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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS

JOÃO PAULO MORENO DIAS

ANTÔNIO CONSELHEIRO NÃO MORREU; FICÇÃO


HISTÓRICA E PÓS-MODERNIDADE EM A CASCA DA
SERPENTE, DE JOSÉ J. VEIGA
RIO DE JANEIRO
2009
ANTÔNIO CONSELHEIRO NÃO MORREU; FICÇÃO
HISTÓRICA E PÓS-MODERNIDADE EM A CASCA DA
SERPENTE, DE JOSÉ J. VEIGA

João Paulo Moreno Dias

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para a obtenção do Título
de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).

Orientador: Prof. Dr. Alcmeno Bastos

-2-
Rio de Janeiro
Agosto de 2009

ANTÔNIO CONSELHEIRO NÃO MORREU; FICÇÃO HISTÓRICA E PÓS-


MODERNIDADE EM A CASCA DA SERPENTE, DE JOSÉ J. VEIGA

João Paulo Moreno Dias

Orientador: Prof. Dr. Alcmeno Bastos

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras


Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).

Examinada por:

_______________________________
Presidente, Prof. Dr. Alcmeno Bastos

_______________________________
Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto

_______________________________
Prof. Dr. José Luís Jobim

_______________________________
Prof. Dr. Adauri da Silva Bastos (suplente)

_______________________________
Prof. Dr. Francisco Venceslau dos Santos (suplente)

Rio de Janeiro

-3-
Agosto de 2009

A literatura não é outra coisa além de um sonho dirigido.

-4-
Jorge Luis Borges

AGRADECIMENTOS

• A Deus, por me permitir estar onde estou.

• À minha família: minha mãe, meu pai e meu irmão, por terem me dado apoio
nos momentos mais tempestuosos.

• À minha querida Giselle, por toda a paciência e entendimento.

• A todos meus caros amigos, pelo suporte em diferentes instantes.

• Ao meu orientador, Alcmeno Bastos, por toda a luz e saber que me fizeram ter
uma nova percepção.

• Aos professores e mestres Rosa Gens e Dau Bastos, pela paciência e


ensinamentos.

• Ao amigo João Ricardo Melo Figueiredo, por toda a ajuda para que eu pudesse
trilhar este caminho.

MUITO OBRIGADO.

-5-
DIAS, João Paulo Moreno. Antônio Conselheiro não morreu; ficção histórica e pós-
modernidade em A casca da serpente, de José J. Veiga. Rio de Janeiro, UFRJ,
Faculdade de Letras, 2009. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).

RESUMO

Esta dissertação analisa o romance A casca da serpente (1989), de José J. Veiga, sob

dois aspectos distintos: como ficção histórica e como ficção do pós-modernismo. Para

tanto são tratadas questões pertinentes à composição da narrativa e à utilização da

matéria de extração histórica, bem como processos discursivos típicos do pós-

modernismo, vistos como ponto de apoio para a re-análise e reconstrução da figura de

Antônio Conselheiro, no plano histórico e no plano ficcional. O estudo mostra como o

autor utiliza essas duas bases como apoio para a representação do Conselheiro

transformado e renovado.

Palavras-chave: José J. Veiga; romance brasileiro; ficção histórica; pós-modernismo

-6-
DIAS, João Paulo Moreno. Antônio Conselheiro não morreu; ficção histórica e pós-
modernidade em A casca da serpente, de José J. Veiga. Rio de Janeiro, UFRJ,
Faculdade de Letras, 2009. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).

ABSTRACT

This dissertation analyses the novel A casca da serpente (1989), by José J. Veiga, under

two different aspects: as historical fiction and as post-modernism fiction. Such matters

are related to the composition and to the use of official History by literature, as well as

typical post-modernism discursive processes, seen as a basis to reanalysis and

reconstruction of Antônio Conselheiro, on the historical and the fictional plans. This

study shows how the author uses those two basic tools as a starting point to present a

transformed and renewed Canudos leader.

Keywords: José J. Veiga; Brazilian novel; historical fiction; post-modernism.

-7-
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO

A década de 1980 foi palco de uma grande transformação na sociedade brasileira

tendo o fim da ditadura militar como principal ator dentro desse contexto agora

considerado histórico. Em meio a essas modificações sociais e políticas, estavam

artistas, políticos e, o mais importante para esta análise, escritores brasileiros que

conviveram durante anos com o regime de exceção instalado no país. Até certo ponto,

seria normal que houvesse contaminação de todos aqueles que passavam por aquele

momento de perda de liberdade. E, de certa maneira, ficava latente a influência que

algumas obras poderiam sofrer sob o pesado véu de um golpe militar, como afirma

Alcmeno Bastos:

“No caso da literatura brasileira contemporânea, [...] aquela produzida


nos anos 70/80, é fora de dúvida que uma de suas linhas de forças é
precisamente o aproveitamento da matéria de extração histórica,
tomado o golpe de 64 e seus desdobramentos como elemento nuclear,
[...]” (BASTOS, 2000, ps. 12-13);

Com o provável fim do regime que se apresentava no horizonte, as expectativas mais

brandas e positivas começavam a florescer, arejando os diferentes meios culturais

nacionais. Dentro dessa conjuntura, também os autores, novamente, sentiam-se

atingidos, positivamente, por essa modificação que se oferecia naquele momento

histórico para a democracia brasileira. Mesmo não sendo afetados pelo fator externo,

-8-
alguns autores se viram em meio a uma transformação pela qual era impossível passar

impune, como acontece com o próprio José J. Veiga..

Com a abertura política, houve, também, uma nova visualização de diversos

escritores do momento em que viviam a recém reinstalada democracia, como a

desistência de alguns projetos literários que buscavam protesto contra o regime

ditatorial e, até, uma descrição do novo meio social que começava a vigorar no país,

sempre seguidos pela esperança de renovação nacional e política.

E é dentro desse ambiente renovado, com novos ares e perspectivas de mudanças

democráticas, que José J. Veiga se encontra. A base ficcional escolhida pelo próprio

autor, às vésperas do golpe militar, foi a construção de mundos paralelos e fechados em

si mesmos que mostrassem tanto a violência contra os cidadãos quanto a busca pelo

poder que afeta toda a comunidade1. Como bem descreve Bastos, o mundo veigueano

apresenta o insólito no qual irrompe “um poder novo, impessoal, [...] mas sempre

autoritário, que não recua no emprego das várias formas de violência física e/ou

psicológica para fazer valer suas prerrogativas, [...]” (BASTOS, 2000, p. 109). Sempre

cercados por esses temas, os textos de Veiga representam e apontam para a violência

como forma de tomada de poder, alienando, às vezes, os habitantes de uma comunidade.

Partindo dessa perspectiva, os romances e contos de Veiga sempre apresentam

um tom sombrio e de asfixia da liberdade, tomando ou não, como se verá nos próximos

capítulos, a sociedade brasileira para debater, analisar e mostrar a influência da busca,

por vezes violenta, pelo poder em um determinado espaço ou da irrupção dele em um

meio tradicionalmente calmo e pacato.

Com o possível advento da democracia no Brasil e, conseqüentemente, a

abertura política, Veiga presencia a nova construção da sociedade brasileira, tomando


1
Reconhecida por críticos e por ele mesmo, como se verá no capítulo a seguir.

-9-
como ponto básico o novo regime político. E se sua ficção era influenciada pelo que

estava ao seu redor, era claro que um novo olhar seria necessário no momento de

transição político-histórica pelo qual o país passava, como se pode perceber pela

afirmação de Bastos ao falar da transformação na obra de Veiga:

“[...] a ficção de José J. Veiga tem experimentado novas fórmulas nos


últimos anos. Pode-se dizer que suas preocupações basilares com as
relações de poder [...] não desapareceram, mas exigem uma reflexão
mais demorada, [...]” (BASTOS, 2000, p. 130)

Inserido nessa revolução popular pela liberdade, o escritor, também tocado pelo

que acontece ao seu redor, publica, em 1989, A casca da serpente, romance que será o

corpus desta análise e que representa, como será mais bem descrito nos próximos

capítulos, a quebra do plano e do seguimento do autor em relação ao seu projeto

ficcional e literário, ao se utilizar de um fato historicamente noticiado e narrado que é a

Guerra de Canudos e a morte de Antônio Conselheiro, seu líder, para, dali, tecer sua teia

narrativa e lançar um novo olhar sobre tanto os acontecimentos no interior da Bahia,

quanto sobre Antônio Conselheiro.

A fim de se obter uma análise coerente e profunda do romance que será

estudado, fazem-se necessários alguns passos e etapas formais que serão, de maneira

coesa, descritos a seguir para que haja total esclarecimento das fases que virão.

No capítulo 2, será organizada uma apresentação que primará pela construção de

uma visão abrangente da obra de Veiga até a publicação de A casca da serpente para

que ocorra, significativamente, uma mostra e exposição das idéias e intenções do autor

ao construir suas ficções, observando também como tais textos contribuíram para a

criação de seu estilo e de um conjunto literário que apresentam características

semelhantes entre si. Tendo A casca da serpente como principal eixo, também se fará

uma breve explanação sobre os romances publicados após esse ponto de análise para

- 10 -
verificar e, caso possível, corroborar a mudança no objetivo literário organizado e

construído por Veiga.

Outro tema que é crucial para o estudo é o ponto crítico acerca do romance

histórico, tema que será abordado no capítulo 3: por se tratar de um texto que apresenta,

de maneira veemente, um evento da história do Brasil, deve-se observar se o romance

pode ser chamado de histórico, dentro de uma nomenclatura padrão adotada para

classificação dos diversos tipos de romances. Para responder a esse questionamento se

recorrerá, primeiramente, à base teórica que aborda desde o início do romance até sua

classificação mais detalhada: e assim se tentará, de maneira sucinta, explanar o

surgimento do romance e sua conseqüente popularização; além disso, algumas

particularidades básicas do romance em geral serão traçadas para melhor

reconhecimento de como o gênero se formou e se apresenta atualmente.

Após tal análise, é fundamental buscar um texto crítico que aponte para

características reconhecíveis em romances históricos para que assim se possam

confrontar as idéias críticas com o texto de Veiga e, caso seja possível, confirmar o

pressuposto apresentado nesta introdução de que A casca da serpente é um romance

histórico, sendo viável e coerente tratar e chamar a obra de histórica, sempre

corroborado pela base teórica que foi construída ao longo do capítulo 3.

No capítulo 4, também se buscará uma análise sobre a inovação: ao quebrar o

esquema ficcional dentro do qual vinha construindo sua obra, Veiga também inovou ao

buscar um ponto histórico, trazê-lo novamente à tona e questioná-lo, lançando, como

será mostrado, nova luz sobre fatos que suscitavam diversas opiniões, algumas até

contraditórias, mas que serão observadas aqui. Para que tal mudança de rumo na sua

ficção fique clara, serão mostradas diversas análises e opiniões acerca do evento

- 11 -
histórico usado por Veiga para que se observe o tom usado por historiadores,

confirmando o discurso tido como oficial até chegar ao que levou o nome de

revisionista, pois busca revisar os acontecimentos históricos sob outra perspectiva que

não o simples relato dos vencedores. Todos esses estudos serão somados à observação

que buscará estudar a influência do pós-modernismo dentro da narrativa. Haverá duas

vertentes de análise que buscarão confirmar tal possibilidade aqui apresentada; uma

delas focará no estudo da teia narrativa construída pelo autor, revelando as ferramentas

narrativas por ele usadas, as concessões e as escolhas para fomentar o aspecto renovado

e pós-moderno.

Como Veiga toma Conselheiro como personagem ficcional para A casca da

serpente, também se fará um breve estudo do aproveitamento do líder canudense na

literatura brasileira, saindo da parte histórica para a ficção, transformando um vulto

histórico em um personagem relevante, ficcionalmente, para algumas obras na literatura

nacional.

Além disso, também irá se estudar a atuação do narrador no âmbito narrativo e

se tentará observar como ele contribui, significativamente ou não, para a edificação de

um romance com peculiaridades que quebram os moldes da ficção contemporânea ao

autor e avançam sobre novas visões e estrutura narrativa.

Por fim, concluindo o capítulo 4, será buscada a confirmação da presença da

opinião do autor durante a construção narrativa, sendo fundamental a observação da

atuação do narrador simultaneamente. Dentro do âmbito da ficção histórica, a opinião

contaminada do autor é uma questão que pode determinar não apenas sua opção política

e histórica, mas também como a ficção pode apresentar graus dessa contaminação,

transferindo-a para o leitor e deixando clara a posição do autor em relação a

- 12 -
determinados acontecimentos. Para que tal opção fique clara, algumas opiniões serão

apresentadas, especialmente as que descrevem o momento histórico escolhido pelo

autor para corroborar sua escolha por uma visão diferente do que sempre se buscou na

historiografia oficial. Portanto, pretende-se, fundamentalmente, observar e registrar a

provável influência que Veiga transferiu para essa obra ao escrevê-la, confirmando ou

não esse intuito do autor ao escrever o romance aqui estudado.

Partindo desta apresentação, espera-se, portanto, fazer uma observação

abrangente da obra de Veiga para que se possa, de maneira integral, estudar e analisar a

obra em questão, confirmando ou descartando as hipóteses guiadoras desta apreciação

apresentadas, de maneira resumida, neste capítulo introdutório.

- 13 -
2. DAS SOMBRAS À LUZ: UM BREVE OLHAR SOBRE A OBRA DE JOSÉ J.
VEIGA

Ao longo dos últimos anos, a obra ficcional de José J. Veiga vem sendo

analisada através de uma perspectiva que apresenta, simultaneamente, análises que

buscam encontrar uma nomenclatura correta e que, ao mesmo tempo, tentam enquadrar

o autor por diferentes vertentes, entre as quais se podem destacar duas. Uma delas é a

visão que vem do chamado realismo fantástico, defendendo que Veiga aborda a

realidade rompendo com o real. A esse respeito, é importante salientar a afirmação de

Antonio Candido sobre a questão do modismo do realismo fantástico latino-americano,

pois o crítico faz certa justiça ao tom inovador de Veiga: “os seus adeptos [do realismo

fantástico] são legião, mas bem antes de a moda se instalar José J. Veiga tinha

publicado Os cavalinhos de Platiplanto (1959) – contos marcados por uma espécie de

tranqüilidade catastrófica.” (CANDIDO, 1987, p. 211). Também Alfredo Bosi comenta

que Veiga “encrava situações de estranheza em contexto familiar, [...]” e assim “o

fantástico irrompe como intruso do ritmo cotidiano.” (BOSI, 1975, p. 14). Tal inovação

de Veiga também se apresentará, como se verá no capítulo 4, n’A Casca da Serpente,

porém de forma diferente.

E uma outra análise que observa a narrativa histórica, que é proporcionada por

alguns autores, como Alcmeno Bastos em A História foi assim: o romance político

brasileiro nos anos 70/80, ao apontar a tomada de Veiga de um evento histórico como

base para A casca da serpente. Essas interpretações estão intrinsecamente ligadas ao

- 14 -
fato de Veiga ter seus textos vistos como uma representação do momento histórico pelo

qual o Brasil passava no momento da publicação2. Dentre essas duas possibilidades, a

análise que se seguirá mais adiante da obra escolhida abordará uma relação entre ficção

e história, já que o objeto de estudo está centrado num evento histórico nacional.

Partindo dessa perspectiva, pode-se afirmar, de certa forma, que existe a

contaminação da análise feita por alguns estudiosos e críticos do ficcional,

especialmente pela visão da realidade marcada fortemente pela violência militarista da

época em questão, e, assim, ter-se uma visão não muito ampla acerca da obra do autor

até o final da década de 90. Com essa mesma opinião é possível destacar a posição de

Gregório Dantas:

“O estigma de ‘romance-denúncia’, conferido a muitos dos romances


pós-64, embora seja em muitos casos bastante pertinente, em
determinados autores tornou-se uma injustiça por reduzir uma obra de
ficção de qualidade em mero panfleto ideológico. No caso de José J.
Veiga, o rótulo tomou força devido principalmente à ausência de
estudos de fôlego que relativizassem estes conceitos, comuns nas
análises breves de grandes críticos” (DANTAS, 2004, p. 124).

Também Luís André Nepomuceno, em artigo publicado na revista Trama, apresenta

quase que semelhante apreciação sobre a obra veigueana:

“A obra de José J. Veiga tem sido associada, pela posição


histórica de seus primeiros romances, a uma espécie de resistência
contra as políticas ditatoriais advindas do golpe de 64, no Brasil. A
ligação é inevitável, porque suas narrativas insólitas, em que o poder
e a violência parecem exercício por vezes gratuito de tiranias
políticas, utilizam-se da alegoria inusitada para uma
representação absurda da realidade.” (NEPOMUCENO,
2007, p. 99)

A partir da década de 90, com novos estudos e olhares sobre a obra de Veiga, houve

outra abordagem que parte de uma posição diferenciada, pois trata dos romances de uma

2
Do início da publicação de suas obras até o momento da publicação do texto aqui analisado passam-se
quase trinta anos. Todos eles dentro do período da ditadura militar brasileira.

