui o sentido já conhecido de advertência ou conselho. Assim, não é apenas a fábula do
falcão e do rouxinol que é ainos. Ela é só um exemplo que Hesíodo dá aos juízes. A história de Prometeu e o
mito das idades do mundo são verdadeiros ainos também.
Na parte seguinte do poema, repetem-se os mesmos discursos, dirigidos a ambas as partes, a Perses e
aos juízes. Aí nos são mostradas a maldição da injustiça e a benção da justiça, por meio das imagens religiosas
da cidade justa e da cidade injusta. Dike converte-se aqui, para o poeta, numa divindade independente. É a filha
de Zeus, que se senta junto dele e se lamenta quando os homens abrigam desígnios injustos, porque tem de
prestar-lhe contas deles. Os seus olhos contemplam também esta cidade e o litígio que nela prossegue. E de
novo o poeta se dirige a Perses: Toma isto em consideração: atende à justiça e esquece a violência. É o uso
que Zeus impõe aos homens: os peixes e os animais selvagens e os pássaros alados podem devorar-se uns aos
outros, porque entre eles não existe o direito. Mas, aos homens, concedeu ele a justiça, o mais alto dos bens7.
Esta diferença entre os homens e os animais liga-se nitidamente ao exemplo do falcão e do rouxinol. Hesíodo
pensa que entre os homens não se deve apelar jamais para o direito do mais forte, como o falcão faz com o
rouxinol.
Na primeira parte do poema desvenda-se o conceito religioso de que a idéia do direito situa-se no
centro da vida. Naturalmente, este elemento ideológico não é um produto original da vida campesina primitiva
e nem sequer pertence à Grécia propriamente, na forma como encontramos em Hesíodo. Tal como os traços
racionais que se evidenciam no esboço de sistema da Teogonia, pressupõe as relações citadinas e o avançado
desenvolvimento espiritual da Jônia. A mais antiga fonte destas idéias é, na nossa opinião, Homero. É nele que
se encontra o primeiro elogio da justiça. No entanto, a idéia do direito não se encontra na Ilíada em posição de
tanto destaque como na Odisséia, mais próxima, no tempo, de Hesíodo. Nesta aparece a convicção de que os
deuses são os guardiães da justiça e de que o seu reinado não seria realmente divino se não levasse, por fim, ao
triunfo da justiça. Este é um postulado que domina toda a ação da Odisséia. Também encontramos na Ilíada,
numa famosa alegoria da Patrocléia, a convicção de que Zeus desencadeia no céu tempestades terríveis quando
na Terra os homens pisoteiam a justiça8. Mas estes indícios isolados de uma concepção ética dos deuses, e
mesmo as convicções que norteiam a Odisséia, estão muito longe da paixão religiosa de Hesíodo, o profeta do
direito. Simples homem do povo, ele empreende, através da sua fé inquebrantável na proteção do direito pelos
deuses, uma luta contra o seu próprio meio, e pelos séculos afora ainda nos arrebata com o seu pathos
irresistível. Bebe em Homero o conteúdo da sua idéia de direito assim como algumas locuções lingüísticas
características. Mas a força reformadora com que vive esta idéia na vida real, bem como o absoluto predomínio
da sua concepção do governo dos deuses e do sentido do mundo, inaugura uma nova época. A idéia do direito é
para ele a raiz de que deverá brotar uma sociedade melhor. A identificação da vontade divina de Zeus com a
idéia do direito e a criação de uma nova personagem divina, Dike, tão intimamente ligada a Zeus, o deus
supremo, são a imediata conseqüência da força religiosa e da seriedade moral com que a classe camponesa
nascente e os habitantes da cidade sentiram a exigência da proteção do direito.
É impossível admitir que tenha sido Hesíodo, afastado na sua terra beócia do desenvolvimento
espiritual das regiões ultramarinas, o primeiro a fazer valer aquela exigência e a tirar de si próprio a totalidade
do seu pathos social. Sentiu-a com mais veemência apenas, na sua luta contra o meio ambiente, e assim se
converteu em arauto dela. Ele próprio conta nos Erga9 que seu pai, tendo empobrecido na cidade de Cumas, na
Ásia Menor, imigrou para a Beócia. Assim, pode-se presumir, com razão, que foi o pai quem lhe transmitiu a
sensação de melancolia que experimentou na nova pátria, e o filho tão amargamente exprimiu. A sua família
nunca se sentiu em casa na miserável aldeia de Ascra, assim classificada por Hesíodo: Horrível no inverno,

6
NT do A: Erga, 202.
