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FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS
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Rio de Janeiro
Agosto de 2009
Examinada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Dr. Alcmeno Bastos
_______________________________
Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto
_______________________________
Prof. Dr. José Luís Jobim
_______________________________
Prof. Dr. Adauri da Silva Bastos (suplente)
_______________________________
Prof. Dr. Francisco Venceslau dos Santos (suplente)
Rio de Janeiro
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Agosto de 2009
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Jorge Luis Borges
AGRADECIMENTOS
• À minha família: minha mãe, meu pai e meu irmão, por terem me dado apoio
nos momentos mais tempestuosos.
• Ao meu orientador, Alcmeno Bastos, por toda a luz e saber que me fizeram ter
uma nova percepção.
• Ao amigo João Ricardo Melo Figueiredo, por toda a ajuda para que eu pudesse
trilhar este caminho.
MUITO OBRIGADO.
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DIAS, João Paulo Moreno. Antônio Conselheiro não morreu; ficção histórica e pós-
modernidade em A casca da serpente, de José J. Veiga. Rio de Janeiro, UFRJ,
Faculdade de Letras, 2009. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
RESUMO
Esta dissertação analisa o romance A casca da serpente (1989), de José J. Veiga, sob
dois aspectos distintos: como ficção histórica e como ficção do pós-modernismo. Para
autor utiliza essas duas bases como apoio para a representação do Conselheiro
transformado e renovado.
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DIAS, João Paulo Moreno. Antônio Conselheiro não morreu; ficção histórica e pós-
modernidade em A casca da serpente, de José J. Veiga. Rio de Janeiro, UFRJ,
Faculdade de Letras, 2009. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
ABSTRACT
This dissertation analyses the novel A casca da serpente (1989), by José J. Veiga, under
two different aspects: as historical fiction and as post-modernism fiction. Such matters
are related to the composition and to the use of official History by literature, as well as
reconstruction of Antônio Conselheiro, on the historical and the fictional plans. This
study shows how the author uses those two basic tools as a starting point to present a
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
tendo o fim da ditadura militar como principal ator dentro desse contexto agora
artistas, políticos e, o mais importante para esta análise, escritores brasileiros que
conviveram durante anos com o regime de exceção instalado no país. Até certo ponto,
seria normal que houvesse contaminação de todos aqueles que passavam por aquele
algumas obras poderiam sofrer sob o pesado véu de um golpe militar, como afirma
Alcmeno Bastos:
histórico para a democracia brasileira. Mesmo não sendo afetados pelo fator externo,
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alguns autores se viram em meio a uma transformação pela qual era impossível passar
ditatorial e, até, uma descrição do novo meio social que começava a vigorar no país,
democráticas, que José J. Veiga se encontra. A base ficcional escolhida pelo próprio
si mesmos que mostrassem tanto a violência contra os cidadãos quanto a busca pelo
poder que afeta toda a comunidade1. Como bem descreve Bastos, o mundo veigueano
apresenta o insólito no qual irrompe “um poder novo, impessoal, [...] mas sempre
autoritário, que não recua no emprego das várias formas de violência física e/ou
psicológica para fazer valer suas prerrogativas, [...]” (BASTOS, 2000, p. 109). Sempre
cercados por esses temas, os textos de Veiga representam e apontam para a violência
um tom sombrio e de asfixia da liberdade, tomando ou não, como se verá nos próximos
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como ponto básico o novo regime político. E se sua ficção era influenciada pelo que
estava ao seu redor, era claro que um novo olhar seria necessário no momento de
transição político-histórica pelo qual o país passava, como se pode perceber pela
Inserido nessa revolução popular pela liberdade, o escritor, também tocado pelo
que acontece ao seu redor, publica, em 1989, A casca da serpente, romance que será o
corpus desta análise e que representa, como será mais bem descrito nos próximos
Guerra de Canudos e a morte de Antônio Conselheiro, seu líder, para, dali, tecer sua teia
estudado, fazem-se necessários alguns passos e etapas formais que serão, de maneira
coesa, descritos a seguir para que haja total esclarecimento das fases que virão.
uma visão abrangente da obra de Veiga até a publicação de A casca da serpente para
que ocorra, significativamente, uma mostra e exposição das idéias e intenções do autor
ao construir suas ficções, observando também como tais textos contribuíram para a
semelhantes entre si. Tendo A casca da serpente como principal eixo, também se fará
uma breve explanação sobre os romances publicados após esse ponto de análise para
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verificar e, caso possível, corroborar a mudança no objetivo literário organizado e
Outro tema que é crucial para o estudo é o ponto crítico acerca do romance
histórico, tema que será abordado no capítulo 3: por se tratar de um texto que apresenta,
pode ser chamado de histórico, dentro de uma nomenclatura padrão adotada para
recorrerá, primeiramente, à base teórica que aborda desde o início do romance até sua
Após tal análise, é fundamental buscar um texto crítico que aponte para
confrontar as idéias críticas com o texto de Veiga e, caso seja possível, confirmar o
esquema ficcional dentro do qual vinha construindo sua obra, Veiga também inovou ao
será mostrado, nova luz sobre fatos que suscitavam diversas opiniões, algumas até
contraditórias, mas que serão observadas aqui. Para que tal mudança de rumo na sua
ficção fique clara, serão mostradas diversas análises e opiniões acerca do evento
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histórico usado por Veiga para que se observe o tom usado por historiadores,
confirmando o discurso tido como oficial até chegar ao que levou o nome de
revisionista, pois busca revisar os acontecimentos históricos sob outra perspectiva que
não o simples relato dos vencedores. Todos esses estudos serão somados à observação
vertentes de análise que buscarão confirmar tal possibilidade aqui apresentada; uma
delas focará no estudo da teia narrativa construída pelo autor, revelando as ferramentas
narrativas por ele usadas, as concessões e as escolhas para fomentar o aspecto renovado
e pós-moderno.
nacional.
contaminada do autor é uma questão que pode determinar não apenas sua opção política
e histórica, mas também como a ficção pode apresentar graus dessa contaminação,
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determinados acontecimentos. Para que tal opção fique clara, algumas opiniões serão
autor para corroborar sua escolha por uma visão diferente do que sempre se buscou na
provável influência que Veiga transferiu para essa obra ao escrevê-la, confirmando ou
abrangente da obra de Veiga para que se possa, de maneira integral, estudar e analisar a
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2. DAS SOMBRAS À LUZ: UM BREVE OLHAR SOBRE A OBRA DE JOSÉ J.