- 15 -
maneira mais aprofundada, observando os mecanismos narrativos e ficcionais

empregados por ele e se descolando da simples análise que confrontava a obra com o

momento histórico quando havia sido composta. Agostinho Potenciano de Souza

enxerga um novo modelo na obra de José J. Veiga, já que parte para uma observação

mais abrangente do que simplesmente romances influenciados pelo momento:

“Ler J. Veiga como uma reflexão do Brasil dos últimos anos não
descarta uma outra reflexão: a situação universal da condição
humana sob regimes de opressão. Situação que não é exclusiva dos
brasileiros, mas diz respeito à liberdade e à existência de todos
enquanto humanidade. (SOUZA A., 1990, p. 61, grifos nossos)

Portanto, é imperativo que se dissocie a obra veigueana de uma visão simplista de uma

obra que apenas espelha a passagem temporal de uma época histórica do Brasil. Assim,

uma análise poderá ser feita e que tomará por base não apenas um momento histórico

como pretexto, mas uma construção narrativa (e até literária) que transcende a simples

utilização de momentos históricos contemporâneos ao autor ou uma passagem da

história brasileira: a ficção veigueana está construída muito mais profundamente.

Dessa maneira, neste primeiro capítulo se tentará construir uma visão

amplificada sobre a obra de José J. Veiga até a publicação de A casca da serpente,

evitando, portanto, uma possível simplificação dos temas abordados pelo autor e

estudando, especificamente, o que se convencionou chamar de Ciclo Sombrio: tal

caracterização é usada por Agostinho Potenciano de Souza em sua análise da obra de

Veiga e, por ser pertinente ao período aqui estudado e ter aparente correção, foi adotada

neste estudo. Também se fará uma breve apresentação dos romances e contos3 que

edificaram a carreira do escritor.

3
Foram deixadas de fora do corpus deste trabalho as narrativas infanto-juvenil Prof. Burrim e as quatro
calamidades e Tajá e sua gente, o livro de humor Almanaque de Piumhy, além de contos publicados em
periódicos ou em antologias.

- 16 -
2.1 O CAMINHO PELO CICLO SOMBRIO

Ao se avaliar a obra de Veiga até a publicação do romance aqui analisado é

possível dividi-la em duas partes distintas e que espelham os momentos nos quais foram

publicados os livros. A primeira parte é chamada de Ciclo Sombrio, enquanto a segunda

parte, já tendo tal período encerrado, tem como característica um tom de esperança

renovada. Convencionou-se chamar de Ciclo Sombrio o período durante o qual os

textos do autor carregam uma mensagem pesada e negativa, trazida pela narrativa

permeada de ausência da liberdade, invasão de elementos estranhos ao local comum.

Esse ciclo pode ser considerado encerrado justamente antes da obra que se pretende

analisar aqui, e, por isso, ser importante mostrar os motivos que levarão a tal quebra de

padrão.

O já apontado Ciclo Sombrio se inicia com a publicação de Os Cavalinhos de

Platiplanto, em 1959. Essa primeira publicação é importante, já que mostra que, embora

haja ligação entre a narrativa veigueana e o momento histórico no qual o autor viveu, o

fato de a edição acontecer antes do golpe militar de 1964 revela que Veiga criara um

texto longe da influência histórica momentânea, como ele mesmo afirma a Prado: em

entrevista publicada no livro Atrás do Mágico Relance, quando perguntado se sua

intenção era alegorizar o golpe de 1964, Veiga respondeu:

“Não. Claro que a idéia que eu faço em torno disso é, digamos,


condicionada pelo que estava acontecendo em volta. Agora, eu estou
querendo fazer muito mais que uma simples denúncia de
arbitrariedade. [...] Porque o que faço é ficção, é literatura, é arte.”
(PRADO, 1989, p. 46)

- 17 -
A negativa de Veiga apenas vem corroborar a afirmativa de Agostinho Potenciano de

Souza sobre a questão do simplismo em relação à leitura das obras de Veiga. Também

Bastos, ao analisar a obra de Veiga em A História foi assim: o Romance histórico

Político Brasileiro nos anos 70/80, discorre sobre o perigo simplista de ler Veiga como

uma alegoria do momento histórico brasileiro:

“Considerando a data de publicação de A Hora dos Ruminantes, 1966,


e muito embora já tenhamos observado que a situação narrada não
difere muito daquela trabalhada no conto ‘A Usina atrás do Morro’, de
Os Cavalinhos de Platiplanto (1959), é grande a tentação de ler no
romance uma representação alegórica do Brasil pós-1964. [...] A
solução, porém, é demasiado simplista [...]” (BASTOS, 2000, p. 113).

Quatro anos depois, Dantas também chamaria a atenção para o mesmo aspecto:

“Há que se considerar também uma óbvia questão cronológica antes


de rotular toda a obra de Veiga como uma alegoria ou parábola
política pós-64. ‘A usina atrás do morro’, conto de Cavalinhos de
Platiplanto, livro de estréia de Veiga – e que foi, portanto, escrito ao
menos cinco anos antes do golpe de 1964 – já contém o enredo das
novelas A hora dos ruminantes e Sombras de reis barbudos; ou seja,
trata-se do mesmo argumento, desenvolvido com diferentes variações
[...]” (DANTAS, 2004, p. 126)

Os contos escritos por Veiga e publicados nesse livro carregam algumas

características que trazem à tona a questão dual previamente citada neste trabalho:

podem ser chamados de realistas fantásticos e também apresentam peculiaridades que

vão ao encontro do cenário histórico que se formaria pouco depois da publicação.

Também é importante salientar que um dos contos publicados nesse livro, “A

Usina atrás do Morro”, irá, de certa maneira, permear todo o Ciclo Sombrio de Veiga,

deixando clara sua intenção em construir uma obra que tem como mote desassossegar o

leitor que busca outra visão para a perda total da liberdade. Nepomuceno corrobora tal

afirmativa ao dizer

- 18 -
“Pelo menos nos primeiros romances, A hora dos ruminantes (1966),
Sombras de reis barbudos (1972), Os pecados da tribo (1976) e
Aquele mundo de Vasabarros (1982), em especial nos dois primeiros,
José J. Veiga faz variações em torno de um tema já proposto no conto
“A usina atrás do morro” (conforme já se disse), variações que ainda
têm ecos em contos de outros Livros [...]” (NEPOMUCENO, 2007, p.
101.)

Assim, seguindo esse tema, Veiga irá levar o leitor a ser cúmplice de seus personagens,

sempre trabalhando na dualidade, como afirma Dantas: “porque ao leitor não é dado o

privilégio de percebê-la [a realidade] em relação aos personagens, o que o torna

cúmplice deles.” (DANTAS, 2004, p. 128)

Sete anos depois, veio à luz o livro A Hora dos Ruminantes e, embora tenha sido

publicado em 1966, tal texto remonta a 1961. De acordo com a biografia de Veiga

escrita por Agostinho Potenciano de Souza, A Hora dos Ruminantes começou a ser

escrita antes do golpe militar de 1964 e só foi lançado em 1966, ou seja, dois anos após

o golpe militar, o que aponta claramente para o não-uso do momento político como

mote para seu romance. Ainda segundo Potenciano de Souza, é essa a obra que coloca

de vez o autor entre os escritores significativos na literatura brasileira, pois além de

Veiga criar um paralelo em relação à sociedade daquele momento, o escrito reverbera a

situação política alegoricamente, criando uma nova análise dentro de um universo

passível de existência.

Nesse romance, Veiga continua a construir uma visão de mundo que é carregada

de privação da liberdade e que vai ao extremo em não permitir mais que seus cidadãos

não se movimentem livremente pela cidade, já que estão impossibilitados por invasões

de bois e cães. É percebível que Veiga retoma a mesma temática do conto publicado em

seu primeiro livro e que vai permear sua obra ao longo do Ciclo Sombrio.

- 19 -
Diferentemente dos livros seguintes, esse livro aponta para uma saída positiva para o

excesso de poder. O próprio autor comenta o que o fez dar aquele final que seria, mais

tarde, destoante dos outros textos e criticado por vários leitores, por se mostrar otimista:

“Eu não acreditava que aquela ditadura tivesse condições de durar


muito. Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu
esperava. Em A Hora dos Ruminantes, eu pensava que ela ia ser
curta. Por isso aquele final otimista. Os ruminantes foram embora,
deixaram a sujeira aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que
estava parado há muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu
horas, todo mundo se animou.” (WEINTRAUB, F., COHN, S. &
PROENÇA, R., 1999.)

Após esse romance, Veiga lança um livro de contos cujo título é A Máquina

Extraviada, em 1967 e, mais tarde, a partir da quarta edição, republicado com o nome

de A Estranha Máquina Extraviada. O conteúdo dos contos vem retomar o mesmo mote

seguido na primeira obra: pequenas cidades do interior perturbadas por algo. Maria

Zaria Turchi levanta as semelhanças entre os dois primeiros livros de contos de Veiga:

“Como num caleidoscópio, dependendo do ângulo de visão e do movimento que se faça

novas imagens se formam, agrupando ou separando os contos das duas obras.”

(TURCHI, 2003, p. 94).

Embora as obras tenham temas que se entrelaçam (TURCHI, 2003), existe uma

diferença básica que o próprio autor relata em uma de suas entrevistas: o livro Os

Cavalinhos de Platiplanto tem um viés mais pessoal e lírico, ao passo que seu segundo

livro de contos já traz uma visão contaminada pelo pessimismo, como o próprio Veiga

afirma: “Embora eu não estivesse fazendo autobiografia quando escreva Os Cavalinhos

– não faço nunca, pelo menos meu vigio para não fazer – muito de minha experiência de

infância entrou naqueles contos.” (SOUZA, 1990, p. 152). Assim, em A Máquina

- 20 -
Extraviada, tem-se um maior uso do absurdo e do insólito por parte do autor, seguindo

dentro do Ciclo Sombrio por uso de uma visão incomum.

O segundo romance lançado por Veiga é Sombras de Reis Barbudos, em 1972.

O tema da opressão é novamente apresentado no texto e o conteúdo alegórico é

fortemente construído ao longo da obra. Como a época em que é publicado apresenta

um alto teor repressivo por parte do governo, logo os textos de Veiga adquirem uma

visão ligada à política. Tal visão, reducionista e encurtada, é combatida em alguns

estudos por não privilegiar a totalidade da obra veigueana: Tanto Bastos (2000), como

já citado, quanto Dantas têm a mesma percepção ao afirmar que “Limitar a obra de

Veiga ao contexto político pós-64 é, portanto, claramente uma redução interpretativa.”

(DANTAS, 2004, p. 126).

Ao comentar seu projeto, Veiga defende-se de tal minimalismo ao dizer

“É claro que Sombras, Os pecados, Vasabarros foram contaminados


pelo clima político contemporâneo deles, e a coincidência entre o
clima interno destes livros e o clima externo, facilitou a leitura
política. Mas meu projeto de escrevê-los não era ficar na mera
denúncia de um regime de opressão: se fosse, os livros ficariam
datados quando o regime se exaurisse, como se exauriu (aliás, durou
mais do que eu calculava). O meu projeto era mostrar situações mais
profundas do que aquelas impostas por um governinho de uns
generaizinhos cujos nomes a nação depressa esquecerá.” (SOUZA
A., 1990, p. 154)

Assim, é importante que não se deixe enganar pelo fato de Veiga recorrer a motes

semelhantes ao longo de sua obra, pois se trata de um projeto definido pelo autor que

esperava, a longo prazo, uma mudança política no país. Tal mudança não aconteceu e,

com isso, seus textos foram sendo associados com o momento pelo qual a nação

passava, mesmo Veiga tendo dito que não retratava apenas isso.

- 21 -
Cabe salientar, também, que Sombras dos Reis Barbudos é tido por José J. Veiga

como uma resposta às críticas que surgiram após a publicação de A Hora dos

Ruminantes. Essas críticas aconteceram pelo fato de o fim do livro trazer um certo ar de

possibilidade de melhora. Sobre isso, o autor afirma: “Fui muito criticado por alguns,

que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de

Reis Barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge.”

(WEINTRAUB, F., COHN, S. & PROENÇA, R., 1999). Tal afirmação por parte do

autor mostra que mesmo tendo um projeto literário definido, ele estava pronto a se

deixar influenciar por algumas questões que achava relevantes durante a composição de

suas obras. Mesmo negando que fazia uma ficção baseada nos acontecimentos

contemporâneos à sua escrita, a influência acaba por aparecer, fazendo com que o autor

refletisse sobre a relação entre o Homem e o Poder.

Aprofundando-se mais no Ciclo Sombrio, Veiga publica Os Pecados da Tribo,

livro que subverte ainda mais a relação entre o Homem e a Liberdade, entre o Homem e

o Poder ao apresentar a subida ao poder de um bicho, chamado pelo narrador de Uiua.

Segundo Agostinho Potenciano de Souza (1990, p. 126) talvez esse seja o livro “mais

carnavalizado” dentro do Ciclo Sombrio proposto e, assim, permite ao autor criar

situações que beiram o absurdo e demonstram o uso do poder ao extremo. Dantas

comenta esse tipo de construção ao dizer que

“deste modo, sem acesso a uma possível causalidade regente do


comportamento de toda a cidade, somos postos diante de ações sem
nenhum sentido, como no capítulo ‘Fazemos o que nos mandam’,
quando o narrador e um grupo de pessoas cavam, sob pressão, e sem
nenhuma finalidade, um imenso buraco no chão. É o exercício do
poder pelo poder.” (DANTAS, 2004, p. 134)

- 22 -
Dessa maneira carnavalizada, o autor traz à tona questões existenciais do homem e de

convivências sociais entre os homens em relação ao poder, como Souza corrobora:

“Essa [a obra aqui citada] é uma forma de apresentar questões filosóficas fundamentais

para o homem, quanto ao exercício do poder.” (SOUZA A., 1990, p. 128) E mesmo que

haja interpretações que afirmam que Veiga retrata a situação política do Brasil, há uma

possibilidade de também se afirmar que o autor seguiu seu projeto de apontar como as

formas do poder influenciam o homem diretamente.

A publicação seguinte, em 1980, foi a de um livro de duas novelas e de um

conto intitulado De jogos e festas, ganhador do Prêmio Jabuti de 1981, no qual Veiga

tenta sair do Ciclo Sombrio, como apontam alguns autores, como Amâncio &

Campedelli: “[...] se numa interpretação mais ampla a visão do escritor permanece a

mesma, já que a realidade que o cerca continua a alimentá-la, as histórias de De jogos e

festas (duas novelas e um conto) apresentam, no mínimo, um enfoque diferente.”

(AMÂNCIO & CAMPEDELLI, 1982, p. 87). Porém, segundo Antônio Arnoni Prado,

Veiga não obtém êxito, como bem observa em sua análise: “Numa tentativa de sair do

Ciclo Sombrio, Veiga lança De jogos e festas, duas novelas e um conto, em 1980. Mas

logo reconhece que não chega a ser um livro muito diferente dos anteriores.” (PRADO,

1989, p. 17). A confirmação final se dá na fala do próprio autor, que admite não

conseguiu uma mudança e apresenta tal informação de forma clara, ao reconhecê-la em

uma entrevista:

“Enquanto escrevia De jogos e festas, pensava estar fazendo uma


espécie de pausa em relação à linha que vinha seguindo em meus
livros anteriores. Mas agora, depois de pronto, e de ter conversado
com algumas pessoas, vejo que ele não é muito diferente de minha
obra passada, pois não há como fugir a essa realidade: toda obra
literária é a interpretação do artista da alma humana e do mundo e,
portanto, ela está sempre impregnada da maneira de o escritor encarar

- 23 -
a vida. Mesmo quando ele pensa que está fugindo a isso, como
ocorreu comigo.” (AMÂNCIO & CAMPEDELLI, 1982, p. 87)

Veiga volta ao romance ao publicar Aquele Mundo de Vasabarros, em 1982 e,

aparentemente, Veiga segue o mesmo padrão de construção ficcional dos seus primeiros

romances ao construir toda a história ridicularizando o poder. Essa obra apresenta a

maior carga sobre a ridicularização do domínio entre as analisadas até o momento, com

a alta utilização da sátira e, por fim, o retorno à tragédia que acompanha os textos do

chamado Ciclo Sombrio.

Fechando o Ciclo, vem a publicação de Torvelinho Dia e Noite, em 1985. A

principal hipótese que diz respeito ao fim do Ciclo é bem retomada por Dantas em seu

artigo:

“De fato, coincidente com o processo de redemocratização na política


brasileira, a partir deste romance os enredos de Veiga tornam-se mais
leves, menos fatalistas, colocando em segundo plano a temática da
opressão e o autoritarismo que caracterizaram a maior parte das
narrativas do ‘ciclo sombrio’.” (DANTAS, 2004, p. 130)

E é a partir dessa obra que Veiga começa a demonstrar um grau de esperança que

contaminará seus próximos textos, até A casca da serpente. Tal fato será melhor

abordado nos capítulos que se seguirão.