7
NT do A: Erga, 274. Nomos ainda não significa “lei”, neste contexto.
8
NT do A: Π 384-393. Devemos ter sempre em mente que a idéia ético-jurídica de Zeus se expressa mais nitidamente nesta
alegoria do que em qualquer outra parte da Iliada. Já anteriormente esclarecemos que a vida real, tal como o poeta a conhece pela
experiência, penetra freqüentemente na alegoria, através da rigorosa estilização heróica.
9
NT do A: Erga, 633 ss.
6
insuportável no verão e nunca agradável. É óbvio que foi na casa paterna que ele aprendeu, desde a infância, a
ver com os olhos do crítico as relações sociais dos Beócios. Introduziu no seu meio a idéia de Dike. Já na
Teogonia apresenta-a expressamente10. A presença da trindade divina e moral das Horas - Diké, Eunomia e
Irene - ao lado das três Moiras e das três Cárites deve-se evidentemente a uma predileção especial do poeta.
Assim como na genealogia dos ventos enumera Notos, Bóreas e Zéfiro, quando descreve com detalhe os males
que atingem os camponeses e marinheiros, também louva, como promotoras das “obras dos homens”, as
deusas do direito, da boa ordem e da paz11. Nos Erga, Hesíodo instila a sua idéia do direito na vida inteira e no
pensamento dos camponeses. Pela conjugação da idéia do direito com a do trabalho consegue criar uma obra
em que a forma espiritual e o conteúdo real da vida dos camponeses se desenvolvem a partir de um ponto de
vista dominante e adquirem caráter educativo. Vamos apresentá-la agora, em breves traços, na vasta construção
dos Erga. Logo depois da exortação à prática da justiça e ao abandono definitivo da injustiça, com que encerra
a primeira parte, Hesíodo volta a dirigir-se ao irmão nos versos famosos que, separados no seu contexto,
correram de boca em boca, durante milhares de anos12. Bastam eles para imortalizar o poeta. Deixa-me
aconselhar-te com verdadeiro conhecimento, Perses, minha criança grande. As palavras do poeta ganham um
tom paternal, mas válido e convincente, É fácil alcançar a miséria. O caminho é desimpedido. E ela não mora
longe. Os deuses imortais, porém, puseram o suor antes do êxito. A senda que a ele conduz é íngreme e
comprida, e de início penosa. No entanto, quando tiveres chegado ao cimo, toma-se fácil, apesar da sua
aspereza. “Miséria” e “êxito” não traduzem exatamente as palavras gregas κακότης e ἀρετή. Mas ao menos
acentuamos desse modo que não se trata da perversidade e da virtude morais, tal como a Antigüidade entendeu
mais tarde13. Este fragmento liga-se às palavras introdutórias da primeira parte, relativas à Eris boa e à ruim.
Depois de ter deixado bem clara aos olhos do leitor a infelicidade da luta, é hora de evidenciar o valor do
trabalho. O trabalho é celebrado como o único caminho, ainda que difícil, para alcançar a areté. O conceito
abarca simultaneamente a habilidade pessoal e o que dela deriva — bem-estar, êxito, consideração. Não se trata
da areté guerreira da antiga nobreza, nem da areté da classe proprietária, baseada na riqueza, mas sim da areté
do homem trabalhador, que tem a sua expressão numa posse de bens moderada. Ela é a palavra central da
segunda parte, os Erga propriamente ditos. O seu objetivo é a areté, tal como a entende o homem do povo.
Quer fazer dela alguma coisa. Em vez dos ambiciosos torneios cavalheirescos exigidos pela ética aristocrática,
surge a calada e tenaz rivalidade no trabalho. O Homem deve ganhar o pão com o suor do seu rosto. Mas isto
não é uma maldição, é uma bênção. É este o preço da areté. Assim ressalta com perfeita nitidez que Hesíodo
quer com plena consciência colocar ao lado do adestramento dos nobres, tal como se espelha na epopéia
homérica, uma educação popular, uma doutrina da areté do homem simples. A justiça e o trabalho são os
pilares em que ela assenta.