VEIGA
Ao longo dos últimos anos, a obra ficcional de José J. Veiga vem sendo
buscam encontrar uma nomenclatura correta e que, ao mesmo tempo, tentam enquadrar
o autor por diferentes vertentes, entre as quais se podem destacar duas. Uma delas é a
visão que vem do chamado realismo fantástico, defendendo que Veiga aborda a
pois o crítico faz certa justiça ao tom inovador de Veiga: “os seus adeptos [do realismo
fantástico] são legião, mas bem antes de a moda se instalar José J. Veiga tinha
fantástico irrompe como intruso do ritmo cotidiano.” (BOSI, 1975, p. 14). Tal inovação
E uma outra análise que observa a narrativa histórica, que é proporcionada por
alguns autores, como Alcmeno Bastos em A História foi assim: o romance político
brasileiro nos anos 70/80, ao apontar a tomada de Veiga de um evento histórico como
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fato de Veiga ter seus textos vistos como uma representação do momento histórico pelo
análise que se seguirá mais adiante da obra escolhida abordará uma relação entre ficção
e história, já que o objeto de estudo está centrado num evento histórico nacional.
época em questão, e, assim, ter-se uma visão não muito ampla acerca da obra do autor
até o final da década de 90. Com essa mesma opinião é possível destacar a posição de
Gregório Dantas:
A partir da década de 90, com novos estudos e olhares sobre a obra de Veiga, houve
outra abordagem que parte de uma posição diferenciada, pois trata dos romances de uma
2
Do início da publicação de suas obras até o momento da publicação do texto aqui analisado passam-se
quase trinta anos. Todos eles dentro do período da ditadura militar brasileira.
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maneira mais aprofundada, observando os mecanismos narrativos e ficcionais
empregados por ele e se descolando da simples análise que confrontava a obra com o
enxerga um novo modelo na obra de José J. Veiga, já que parte para uma observação
“Ler J. Veiga como uma reflexão do Brasil dos últimos anos não
descarta uma outra reflexão: a situação universal da condição
humana sob regimes de opressão. Situação que não é exclusiva dos
brasileiros, mas diz respeito à liberdade e à existência de todos
enquanto humanidade. (SOUZA A., 1990, p. 61, grifos nossos)
Portanto, é imperativo que se dissocie a obra veigueana de uma visão simplista de uma
obra que apenas espelha a passagem temporal de uma época histórica do Brasil. Assim,
uma análise poderá ser feita e que tomará por base não apenas um momento histórico
como pretexto, mas uma construção narrativa (e até literária) que transcende a simples
evitando, portanto, uma possível simplificação dos temas abordados pelo autor e
Veiga e, por ser pertinente ao período aqui estudado e ter aparente correção, foi adotada
neste estudo. Também se fará uma breve apresentação dos romances e contos3 que
3
Foram deixadas de fora do corpus deste trabalho as narrativas infanto-juvenil Prof. Burrim e as quatro
calamidades e Tajá e sua gente, o livro de humor Almanaque de Piumhy, além de contos publicados em
periódicos ou em antologias.
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2.1 O CAMINHO PELO CICLO SOMBRIO
possível dividi-la em duas partes distintas e que espelham os momentos nos quais foram
parte, já tendo tal período encerrado, tem como característica um tom de esperança
textos do autor carregam uma mensagem pesada e negativa, trazida pela narrativa
Esse ciclo pode ser considerado encerrado justamente antes da obra que se pretende
analisar aqui, e, por isso, ser importante mostrar os motivos que levarão a tal quebra de
padrão.
Platiplanto, em 1959. Essa primeira publicação é importante, já que mostra que, embora
haja ligação entre a narrativa veigueana e o momento histórico no qual o autor viveu, o
fato de a edição acontecer antes do golpe militar de 1964 revela que Veiga criara um
texto longe da influência histórica momentânea, como ele mesmo afirma a Prado: em
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A negativa de Veiga apenas vem corroborar a afirmativa de Agostinho Potenciano de
Souza sobre a questão do simplismo em relação à leitura das obras de Veiga. Também
Político Brasileiro nos anos 70/80, discorre sobre o perigo simplista de ler Veiga como
Quatro anos depois, Dantas também chamaria a atenção para o mesmo aspecto:
características que trazem à tona a questão dual previamente citada neste trabalho:
Usina atrás do Morro”, irá, de certa maneira, permear todo o Ciclo Sombrio de Veiga,
deixando clara sua intenção em construir uma obra que tem como mote desassossegar o
leitor que busca outra visão para a perda total da liberdade. Nepomuceno corrobora tal
afirmativa ao dizer
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“Pelo menos nos primeiros romances, A hora dos ruminantes (1966),
Sombras de reis barbudos (1972), Os pecados da tribo (1976) e
Aquele mundo de Vasabarros (1982), em especial nos dois primeiros,
José J. Veiga faz variações em torno de um tema já proposto no conto
“A usina atrás do morro” (conforme já se disse), variações que ainda
têm ecos em contos de outros Livros [...]” (NEPOMUCENO, 2007, p.