Fez-se, até aqui, uma breve explanação das obras de Veiga considerando tanto

suas estruturas narrativas, quanto as observações do autor sobre seus livros. Mostrou-se,

também, como José J. Veiga construiu um projeto literário de vanguarda que, ao longo

dos anos, foi se adaptando a tudo que estava à volta do autor, desde a realidade política

até críticas a seus textos. Dessa forma, com a crescente esperança que foi tomando o

- 24 -
escritor, foi possível perceber que suas obras foram apontando um rumo que se fez

aceitável historicamente com as mudanças políticas acontecidas no país.

A saída do Ciclo Sombrio, que se deu antes da publicação da obra A casca da

serpente, inicia uma ficção mais oxigenada com perspectivas diferentes. No capítulo

que se seguirá, tal ressonante mudança no projeto ficcional de parte da obra veigueana

será ilustrada, especialmente após a quebra do plano estabelecido por Veiga para sua

carreira literária, para que a análise das composições do escritor tenha um cunho

fechado e completo, levando o olhar a todos os livros por ele publicados, baseando-se

em estudos, artigos e análises das obras escritas posteriormente ao texto aqui estudado.

Dessa forma, essa apresentação se fará de forma a entender como as ficções publicadas

após o livro aqui estudado também mantêm uma atmosfera mais leve e aberta.

2.2 E DEPOIS? QUANDO A LUZ INVADE A SOMBRA

Com o fim da ditadura e, conseqüentemente, do Ciclo Sombrio, terminado antes

da publicação do livro A casca da serpente, a ficção veigueana se remete a uma escolha

distinta de todo o projeto que foi construído até ali pelo autor. Com a publicação das

obras O risonho cavalo do príncipe (1992), O relógio Belisário (1995) e Objetos

turbulentos, em 1997, dois anos antes de sua morte, Veiga toma um rumo diferenciado

ao qual sua composição esteve baseada. Fundamentando-se Agostinho Potenciano de

Souza, Dantas também observa a mudança de tom e de rumo do autor:

“O clima de pesadelo e a responsabilidade opressora perdem


lugar na obra de Veiga a partir da segunda metade de sua obra.
Agostinho Potenciano de Souza classifica os livros anteriores a
Torvelinho dia e noite (1985) como constituintes do ‘ciclo sombrio’
do conjunto da obra de José J. Veiga. De fato, a pertinência deste
rótulo é facilmente constatável. [...] Veiga adotou um tom mais leve,

- 25 -
criando narrativas mais despretensiosas, sem conflitos graves
como os anteriores.” (DANTAS, 2004, p. 93, grifos nossos)

Em O risonho cavalo do príncipe, o escritor retoma, de maneira intensa, a ficção

de cunho insólito que povoou sua obra, porém de maneira mais amena e em tom

infantil: a narrativa aborda um casal de irmãos que cria uma narrativa a partir de um

objeto, um livro, incentivado pelos pais e pela tia. Tal narrativa extrapola o olhar

cotidiano sobre o objeto e alarga as fronteiras do real sobre uma coisa antes vista com

normalidade. Esse olhar sobre um objeto que perturba uma vida pacata e avança para o

imaginário será o tema também dos próximos dois romances do autor, mas de maneira

diferente: ao invés de se dar uma invasão violenta do espaço comum, o que se vê é uma

ficção sobre a realidade baseada num objeto específico. O tom mais ameno vem ao

encontro do que foi discutido até aqui: o relaxamento da visão de Veiga acerca de

determinados temas, especialmente baseado no novo entendimento do autor em relação

à realidade que o cercava. A esse respeito, o próprio autor, numa entrevista, observa sua

provável mudança:

“Os livros escritos depois de 1964 sofreram contaminação do clima


político da época. Já Torvelinho foi escrito numa época em que a
opressão visível não existia mais. [...] Eu estava precisando escrever
livros menos sombrios, e o tempo que fazia permitiu que entrasse sol
neles. É o que espero fazer daqui para diante, se puder.” (SOUZA A.,
1990, p. 128)

Dessa maneira, é plausível afirmar que embora a ficção de José J. Veiga ainda aborde o

estranhamento causado por algo externo, ela não está mais tão carregada de negativismo

como as anteriores e elencadas no Ciclo Sombrio, além de o invasor não estar mais em

busca do poder e oprimir os habitantes daquele lugar, como acontecia nas narrativas

anteriores a Torvelinho dia e noite.

- 26 -
Na obra publicada a seguir, Veiga segue com o caráter mais brando de suas

narrativas, além de ter um objeto, novamente, como parte da história. Em O relógio

Belisário, publicado em 1995, a trama se faz ao redor de um menino chamado Belisário

que, através de um relógio, consegue ver o tempo antigo, até seu dono anterior,

focalizando a visita de Sherlock Holmes ao Brasil com uma trama policial envolvendo o

escritor Lima Barreto.

Também é importante notar que, nos dois romances, Veiga escolhe para

personagens principais crianças, centrando nelas suas narrativas e, assim, demonstrando

sua busca pelo distanciamento de tons agressivos que podem ser notados em outras

obras, já que apresentavam comunidades oprimidas e as tinham como foco narrativo

principal.

O último livro escrito por Veiga recebeu o título de Objetos turbulentos e foi

publicado em 1997, dois anos antes da morte do escritor. No ano seguinte, em 1998, ele

recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto

de sua obra. Reelaborando um tema recorrente em sua obra, como o estranhamento ao

novo e ao progresso, o conjunto de contos difere de algumas outras características

presentes nos escritos do autor, entre as quais se destacam a seguir.

Através do título, Objetos turbulentos, Veiga já apresenta a indicação do tema

que norteará os textos encontrados naquela coletânea: objetos que influenciam,

diretamente, a vida dos personagens dentro das narrativas. Além disso, o subtítulo

escolhido pelo autor diz bem o teor que pretende apresentar e buscar: “contos para

serem lidos à luz do dia”, demonstrando que serão mais leves e mais claros, iluminados

até, em contraste com os romances e contos apresentados no Ciclo Sombrio. Tal idéia é

- 27 -
corroborada por Maria Zaira Turchi, em seu artigo As fronteiras do conto de José J.

Veiga:

“O livro [Objetos turbulentos] distingue-se dos primeiros desde o


subtítulo que já anuncia ‘contos para serem lidos à luz do dia’, clareza
bem diferente da dissimulação sugerida na epígrafe de Pablo Neruda –
‘Hablo de cosas que existen. Dios me libre/ de inventar cosas cuando
estoy cantando!’ – que abre o livro de estréia, já antecipando a opção
pelo jogo da natural convivência entre o conhecido e o desconhecido,
entre o real e o irreal.” (TURCHI, 2003, p. 94)

Os contos centrados em objetos do cotidiano trazem à tona um guinada radical em

relação aos meios nos quais José J. Veiga baseava suas narrativas: ao invés de narrativas

situadas em pequenas cidades ou ambientes rurais, os contos mostram histórias que são

baseadas nos ambientes de grandes centros, e, dessa vez, com nomes reconhecidos de

cidades brasileiras e estrangeiras. Essas duas peculiaridades apontam para a diferença

criativa que toma conta da última obra de Veiga.

Além disso, é importante relatar outra mudança nessa obra que trata da diferente

perspectiva de Veiga: enquanto nos livros anteriores era possível apontar a influência do

fantástico ou do maravilhoso, nos contos de sua última obra vê-se uma grande força na

questão real dos acontecimentos, parecendo, quase sempre, a discussão entre o

estranhamento causado pelos objetos e a lógica real das coisas.

Ainda cabe dizer que Veiga abandona, quase que totalmente, o tom interiorano

de suas narrativas com Objetos Turbulentos: a voz do interior de Goiás parece ter se

calado nos contos para dar vez a uma visão mais lógica e seca dos acontecimentos nas

cidades grandes. Turchi também apresenta a mesma perspectiva no fim de seu artigo ao

dizer “distante também ficou a região, talvez a goianidade de Veiga, bem marcada nos

- 28 -
livros anteriores, apareça aqui no gosto pela anedota, lembrança do narrador primitivo

de que fala Benjamin” (TURCHI, 2003, p. 103)

Através da sucinta apresentação dos três livros publicados após A casca da

serpente, é possível constatar que a ficção veigueana toma, realmente, um novo rumo

em direção a uma narrativa mais oxigenada e distinta do tom apresentado nos textos

escritos anteriormente e presentes no Ciclo Sombrio.

Foi possível perceber, então, que um novo caminho é escolhido por Veiga para

mudar seu plano literário e ficcional construído ao longo dos anos. Há várias

possibilidades que justificam essa guinada: desde a reabertura política no país com o

fim da ditadura que assolou o país durante a composição das obras do autor, ainda

naquele momento ainda inseridas no Ciclo Sombrio, até uma opção pessoal do autor em

re-observar sua estrutura de escrita para uma maior abertura para um novo ar dentro de

sua ficção.

Dessa forma, encerra-se a apresentação e a análise da obra do escritor José J.

Veiga e começa o estudo exclusivo do romance escolhido. No próximo capítulo, a

análise será iniciada para que se responda a uma pergunta que norteia a primeira parte

desta apreciação: o romance A casca da serpente é histórico? Para que se solucione esse

questionamento, serão elencados fatores que vão desde a origem do romance até os

preceitos básicos que o romance histórico apresenta; a seguir, será feita uma análise sob

a luz dessas características para que se responda à questão principal.

- 29 -
3. A CASCA DA SERPENTE, UM ROMANCE HISTÓRICO?

Neste capítulo, o que se buscará é mostrar as principais características do

romance e, após, destacar as peculiaridades que compõem o romance histórico,

nomenclatura que vem, obviamente, definir um tipo de romance em relação a outros

dentro de uma gama de nomes. E, finalmente, tais qualidades se confrontarão com A

casca da serpente para que seja respondida a pergunta que norteia esta parte do estudo e

que serve como título deste capítulo.

3.1 NO PRINCÍPIO, ERA O ROMANCE

Cabe, antes de tudo, observar, mesmo que brevemente, a gênese do romance

como gênero para, mais à frente, analisarem-se e se construírem as bases do romance

histórico como uma vertente romanesca. De tal maneira que, a seguir, uma rápida

exposição será feita acerca de como alguns autores entendem o início do romance. Após

essa sucinta exposição, também se tentará apurar como os gêneros do romance estão

interligados.

- 30 -
O romance, hoje um gênero amplamente utilizado pelos autores

contemporâneos, teve certa dificuldade no início de seu percurso, como bem observa

George Lucáks em sua obra A Teoria do Romance. Seguindo a idéia de Hegel, que

concebe o romance como a epopéia burguesa, Lukács registra a mesma visão,

destacando-se o fato de ser uma espécie de evolução da epopéia, como aponta no

fragmento:

“O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva


da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do
sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por
intenção a totalidade.” (LUKÁCS, 2007, p. 55)

Com o advento da sociedade burguesa que privilegiava o trabalho, um novo

gênero fazia-se necessário, um gênero que marcasse o novo espaço e caracterizasse a

nova forma de vida urbana que vinha crescendo. Sem deuses cristãos ou pagãos e com

um formato mais abrangente, o romance logrou o espaço antes dedicado à epopéia,

mesmo tendo enfrentado muitos desafios ao longo desse caminho. Novamente Lukács

aponta para essa transformação dos gêneros, seguindo a mudança que ocorria na

sociedade ao longo dos séculos. Assim, cabe dizer que

“é claro que os tempos modernos abalaram o alicerce do drama. Este


se tornou burguês, histórico e individualista, e o centro da
configuração dramática, a visão de mundo que era um dado para os
gregos, dissipou-se sob o efeito da força centrípeta da evolução
histórica.” (LUKÁCS, 2007, p. 207)

E é através dessa nova configuração dramática que o autor também registra a

mudança no modo narrativo, saindo da epopéia e chegando ao romance. Além de relatar

fatos, o romance é um gênero que possibilita ao autor aumentar sua observação sobre o

mundo a tal ponto que lhe é possível narrar uma história e, simultaneamente, dizer

- 31 -
como o faz. Tal nova configuração chama a atenção de Lukács a ponto de o autor dizer

que “a marcha e o procedimento do romance põem deliberadamente a descoberto a

própria dinâmica artística como o centro da narrativa.” (LUKÁCS, 2007, p. 222

grifo nosso)

A partir de então, várias configurações e classificações foram sendo adicionadas

ao romance como forma de possibilitar um dimensionamento mais adequado das obras.

Tais diferentes classificações acabam por contribuir para um crescimento do gênero

como um todo e, mesmo que distintos entre si, esses gêneros estão ligados, como afirma

Lukács: “Involuntariamente, os gêneros se completam em virtude da necessidade de as

formas cercarem o mundo por todos os lados.” (LUKÁCS, 2007, p. 198)

Desde o romance gótico, passando pelo romance de capa e espada, variam as

possíveis nomenclaturas do romance e suas aplicações para entenderem melhor o

mundo ao redor. Dentro da variada gama de nomes usados para especificar o gênero do

romance, o romance histórico é umas dessas classificações utilizadas e por ser a

principal classificação à qual este estudo está ligado, é necessário um olhar mais

aprofundado acerca das possíveis características dessa terminologia específica,

fundamentalmente pelo fato de alguns críticos considerarem A Casca da Serpente um

romance histórico e outros não.

Devido a essas diferenças e distintas opiniões sobre a obra de Veiga, o que se

pretende fazer no próximo capítulo é apresentar e analisar, profundamente, a

fundamentação teórica sobre como se vê e o que é o romance histórico, através de

características que possam auxiliar na leitura e estudo da obra.

3.2 O ROMANCE É HISTÓRIA: O ROMANCE HISTÓRICO

- 32 -
Como já mencionado anteriormente, há diferentes classificações que abrangem

as singularidades de cada olhar do escritor acerca do mundo em torno de si. Entre

tantas, a que se pretende observar mais profundamente é o chamado romance histórico.

Para tanto, ter-se-á por base estudos que busquem trazer à tona as possíveis

características que apontam para o que se convencionou chamar de romance histórico.

A discussão sobre o que é romance histórico vai desde sobre o que diz o

romance até o questionamento acerca dos personagens envolvidos na trama. De acordo

com Alcmeno Bastos em Introdução ao romance histórico, é imperativo que o romance

apresente algumas características básicas para que possa ser chamado histórico. Dessa

forma, tais peculiaridades do Romance classificado como histórico serão mostradas a

seguir para se tentar construir um arcabouço teórico significativo que valide a análise da

obra de Veiga como um exemplo de romance histórico.

A primeira característica que o romance precisa apresentar para que se possa

chamá-lo de histórico é a matéria: obrigatoriamente, a matéria narrada do romance

precisa ser de extração histórica, como aponta Bastos:

“Dizemos da matéria narrada que ela deve ser de extração histórica e


não simplesmente histórica, para, ao mesmo tempo, assinalar sua
procedência, seu lugar de origem – a história –, e realçar o fato de que
ela é submetida a um traslado semiótico que provoca alterações na sua
substância.” (BASTOS, 2007, p. 84)

Assim, é possível afirmar que dentro da estrutura narrativa, a matéria de extração

histórica é o diferencial, já que, provavelmente, ativará conhecimento prévio que o

leitor possa ter acerca daquela personagem, daquele acontecimento ou até da histórica

narrada. E tal conhecimento antecipado acerca da história funciona como a confirmação

do caráter histórico do ambiente narrativo. O importante, nesse caso, é a essência

- 33 -
histórica do que se aborda, sendo suscetível de mudança o grau de historicidade de

determinada peça dentro da obra (BASTOS, 2007).

Portanto, ao dizer que a matéria é de extração histórica, Bastos está reafirmando

a posição da História dentro de um romance: para ser histórico, o texto deve apresentar

uma relação íntima com o momento histórico apresentado e não somente usá-lo de

maneira discreta. Dessa forma, o evento a ser utilizado será de fundamental

importância, senão a base, de toda a narrativa construída pelo escritor.

Ligada a essa premissa, está a possibilidade de o autor instaurar a historicidade

dentro da obra como uma ferramenta complementar ao uso da matéria de extração

histórica, de maneira que o acontecimento histórico seja também criado ficcionalmente

pelo escritor. Segundo Alcmeno Bastos, tal efeito ficcional de historicidade se deve ao

“emprego de recursos ficcionais substitutivos, como a criação de personagens, eventos e

instituições análogos a personagens de extração histórica documentada” (BASTOS,

2007, p. 106).

Dessa forma, pode-se afirmar que através dessa instauração de historicidade o

autor recorre a ferramentas narrativas que irão possibilitar um alargamento de sua teia

semiótica, já que pode se utilizar de um aparato ficcional baseado numa matéria

histórica para alocar personagens não-históricos ou personagens que não estão,

historicamente, ligados uns aos outros.