Mas então pode-se ensinar a areté? Esta questão fundamental surge no princípio de toda ética e de
toda educação. Hesíodo levanta-a assim que pronuncia a palavra areté. É por certo o melhor dos homens
aquele que tudo pondera e examina o que, finalmente, é justo. Bom é também o que sabe seguir os retos
ensinamentos do outro. Só é inútil aquele que não descobre por si mesmo nem aceita no seu coração a
doutrina do outro. Não é sem razão que estas palavras se encontram entre a proposição do objetivo — a areté
— e o início dos preceitos particulares que imediatamente se vinculam a ela. Perses, e quem quer que ouça as
doutrinas do poeta, deve estar disposto a deixar-se guiar por ele, caso não seja capaz de conhecer intimamente o
que lhe é proveitoso e o que lhe é prejudicial. Assim se justifica e ganha sentido a totalidade do seu
ensinamento. Estes versos constituíram, na ética filosófica posterior, o fundamento primeiro de toda a doutrina
moral e pedagógica. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles aceita-os integralmente nas suas considerações
preliminares sobre o princípio adequado (ἀρκή) do ensino moral 14. Esta indicação é da maior importância para
compreendermos a função que eles têm no esquema geral dos Erga. Também aqui desempenha papel
importantíssimo a questão do conhecimento. Perses não tem uma concepção justa. Mas o poeta tem de admitir
que ela pode ser ensinada, na medida em que procura transmitir-lhe a sua própria convicção e influenciá-lo. A
primeira parte prepara a terra para a semeadura da doutrina da segunda. Arranca preconceitos e erros que se
interpõem no caminho do conhecimento da verdade. Não é pela disputa e pela injustiça que o Homem
consegue chegar ao seu objetivo. Para alcançar a verdadeira prosperidade, precisa ajustar as suas aspirações à

10
NT do A: Teog., 901.
11
NT do A: Teog.,869.
12
NT do A: Erga., 256 e ss.
13
NT do A: Ver WILAMOWITZ, Sapho und Simonides, p. 169. (Berlin, 1913).
14
NT do A: ARISTÓTELES, Ét.Nic., A2,1095 b 10.
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ordem divina que governa o mundo. Assim que isto entra na convicção íntima do homem, torna-se possível que
um outro o ajude a encontrar o caminho, por meio dos seus ensinamentos.
À parte geral que põe esse homem nesta situação bem definida, seguem-se as doutrinas práticas
particulares15, expressas numa série de máximas que dão ao trabalho o mais alto valor. Lembra-te, pois, dos
meus conselhos, Perses, rebento divino, e trabalha para que a fome te deteste e a casta e bela Deméter te ame
e encha de abundância os teus celeiros. Quem vive na pobreza é aborrecido pelos deuses e pelos homens; é
comparável ao zangão, que devora o penoso trabalho das abelhas. Procura um prazer justo, dando-te ao
trabalho numa medida equilibrada. Os teus celeiros se encherão, assim, com as provisões que cada ano te
proporcionar. O trabalho não é vergonha; a ociosidade, sim, essa o é. Se labutares, o ocioso te invejara pelos
teus ganhos, aos quais se seguem respeito e consideração. O trabalho é a única coisa justa na tua condição;
basta desviares a atenção da cobiça dos bens alheios e dirigi-la para o teu próprio trabalho, cuidando de o
manter, como te aconselho. Hesíodo refere-se então à tremenda vergonha da pobreza, às riquezas injustamente
adquiridas e às que vêm de Deus, e passa daí a um conjunto de preceitos particulares sobre a veneração dos
deuses, a piedade e a prosperidade. Fala das relações com os amigos e inimigos e particularmente com os
prezados vizinhos, fala do dar, do receber e do forrar, da confiança e da desconfiança, sobretudo em relação às
mulheres, da sucessão e do número de filhos. Vem a seguir uma descrição dos trabalhos dos camponeses e dos
marinheiros, e conclui com outra série de máximas. Os “Dias” constituem o fecho. Não precisamos analisar
esta parte do poema. Principalmente a doutrina relativa às tarefas profissionais dos camponeses e marinheiros
— menos diferenciados entre os Beócios que no nosso tempo — penetra tão fundo na realidade das suas
particularidades que, apesar do encanto da sua descrição do trabalho na vida cotidiana, não podemos examiná-
la aqui. A ordem maravilhosa que domina a totalidade desta vida, o ritmo e a beleza que dimanam dessa ordem
são devidos ao contato íntimo com a natureza, com o seu curso imutável e recorrente. Na primeira parte a
exigência de justiça e honradez fundamenta-se na ordem moral do mundo. Na segunda, a ética do trabalho e da
profissão deriva da ordem natural da existência e dela recebe as leis que a regem. O pensamento de Hesíodo
não as separa. A ordem moral e a ordem natural derivam igualmente da divindade. Tudo que o Homem faz e
omite, quer nas relações com os seus semelhantes e com os deuses, quer no trabalho cotidiano, forma uma
unidade com sentido.