101.)
Assim, seguindo esse tema, Veiga irá levar o leitor a ser cúmplice de seus personagens,
sempre trabalhando na dualidade, como afirma Dantas: “porque ao leitor não é dado o
Sete anos depois, veio à luz o livro A Hora dos Ruminantes e, embora tenha sido
publicado em 1966, tal texto remonta a 1961. De acordo com a biografia de Veiga
escrita por Agostinho Potenciano de Souza, A Hora dos Ruminantes começou a ser
escrita antes do golpe militar de 1964 e só foi lançado em 1966, ou seja, dois anos após
o golpe militar, o que aponta claramente para o não-uso do momento político como
mote para seu romance. Ainda segundo Potenciano de Souza, é essa a obra que coloca
passível de existência.
Nesse romance, Veiga continua a construir uma visão de mundo que é carregada
de privação da liberdade e que vai ao extremo em não permitir mais que seus cidadãos
não se movimentem livremente pela cidade, já que estão impossibilitados por invasões
de bois e cães. É percebível que Veiga retoma a mesma temática do conto publicado em
seu primeiro livro e que vai permear sua obra ao longo do Ciclo Sombrio.
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Diferentemente dos livros seguintes, esse livro aponta para uma saída positiva para o
excesso de poder. O próprio autor comenta o que o fez dar aquele final que seria, mais
tarde, destoante dos outros textos e criticado por vários leitores, por se mostrar otimista:
Após esse romance, Veiga lança um livro de contos cujo título é A Máquina
Extraviada, em 1967 e, mais tarde, a partir da quarta edição, republicado com o nome
de A Estranha Máquina Extraviada. O conteúdo dos contos vem retomar o mesmo mote
seguido na primeira obra: pequenas cidades do interior perturbadas por algo. Maria
Zaria Turchi levanta as semelhanças entre os dois primeiros livros de contos de Veiga:
Embora as obras tenham temas que se entrelaçam (TURCHI, 2003), existe uma
diferença básica que o próprio autor relata em uma de suas entrevistas: o livro Os
Cavalinhos de Platiplanto tem um viés mais pessoal e lírico, ao passo que seu segundo
livro de contos já traz uma visão contaminada pelo pessimismo, como o próprio Veiga
– não faço nunca, pelo menos meu vigio para não fazer – muito de minha experiência de
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Extraviada, tem-se um maior uso do absurdo e do insólito por parte do autor, seguindo
um alto teor repressivo por parte do governo, logo os textos de Veiga adquirem uma
estudos por não privilegiar a totalidade da obra veigueana: Tanto Bastos (2000), como
já citado, quanto Dantas têm a mesma percepção ao afirmar que “Limitar a obra de
Assim, é importante que não se deixe enganar pelo fato de Veiga recorrer a motes
semelhantes ao longo de sua obra, pois se trata de um projeto definido pelo autor que
esperava, a longo prazo, uma mudança política no país. Tal mudança não aconteceu e,
com isso, seus textos foram sendo associados com o momento pelo qual a nação
passava, mesmo Veiga tendo dito que não retratava apenas isso.
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Cabe salientar, também, que Sombras dos Reis Barbudos é tido por José J. Veiga
como uma resposta às críticas que surgiram após a publicação de A Hora dos
Ruminantes. Essas críticas aconteceram pelo fato de o fim do livro trazer um certo ar de
possibilidade de melhora. Sobre isso, o autor afirma: “Fui muito criticado por alguns,
que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de
(WEINTRAUB, F., COHN, S. & PROENÇA, R., 1999). Tal afirmação por parte do
autor mostra que mesmo tendo um projeto literário definido, ele estava pronto a se
deixar influenciar por algumas questões que achava relevantes durante a composição de
suas obras. Mesmo negando que fazia uma ficção baseada nos acontecimentos
contemporâneos à sua escrita, a influência acaba por aparecer, fazendo com que o autor
livro que subverte ainda mais a relação entre o Homem e a Liberdade, entre o Homem e
Segundo Agostinho Potenciano de Souza (1990, p. 126) talvez esse seja o livro “mais
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Dessa maneira carnavalizada, o autor traz à tona questões existenciais do homem e de
“Essa [a obra aqui citada] é uma forma de apresentar questões filosóficas fundamentais
para o homem, quanto ao exercício do poder.” (SOUZA A., 1990, p. 128) E mesmo que
haja interpretações que afirmam que Veiga retrata a situação política do Brasil, há uma
possibilidade de também se afirmar que o autor seguiu seu projeto de apontar como as
conto intitulado De jogos e festas, ganhador do Prêmio Jabuti de 1981, no qual Veiga
tenta sair do Ciclo Sombrio, como apontam alguns autores, como Amâncio &
(AMÂNCIO & CAMPEDELLI, 1982, p. 87). Porém, segundo Antônio Arnoni Prado,
Veiga não obtém êxito, como bem observa em sua análise: “Numa tentativa de sair do
Ciclo Sombrio, Veiga lança De jogos e festas, duas novelas e um conto, em 1980. Mas
logo reconhece que não chega a ser um livro muito diferente dos anteriores.” (PRADO,
1989, p. 17). A confirmação final se dá na fala do próprio autor, que admite não
uma entrevista:
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a vida. Mesmo quando ele pensa que está fugindo a isso, como
ocorreu comigo.” (AMÂNCIO & CAMPEDELLI, 1982, p. 87)
aparentemente, Veiga segue o mesmo padrão de construção ficcional dos seus primeiros
maior carga sobre a ridicularização do domínio entre as analisadas até o momento, com
a alta utilização da sátira e, por fim, o retorno à tragédia que acompanha os textos do
principal hipótese que diz respeito ao fim do Ciclo é bem retomada por Dantas em seu
artigo:
E é a partir dessa obra que Veiga começa a demonstrar um grau de esperança que
contaminará seus próximos textos, até A casca da serpente. Tal fato será melhor
Fez-se, até aqui, uma breve explanação das obras de Veiga considerando tanto
suas estruturas narrativas, quanto as observações do autor sobre seus livros. Mostrou-se,
também, como José J. Veiga construiu um projeto literário de vanguarda que, ao longo
dos anos, foi se adaptando a tudo que estava à volta do autor, desde a realidade política
até críticas a seus textos. Dessa forma, com a crescente esperança que foi tomando o
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escritor, foi possível perceber que suas obras foram apontando um rumo que se fez
serpente, inicia uma ficção mais oxigenada com perspectivas diferentes. No capítulo
que se seguirá, tal ressonante mudança no projeto ficcional de parte da obra veigueana
será ilustrada, especialmente após a quebra do plano estabelecido por Veiga para sua
carreira literária, para que a análise das composições do escritor tenha um cunho
fechado e completo, levando o olhar a todos os livros por ele publicados, baseando-se
em estudos, artigos e análises das obras escritas posteriormente ao texto aqui estudado.