Outros dois pontos levantados pelo autor e que estão diretamente relacionados

aos dois anteriores trazem à tona a questão da matéria narrada e figuras ou eventos

históricos: não obstante a matéria ser de extração histórica, é necessário que fatos,

personagens e acontecimentos estejam intrinsecamente ligados ao âmbito narrativo,

como chama a atenção o autor: “É indispensável que a trajetória das personagens

- 34 -
relevantes da trama seja associada de modo inextricável ao destino político da

comunidade de que façam parte”. (BASTOS, 2007, p. 106); paralelo a essa

especificidade, existe a necessidade da presença de marcas que são reconhecidas como

históricas dentro da narrativa. Tais marcas serviriam não só para corroborar o eixo

histórico narrativo, mas também para trazer à tona a imagem ou a lembrança histórica à

cabeça do leitor dessa narrativa, trabalhando com seu conhecimento histórico prévio:

“Essas marcas [...] funcionam como detonadores do processo de reconstituição de um

campo de referências indispensável à historicidade da matéria narrada. (BASTOS, 2007,

p. 107, grifos nossos)

De forma que não somente é preciso que as referências históricas estejam

diretamente ligadas ao âmbito narrativo, mas também que tais referências sejam, de

certa maneira, de domínio público no que tange a sua importância e seu acontecimento.

Com essas duas características juntas, pode-se afirmar que as peculiaridades do

Romance histórico, até aqui, têm fundamento nas escolhas do autor, pois ligam as

questões de cunho histórico com o conhecimento dos leitores. Fica claro, portanto, que

o conhecimento do leitor é importante para que um romance seja reconhecido como

Histórico dentro de uma comunidade.

Outro traço característico determinante do romance histórico é a remoticidade

temporal da matéria histórica narrada no texto: tal peculiaridade pode ocorrer de duas

formas, ou através da adoção de um ponto de vista distanciado pelo autor do texto ou

por determinação de forças externas ao texto.

O ponto de vista deslocado temporalmente do narrador enfoca a questão do

distanciamento, pois segundo alguns autores, é necessária certa quantidade de tempo

decorrido para que o fato esteja, impreterivelmente, fixado na história de uma

- 35 -
comunidade. Além disso, também há as forças que estão fora do texto. Elas podem ser

consideradas como a data de publicação do livro, muito depois do evento narrado, a

escolha de um tema histórico já consumado quando da escritura do texto.

A última característica listada por Bastos revela que a narrativa deve apresentar

uma relação conclusiva no tocante aos eventos históricos narrados. Dessa maneira, não

haveria dúvidas acerca da matéria narrada, do caminho tomado e do desfecho das

figuras ou momentos históricos presentes no texto escolhido. Mesmo que haja um

tempo diferente do narrado, este deve, de forma irrefutável, finalizar a obra sem que

possa haver quaisquer dúvidas do objeto histórico narrado (BASTOS, 2007, p. 107).

Até o presente momento, pode-se, portanto, dizer que são necessárias seis

características, de acordo com Bastos, para que se possibilite chamar um romance de

histórico. E é calcado nessas distinções que no próximo capítulo se abordará a obra de A

Casca da Serpente, de Veiga, procurando estabelecer possíveis paralelos entre o livro e

as principais peculiaridades defendidas por Bastos para que, confirmando-se as inter-

relações, possa-se afirmar que A Casca da Serpente é um exemplo de romance

histórico.

3.3 AFINAL, A CASCA DA SERPENTE É UM ROMANCE HISTÓRICO?

Partindo do que foi dito até o momento acerca do que seria um romance

histórico com suas características e peculiaridades, pretende-se abordar a obra de José J.

Veiga para confrontar suas delimitações com a linha teórica analisada e, de maneira

paralela, tentar responder à pergunta que dá título e norteia este capítulo. Dessa forma,

vão-se observar as principais distinções do romance histórico dentro do texto estudado

e, se possível, estender tal estudo a algumas outras vertentes teóricas para que se possa

- 36 -
abarcar as prováveis distinções que poderão ocorrer em relação à base construída até

aqui.

Antes, porém, é interessante mostrar a opinião contrária à visão de que A casca

da serpente é um romance histórico, fato que se tentará provar neste capitulo, e uma

visão a favor. Um exemplo de tal discordância pode ser encontrado no crítico Malcolm

Silverman, pois discorda acerca da classificação do texto de Veiga: no livro Protesto e

o Novo Romance Brasileiro, Silverman afirma que Veiga e outros autores brasileiros

“enfatizam um regionalismo brasileiro indefinido, apesar de reconhecível, ou a loucura

urbana, aliada com a imprecisão cronológica” (SILVERMAN, 2000, p. 344);

especificamente sobre A Casca da Serpente, Silverman observa uma diferença em

relação a outras obras de Veiga quando afirma: “e, no caso de Veiga, uma fantasia solta

na forma de uma visitação mágica e sobrevivência fictícia de Antônio Conselheiro

Canudos.” (SILVERMAN, 2000, p. 420), tendo como princípio básico de análise a idéia

de que A casca é um texto realista mágico. A questão classificativa é controversa,

podendo haver divergências entre críticos e estudos. Contrário a Silverman, Maurício

César Menon, aparentemente, acha que A casca da serpente é um romance histórico: no

artigo Dois mitos sob a ótica pós-moderna, Menon aponta que o enredo apresenta

matéria de extração histórica: “[...] e A Casca da Serpente (1989) de José J. Veiga, livro

cujo enredo é também trabalhado em torno de uma figura histórica – Antônio Mendes

Maciel ou Antônio Conselheiro como se prefira chamar.” (MENON, 2001, p. 03).

Como se vê, há várias formas de análise e de enquadramento de um romance; o que se

pretende, neste capítulo, é tomar a obra A casca da serpente e observar as possíveis

características para que se confirme, ou não, sua classificação como romance histórico.

- 37 -
O primeiro ponto que pode ser levantado e confrontado com o texto é a questão

da remoticidade. Observando-a sob dois diferentes prismas, o da remoticidade temporal

na relação fato-publicação e o do distanciamento criado pela narrativa, é possível ter

duas fundamentações que se completam.

O que Veiga decidiu abordar, a guerra de Canudos, seu fim e a conseqüente

morte de Conselheiro, está efetivamente documentado e registrado pela História Oficial

como acontecido no fim do século XIX4; portanto, pode-se afirmar que a remoticidade

em relação com o acontecido, à época da publicação, realmente existe, pois essa se dá

em 1989, quase cem anos depois do acontecido.

Para fomentar tal diferença temporal, Veiga se utiliza das duas ferramentas

narrativas já aqui estabelecidas: uma está ligada à questão da historicidade construída

pelo narrador: no primeiro e no segundo parágrafos do texto, iniciando o capítulo “A

Retirada”, o escritor já demonstra construir, através da voz narrativa, a distância

necessária para a criação de um romance histórico, como se pode observar a seguir:

“[...] Se o Barnabé [jagunço de Conselheiro] não fosse hábil


em combinar palavras e na maneira de soltá-las, não teria
desempenhado com brilho a missão que lhe encomendaram. Pois
vamos ver como foi isso.
No dia 2 de outubro de 1897 dois jagunços de Canudos
exaustos da guerra e agitando uma bandeira branca, conseguiram
chegar ao general Artur Oscar, comandante da quarta e última
4
Rogério Silva Souza traça algumas características da guerra acontecida em 1897: “O crescimento de
Canudos foi fruto de um deslocamento maciço da população, imediatamente identificado como um misto
de perigo institucional e possibilidade econômica. Primeiro porque um núcleo populacional, surgido às
margens das instituições, era considerado uma ação inconstitucional, pois a criação de novos núcleos
populacionais era um atributo do Estado [...]” (SOUZA, R., 2001, p. 81). E com o fim sangrento da
guerra, Rogério Silva Souza aponta para como o país entendia o fim daquela campanha militar: “O Brasil
civilizado, ao final da guerra, revela-se bárbaro, indo contra todas as regras da civilização das quais se
dizia tributário. Aquela região, vista como uma terra primitiva, conhece o outro Brasil através da
megamorte, das armas de repetição, do aniquilamento total, descobrindo a face mais dura do século XX.”
(SOUZA, R., 2001, p. 287). Pode-se perceber que tal descrição do confronto tem como base um caráter
revisionista do embate, lançando um novo olhar sobre o ocorrido no sertão da Bahia. Mais à frente, já no
capítulo 4, mostrar-se-á como as visões históricas partiram de uma vertente positivista para chegar até o
momento atual, que pretende abordar o conflito de uma maneira mais profunda e clara para revelar as
peculiaridades que estavam por trás daquele evento histórico na sociedade brasileira.

- 38 -
expedição federal despachada contra os rebeldes.” (VEIGA, 2003, p.
7, grifos nossos)

É possível observar, portanto, que Veiga embasa sua construção da historicidade

narrativa buscando, primeiramente, dois pontos que alicerçam sua obra de maneira que

o distanciamento se torna evidente. Ao mesmo tempo, traz à baila uma figura

historicamente reconhecida, Barnabé, jagunço de Conselheiro, e uma data que remonta

há quase cem anos antes da publicação da obra, convidando o leitor para observar como

as possíveis diferenças históricas aconteceram e acontecerão.

O segundo item de construção de remoticidade encontrado na obra é a relação

temporal distante entre fato e publicação, que fica aparente no início do texto: o

narrador aponta para documentos da época do ocorrido como fontes de prováveis

informações do acontecido, mesmo que estas não estejam totalmente certas, segundo o

próprio narrador. Entre as quais se podem destacar as seguintes passagens:

“[...] Seguindo indicações de um dos jagunços que haviam se rendido,


uma comissão de oficiais encontrou o cadáver enterrado no chão do
casebre. Um documento da época conta como isso se deu.
‘Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de
um lençol imundo... [...]’” (VEIGA, 2003, p. 8, grifo nosso)

E ainda, ao se referir aos atos covardes de degola acontecidos em Canudos, o narrador

chama a atenção para outro fato documental: “Assim descreve um repórter que

acompanhou a campanha uma dessas sessões de degola: ‘Chegando à primeira

canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. [...]’” (VEIGA, 2003, p. 12, grifo

nosso)

É importante salientar que ao abordar tais referências bibliográficas históricas,

Veiga está construindo um arcabouço documental que servirá para corroborar dois

- 39 -
fatores: o primeiro diz respeito ao aspecto de remoticidade, já observado anteriormente;

o segundo tem relação com a reconstrução histórica feita na obra, fato que será

analisado mais à frente.

Outra característica pertinente ao Romance histórico é o fato de a matéria do

romance ser, obrigatoriamente, de extração histórica. Dessa maneira, os leitores

identificam as figuras históricas e as relações entre o fato histórico e a obra ficam mais

evidentes. No caso do livro aqui analisado, torna-se evidente, desde o princípio, que há

o uso de matéria de extração histórica na construção do romance.

Desde o início, Veiga escolhe e mostra ao leitor personagens que têm presença

na História Oficial relacionada àquele período, como o próprio Antônio Conselheiro,

alguns de seus jagunços, além dos locais sobre os quais discorre a História. Isso é

possível perceber em vários trechos ao longo da obra, dos quais se destacam o momento

em que o escritor cita os que acompanham Conselheiro na decisão sobre o que fazer:

“Além do Conselheiro, que não contava como participante, estavam lá Joaquim

Norberto; o Quero-Quero; Quim Pisapé; Sinfrônio de Quipapá, ex-lugar-tenente do

astuto João Abade; Dedé de Donana, que fora ferreiro em Pilar de Goiás; [...]”

(VEIGA, 2003, p. 09, grifo nosso).

Como é possível perceber através dos termos grifados, Veiga usa nomes que têm

cunho real para dar credibilidade à ficção que constrói sobre um fato histórico relevante.

É ainda possível apontar outros trechos que corroboram o uso da matéria de extração

histórica para o alicerce da obra, como o uso de nomes de lugares conhecidos daquela

região: “[...] que importava uns poucos remanescentes, entre eles talvez o chefe bronco,

estivessem fugindo pelas veredas de Uauá e Várzea da Ema, ao norte, as únicas que

restavam livres?” (VEIGA, 2003, p. 09, grifo nosso)

- 40 -
Conjugando essas características, o escritor se alimenta de uma matéria de

extração histórica para basear sua obra de ficção, já que esta apontará para outro olhar

sobre o desfecho da guerra de Canudos, como se verá mais adiante.

Como já visto até aqui, A Casca da Serpente vem seguindo todas as

peculiaridades pertinentes a um romance histórico: tem a relação de remoticidade e

utiliza-se de matéria de extração histórica; o terceiro fator que corrobora tal obra como

histórica é a questão da historicidade: tal ferramenta é amplamente usada por Veiga para

a construção do romance, fato que será explicado a seguir.

Partindo do uso de um evento histórico importante dentro da História Oficial

brasileira, que foi a guerra de Canudos, o autor busca utilizar a ferramenta narrativa aqui

chamada de simulação de historicidade para construir sua teia narrativa, procurando

outros caminhos para a visão oficial dos acontecimentos. Uma dessas utilizações da

historicidade dentro da obra é a alusão a diferentes figuras históricas que nunca

estiveram juntas ou se conheceram, mas que, dentro da obra, encontram-se com

Conselheiro.

Ao juntar essas figuras históricas, Veiga instaura o clima de historicidade na

obra, além de aprofundar o universo ficcional construído por ele. Entre as figuras

históricas retratadas pelo o autor que aparecem no novo arraial construído por

Conselheiro estão Militão Augusto de Azevedo, fotógrafo profissional no Rio de

Janeiro e São Paulo: embora tenha ficado famoso por tirar fotos de todas as pessoas que

quisessem, inclusive escravos, Militão de Azevedo nunca esteve no Nordeste, tornando-

se impossível o encontro entre ele e Conselheiro; mesmo assim, há um momento em

que é narrada sua chegada e, logo depois, o encontro com Antônio Conselheiro:

- 41 -
“–Agora preciso ir a esse arraial novo [o novo arraial de Conselheiro]
também, e conto com a ajuda dos senhores. O meu nome é Militão.
Militão Augusto de Azevedo. Tive estabelecimento de fotografia
na cidade de São Paulo. Não posso deixar de ir a esse lugar onde
estão os guerreiros sobreviventes. Se os senhores me levarem lá, farei
tudo ao meu alcance para retribuir o favor.” (VEIGA, 2003, p. 112,
grifo nosso)

Outros dois personagens historicamente reconhecidos e que aparecem na obra são

Chiquinha Gonzaga e Dr. Orville. No caso da primeira, seu reconhecimento seria

notório, enquanto seria necessária uma pesquisa mais aprofundada por parte do leitor

para o reconhecimento5 do segundo personagem. Observe-se, portanto, a apresentação

dos dois personagens: “–E eu me chamo Francisca Edwiges. Mas me chamam de

Chiquinha. E eu não me zango.” (VEIGA, 2003, p. 134) e ainda: “E fez uma retificação: o

Dr. Orville, o senhor que a acompanhava, não era marido dela. Viajavam juntos por acaso e

conveniência. Dr. Orville era cientista, fazia estudos de terrenos e minerais para o governo. [...]

Era um sábio, e pessoa muito distinta” (VEIGA, 2003, p. 135).

E, novamente, embora nunca tenham se encontrado, os dois personagens

aparecem, simultaneamente, no arraial e, sem que o narrador diga quem são, o leitor irá

descobrindo ao longo do texto através de características apresentadas pelos

personagens. Sobre Chiquinha Gonzaga, o narrador descreve sua aptidão para a música

da seguinte maneira:

“Primeiro ela [Chiquinha Gonzaga] olhou o instrumento [uma flauta],


segurando-o pelo meio como medindo o tamanho e o peso. Depois
avalio o diâmetro interno do canudo. Novamente por fora, medindo a
distância dos furos; só então levou a flauta à boca. Soprou ensaiando,
para conhecer as possibilidades. Manejou o dedo nos buraquinhos,
testando os sons. Aí então tomou posse do instrumento e tocou. [...]
Quando Da. Chiquinha parou, as pessoas em volta pediram mais, e ela
tocou. Valsas, maxixes, improvisos.” (VEIGA, 2003, p. 139)

5
Nesse caso, a ligação entre os dois personagens instigaria o leitor a procurar saber um pouco mais sobre
quem realmente são.

- 42 -
Já sobre o Dr. Orville, o narrador é um pouco mais sucinto: “[...] Dr. Orville era

estrangeiro, vivia no país há muito tempo, e não se envolvia em política; que os seus

primeiros trabalhos sobre terrenos e minerais tinham sido encomendados pelo

Imperador, que o mandara buscar para isso.” (VEIGA, 2003, p. 135)

Ao apresentar tais figuras que nunca se encontraram, o autor fundamenta ainda

mais a historicidade do romance, aludindo a outra marca latente que caracteriza o

romance histórico: a presença de marcas históricas que trazem à tona figuras, imagens e

personagens históricos que são, sem qualquer dúvida, pertencentes ao que

convencionalmente se chama de História Oficial, ajudando o leitor a reconhecer os

personagens, a matéria de extração histórica que aborda e, o mais importante, criar uma

identificação dos leitores com a ficção através de tais personagens e marcas. A esse

respeito, afirma Bastos:

“por fim, a liberdade tomada com a História chega ao ponto de fazer


com que Antônio Conselheiro cruze sua trajetória com a de figuras
como Chiquinha Gonzaga ou o fotógrafo Militão Augusto, de extração
histórica como ele, mas que seguramente nunca tiveram qualquer
contato com o líder de Canudos.” (BASTOS, 2000, p. 130)

Dessa forma, Veiga não apenas corrobora, como visto na citação acima, a utilização de

matéria histórica para a composição do romance, mas também aponta para seu plano

ficcional de esgarçá-la ao seu modo, conduzindo o leitor por informações e dados que se

encontram de maneira inovadora, além da liberdade e desconstrução históricas que

serão, também, mostradas.