Já observamos que o rico tesouro de experiência de trabalho e de vida que se desvenda aos olhos do
leitor, nesta parte da obra, deriva de uma tradição popular milenária e profundamente enraizada. Esta corrente
imemorial que brota da terra, inconsciente ainda de si própria, é a parte mais comovedora do poema de Hesíodo
e a causa principal da sua força. O vigor impressionante da sua realidade plena deixa na sombra o
convencionalismo poético de alguns dos cantos homéricos. É um novo mundo, que oferece aos olhos o seu
frescor verde j ante, o odor forte da terra aberta pelo arado, o canto do cuco nos arbustos, estimulando o
trabalho dos campos. Este tesouro de radical beleza humana não se revela na epopéia heróica senão em poucas
passagens, como por exemplo a descrição do escudo de Aquiles. Tudo isto está muito distante da poesia
helenística romântica erudita das grandes cidades, que redescobriu o gênero idílico. A poesia de Hesíodo
apresenta-nos realmente, em toda a sua plenitude, a vida dos homens do campo. Alicerça neste mundo natural e
primitivo do trabalho a sua idéia do direito como fundamento de toda a vida social, e converte-se no arauto e
criador da estrutura íntima desse mundo. Como espelho do mais alto ideal, oferece ao trabalhador a sua vida
monótona e sacrificada. Já não deve lançar olhares invejosos para a classe social de que recebeu, até agora,
todo o alimento espiritual. É na sua própria vida e nas suas atividades habituais, e até na sua aspereza, que ele
encontra um sentido e uma finalidade elevados. Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos nossos olhos a
formação independente de uma classe popular, excluída até então de qualquer formação consciente. Serve-se
das vantagens oferecidas pela cultura das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana;
mas cria a sua própria forma e o seu ethos exclusivamente a partir das profundezas da sua própria vida. Porque
Homero não é só o poeta de uma classe, mas se eleva desde os fundamentos de um ideal de classe até o nível
humano e a amplidão geral do espírito, possui a força capaz de orientar na sua cultura própria uma classe
popular que vive em condições de existência totalmente diversas, capaz de fazê-la achar o sentido específico da
sua vida humana e de ensiná-la a conformar-se com as suas leis internas. Isto é da maior importância. Mas é
ainda mais importante o fato de, por meio deste ato de autoformação espiritual, ela sair do seu isolamento e
fazer ouvir a sua voz na agora dos povos gregos. Assim como a cultura aristocrática adquire em Homero uma
influência de tipo humano geral, com Hesíodo a civilização camponesa sai dos acanhados limites da sua esfera
social. Embora o conteúdo do poema só possa ser compreendido pelos camponeses e só se aplique a eles e ao
15
NT do A: O mais destacado paralelo desta parte dos Erga são as máximas de Teógnis (V. adiante, p 243).