Dessa forma, essa apresentação se fará de forma a entender como as ficções publicadas
após o livro aqui estudado também mantêm uma atmosfera mais leve e aberta.
distinta de todo o projeto que foi construído até ali pelo autor. Com a publicação das
turbulentos, em 1997, dois anos antes de sua morte, Veiga toma um rumo diferenciado
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criando narrativas mais despretensiosas, sem conflitos graves
como os anteriores.” (DANTAS, 2004, p. 93, grifos nossos)
de cunho insólito que povoou sua obra, porém de maneira mais amena e em tom
infantil: a narrativa aborda um casal de irmãos que cria uma narrativa a partir de um
objeto, um livro, incentivado pelos pais e pela tia. Tal narrativa extrapola o olhar
cotidiano sobre o objeto e alarga as fronteiras do real sobre uma coisa antes vista com
normalidade. Esse olhar sobre um objeto que perturba uma vida pacata e avança para o
imaginário será o tema também dos próximos dois romances do autor, mas de maneira
diferente: ao invés de se dar uma invasão violenta do espaço comum, o que se vê é uma
ficção sobre a realidade baseada num objeto específico. O tom mais ameno vem ao
encontro do que foi discutido até aqui: o relaxamento da visão de Veiga acerca de
à realidade que o cercava. A esse respeito, o próprio autor, numa entrevista, observa sua
provável mudança:
Dessa maneira, é plausível afirmar que embora a ficção de José J. Veiga ainda aborde o
estranhamento causado por algo externo, ela não está mais tão carregada de negativismo
como as anteriores e elencadas no Ciclo Sombrio, além de o invasor não estar mais em
busca do poder e oprimir os habitantes daquele lugar, como acontecia nas narrativas
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Na obra publicada a seguir, Veiga segue com o caráter mais brando de suas
que, através de um relógio, consegue ver o tempo antigo, até seu dono anterior,
focalizando a visita de Sherlock Holmes ao Brasil com uma trama policial envolvendo o
Também é importante notar que, nos dois romances, Veiga escolhe para
sua busca pelo distanciamento de tons agressivos que podem ser notados em outras
principal.
O último livro escrito por Veiga recebeu o título de Objetos turbulentos e foi
publicado em 1997, dois anos antes da morte do escritor. No ano seguinte, em 1998, ele
diretamente, a vida dos personagens dentro das narrativas. Além disso, o subtítulo
escolhido pelo autor diz bem o teor que pretende apresentar e buscar: “contos para
serem lidos à luz do dia”, demonstrando que serão mais leves e mais claros, iluminados
até, em contraste com os romances e contos apresentados no Ciclo Sombrio. Tal idéia é
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corroborada por Maria Zaira Turchi, em seu artigo As fronteiras do conto de José J.
Veiga:
relação aos meios nos quais José J. Veiga baseava suas narrativas: ao invés de narrativas
situadas em pequenas cidades ou ambientes rurais, os contos mostram histórias que são
baseadas nos ambientes de grandes centros, e, dessa vez, com nomes reconhecidos de
Além disso, é importante relatar outra mudança nessa obra que trata da diferente
perspectiva de Veiga: enquanto nos livros anteriores era possível apontar a influência do
fantástico ou do maravilhoso, nos contos de sua última obra vê-se uma grande força na
Ainda cabe dizer que Veiga abandona, quase que totalmente, o tom interiorano
de suas narrativas com Objetos Turbulentos: a voz do interior de Goiás parece ter se
calado nos contos para dar vez a uma visão mais lógica e seca dos acontecimentos nas
cidades grandes. Turchi também apresenta a mesma perspectiva no fim de seu artigo ao
dizer “distante também ficou a região, talvez a goianidade de Veiga, bem marcada nos
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livros anteriores, apareça aqui no gosto pela anedota, lembrança do narrador primitivo
serpente, é possível constatar que a ficção veigueana toma, realmente, um novo rumo
em direção a uma narrativa mais oxigenada e distinta do tom apresentado nos textos
Foi possível perceber, então, que um novo caminho é escolhido por Veiga para
mudar seu plano literário e ficcional construído ao longo dos anos. Há várias
possibilidades que justificam essa guinada: desde a reabertura política no país com o
fim da ditadura que assolou o país durante a composição das obras do autor, ainda
naquele momento ainda inseridas no Ciclo Sombrio, até uma opção pessoal do autor em
re-observar sua estrutura de escrita para uma maior abertura para um novo ar dentro de
sua ficção.
análise será iniciada para que se responda a uma pergunta que norteia a primeira parte
desta apreciação: o romance A casca da serpente é histórico? Para que se solucione esse
questionamento, serão elencados fatores que vão desde a origem do romance até os
preceitos básicos que o romance histórico apresenta; a seguir, será feita uma análise sob
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3. A CASCA DA SERPENTE, UM ROMANCE HISTÓRICO?
casca da serpente para que seja respondida a pergunta que norteia esta parte do estudo e
histórico como uma vertente romanesca. De tal maneira que, a seguir, uma rápida
exposição será feita acerca de como alguns autores entendem o início do romance. Após
essa sucinta exposição, também se tentará apurar como os gêneros do romance estão
interligados.