Dentro da narrativa aqui estudada, essas marcas podem ser reconhecidas através

de alguns personagens, tais como o personagem principal, Antônio Conselheiro, e seus

companheiros fugitivos de Canudos: ao abordar, desde o início, a história de

- 43 -
Conselheiro, Veiga cria uma marca que, ao longo do romance, guia o leitor pela nova

possibilidade criada pelo autor.

Outras marcas pertinentes são a presença dos personagens historicamente

relevantes já mostrados: a compositora Chiquinha Gonzaga, o fotógrafo Militão de

Azevedo e Dr. Orville. Mesmo que alguns não sejam tão conhecidos do grande público

leitor (caso do fotógrafo Militão de Azevedo e Dr. Orville), a presença de Chiquinha

Gonzaga já cria a atmosfera de dúvida e curiosidade acerca dos demais personagens,

suscitando o questionamento se outros personagens também não seriam historicamente

reais.

Dessa maneira, as marcas se constroem e ajudam a constituição de um ambiente

ficcional que remete à realidade que fomenta a historicidade da obra, guiando o leitor

através do texto e convocando-o a um estudo mais aprofundado do matéria de extração

histórica utilizada para a criação ficcional do autor.

Outra questão que fundamenta o romance histórico é a ligação entre os

personagens históricos escolhidos e o destino final da trama, já que ambos devem estar

conectados e os personagens terem papel atuante na narrativa e em seu desfecho. É

necessário, portanto, observar-se o fim de A Casca da Serpente para se apurar se a obra

apresenta tal qualidade.

Desde o princípio do romance, Veiga já aponta Conselheiro como personagem

principal da trama, focando numa possível reestruturação dos acontecimentos históricos

oficiais. Ao longo do texto, o leitor percebe que toda a ficção gira em torno de

Conselheiro e, da mesma maneira, outros personagens históricos também estão ligados

ao destino da trama, como os jagunços de Conselheiro e os visitantes que vêm e vão do

novo arraial fundado. Dessa forma, o destino do romance está intrinsecamente ligado

- 44 -
aos personagens histórico apresentados pelo autor, o que corresponde a mais uma

característica necessária para que se entenda o romance como Histórico.

E a conclusão dessa ficção que usa a matéria de extração histórica é, também, de

acordo com uma das características que permeiam o romance histórico. No caso da obra

aqui estudada, existe uma finalização para a utilização da matéria, como será mostrado a

seguir.

Embora Veiga reconstrua a visão acerca do personagem histórico que é Antônio

Conselheiro, já que a visão oficial se encerraria em sua morte, o autor também realiza o

fim ficcional do personagem histórico de modo que não haja, de maneira alguma,

dúvida sobre o que ocorre ao final da obra.

Esgarçado desde o princípio, tal evento histórico ficcionalmente reanalisado por

Veiga termina com a morte de Conselheiro e a destruição do novo arraial por ele criado,

Concorrência de Itatimundé, em 1965, por invasores. Assim, tem-se o fim do evento

histórico e da ficção, como se pode observar no trecho a seguir: “O tio Antônio mesmo

tinha morrido antes, aos noventa e quatro anos, de marrada de um bode que o Roger,

filho de Cotenile e Marigarda, criava como animal de casa” (VEIGA, 2003, p. 159). E

também explica a destruição do novo arraial, bem como o que acontece com a terra

onde foi erguido:

“[...] também a estátua do tio Antônio, que completava o visual da


praça principal da Concorrência, foi dinamitada pelos invasores em
1965 e seus pedaços jogados terra abaixo. [...] E a terra, o chão onde
foi a Concorrência de Itatimundé, é agora depósito de lixo atômico
administrado por uma indústria química com sede fictícia no
Principado de Mônaco”. (VEIGA, 2003, p. 158/159)

Assim, cumpre-se mais uma necessidade básica para que o romance possa ser chamado

de histórico: além dos personagens históricos estarem ligados à narrativa histórica,

- 45 -
como já mostrado, também existe o desfecho para a ficção que não deixa qualquer

dúvida sobre a finalização do texto.

Utilizando-se de um evento histórico de grande repercussão e evidente

documentação providenciada pela História Oficial, Veiga reobserva e reorganiza fatos,

analisa posições já tomadas e esgarça um ponto na história de forma que revele um

novo olhar sobre o personagem principal, Antônio Conselheiro. Dessa maneira, usa

todas as ferramentas possíveis e existentes para a criação de um romance que aborda a

história e, assim, usa a matéria de extração histórica. E após a análise de cada um dos

pontos que são considerados fundamentais para que se observe um romance como

histórico, é possível afirmar que A casca da serpente apresenta todas as características

necessárias e é, portanto, um romance histórico.

Nesse âmbito, além de A casca da serpente ser um romance histórico, a obra

também apresenta uma utilização pouco convencional da matéria de extração histórica

e, mais fortemente, um aproveitamento literário da figura de Antônio Conselheiro de

maneira inovativa, pois o coloca rumo a uma transformação: de uma figura histórica

conhecida e abordada a um personagem literário transformado e revisado. Essas duas

abordagens serão estudadas, de maneira mais aprofundada, nos capítulos a seguir.

De maneira que, nos próximos capítulos, será observada uma característica

importante presente na obra e que é fundamental para a construção da narrativa como

ela se apresenta: o olhar pós-moderno acerca da história e seu uso ficcional6. Tal

peculiaridade será melhor analisada no capítulo a seguir, já que se mostra determinante

para a construção da obra aqui estudada em particular, articulando os dois pontos

apresentados que têm fundamentação na esfera pós-moderna.

6
Tal afirmação é baseada no texto de Linda Hutcheon Poética do pós-modernismo: história, teoria,
ficção.

- 46 -
4. ESCREVENDO UMA OUTRA HISTÓRIA: UMA POSSIBILIDADE EM A
CASCA DA SERPENTE

No capítulo anterior, foi possível analisar e chegar à conclusão de que a obra A

Casca da Serpente realmente pode ser elencada entre os romances históricos produzidos

no Brasil no fim do século XX: possui todas as características listadas por teóricos para

obter a alcunha de histórico entre os demais tipos de romance. Essa análise chega ao fim

levantando outra questão pertinente ao texto estudado, além de ser um romance que

possui matéria de extração histórica, personagens e marcas históricas definidas, Veiga

decide por esgarçar a realidade e a chamada História Oficial. E faz isso através de

algumas ferramentas narrativas que interessam por suas inovações e formas de serem

usadas, pois surgem como um diferencial na obra já consolidada do autor.

Seguindo esse caminho, Veiga construiu uma obra sobre uma matéria de

extração histórica que é datada, documentada, fotografada e caracterizada por outros

escritores no fim do século XIX e começo do século XX. Podendo seguir esses olhares

já ambientados com essa realidade e aglutinadores da historiografia oficial, o autor

decide lançar um novo olhar, uma nova observação para desconstruir e, em seguida,

reconstruir o principal personagem histórico daquele momento escolhido: Antônio

Conselheiro, mesmo que ele se torne ficcional através da trama criada ao seu redor. Para

- 47 -
que fique claro o tom utilizado pela história oficial que reproduz e constrói quem foi

Antônio Conselheiro e como se desenrolou a Guerra de Canudos, serão mostradas

algumas vertentes que reproduzem o discurso oficial na apresentação da guerra, para,

logo depois, também mostrar como esse discurso segue mudando ao longo do século

XX.

Atualmente, é possível distinguir diversos olhares sobre a Guerra de Canudos:

desde os primeiros escritos com o tom positivista até os atuais que buscam entender

quem fazia parte daquele arraial destruído. Diversos tons foram utilizados ao longo dos

anos, desde o fim do século XIX até o século XX, com mudanças que ocorreram por

diferentes motivações. O Dicionário de história do Brasil, organizado por Moacyr

Flores, exemplifica a primeira tendência da historiografia para representar o criador de

Canudos, Antônio Conselheiro:

“Em suas pregações, considerava a República como um mal, porque


separou a Igreja do Estado, denominando a monarquia como ‘lei de
Deus’. Revoltou-se contra a cobrança de impostos municipais, em
1893, queimando os editais. Perseguido pela força policial, [...]
fundou na fazendo de Canudos, junto ao rio Vaza Barris, uma cidade
santa. O fanatismo e os ataques às fazendas e vilas provocaram a
intervenção do governo baiano e depois do federal, destruindo o
arraial de Canudos. Morto, seu corpo foi exumado e a cabeça
decepada para ser estudada, a fim de apurar sua sanidade mental.”
(FLORES, 2001, p. 373)

Como se pode perceber, a visão acerca do líder de Canudos apresentada nesse

dicionário ainda aparece contaminada, embora, como se verá a seguir, as análises

históricas sobre Conselheiro e seu arraial vêm mudando ao longo dos anos,

especialmente no fim do século XX.

- 48 -
Uma primeira mudança perceptível é a mostrada por Márcia Motta no verbete

Canudos do Dicionário da Terra. A autora elenca as diversas fases pelas quais

passaram as opiniões sobre a Guerra de Canudos. Ela afirma que é

“possível considerar que a historiografia que tematiza Antônio


Conselheiro e seus seguidores e, portanto, Canudos, comporta três
fases: 1) a que se estende de 1874 a 1902, ou seja, do surgimento do
peregrino cearense, no centro das províncias da Bahia e de Sergipe,
até a publicação de Os sertões; 2) a que se inscreve no que denomina
‘hegemonia euclidiana’ e que vai de 1902 até a década de 1950; e 3)
aquela que se inicia por uma revisão do episódio ancorada por
pesquisas esclarecedoras, em face de contribuições recentes de
perspectiva histórica e sociológica.” (MOTTA, 2005, p. 85)

Tal trecho corrobora como a perspectiva de interpretação histórica vem mudando ao

longo do século XX. Motta também aponta para essa mudança iniciada a partir da

década de 1950, com uma

“[...] perspectiva progressista surgida entre 1950 e 1970, quando a


questão da terra e a urgência da reforma agrária tornaram-se as
bandeiras de luta da esquerda no Brasil.[...]. Ainda que, na atualidade,
inúmeras leituras de Os sertões venham trazendo à luz novas
interpretações acerca dessa obra, por muito tempo prevaleceu a que,
nela baseada, tinha de Canudos uma visão de atraso e dos canudenses
como mentecaptos ou monarquistas subversivos [...]” (MOTTA, 2005,
ps. 85 e 86)

Dessa forma, é possível distinguir até três diferentes possibilidades de entendimento e

análise acerca do evento histórico escolhido por Veiga para ser o início de sua ficção.

Outra visão que mostra a mudança no paradigma historiográfico no que diz

respeito à Guerra de Canudos é encontrada no Dicionário de datas da história do

Brasil, organizado por Circe Bittencourt. Na data da destruição de Canudos, Kalina

Vanderlei Silva aponta, também, para três momentos de análise da história:

- 49 -
“Ao longo do século XX, historiadores e analistas sugeriram várias
interpretações para a Guerra de Canudos: uma abordagem tradicional,
ligada aos positivistas, interpretou a destruição de Canudos como a
vitória da ‘ordem e progresso’, representados pelo Estado republicano
da passagem dos séculos XIX ao XX, contra o ‘atraso’ representado
pelo povo do sertão. Já a historiografia marxista explicou esse
acontecimento como o esmagamento de um movimento
revolucionário socialista e camponês pelas ‘forças do latifúndio’.
Atualmente, novas pesquisas abordam tanto a Guerra de Canudos
como a comunidade de Belo Monte sob novas perspectivas: como se
organizava a povoação? Quais as bases de sua economia? Quais os
fundamentos culturais que levaram à fundação de Canudos?” (SILVA,
2007, p. 233)

Novamente fica claro que houve e ainda há um movimento em busca da mudança da

visão historicista que dominou o início do século XX.

Finalmente, para corroborar tal movimento de mudança, cabe citar duas fontes

que apontam para esse novo olhar. Já em 1990, Alexandre H. Otten no livro Só Deus é

grande: a mensagem religiosa de Antônio Conselheiro apontava para a revisão desse

olhar: “

As diversas interpretações que são emitidas pela jovem República a


respeito do movimento de Canudos encontram sua expressão resumida
e simbólica na própria guerra. Foi uma guerra de extermínio. Como a
guerra, as interpretações são impregnadas de uma forte carga de
agressividade e intolerância, e na melhor das hipóteses, de
incompreensão e conivência. [...] Até o bem-intencionado Euclides da
Cunha, tomando partido dos vencidos, não duvida que a sorte de
Canudos deve ser o extermínio.” (OTTEN, 1990, p. 90)

E também Ariano Suassuna, no livro O Clarim e a oração: cem anos de Os sertões,

organizado por Rinaldo de Fernandes, cuja publicação celebra os cem anos de

publicação d’Os sertões, corrobora essa nova imagem criada para Conselheiro e para a

Guerra de Canudos, no início de seu artigo:

- 50 -
“O que houve em Canudos e continua a acontecer hoje, no campo
como nas grandes cidades brasileiras, foi o choque do Brasil ‘oficial e
mais claro’ contra o Brasil ‘real e mais escuro’. Ao Brasil oficial e
mais claro [...] pertenciam algumas das melhores figuras do Patriciado
do tempo de Euclydes da Cunha [...]. Bem intencionados mas cegos,
honestos, mas equivocados, estavam convencidos de que o Brasil real
de Antônio Conselheiro era um país inimigo que era necessário
invadir, assolar e destruir.” (SUASSUNA, 2002, p. 21)

Ao fim da apresentação de todas essas novas perspectivas sobre a Guerra de

Canudos, é possível afirmar que havia um olhar acerca desse evento histórico

oficialmente construído pelos representantes de uma República que acabara de se

instaurar no país; tal visão oficial era totalmente parcial e tentava fomentar a idéia

positivista sobre aquele momento histórico. Por outro lado, é latente a mudança no

entendimento e análise da Guerra de Canudos e o líder do arraial, Antônio Conselheiro:

de caráter revisionista, essa nova onda vem tentando entender como se organizava,

como e porque foi construído o povoado, além de resgatar a imagem de Conselheiro,

transformando-o de bandido, revoltoso, infiel e louco a líder, organizador e visionário.

Dessa maneira, José J. Veiga se junta a essa vertente revisionista da história,

destituindo-se da História Oficial e, ao mesmo tempo, reconstruindo sua própria visão

sobre o tema. E, ainda, além de criar um personagem ficcional, busca, também, mostrar

um Conselheiro diferente, confirmado dentro do evento histórico escolhido, e que se

modifica ao longo da teia narrativa organizada por Veiga.

E além desse personagem historicamente confirmado, Veiga também infiltra,

ficcionalmente, personagens que não estão em contato dentro da vertente histórica

oficial, aumentando o nível ficcional da obra. Tal utilização será decisiva para a

ampliação das fronteiras da ficção presentes no texto.

Assim sendo, neste capítulo se pretende observar e analisar como José J. Veiga

usa diversas ferramentas narrativas inovadoras para aquele momento histórico e como,

- 51 -
através delas, conseguiu criar um possível esgarçamento ficcional de um momento

histórico brasileiro por ele escolhido como objeto de sua ficção. Além disso, também se

vai tentar analisar como ocorre a construção do romance sob a ótica pós-moderna que

determina alguns passos tomados pelo autor.

4.1 MUDANDO DE ASSUNTO: A INOVAÇÃO PÓS-MODERNA DE JOSÉ J.

VEIGA

A obra de Veiga foi construída, ao longo dos anos, baseada em uma espécie de

pressuposto ficcional que permeou todos seus livros anos após anos: como se pôde

perceber no capítulo 2 deste estudo, o autor tinha sua criação como projeto de longo

prazo e, independentemente das situações históricas às quais estava suscetível, sempre

observava um mote que guiava sua ficção: a invasão de um espaço, a destruição da

calma de uma cidade pequena, a abrupta tomada do poder pelo que vem de fora, o

progresso trazido pelo forasteiro como ponto negativo.

A esse pretexto, Alcmeno Bastos, ao analisar sua obra no livro A História foi

assim: o romance histórico político brasileiro nos anos 70/80, chama atenção para tais

fatos recorrentes na narrativa veigueana: “Esses elementos (o poder tomado, a cidade

sitiada, o progresso como algo maléfico) reaparecerão em outras narrativas de José J.

Veiga, modificados, recombinados, mas basicamente os mesmos.” (BASTOS, 2000, p.

110). Tais características ajudaram a fomentar obras e elementos que se conjugam e

alicerçam a obra de Veiga durante a segunda metade do século XX.

E é a partir do texto A Casca da Serpente que a ficção de Veiga é tomada por um

olhar diferenciado do cotidiano e, especificamente, da história7. Tal como acontecera na

7
Fica claro que A Casca da Serpente é um texto que está fora do Ciclo Sombrio observado no capítulo 2;
dessa maneira, obviamente que o texto em questão apresenta uma atmosfera mais leve e diferenciada,
como se observará mais a fundo.