8
trabalho do campo, os valores morais implícitos nessa concepção de vida tornam-se acessíveis ao mundo
inteiro. E claro que a concepção agrária da sociedade não deu o cunho definitivo à vida do povo grego. A
formação grega encontrou na polis a sua forma mais característica e acabada. O que contém da cultura do
campo, ela passa, espiritualmente intacto, para um plano de fundo. Importância igual ou maior tem o fato de o
povo grego considerar definitivamente Hesíodo um educador orientado para o ideal do trabalho e da estrita
justiça e de ele, formado no ambiente do campo, conservar o seu valor mesmo em contextos sociais
completamente distintos.
É no intuito educativo de Hesíodo que está a verdadeira raiz da sua poesia. Não depende do
predomínio da forma épica nem da matéria como tal. Se considerarmos os poemas didáticos de Hesíodo como
uma simples aplicação mais ou menos original da linguagem e formas poéticas dos rapsodos a um conteúdo
que as gerações posteriores consideravam “prosaico”, surgirão dúvidas sobre o caráter poético da obra. Os
Biólogos antigos formularam dúvidas idênticas a respeito dos poemas didáticos posteriores16. O próprio
Hesíodo encontrou justificação para a sua missão poética na vontade profética de se converter em mestre do
seu povo. Os seus contemporâneos contemplavam Homero com estes olhos, pois não podiam imaginar forma
mais elevada de influxo espiritual do que a dos poetas e rapsodos homéricos. A missão educativa do poeta
estava inseparavelmente ligada à forma da linguagem épica tal qual era sentida sob o influxo de Homero.
Quando Hesíodo recolheu a seu modo a herança de Homero, definiu para a posteridade, transpondo os limites
da mera poesia didática, a essência da criação poética no sentido social, educador e construtivo. Esta força
edificadora brota, para além de qualquer instrução meramente prática ou moral, de uma vontade de atingir a es-
sência das coisas, vontade que nasce do mais profundo saber e que tudo renova. A ameaça iminente de um
estado social dominado pela dissensão e pela injustiça deu a Hesíodo a visão dos fundamentos em que se
apoiava a vida daquela sociedade e a de cada um dos seus membros. Esta visão essencial que penetra o sentido
simples e original da existência determina a função do verdadeiro poeta. Para este não há assuntos prosaicos ou
poéticos em si.
Hesíodo é o primeiro poeta grego que fala do seu ambiente em seu próprio nome. Deste modo ergue-
se acima da esfera épica, que apregoa a fama e interpreta as sagas, até a realidade e as lutas atuais. Vê-se
claramente no mito das cinco idades que ele considera o mundo heróico da epopéia um passado ideal, ao qual
contrapõe a presente idade de ferro. No tempo de Hesíodo o poeta esforça-se por exercer uma influência direta
na vida. Surge aqui pela primeira vez uma pretensão a guia, que não se fundamenta numa ascendência
aristocrática nem numa função oficial reconhecida. Ressalta imediatamente a semelhança com os profetas de
Israel, já salientada de tempos antigos. JJo entanto, é com Hesíodo, o primeiro dos poetas gregos a apresentar-
se com a pretensão de falar publicamente à comunidade, baseado na superioridade do seu conhecimento, que o
helenismo se anuncia como uma época nova na história da sociedade. É com Hesíodo que começa o domínio e
o governo do espírito, que põe o seu selo no mundo grego. É o “espírito” no sentido original, o autêntico
spiritus, o sopro dos deuses, que ele próprio descreve como verdadeira experiência religiosa e que por
inspiração pessoal recebe das musas, aos pés do Hélicon. São as próprias musas que explicam a sua força
inspiradora, quando Hesíodo as invoca, na qualidade de poeta: Na verdade sabemos dizer mentiras que
parecem verdades, mas também sabemos, se o quisermos, revelar a verdade17'. Assim se exprime no prefacio
da Teogonia. No proêmio dos Erga, Hesíodo também tem a intenção de revelar a verdade a seu irmão18. Esta
consciência de ensinar a verdade é novidade em relação a Homero, e a ousadia de Hesíodo em usar a forma da
primeira pessoa deve ligar-se a ela de algum modo. É característica pessoal do poeta-profeta grego querer guiar
o Homem transviado para o caminho correto, por meio do conhecimento mais profundo das conexões do
mundo e da vida.

16
NT do A: Anectoda Bekkeri, 733, 13.
17
NT do A: Teog., 27.
18
NT do A: Erga, 10.
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