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O romance, hoje um gênero amplamente utilizado pelos autores
contemporâneos, teve certa dificuldade no início de seu percurso, como bem observa
George Lucáks em sua obra A Teoria do Romance. Seguindo a idéia de Hegel, que
fragmento:
nova forma de vida urbana que vinha crescendo. Sem deuses cristãos ou pagãos e com
mesmo tendo enfrentado muitos desafios ao longo desse caminho. Novamente Lukács
aponta para essa transformação dos gêneros, seguindo a mudança que ocorria na
fatos, o romance é um gênero que possibilita ao autor aumentar sua observação sobre o
mundo a tal ponto que lhe é possível narrar uma história e, simultaneamente, dizer
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como o faz. Tal nova configuração chama a atenção de Lukács a ponto de o autor dizer
grifo nosso)
como um todo e, mesmo que distintos entre si, esses gêneros estão ligados, como afirma
mundo ao redor. Dentro da variada gama de nomes usados para especificar o gênero do
principal classificação à qual este estudo está ligado, é necessário um olhar mais
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Como já mencionado anteriormente, há diferentes classificações que abrangem
Para tanto, ter-se-á por base estudos que busquem trazer à tona as possíveis
A discussão sobre o que é romance histórico vai desde sobre o que diz o
apresente algumas características básicas para que possa ser chamado histórico. Dessa
seguir para se tentar construir um arcabouço teórico significativo que valide a análise da
leitor possa ter acerca daquela personagem, daquele acontecimento ou até da histórica
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histórica do que se aborda, sendo suscetível de mudança o grau de historicidade de
a posição da História dentro de um romance: para ser histórico, o texto deve apresentar
uma relação íntima com o momento histórico apresentado e não somente usá-lo de
pelo escritor. Segundo Alcmeno Bastos, tal efeito ficcional de historicidade se deve ao
2007, p. 106).
autor recorre a ferramentas narrativas que irão possibilitar um alargamento de sua teia
Outros dois pontos levantados pelo autor e que estão diretamente relacionados
aos dois anteriores trazem à tona a questão da matéria narrada e figuras ou eventos
históricos: não obstante a matéria ser de extração histórica, é necessário que fatos,
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relevantes da trama seja associada de modo inextricável ao destino político da
históricas dentro da narrativa. Tais marcas serviriam não só para corroborar o eixo
histórico narrativo, mas também para trazer à tona a imagem ou a lembrança histórica à
cabeça do leitor dessa narrativa, trabalhando com seu conhecimento histórico prévio:
diretamente ligadas ao âmbito narrativo, mas também que tais referências sejam, de
certa maneira, de domínio público no que tange a sua importância e seu acontecimento.
Romance histórico, até aqui, têm fundamento nas escolhas do autor, pois ligam as
questões de cunho histórico com o conhecimento dos leitores. Fica claro, portanto, que
temporal da matéria histórica narrada no texto: tal peculiaridade pode ocorrer de duas
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comunidade. Além disso, também há as forças que estão fora do texto. Elas podem ser
A última característica listada por Bastos revela que a narrativa deve apresentar
uma relação conclusiva no tocante aos eventos históricos narrados. Dessa maneira, não
tempo diferente do narrado, este deve, de forma irrefutável, finalizar a obra sem que
possa haver quaisquer dúvidas do objeto histórico narrado (BASTOS, 2007, p. 107).
Até o presente momento, pode-se, portanto, dizer que são necessárias seis
histórico.
Partindo do que foi dito até o momento acerca do que seria um romance
Veiga para confrontar suas delimitações com a linha teórica analisada e, de maneira
paralela, tentar responder à pergunta que dá título e norteia este capítulo. Dessa forma,
e, se possível, estender tal estudo a algumas outras vertentes teóricas para que se possa
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abarcar as prováveis distinções que poderão ocorrer em relação à base construída até
aqui.
da serpente é um romance histórico, fato que se tentará provar neste capitulo, e uma
visão a favor. Um exemplo de tal discordância pode ser encontrado no crítico Malcolm
o Novo Romance Brasileiro, Silverman afirma que Veiga e outros autores brasileiros
relação a outras obras de Veiga quando afirma: “e, no caso de Veiga, uma fantasia solta
Canudos.” (SILVERMAN, 2000, p. 420), tendo como princípio básico de análise a idéia
artigo Dois mitos sob a ótica pós-moderna, Menon aponta que o enredo apresenta
matéria de extração histórica: “[...] e A Casca da Serpente (1989) de José J. Veiga, livro
cujo enredo é também trabalhado em torno de uma figura histórica – Antônio Mendes
características para que se confirme, ou não, sua classificação como romance histórico.
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O primeiro ponto que pode ser levantado e confrontado com o texto é a questão
como acontecido no fim do século XIX4; portanto, pode-se afirmar que a remoticidade
Para fomentar tal diferença temporal, Veiga se utiliza das duas ferramentas
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expedição federal despachada contra os rebeldes.” (VEIGA, 2003, p.