- 52 -
publicação de Cavalinhos de Platiplanto, obra que, segundo Antonio Candido, foi

anterior ao modismo do realismo fantástico latino-americano, Veiga experimenta,

novamente, uma vertente diferenciada e renovada para reanalisar a história contada

oficialmente. De maneira que é pertinente afirmar, mais uma vez, o tom de inovação

construído pelo autor: a primeira edição de A Casca da Serpente foi publicada em 1989,

final da década de 80. Nesse contexto, já existia o reconhecimento da mudança estética

pela qual passaram as artes, sendo publicado, dois anos antes, Poética do pós-

modernismo: história, teoria, ficção, de Linda Hutcheon. A voz pós-moderna e suas

características já se apresentavam no mundo das artes e Veiga, mais uma vez, estava, se

não em sintonia, muito próximo do que mais inovador acontecia e trouxe para seu

romance os pontos de novidade proporcionados ao pós-moderno proporcionava já há

algum tempo.

A inovação presente no romance aqui estudado está, especificamente, ligada ao

tom pós-moderno predominante na construção da narrativa: ao tratar de matéria de

extração histórica, como já observado no capítulo 3, o texto aponta para uma nova

maneira de observar tanto o acontecido como os personagens envolvidos. Sobre a

vertente inovadora do pós-moderno, é possível mostrar algumas asseverações feitas por

analistas da obra de Veiga: entre eles, Alcmeno Bastos afirma “[...] José J. Veiga

publicou A Casca da Serpente, centrado na figura de Antônio Conselheiro, o líder de

Canudos, sim, mas apresentado de um ponto de vista pós-moderno [...]” (BASTOS,

2000, p. 130). Já Maurício Cesar Menon vai mais a fundo ao contrastar o romance de

Veiga com outro também creditado por ele como pós-moderno8: “Esta análise parte da

leitura de duas narrativas pós-modernas [A casca da serpente e A conquista, de Almeida

8
Tal comparação com outra obra apenas corrobora o fato de A Casca da Serpente ter um tom inovador
pós-moderno, pois dialoga com outros textos.

- 53 -
Faria] que trabalham com a prática da recuperação do já existente: [...], e A Casca da

Serpente (1989) de José J. Veiga, livro cujo enredo é também trabalhado em torno de

uma figura histórica [...]” (MENON, 2001, p. 3). Também é possível encontrar registro

da análise corroborando a idéia do pós-modernismo de Veiga no estudo apresentado por

Maria Luiza Ferreira Laboissière de Carvalho e Maria Wellitania de Oliveira Cabral

intitulado História e Metaficção na Novela A Casca da Serpente, de José J. Veiga:

“Este estudo pretende ressaltar os aspectos ficcionais no livro A Casca da Serpente, de

José J. Veiga, e comenta a história de Canudos a partir da noção de Pós-Modernidade”

(CARVALHO & CABRAL, 2008, p. 1).

Percebe-se, conforme já dito, como a inovação de Veiga está ligada ao pós-

moderno e, assim, um questionamento se faz pertinente neste ponto: quais são as

características que fazem do romance aqui estudado uma obra pós-moderna? Existem

peculiaridades que são singulares quando se trata do pós-moderno e, para haver a

inovação proposta por Veiga, é necessário que tais particularidades estejam presentes na

obra. Assim, é necessária a busca de características e possibilidades do pós-moderno

para se mostrar como A Casca da Serpente se encaixa nesse olhar diferenciado.

Uma das obras que são um marco referencial para o entendimento do pós-

moderno é o livro de Linda Hutcheon, Poética do pós-modernismo: história, teoria,

ficção. Partindo desse texto como base, é possível listar algumas definições peculiares

presentes no texto pós-moderno, especialmente o histórico ou o metahistórico, partes

que são de interesse deste estudo.

Um dos pontos levantados como possível exemplo dentro da ficção veigueana

aqui estudada é a contestação da separação entre história e literário: segundo Hutcheon,

esse é um padrão apresentado na teoria pós-moderna: “[...] é essa separação entre o

- 54 -
literário e o histórico que hoje se contesta na teoria e na arte pós-modernas”

(HUTCHEON, 1991, p. 141). Veiga não se furta de usar dessa ferramenta ao unir um

ponto histórico reconhecido, bem como seu personagem histórico principal, a uma

possibilidade ficcional introduzida por vários fatores: desde a sobrevivência de Antônio

Conselheiro até seu encontro com figuras históricas que nunca se cruzaram. Assim, o

autor abre sua ficção para novas possibilidades seguindo uma idéia pós-moderna que

era inovadora dentro de sua obra, pois acabara de sair do Ciclo Sombrio e A casca da

serpente era um exemplo desse revigoramento ficcional pretendida por Veiga.

Outra característica interessante possível de ser encontrada na obra é a

instauração da historicidade na narrativa ficcional para depois desfazer a linha que

divide a história e a ficção (HUTCHEON, 1991, p. 150). Essa peculiaridade está

presente no texto de Veiga a partir do momento que o autor escolhe momentos

históricos, personagens históricos e os joga em sua ficção sem qualquer esclarecimento

ao leitor sobre seus destinos, dissimulando e apagando a tênue linha que dividia a ficção

da matéria de extração histórica. Com isso, novamente, ele está em contato e

construindo sua obra de maneira pós-moderna, pois além de usar personagens históricos

dentro da narrativa, aborda a matéria de extração histórica de uma perspectiva diferente

e inventiva, observando uma possibilidade distinta acerca do acontecido na chamada

História Oficial. Assim, desfaz-se a fronteira entre a História Oficial e a ficção.

A visão fundamental da ficção histórica pós-moderna apresentada por Hutcheon

reflete a totalidade da narrativa histórica de Veiga: segundo a autora, a ficção histórica é

“aquela que segue o modelo da historiografia até o ponto em que é motivado e posto em

funcionamento por uma noção de história como força modeladora (na narrativa e no

destino humano)” (HUTCHEON, 1991, p. 151). Dessa maneira, ao se utilizar da Guerra

- 55 -
de Canudos como mote e, conseqüentemente, Antônio Conselheiro como personagem

principal, o escritor busca encontrar a história como força modeladora do destino

humano, mas sempre buscando, também, mostrar como esse destino pode ser observado

ficcionalmente.

Existe, ainda, outra questão que é pertinente ao texto chamado de pós-moderno:

a intertextualidade. A ligação entre textos é uma das características mais marcantes da

escrita pós-moderna e, em especial, a ligação entre escritos do presente com textos do

passado. Dentro desse âmbito é possível destacar a afirmação de Hutcheon sobre o uso

de texto do passado pelo pós-modernismo: “A intertextualidade pós-moderna é uma

manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do

leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto.”

(HUTCHEON, 1991, p. 157). A ligação entre o passado e o presente fica clara em A

Casca da Serpente, pois existem referências diretas à matéria de extração histórica

colhida da História Oficial; mais relevante, porém, é questão da reescritura do passado:

tal desejo está presente a todo o momento ao longo da narrativa expresso,

especialmente, pelo narrador9. Desde o início, com a desconstrução da documentada

morte de Conselheiro, até sua transformação total, Veiga se propõe a reescrever,

reanalisar os fatos historicamente comprovados. Essa evidência apenas reforça a idéia

aqui apresentada de que o romance estudado é um exemplo de uma narrativa pós-

moderna.

Seguindo esse raciocínio, vale a pena levantar o fato de que o passado

historicamente conhecido apenas se faz conhecido pelos textos que se referem a ele

(HUTCHEON, 1991, p. 157): dessa forma, o texto pós-moderno se propõe a lançar um

9
No próximo capítulo, abordar-se-á como se dá a relação entre o narrador e essa reescritura proposta pelo
autor, além de um olhar mais aprofundado sobre o papel do narrador.

- 56 -
olhar sobre os textos do passado, sendo necessário, então, o uso da intertextualidade

como ferramenta para recolher o referente e usá-lo no presente, qualquer que seja sua

utilização. Assim, faz-se pertinente, também, a renovação do olhar com o qual se realiza

a análise do discurso empregado pelo escritor daquela era, daquele momento. Nesse

tom, pode-se afirmar que Veiga também lança mão desse novo olhar analítico para

observar como se deu a passagem da Guerra de Canudos e a morte de Conselheiro para

a história. Tal fato corrobora, novamente, a questão levantada neste capítulo sobre a

inovação e o caráter pós-moderno da obra. Mesmo assim, ainda cabem algumas

observações sobre mais algumas características de uma obra pós-moderna.

E como o passado só se faz presente através dos textos, o pós-moderno vem

questionar como se deu a escolha desses textos e, principalmente, como os autores

dessas obras elegeram seus pontos de vista no período passado de criação dessas

referências históricas textuais. Sobre esse ponto, é relevante observar que Hutcheon

aponta para a questão da visão-historiador, questão essa que já havia sido levantada por

Carl Becker: “Em 1910, Carl Becker disse que ‘os fatos da história não existem para

nenhum historiador, até que ele os crie’ (525), que as representações do passado são

selecionadas para significar tudo o que o historiador pretende” (HUTCHEON, 1991, p.

162). O questionamento pós-moderno, portanto, aborda, especialmente, a construção da

verdade contada pelos textos históricos, questionando-a ou a analisando, como mostra

Hutcheon: “ao contrário do romance documental conforme o define Barbara Foley,

aquilo que venho chamando de ficção pós-moderna não ‘aspira a contar a verdade’

(Foley 1986a, 26) tanto quanto aspira a perguntar de quem é a verdade que se conta”

(HUTCHEON, 1991, p. 162, itálicos originais, grifos nossos).

- 57 -
Convergindo o pensamento apresentado nos últimos parágrafos, pode-se dizer

que o pós-moderno faz uso da intertextualidade para buscar textos que trazem

referências passadas, pois só assim se tem acesso a elas, para observar, analisar e

restabelecer as vozes que contam esse passado, procurando mostrar o outro lado dessas

vozes. José J. Veiga conjuga tais características e as apresenta no texto aqui analisado:

através da intertextualidade o autor retoma a história conhecida como oficial e textos,

ficcionais ou documentais, e de maneira pós-moderna, lança um olhar diferenciado para

questioná-la, analisá-la e, ficcionalmente, reconstruí-la dentro de uma proposta ficcional

que tem como base o olhar crítico edificado, sobretudo, pelo narrador.

Assim, no próximo capítulo se tentará mostrar como a atuação do narrador

colabora com a construção da visão pós-moderna ao longo de toda a obra, reforçando a

ligação com outros textos pertinentes ao tema e, além disso, aponta para a reconstrução

de um novo Antônio Conselheiro. Por fim, também se abordará a possível tendência de

Veiga a falar a favor de Conselheiro, redargüindo a personagem historicamente

construída através de textos, relatos e documentos históricos.

4.2 O NOVO ARRAIAL DE CONSELHEIRO: A LITERATURA BRASILEIRA

Como afirmado no fim do capítulo anterior, Veiga utiliza seu narrador como

principal ponto de desequilíbrio em relação aos fatos que são tidos como oficiais

perante a História. Além da atuação constante do narrador para ter uma nova

possibilidade, a ficção que constrói além do ponto histórico escolhido também tem

relação direta com a nova luz que o autor pretende lançar sobre os aspectos ficcionais

que aborda ao longo da obra, especialmente em relação ao personagem principal tanto

do evento histórico abordado quanto da obra: Antônio Conselheiro. Esses dois pontos

- 58 -
merecem, de maneira detalhada, uma abordagem para que se comprove tanto a atuação

do narrador quanto à construção da abordagem histórica na teia ficcional do escritor.

Antes, porém, de se colocar o olhar sobre esses dois pontos, faz-se necessário

que haja uma breve apresentação do aproveitamento literário da figura de Antônio

Conselheiro por alguns autores da literatura brasileira ao longo dos séculos XIX, XX e

XXI de forma ficcional, e não apenas como uma figura histórica de relevo. Mesmo não

tendo havido a leitura das obras que serão apresentadas, houve uma pesquisa sobre o

conteúdo e, especificamente, a presença e importância do personagem literário criado

sobre a figura histórica de Conselheiro. A visão sobre sua utilização dentro da literatura

brasileira é importante para que se entenda, ainda mais, a criação de Veiga sobre esse

vulto histórico brasileiro tão conhecido.

Publicado em 1898, Os jagunços, de Afonso Arinos, apresenta a utilização de

Conselheiro dentro do âmbito ficcional. Ainda mais importante é o fato de que foi

pioneiro: foi o primeiro romance a marcar a presença de Antônio Conselheiro na

literatura brasileira. Também é interessante ressaltar que o narrador adota um tom

favorável ao líder de Canudos, fazendo julgamentos que lhe são positivos, como quando

afirma que Conselheiro e sua gente não roubavam nem depredavam pelas redondezas do

arraial, apenas queriam viver suas vidas, sem que ninguém os molestasse. Nem ele

mesmo, Conselheiro, incomodava os vizinhos. Por idéias como essa, é possível afirmar

que Arinos mostrava uma face positiva dos canudenses e seu guia, mesmo sendo

antecessor a Euclides da Cunha e paralelo aos positivistas da época.

O romance termina com uma hipótese levantada pelo narrador de uma

sobrevivência sobrenatural de Conselheiro, mas, mesmo tendo sido comentada por ele,

tal possibilidade não é confirmada pelo próprio narrador, mas por personagens que já

- 59 -
haviam sido descritos como de crença mística e transcendente. Dessa forma, o peso da

confirmação da sobrevivência mística fica sobre personagens não têm força dentro do

âmbito narrativo para que se acredite nessa probabilidade.

Através de seu romance histórico intitulado João Abade, de 1958, João Felício

dos Santos apresenta o arraial de Canudos, como o próprio diz no começo do romance,

de dentro para fora, com toda a sua gente; nesse âmbito, Conselheiro não aparece com

muita insistência e, quando o faz, não toma contornos heróicos ou de coragem, pelo

contrário: o narrador chega a dizer que as pregações de Conselheiro são fracas e sem

sentido.

Além dessa visão do líder de Canudos, o autor também apresenta um retrato

seco e nada idealizado do arraial, mostrando intrigas, rixas e até prostituição, imagem

contrária ao que se convencionou como a comunidade de Belo Monte: um grande grupo

de pessoas comunitariamente unido por uma vida melhor.

Por fim, é fundamental, também, relatar que em João Abade, o autor foge à base

oficial ou euclidiana para conseguir construir tais modificações da imagem do arraial.

Dessa maneira, a visão de Euclides se construíra de fora para dentro, enquanto João

Felício dos Santos o faz de dentro para fora.

Júlio José Chiavenato também se utiliza do episódio de Canudos para executar

uma literatura com tom revisionista com As meninas do Belo Monte. Constituído de três

momentos distintos, a construção do arraial, o que acontece com as crianças

sobreviventes depois da guerra e uma espécie de reencarnação de um dos personagens,

Josefa, quase cem anos depois, o livro de Chiavenato busca mostrar como a guerra

dilacerou uma comunidade que se constituía unida.

- 60 -
Durante a trama, o personagem Antônio Conselheiro não apresenta grande

importância pois a narrativa construída se dá de forma indireta, através da vida de

Josefa, sendo ela um dos focos da obra.

Em 2007, houve a publicação de mais uma obra que tem Conselheiro como

figura ficcional importante para sua construção: A ressurreição de Antônio Conselheiro

e a de seus 12 apóstolos, de Moacir C. Lopes. A teia narrativa se desenvolve baseada na

espera da ressurreição do líder canudense por seus seguidores, mas tal fato não se dá e o

que o narrador apresenta, então, é a revelação de que a realidade que levou à construção

e à revolução de Canudos continua ainda atual e presente no Brasil. De caráter

revisionista, pode-se dizer que, diferentemente de Euclides da Cunha, o texto de Lopes

oferece uma visão diferente do conflito ao mostrá-lo segundo a perspectiva dos

vencidos.

Viu-se, portanto, que o aproveitamento do personagem literário Antônio

Conselheiro vem sendo feito ao longo dos séculos: desde o fim da guerra até o início do

século XXI. Nesse caso, Veiga está incluído nessa vertente que tem, por observação e

conclusão, o objetivo revisionista na sua maioria. Nesse contexto, no próximo capítulo

se observará como José J. Veiga usa esse mesmo tom para construir seu Conselheiro

literário, após desconstruir o já conhecido personagem histórico.

4.3 JOSÉ J. VEIGA E A NOVA LUZ

Após essa breve apresentação de como Antônio Conselheiro tem sido retratado

ao longo dos séculos na literatura brasileira, neste capítulo se buscará a análise de dois

pontos fundamentais para a compreensão do intuito de Veiga ao lançar a nova luz sobre

o episódio de Canudos. Um deles é a maneira que o narrador aponta para novas

- 61 -
perspectivas ficcionalmente construídas que desarticulam o olhar oficial sobre Canudos

e seu líder; o outro é como se dá a desconstrução e posterior reconstrução de

Conselheiro, desde sua figura historicamente reconhecida pelos ritos oficiais, até sua

análise e modificação ao longo do texto feita pelo autor.

Uma das principais articulações feitas pelo narrador é a ligação entre o ficcional

e o documentado com o intuito de mostrar como, aparentemente, o que vai sendo

relatado ao longo do texto é oficialmente comprovado. Um exemplo de tal uso se dá no

começo da narrativa, ao relatar para o leitor o plano para enganar os federais, o narrador

corrobora o acontecido com uma notícia de jornal, além de mostrar o sentimento dos

soldados combatentes:

“Um documento da época conta como isso se deu. ‘Removida breve


camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo... o
corpo do ‘famigerado e bárbaro’ agitador. Estava hediondo. Envolto
no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto
tumefacto e esquálido, olhos fundos cheios de terra, mal o
reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.’”
(VEIGA, 2003, p. 08)

A partir dessa afirmativa, já se pode perceber qual será o tom a ser seguido ao longo da

obra e, mais profundamente, percebe-se como o narrador irá utilizar documentos

históricos para corroborar suas afirmações ou desconstruir as questões oficiais. Com

essa primeira intertextualidade, o narrador aponta para uma possível mudança

utilizando-se de um possível descuido histórico, ficcionalmente construído através da

narrativa e usando documentos e passagens reais para fomentar a realidade aplicada no

romance, especificamente sobre o período que dá início à ficção de Veiga. O que

confirma essa afirmativa é a continuação do texto mostrando os soldados enfadados: “A

comissão de oficiais aceitou que aquele era o cadáver do Conselheiro. Precisava que

- 62 -
fosse, tinha que ser. Todos seus membros queriam encerrar logo o assunto e voltar para

casa como heróis [...]”; assim, o que se apresenta é a possibilidade ficcional, que usa

matéria de extração histórica e, como já afirmado no capítulo 3.2, personagens de cunho

também histórico, de uma nova imagem de Conselheiro, bem como uma outra vertente

de como a história se seguiu a partir dali. Tudo isso mostrado e apontado pelo narrador,

cruzando textos reais e históricos com o objetivo ficcional do autor.

Outro ponto que mostra como o narrador utiliza-se de partes historicamente

documentadas diz respeito ao tratamento dado aos moradores de Canudos capturados

pelos soldados do governo, pois põe em dois lados distintos a ficção e a história:

enquanto os jagunços discutiam como escapar com Antônio Conselheiro vivo, o

narrador mostra ao leitor o que poderia acontecer caso se rendessem através de um

relato de um repórter presente naquela campanha:

“Era impossível resistirem mais, e também não podiam se entregar aos


sitiantes, que degolavam todos os prisioneiros sem piedade. Assim
descreve um repórter que acompanhou a campanha uma dessas
sessões de degola: ‘Chegando à primeira canhada encoberta,
realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente
à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. [...]
Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgarçando-lhe o
pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na [...]’”
(VEIGA, 2003, p. 10)

Ao mostrar a visão de um jornalista que estava presente no local, o narrador dá a base

para que a ficção tome outro caminho em relação ao que oficialmente ocorreu,

baseando-se numa fuga de uma situação de morte para que aconteça a sobrevivência e

transformação de Conselheiro.

A partir desse momento, o narrador começa a preparar o caminho para que haja

a mudança em Antônio Conselheiro, como será abordado ainda neste capítulo: o

- 63 -
primeiro fator que aponta para isso é o término da campanha em Canudos e a

conseqüente oficialização da morte de Conselheiro. Novamente utilizando-se de

documentos e afirmações oficiais e históricos, o narrador mostra como a sociedade civil

da época acreditou que a campanha contra os revoltosos de Canudos havia sido

vitoriosa:

“[...] Quando o cadáver foi achado pela comissão dos federais no dia 6
de outubro, todos concordaram, ou puderam concordar, que se tratava
mesmo do famigerado e bárbaro Antônio Vicente Mendes Maciel,
vulgo Antônio Conselheiro, como afirma a ata então redigida, e
transcrita em parte pelo repórter Euclides Rodrigues Pimenta da
Cunha na correspondência que mandou para o seu jornal, e que faz
parte do livro que publicou sobre a campanha de Canudos cinco anos
depois.” (VEIGA, 2003, ps. 12/13)

Citando Euclides da Cunha, o resultado da afirmação fica ainda mais fortalecido pelo

caráter presencial e, acima de tudo, documental que teve a obra e a atuação de Cunha

quando retornou da campanha.

A retirada de Antônio Conselheiro do arraial após o plano se dá, ficcionalmente,

quatro dias antes do final da guerra, no dia 6 de outubro. Usando, novamente,

documentação de origem histórica, o narrador conta como se deu o derradeiro combate

que foi, segundo o próprio narrador, uma desobediência a Conselheiro:

“Mas nem todos os guerreiros restantes se retiraram. Contrariando o


Conselheiro, uma brigada suicida ficou, para morrer combatendo.
Esse lance final da luta está contado em cores vivas pelo repórter
Pimenta da Cunha em seu livro de 1902. ‘Canudos não se rendeu’, diz
ele. ‘Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento.
Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia
5 de outubro ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores,
que todos morreram. [...]’” (VEIGA, 2003, p. 14)

- 64 -
Além de mostrar que, ficcionalmente, Conselheiro teve alguns dias para sua fuga, o

narrador aborda a vertente da documentação histórica: mesmo sendo um universo

ficcional e criado, o texto não deixa de rearrumar o olhar sobre o que é histórico e o que

é verdadeiro10, até, de certa forma, questionando tal idéia acerca do oficialmente

relatado.

Outra distinção importante que é apresentada e costurada pelo narrador ao longo

da obra é a desconstrução e conseqüente reconstrução de Antônio Conselheiro. Após a

passagem de Conselheiro do aspecto histórico para o aspecto ficcional conduzida pelo

narrador, a mudança que o texto apresentará será profunda no personagem principal,

sendo mostrada e detalhada pelo narrador, que apontará as principais diferenças que

acontecem com Conselheiro.

A primeira mudança que acontece com Antônio Conselheiro é referente ao seu

apelo religioso: enquanto em Canudos a reza era constante, o próprio personagem

resolve mudar o rumo, tanto na questão religiosa quanto na questão do cuidado com as

pessoas.

“[...] Barnabé cuidando do velho e passando aos companheiros as


mudanças que iam ocorrendo nele, por exemplo, ele não andava mais
tão apegado a citações da Bíblia, falava uma linguagem mais singela.
Disse há pouco que era preciso evitar os erros de Canudos, formar
outro arraial mais voltado para as necessidades das pessoas, não se
perdendo tanto tempo com as rezas.” (VEIGA, 2003, ps. 28/29)

Esse novo rumo não deixa de surpreender até os jagunços que haviam percebido a

mudança em seu líder. Além disso, seguindo essa trama, o narrador vai apresentar os

10
Cabe relembrar a afirmação de Hutcheon no capítulo 4.1 sobre a ficção pós-moderna e sua busca pela
verdade histórica: “aquilo que venho chamando de ficção pós-moderna não ‘aspira a contar a verdade’
(Foley 1986a, 26) tanto quanto aspira a perguntar de quem é a verdade que se conta” (HUTCHEON,
1991, p. 162, itálicos originais, grifos nossos).

- 65 -
planos do autor para um novo Conselheiro, totalmente modificado, pensado como novo

líder para um novo arraial.

Uma das principais mudanças ocorridas com o Conselheiro ficcional acontece

um pouco antes de todos decidirem fundar um novo arraial, deixando os jagunços

surpresos e, ao mesmo tempo, satisfeitos com a mudança.

“ ‒Ando pensando cá umas coisas, e desejo saber a opinião dos


senhores.
Houve um movimento geral de cabeças, umas para direita,
outras para a esquerda, cada um querendo ler nas feições do
companheiro do lado o que ele deduzia daquela mudança do chefe.
Mas quem deu a explicação foi o próprio Conselheiro.
‒Vejo que os senhores estão estranhando esta minha conversa,
e não é para menos. Antes eu resolvia tudo sozinho e dava as ordens.
Isso vai mudar, aliás já mudou [...] “(VEIGA, 2003, p. 49)

Tal mudança irá se aprofundar ainda mais ao longo da narrativa e sempre mostrada pelo

narrador. Dessa forma, fica claro o plano ficcional de Veiga para refazer Conselheiro

como um líder democrático dentro de uma comunidade.

Além da mudança interior, relacionada à fé e à reza, da mudança ideológica,

relativa à escolha de Conselheiro em não tomar as decisões de maneira autoritária,

chega o momento em que o narrador descreve a mudança exterior e a transformação do

aspecto messiânico, barba e camisolão, como em Canudos, no de um homem tido como

normal.

“Vendo o arraial tomar corpo depressa antes de ganhar esqueleto, o


Conselheiro achou que estava na hora de firmar certos princípios para
prevenir dissabores. Primeiro, que não convinha ele andar para aqui
e para ali orientando e fiscalizando vestido de camisolão de
zuarte, como em Canudos, e mandou Barnabé localizar um alfaiate
para fazer uns dois parelhos de roupa para ele se apresentar como
todo mundo e não chamar atenção. E resolveu que já era tempo de
ceifar aquela barba, que não tinha mais razão de ser, já que o dono
dela, para todos os efeitos, estava enterrado em Canudos. Vida

- 66 -
nova, cara e estampa novas. E também a maneira de falar com as
pessoas: acabar com o distanciamento, que gera mais
distanciamento.” (VEIGA, 2003, p. 90, grifos nossos)

Essa última mudança radical é a que encerra o ciclo de Antônio Conselheiro como ele

mesmo, tornando-se, assim, um novo personagem que terá, como será mostrado, uma

veia histórica também presente.

A finalização da mudança é notória quando o narrador mostra a conscientização

de que Antônio Conselheiro não é mais o mesmo de Canudos e como, agora, era

simplesmente ele mesmo.

“[...] Estava já com setenta anos, e a saúde falhando. Não teria mais
muito tempo de vida. [...] Falar nisso, era tempo também de ir
largando a casca de Conselheiro, que dali para a frente podia até
estorvar. Se os federais o tinham declarado morto, com
documentos e tudo, não convinha ele ficar se apresentando como
desmentido. A verdade verdadeira era que o Antônio Vicente Mendes
Maciel de hoje não correspondia mais ao de Canudos, isso qualquer
sobrevivente da guerra podia perceber. Era preciso soltar a casca
antiga. Mas não de supetão, para não assustar.” (VEIGA, 2003, ps.
104/105, grifos nossos)

É importante chamar atenção para o fato de que o próprio Conselheiro fala em

documentos, mais uma vez referindo-se à chamada História Oficial. Além disso, tais

mudanças ocorrem antes das visitas de personagens históricos11, pois assim Conselheiro

não seria reconhecido.

Dessa forma, através da atuação do narrador e da reconstrução de Antônio

Conselheiro, José J. Veiga consegue constituir um universo ficcional que toma as

vertentes históricas e pós-modernamente as analisa e as reorganiza de forma que sejam

um novo caminho para a visão do líder de Canudos: mais democrático e aberto, menos

estigmatizado e mal visto.


11
Como apresentado no capítulo 3.2.

- 67 -
Tal olhar sobre o outro fim de Canudos e Conselheiro vem ao encontro de que

aqui já foi abordado: A Casca da Serpente tem, conjugadamente, uma veia histórica e

pós-moderna. Dessa maneira, pode-se afirmar que Veiga atua, de maneira insistente,

para uma nova abordagem e para uma nova opinião acerca daquele acontecimento

histórico. E, assim, no próximo capítulo se mostrará como essa nova apreciação

apresenta um caráter tendencioso ao reconsiderar aquele momento histórico brasileiro.

4.4 A FAVOR DO CONTRÁRIO: A OPINIÃO DE VEIGA

A busca do pós-modernismo ao observar a história oficial é questionar de quem

é a voz presente naquele relato histórico (HUTCHEON, 1991). Tal fato ocorre por se

saber que o fato histórico escrito e documentado está, invariavelmente, contaminado

pela opinião pessoal do autor, seja do documento, livro ou ensaio. Dessa forma, o olhar

pós-moderno, ao se lançar sobre alguma parte histórica, está, definitivamente,

interessado em reconhecer, entender e descobrir de onde vem aquela opinião e,

principalmente, qual sua visão e que mensagem gostaria de deixar ao relatar tais

eventos.

Invariavelmente, o mesmo ocorreu com os relatos da Guerra de Canudos, no fim

do século XIX e início do XX: autores e jornalistas, estando ou não presentes na região,

tomaram partido para um lado, o da República, e, assim, quase extinguiram quaisquer

possibilidades da segunda opinião sobre Antônio Conselheiro. A contaminação das

obras é aparente, não só pelo estilo, mas também pela descrição feita do homem

Conselheiro, como já mostrado no início do capítulo 4.

Um exemplo de tal opinião que remete a um Conselheiro estereotipado é

encontrado na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, autor que, à época, era repórter e

- 68 -
estava presente na campanha dos republicanos para destruir Canudos. Através dessa

obra, é possível ao leitor verificar como Conselheiro era retratado pelos jornalistas e,

mais tarde, pelo próprio Euclides da Cunha. Em um dos textos que Cunha descreve

Conselheiro, pode-se ler o seguinte:

“Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações


católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores,
livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se
condensaram no seu misticismo feroz e extravagante.” (CUNHA,
2000, P. 127)

Dessa forma, já é possível traçar um dos pontos que pode ser analisado na ótica pós-

moderna, pois fica aparente a idéia Cunha traça nessa síntese analítica do homem

Conselheiro.

Ainda segundo Cunha, eram aparentes tanto a loucura, quanto a inferioridade

apresentadas por Conselheiro. Dessa forma, o autor afirma em seu livro:

“Evitada a intrusão de um médico, um antropologista encontrá-lo-ia


normal. [...] O que o primeiro caracterizaria como caso franco de
delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o segundo
indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências
superiores da civilização, [...]” (CUNHA, 2000, P. 128)

Portanto, parece evidente que a escolha pela voz tomada por Euclides da Cunha pode

ser vista como dois pontos de entendimento: de um lado, mostrar Conselheiro como um

ser inferior; e, de outro, mostrava certa cautela ao analisar a atuação do lide canudense

dentro da Guerra.

Finalmente, é, ainda, importante registrar outra opinião de Euclides da Cunha

sobre Conselheiro, visão essa que será retomada na obra de José J. Veiga: “Antônio

Conselheiro foi um gnóstico bronco.” E ainda “[...] um caso notável de degenerescência

- 69 -
intelectual, [...]” (CUNHA, 2000, P. 129). Essas duas citações são suficientes para se

afirmar que Cunha escolheu representar Canudos e todos os acontecimentos em volta

daquele arraial com a voz determinista e cientificista do fim do século XIX. Tal voz

determinista é fundamental para a construção do caráter de Antônio Conselheiro ao

longo da obra de Cunha. Segundo Rogério Silva Souza, o que Euclides fez foi “criar

uma imagem literária de Antônio Conselheiro, não expressando, em nenhum momento

de sua obra, um compromisso com uma visão de verdade histórica, [...]”. (SOUZA, R.,

2001, p. 236). E ao criar essa visão, tomou o cunho determinista como base para

descrever o porquê da guerra de Canudos:

“Segundo o autor [Euclides da Cunha], os acontecimentos


relacionados a Canudos deram-se pelos fatores relacionados à
‘fraqueza racial’ do mestiço sertanejo: ‘A civilização avançará pelos
sertões, impelida por essa implacável força motriz da história [...] no
esmagamento das raças fracas, pelas raças fortes.’” (SOUZA R., 2001,
p. 237)

Já a história oficial construída ao longo dos anos seguintes buscou mostrar

Conselheiro como bandido e fora da lei, alguém que foi contra a instauração da

República no país. Em O Dicionário de história do Brasil, organizado por Moacyr

Flores, existe um exemplo dessa tendência da historiografia oficial ao representar

Conselheiro, mostrando-o como uma figura controversa às leis. Além disso, também

retrata o líder canudense como fanático e incitador a ataques a vilas próximas e, ainda,

acusado de ser contra a República. Por fim, o verbete ainda afirma que a cabeça foi

decepada para ser estudada e apurar sua sanidade mental. Dessa maneira, fica claro

como se deu a representação de Antônio Conselheiro pela historiografia chamada de

oficial.

- 70 -
E no verbete que busca explicar a revolução de Canudos, novamente se

apresenta uma mera descrição dos acontecidos, deixando de lado um olhar mais crítico

para, simplesmente, seguir a postulação da história sobre aquele conflito, corroborando,

até, a visão oficial. Observe-se o início da definição:

“[...] O monge Conselheiro ditava as normas da cidade, condenando a


República pela separação entre a Igreja e o Estado, e pela criação de
impostos. Preparava sua congregação para o Juízo Final, quando
voltaria o rei D. Sebastião [...] Temendo a ação dos jagunços de
Conselheiro, o governador da Bahia enviou o tem. Manuel da Silva
Pires Ferreira com mais dois oficiais e 104 praças do 9º Batalhão
[...]”(FLORES, 2001, p. 373)

E a definição continua para mostrar como os jagunços de Antônio Conselheiro

emboscaram a expedição militar.