7, grifos nossos)
narrativa buscando, primeiramente, dois pontos que alicerçam sua obra de maneira que
há quase cem anos antes da publicação da obra, convidando o leitor para observar como
temporal distante entre fato e publicação, que fica aparente no início do texto: o
informações do acontecido, mesmo que estas não estejam totalmente certas, segundo o
chama a atenção para outro fato documental: “Assim descreve um repórter que
canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. [...]’” (VEIGA, 2003, p. 12, grifo
nosso)
Veiga está construindo um arcabouço documental que servirá para corroborar dois
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fatores: o primeiro diz respeito ao aspecto de remoticidade, já observado anteriormente;
o segundo tem relação com a reconstrução histórica feita na obra, fato que será
identificam as figuras históricas e as relações entre o fato histórico e a obra ficam mais
evidentes. No caso do livro aqui analisado, torna-se evidente, desde o princípio, que há
Desde o início, Veiga escolhe e mostra ao leitor personagens que têm presença
alguns de seus jagunços, além dos locais sobre os quais discorre a História. Isso é
possível perceber em vários trechos ao longo da obra, dos quais se destacam o momento
em que o escritor cita os que acompanham Conselheiro na decisão sobre o que fazer:
astuto João Abade; Dedé de Donana, que fora ferreiro em Pilar de Goiás; [...]”
Como é possível perceber através dos termos grifados, Veiga usa nomes que têm
cunho real para dar credibilidade à ficção que constrói sobre um fato histórico relevante.
É ainda possível apontar outros trechos que corroboram o uso da matéria de extração
histórica para o alicerce da obra, como o uso de nomes de lugares conhecidos daquela
região: “[...] que importava uns poucos remanescentes, entre eles talvez o chefe bronco,
estivessem fugindo pelas veredas de Uauá e Várzea da Ema, ao norte, as únicas que
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Conjugando essas características, o escritor se alimenta de uma matéria de
extração histórica para basear sua obra de ficção, já que esta apontará para outro olhar
utiliza-se de matéria de extração histórica; o terceiro fator que corrobora tal obra como
histórica é a questão da historicidade: tal ferramenta é amplamente usada por Veiga para
brasileira, que foi a guerra de Canudos, o autor busca utilizar a ferramenta narrativa aqui
outros caminhos para a visão oficial dos acontecimentos. Uma dessas utilizações da
Conselheiro.
obra, além de aprofundar o universo ficcional construído por ele. Entre as figuras
históricas retratadas pelo o autor que aparecem no novo arraial construído por
Janeiro e São Paulo: embora tenha ficado famoso por tirar fotos de todas as pessoas que
que é narrada sua chegada e, logo depois, o encontro com Antônio Conselheiro:
- 41 -
“–Agora preciso ir a esse arraial novo [o novo arraial de Conselheiro]
também, e conto com a ajuda dos senhores. O meu nome é Militão.
Militão Augusto de Azevedo. Tive estabelecimento de fotografia
na cidade de São Paulo. Não posso deixar de ir a esse lugar onde
estão os guerreiros sobreviventes. Se os senhores me levarem lá, farei
tudo ao meu alcance para retribuir o favor.” (VEIGA, 2003, p. 112,
grifo nosso)
notório, enquanto seria necessária uma pesquisa mais aprofundada por parte do leitor
Chiquinha. E eu não me zango.” (VEIGA, 2003, p. 134) e ainda: “E fez uma retificação: o
Dr. Orville, o senhor que a acompanhava, não era marido dela. Viajavam juntos por acaso e
conveniência. Dr. Orville era cientista, fazia estudos de terrenos e minerais para o governo. [...]
aparecem, simultaneamente, no arraial e, sem que o narrador diga quem são, o leitor irá
personagens. Sobre Chiquinha Gonzaga, o narrador descreve sua aptidão para a música
da seguinte maneira:
5
Nesse caso, a ligação entre os dois personagens instigaria o leitor a procurar saber um pouco mais sobre
quem realmente são.
- 42 -
Já sobre o Dr. Orville, o narrador é um pouco mais sucinto: “[...] Dr. Orville era
estrangeiro, vivia no país há muito tempo, e não se envolvia em política; que os seus
romance histórico: a presença de marcas históricas que trazem à tona figuras, imagens e
personagens, a matéria de extração histórica que aborda e, o mais importante, criar uma
identificação dos leitores com a ficção através de tais personagens e marcas. A esse
Dessa forma, Veiga não apenas corrobora, como visto na citação acima, a utilização de
matéria histórica para a composição do romance, mas também aponta para seu plano
ficcional de esgarçá-la ao seu modo, conduzindo o leitor por informações e dados que se
Dentro da narrativa aqui estudada, essas marcas podem ser reconhecidas através
- 43 -
Conselheiro, Veiga cria uma marca que, ao longo do romance, guia o leitor pela nova
Azevedo e Dr. Orville. Mesmo que alguns não sejam tão conhecidos do grande público
reais.
ficcional que remete à realidade que fomenta a historicidade da obra, guiando o leitor
personagens históricos escolhidos e o destino final da trama, já que ambos devem estar
oficiais. Ao longo do texto, o leitor percebe que toda a ficção gira em torno de
novo arraial fundado. Dessa forma, o destino do romance está intrinsecamente ligado
- 44 -
aos personagens histórico apresentados pelo autor, o que corresponde a mais uma
acordo com uma das características que permeiam o romance histórico. No caso da obra
aqui estudada, existe uma finalização para a utilização da matéria, como será mostrado a
seguir.
Conselheiro, já que a visão oficial se encerraria em sua morte, o autor também realiza o
fim ficcional do personagem histórico de modo que não haja, de maneira alguma,
Veiga termina com a morte de Conselheiro e a destruição do novo arraial por ele criado,
histórico e da ficção, como se pode observar no trecho a seguir: “O tio Antônio mesmo
tinha morrido antes, aos noventa e quatro anos, de marrada de um bode que o Roger,
filho de Cotenile e Marigarda, criava como animal de casa” (VEIGA, 2003, p. 159). E
também explica a destruição do novo arraial, bem como o que acontece com a terra
Assim, cumpre-se mais uma necessidade básica para que o romance possa ser chamado
- 45 -
como já mostrado, também existe o desfecho para a ficção que não deixa qualquer
novo olhar sobre o personagem principal, Antônio Conselheiro. Dessa maneira, usa
história e, assim, usa a matéria de extração histórica. E após a análise de cada um dos
pontos que são considerados fundamentais para que se observe um romance como
maneira inovativa, pois o coloca rumo a uma transformação: de uma figura histórica
ela se apresenta: o olhar pós-moderno acerca da história e seu uso ficcional6. Tal
6
Tal afirmação é baseada no texto de Linda Hutcheon Poética do pós-modernismo: história, teoria,
ficção.
- 46 -
4. ESCREVENDO UMA OUTRA HISTÓRIA: UMA POSSIBILIDADE EM A
CASCA DA SERPENTE
Casca da Serpente realmente pode ser elencada entre os romances históricos produzidos
no Brasil no fim do século XX: possui todas as características listadas por teóricos para
obter a alcunha de histórico entre os demais tipos de romance. Essa análise chega ao fim
levantando outra questão pertinente ao texto estudado, além de ser um romance que
decide por esgarçar a realidade e a chamada História Oficial. E faz isso através de
algumas ferramentas narrativas que interessam por suas inovações e formas de serem
Seguindo esse caminho, Veiga construiu uma obra sobre uma matéria de
escritores no fim do século XIX e começo do século XX. Podendo seguir esses olhares
decide lançar um novo olhar, uma nova observação para desconstruir e, em seguida,
Conselheiro, mesmo que ele se torne ficcional através da trama criada ao seu redor. Para
- 47 -
que fique claro o tom utilizado pela história oficial que reproduz e constrói quem foi
logo depois, também mostrar como esse discurso segue mudando ao longo do século
XX.
desde os primeiros escritos com o tom positivista até os atuais que buscam entender
quem fazia parte daquele arraial destruído. Diversos tons foram utilizados ao longo dos
anos, desde o fim do século XIX até o século XX, com mudanças que ocorreram por
históricas sobre Conselheiro e seu arraial vêm mudando ao longo dos anos,
- 48 -
Uma primeira mudança perceptível é a mostrada por Márcia Motta no verbete
longo do século XX. Motta também aponta para essa mudança iniciada a partir da
análise acerca do evento histórico escolhido por Veiga para ser o início de sua ficção.
- 49 -
“Ao longo do século XX, historiadores e analistas sugeriram várias
interpretações para a Guerra de Canudos: uma abordagem tradicional,
ligada aos positivistas, interpretou a destruição de Canudos como a
vitória da ‘ordem e progresso’, representados pelo Estado republicano
da passagem dos séculos XIX ao XX, contra o ‘atraso’ representado
pelo povo do sertão. Já a historiografia marxista explicou esse
acontecimento como o esmagamento de um movimento
revolucionário socialista e camponês pelas ‘forças do latifúndio’.
Atualmente, novas pesquisas abordam tanto a Guerra de Canudos
como a comunidade de Belo Monte sob novas perspectivas: como se
organizava a povoação? Quais as bases de sua economia? Quais os
fundamentos culturais que levaram à fundação de Canudos?” (SILVA,
2007, p. 233)
Finalmente, para corroborar tal movimento de mudança, cabe citar duas fontes
que apontam para esse novo olhar. Já em 1990, Alexandre H. Otten no livro Só Deus é
olhar: “
publicação d’Os sertões, corrobora essa nova imagem criada para Conselheiro e para a
- 50 -
“O que houve em Canudos e continua a acontecer hoje, no campo
como nas grandes cidades brasileiras, foi o choque do Brasil ‘oficial e
mais claro’ contra o Brasil ‘real e mais escuro’. Ao Brasil oficial e
mais claro [...] pertenciam algumas das melhores figuras do Patriciado
do tempo de Euclydes da Cunha [...]. Bem intencionados mas cegos,
honestos, mas equivocados, estavam convencidos de que o Brasil real
de Antônio Conselheiro era um país inimigo que era necessário
invadir, assolar e destruir.” (SUASSUNA, 2002, p. 21)
Canudos, é possível afirmar que havia um olhar acerca desse evento histórico
instaurar no país; tal visão oficial era totalmente parcial e tentava fomentar a idéia
positivista sobre aquele momento histórico. Por outro lado, é latente a mudança no
de caráter revisionista, essa nova onda vem tentando entender como se organizava,
sobre o tema. E, ainda, além de criar um personagem ficcional, busca, também, mostrar
oficial, aumentando o nível ficcional da obra. Tal utilização será decisiva para a
Assim sendo, neste capítulo se pretende observar e analisar como José J. Veiga
usa diversas ferramentas narrativas inovadoras para aquele momento histórico e como,
- 51 -
através delas, conseguiu criar um possível esgarçamento ficcional de um momento
histórico brasileiro por ele escolhido como objeto de sua ficção. Além disso, também se
vai tentar analisar como ocorre a construção do romance sob a ótica pós-moderna que
VEIGA
A obra de Veiga foi construída, ao longo dos anos, baseada em uma espécie de
pressuposto ficcional que permeou todos seus livros anos após anos: como se pôde
perceber no capítulo 2 deste estudo, o autor tinha sua criação como projeto de longo
calma de uma cidade pequena, a abrupta tomada do poder pelo que vem de fora, o
A esse pretexto, Alcmeno Bastos, ao analisar sua obra no livro A História foi
assim: o romance histórico político brasileiro nos anos 70/80, chama atenção para tais
7
Fica claro que A Casca da Serpente é um texto que está fora do Ciclo Sombrio observado no capítulo 2;
dessa maneira, obviamente que o texto em questão apresenta uma atmosfera mais leve e diferenciada,
como se observará mais a fundo.