Também Rogério Silva Souza revela esse olhar histórico fixador da idéia

contrária a Canudos: “Esse aspecto de idealização do sertanejo foi absorvido tanto pela

historiografia, principalmente de tendência marxista, que se debruçou sobre o tema,

como pela análise de depoimentos orais [...]”. (SOUZA R., 2001, p. 236) E ainda a esse

respeito:

“Há inúmeras críticas entre os especialistas do tema voltadas,


principalmente, aos estudos de Euclides da Cunha e às obras que
tiveram sua influência. [...] De maneira geral, as críticas a essas duas
linhas de análise procuram mostrar que euclidianos e marxistas
criaram uma ‘Canudos que não existiu’, presa ao determinismo racial
ou às estruturas econômicas. [...].” (SOUZA R., 2001, p. 269)

É possível afirmar que todas essas posições tomadas pela chamada historiografia

oficial contaminaram Veiga e o fizeram querer levantar uma nova hipótese: em sua

penúltima entrevista, concedida um ano antes de falecer, quando perguntado se fazia

muitas pesquisas para escrever seus livros, o autor confirma:

- 71 -
“Dependendo do assunto, sim. Por exemplo: para escrever A casca da
serpente, que trata de Canudos – não sei se conhecem o livro – eu tive
que reler Os sertões, de Euclides da Cunha, que havia lido na
juventude, para me botar em dia, pois se basear só na memória não dá.
Tem que fazer uma pesquisa.” (ARAGÃO, Octavio & FERNANDES,
Fábio, 2001)

E com essa perspectiva que Veiga, baseando-se no intuito pós-moderno,

apresenta, através do narrador, uma visão diferente das visões oficiais que tinham como

base a degeneração física e intelectual de Antônio Conselheiro; o autor, ao contrário,

procura desconstruir esse julgamento ao dar a Conselheiro uma nova chance, mostrando

as prováveis idéias do líder e, acima de tudo, mostrando outra posição acerca do

sertanejo.

Um indício dessa mudança aparece ao se ler sobre como os moradores de

Canudos eram degolados sem piedade e, em contrapartida, os moradores também

degolavam os republicanos. Ao se utilizar da voz de um prisioneiro que conta toda a

história, o narrador enfatiza a justificativa. Embora o ato seja o mesmo, a visão

apresentada distingue, de maneira proposital, a razão de cada um:

“[...] parece que os federais só vieram a Canudos para degolar


gente, coisa mesmo do Anticristo. [...] Quando o degolador de
serviço se cansava, passava o cutelo a outro e ia comer, ou
dormir de roncar. Do nosso lado também, soldado prisioneiro
não era tratado como vossa alteza, ou vossa excelência, ou vossa
senhoria. Mas era preciso ter em conta que Canudos estava
se defendendo. Ora, quem vai buscar lã não deve reclamar
caso saia tosquiado.” (VEIGA, 2003, ps. 23/24, grifo nosso)

Fazendo o mesmo contra os soldados republicanos capturados, a impressão que o texto

transmite revela soldados culpados por virem atacar Canudos, embora houvesse a opção

de um tratamento diferente em relação aos prisioneiros.

- 72 -
Já no fim do romance, o narrador apresenta mais duas visões que desconstroem

as apresentadas pela história oficial. A primeira afirma que a experiência liderada por

Conselheiro em construir um arraial democrático foi vitoriosa: “E no arraial o resultado

de tanta conversa dói aparecendo nas simples e belas construções materiais [...] que

deram corpo e alma à Concorrência de Itatimundé, comunidade que serviu de

modelo a uma infinidade de outras mundo afora.” (VEIGA, 2003, p. 158, grifo

nosso); a segunda contrapõe-se à apresentada por Euclides da Cunha, ao descrever

Conselheiro, pois apresenta que mesmo sendo considerado bronco e degenerado

intelectualmente, na ficção de Veiga ele conseguiu realizar seu sonho:

“E da mesma forma que o Conselheiro, ‘o gnóstico bronco’, um ‘caso


notável de degenerescência intelectual’, foi ‘degolado’ depois de
‘morto’, também a estátua do tio Antônio, que completava o visual da
praça principal da Concorrência, foi dinamitada pelos invasores em
1965 [...]” (VEIGA, 2003, ps. 158/159)

Ao mostrar esses dois atos que deram certo, o autor, através do narrador, aponta para o

lado positivo que Conselheiro, ficcionalmente, ajudou a construir, rebatendo a idéia de

um homem limitado e sem consciência de seus atos.

Assim, foi possível perceber que Veiga realmente utiliza a estrutura narrativa

para mostrar uma nova probabilidade sobre Antônio Conselheiro; com isso, desmonta a

opinião que havia até então sobre tal personagem ao construí-lo ficcionalmente,

causando o embate entre a ficção histórica pós-moderna e a história oficial

documentada, mas que apresenta a veia de quem a escreveu. De qualquer maneira, o

autor consegue estar a favor de um dos personagens históricos mais contrariados como é

Antônio Conselheiro.

- 73 -
Dessa maneira, toda a reconstrução do líder de Canudos aparenta uma nova

possibilidade com a reorganização das opiniões acerca de Conselheiro e, ao mesmo

tempo, abre um pressuposto, mesmo que ficcional, da história oficialmente organizada.

5. CONCLUSÃO

O projeto literário de José J. Veiga foi extremamente direcionado para uma

narrativa que buscava apresentar pontos de desequilíbrio aos quais eram submetidos

pequenas cidades ou pequenos povoados ao se instaurar uma ação que modificava a

situação diária das pessoas que lá viviam. Tal ação podia ir desde a chegada de uma

empresa que, teoricamente traria o progresso, até invasão de animais às casas dos

moradores de determinado povoado. Através desse olhar sobre a perda da liberdade

criada pela invasão de fatores externos, a ficção veigueana foi, por anos, tida como o

retrato do momento que o país atravessava: uma ditadura por vezes ferrenha, a falta da

liberdade em diferentes níveis sociais, agressões e torturas etc. É crucial, porém,

ressaltar que, ficcionalmente, os textos de Veiga não serviam apenas a um desejo

representativo da realidade ao seu redor. Como foi mostrado aqui, o próprio autor tinha

consciência de que era virtualmente impossível ficar imune às ocorrências ao seu redor,

mas descartava, veementemente, a condição de uma obra alegórica e espelhada

totalmente no período que vivia.

Após um certo ponto, Veiga já buscava extrair dele mesmo uma saída mais

amena ao que parecia ser sombrio. Dentro dessa perspectiva, o autor perseguia, já

consagrado nacional e internacionalmente12, uma intenção e um diferente olhar sobre os


12
Além de vencedor do Prêmio Jabuti, Veiga também teve seus livros traduzidos e publicados em
diversas línguas.

- 74 -
acontecimentos que surgiam no contexto social brasileiro. E, em 1980, é publicado o

livro De jogos e festas, obra que, segundo o próprio escritor, procurava mostrar um

novo aspecto: menos sombria, menos agressiva, enfim, menos sufocada pela violência e

invasão do espaço de convivência. Ainda segundo José J. Veiga, não obteve êxito na

sua tentativa, pois percebia que ainda estava contaminado pelo que acontecia ao seu

redor dentro da sociedade brasileira tomada pelo regime de exceção.

Mesmo depois desse desassossego mostrado pelo autor ao não obter sucesso

com essa tentativa de trazer um novo ar à sua narrativa, ele não desiste e escreve o livro

que foi objeto de análise desta pesquisa, A casca da serpente. Já no fim da década de

1990, talvez tomado pela mudança política presenciada, Veiga procura mostrar uma

opção mais amena e mais branda a todo seu projeto ficcional que foi construído ao

longo das últimas quase três décadas. E, para além, tal obra iria abrir a porta de uma

nova possibilidade que Veiga criara para sua narrativa ao focar em um evento histórico

acontecido quase cem anos antes da publicação do romance, mas não de forma inocente:

buscando uma análise diferenciada do acontecido, bem como do principal personagem

envolvido, Antônio Conselheiro. Também teve, ainda, a influência de tendências pós-

modernas que permearam sua narrativa nesse texto.

Ao procurar a quebra da linearidade de seu projeto literário, José J. Veiga

oxigena suas vertentes narrativas buscando um fim mais positivo, mas contrário ao que,

ao longo de sua carreira anterior àquele momento, o escritor apresentava em seus textos.

Pelo próprio momento político vivido e pelo novo que via florescer, ficava claro,

portanto, que alguma inovação deveria acontecer. Após sua frustrada tentativa em De

jogos e festas, isso ficou provado com a quebra do Ciclo Sombrio e a composição d’A

casca da serpente.

- 75 -
Com esse livro, Veiga estava olhando para um horizonte, para ele, inovador em

vários âmbitos: desde a perspectiva de uma mudança política até o uso de ferramentas

que eram novas até para o autor consagrado. Primeiramente, o escritor mostrava uma

face de um personagem histórico renovada, pois o autor pretendia descortinar uma

observação diferenciada do caráter de Antônio Conselheiro, mantendo-o vivo depois da

guerra de Canudos e, ao longo do romance, sofrendo uma metamorfose que refigura o

personagem histórico e ficcional. Tal modificação vem ao encontro aos acontecimentos

no país: uma abertura para a liberdade, alterando o tom sombrio quem havia no

momento e que Veiga empregava em seus textos. Além dessa mudança de projeto

literário, ele também apresenta, nesse romance especificamente, a adoção de outras

práticas de escrita que eram inovações para as narrativas veigueanas: o tom pós-

moderno do romance recebe destaque por ser uma ferramenta original nos escritos de

Veiga. A desconstrução e reconstrução do evento escolhido aponta para o caráter

diferenciado ao possuído pela obra.

Esses dois aspectos importantes sobressaem à questão da mudança do Ciclo

Sombrio por Veiga e que foram a base do questionamento e posterior análise deste

trabalho: o primeiro remete-se ao uso de um evento histórico como base para a

construção ficcional que apresenta a obra; o segundo está relacionado com a influência

do tom pós-moderno adotado pelo autor ao longo da narrativa. Dessa maneira, é

possível apontar algumas resoluções feitas a partir dos questionamentos guias desta

análise.

Ao se observar a questão histórica do romance, é relevante salientar alguns

pontos que são fundamentais para tal estudo. Como visto nesta pesquisa, o romance

histórico é chamado de histórico, basicamente, por apresentar, dentro de seu enredo,

- 76 -
matéria de extração histórica, ou seja, um evento, fato ou parte que seja

reconhecidamente da história de uma comunidade. Entre as várias características

requisitadas de um romance para ser chamado de histórico, viu-se que essa é a mais

relevante. E, seguindo esse parâmetro, pode-se observar como o livro A casca da

serpente apresenta todas as qualidades necessárias para ser chamado de um romance

histórico. Desde o uso de figuras historicamente reconhecidas, algumas fora da

convivência real e temporal de Conselheiro, até o mais importante que é o uso de

matéria de extração histórica, a ficção de Veiga abrange todas essas peculiaridades. Tal

utilização da matéria de extração histórica, porém, não é a única singularidade do

romance aqui analisado: a maneira que Veiga toma esses fatos e os reanalisa também é

imperativa para uma completa observação do livro.

Intimamente ligado à utilização de matéria histórica no romance está o uso de

idéias pós-modernas que são, como analisado e mostrado no capítulo 4, capitais na

composição do texto. O primeiro ponto de estudo é a questão da desconstrução e

conseqüente reconstrução histórica promovidas por Veiga: ao tomar um evento como

ponto de partida daquela ficção, o autor o desconstrói, mostra uma possibilidade

diferente e, por fim, o reconstrói por meio de transformações e revelações do

personagem principal de seu enredo, o líder de Canudos, Antônio Conselheiro.

Através dessa reorganização histórica, Veiga traz uma nova luz sobre a figura

histórica de Antônio Conselheiro e, assim, intenta mostrar uma alternativa diferente ao

que se havia defendido até aquele momento. Isso se dá, principalmente, por meio do

embate das idéias que são construídas sobre o líder revolucionário com as defendidas

por alguns jornalistas e escritores, como Euclides da Cunha. Com base determinista,

Cunha desvela um Conselheiro produto de seu próprio meio, fadado, juntamente com o

- 77 -
povo sertanejo, à extinção com a chegada do progresso e das cidades. Além de Cunha,

também foram apresentados outros fragmentos de obras de cunho historiográfico para

ficarem claras as posições tomadas pelos autores que seguem a linha oficial; por outro

lado, Veiga constrói um homem mais tolerante, observador e aberto ao diálogo, guia de

seu povo para um novo povoado e ali consegue realizar seu sonho de uma comunidade

igualitária.

Também foi abordado o aproveitamento de Antônio Conselheiro como figura

literária por diversos autores, sendo possível afirmar que tal uso iniciou-se ainda no

século XIX e se estendeu até o século XXI. Por vezes, essa utilização literária se deu

buscando um novo olhar sobre o líder de Canudos, mas, também, houve autores o

deixando com a alcunha construída pela história oficial.

E por Veiga perseguir essa renovação de Conselheiro, fez-se notar outro ponto

de estudo aqui abordado: a opinião que o autor inclui ao longo da obra, mostrando o

personagem principal com uma roupagem diferente do tradicionalmente descrito pela

história oficial. Tal opinião demonstra duas questões relevantes a esta análise, pois além

de o autor decidir colocar um personagem histórico em seu romance, modificá-lo e

reapresentá-lo, também existe a total quebra com o plano ficcional que era utilizado.

Até aquele momento, as obras veigueanas apresentavam uma clara referência à perda da

liberdade, tomada de forma violenta, às vezes com o pretexto de se trazer progresso a

uma comunidade; no caso d’A casca da serpente, o que se observa é justamente o

contrário: uma comunidade avessa ao chamado progresso, fechada em torno de um

objetivo comum de prosperidade igualitária. Através da construção dessa imagem,

Veiga não apenas abarca sua opinião sobre Conselheiro, mas também aponta sua obra

para uma nova perspectiva ficcional diferente daquela que vinha seguindo nos seus

- 78 -
livros anteriores, a de uma opção mais amena e uma alternativa às sociedades

repressoras e ao progresso sempre tido como positivo, mas não respeita as

peculiaridades dos nativos de determinada região.

Dessa forma, é possível enumerar algumas características marcantes nos livros

de José J. Veiga e que, na obra aqui estudada, sofrem certa reinvenção por parte do

autor. Percebeu-se que existiram peculiaridades unificando os textos veigueanos dentro

de um ciclo, chamado de Ciclo Sombrio. As narrativas dentro desse ciclo apresentavam

uma forte tendência à falta da liberdade e à invasão de um local pacato por corpos,

máquinas ou seres alienígenas àquele espaço. Também foi mostrado que a primeira

tentativa de fuga desse ciclo foi através do livro De festas e jogos, mas foi negada pelo

próprio autor em entrevista. Assim, chega-se à obra aqui estudada: A casca da serpente.

É com essa obra que Veiga quebra todo o seu projeto literário construído ao

longo de sua carreira de quase trinta anos: a busca por uma comunidade igualitária, a

liberdade afastada do progresso, o novo tom dado ao histórico, mas ficcional em sua

obra, Conselheiro, os contrastes com o determinismo histórico de Cunha, a opinião

acerca do melhor modelo administrativo de uma comunidade. Enfim, é através dessa

obra que José J. Veiga exprime seu desejo de uma radical mudança nas atitudes

políticas e organizacionais da sociedade brasileira, usando Antônio Conselheiro como

exemplo dos erros cometidos e dos prováveis acertos.

Fez-se, portanto, uma análise d’A casca da serpente seguindo alguns passos

básicos: a apresentação e apreciação da obra de Veiga, apontando para as similaridades

dentro de suas composições literárias, enquadrando-as no chamado Ciclo Sombrio; a

seguir, um estudo sobre a origem do romance e, de maneira aprofundada, as

características essenciais para que se chame um romance de histórico, com a

- 79 -
conseqüente confirmação do texto aqui estudado realmente como um romance histórico;

e, por fim, observou-se a atuação da influência pós-moderna na obra, já que o autor

aborda o evento histórico de uma maneira diferenciada ao modificá-lo para,

ficcionalmente, reconstruí-lo, além de exprimir, implicitamente, suas opiniões sobre o

acontecimento escolhido e as novas possibilidades que se apresentavam.

Por fim, foram confirmados todos os pontos norteadores dos questionamentos

que se suscitaram acerca da ficção escolhida para análise. Tais confirmações apenas

demonstram como a obra veigueana é rica em possibilidades e inovações, como o

próprio escritor afirma: “Acho também que, além do que nós estamos vendo aqui na

superfície, por trás, por baixo, tem muita coisa que as pessoas comuns não vêem. Cabe

ao escritor a obrigação de levantar o lençol da realidade e olhar mais fundo. Ir além.”

(ARAGÃO, Octavio & FERNANDES, Fábio, 2001). Essa afirmação de Veiga apenas vem

corroborar as noções e idéias de que os textos de veigueanos não apenas têm um

propósito dentro de seu plano literário, mas também se abrem a conceitos inovadores,

abarcando novidades e, principalmente, ratificando José J. Veiga entre os grandes

escritores brasileiros do século XX.

- 80 -
6. REFERÊNCIAS

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