- 52 -
publicação de Cavalinhos de Platiplanto, obra que, segundo Antonio Candido, foi
oficialmente. De maneira que é pertinente afirmar, mais uma vez, o tom de inovação
construído pelo autor: a primeira edição de A Casca da Serpente foi publicada em 1989,
pela qual passaram as artes, sendo publicado, dois anos antes, Poética do pós-
características já se apresentavam no mundo das artes e Veiga, mais uma vez, estava, se
não em sintonia, muito próximo do que mais inovador acontecia e trouxe para seu
algum tempo.
extração histórica, como já observado no capítulo 3, o texto aponta para uma nova
analistas da obra de Veiga: entre eles, Alcmeno Bastos afirma “[...] José J. Veiga
2000, p. 130). Já Maurício Cesar Menon vai mais a fundo ao contrastar o romance de
Veiga com outro também creditado por ele como pós-moderno8: “Esta análise parte da
8
Tal comparação com outra obra apenas corrobora o fato de A Casca da Serpente ter um tom inovador
pós-moderno, pois dialoga com outros textos.
- 53 -
Faria] que trabalham com a prática da recuperação do já existente: [...], e A Casca da
Serpente (1989) de José J. Veiga, livro cujo enredo é também trabalhado em torno de
uma figura histórica [...]” (MENON, 2001, p. 3). Também é possível encontrar registro
características que fazem do romance aqui estudado uma obra pós-moderna? Existem
inovação proposta por Veiga, é necessário que tais particularidades estejam presentes na
Uma das obras que são um marco referencial para o entendimento do pós-
ficção. Partindo desse texto como base, é possível listar algumas definições peculiares
- 54 -
literário e o histórico que hoje se contesta na teoria e na arte pós-modernas”
(HUTCHEON, 1991, p. 141). Veiga não se furta de usar dessa ferramenta ao unir um
ponto histórico reconhecido, bem como seu personagem histórico principal, a uma
Conselheiro até seu encontro com figuras históricas que nunca se cruzaram. Assim, o
autor abre sua ficção para novas possibilidades seguindo uma idéia pós-moderna que
era inovadora dentro de sua obra, pois acabara de sair do Ciclo Sombrio e A casca da
ao leitor sobre seus destinos, dissimulando e apagando a tênue linha que dividia a ficção
construindo sua obra de maneira pós-moderna, pois além de usar personagens históricos
“aquela que segue o modelo da historiografia até o ponto em que é motivado e posto em
funcionamento por uma noção de história como força modeladora (na narrativa e no
- 55 -
de Canudos como mote e, conseqüentemente, Antônio Conselheiro como personagem
humano, mas sempre buscando, também, mostrar como esse destino pode ser observado
ficcionalmente.
passado. Dentro desse âmbito é possível destacar a afirmação de Hutcheon sobre o uso
moderna.
historicamente conhecido apenas se faz conhecido pelos textos que se referem a ele
9
No próximo capítulo, abordar-se-á como se dá a relação entre o narrador e essa reescritura proposta pelo
autor, além de um olhar mais aprofundado sobre o papel do narrador.
- 56 -
olhar sobre os textos do passado, sendo necessário, então, o uso da intertextualidade
como ferramenta para recolher o referente e usá-lo no presente, qualquer que seja sua
utilização. Assim, faz-se pertinente, também, a renovação do olhar com o qual se realiza
a análise do discurso empregado pelo escritor daquela era, daquele momento. Nesse
tom, pode-se afirmar que Veiga também lança mão desse novo olhar analítico para
a história. Tal fato corrobora, novamente, a questão levantada neste capítulo sobre a
dessas obras elegeram seus pontos de vista no período passado de criação dessas
referências históricas textuais. Sobre esse ponto, é relevante observar que Hutcheon
aponta para a questão da visão-historiador, questão essa que já havia sido levantada por
Carl Becker: “Em 1910, Carl Becker disse que ‘os fatos da história não existem para
nenhum historiador, até que ele os crie’ (525), que as representações do passado são
aquilo que venho chamando de ficção pós-moderna não ‘aspira a contar a verdade’
(Foley 1986a, 26) tanto quanto aspira a perguntar de quem é a verdade que se conta”
- 57 -
Convergindo o pensamento apresentado nos últimos parágrafos, pode-se dizer
que o pós-moderno faz uso da intertextualidade para buscar textos que trazem
referências passadas, pois só assim se tem acesso a elas, para observar, analisar e
restabelecer as vozes que contam esse passado, procurando mostrar o outro lado dessas
vozes. José J. Veiga conjuga tais características e as apresenta no texto aqui analisado:
que tem como base o olhar crítico edificado, sobretudo, pelo narrador.
ligação com outros textos pertinentes ao tema e, além disso, aponta para a reconstrução
Como afirmado no fim do capítulo anterior, Veiga utiliza seu narrador como
principal ponto de desequilíbrio em relação aos fatos que são tidos como oficiais
perante a História. Além da atuação constante do narrador para ter uma nova
possibilidade, a ficção que constrói além do ponto histórico escolhido também tem
relação direta com a nova luz que o autor pretende lançar sobre os aspectos ficcionais
do evento histórico abordado quanto da obra: Antônio Conselheiro. Esses dois pontos
- 58 -
merecem, de maneira detalhada, uma abordagem para que se comprove tanto a atuação
Antes, porém, de se colocar o olhar sobre esses dois pontos, faz-se necessário
Conselheiro por alguns autores da literatura brasileira ao longo dos séculos XIX, XX e
XXI de forma ficcional, e não apenas como uma figura histórica de relevo. Mesmo não
tendo havido a leitura das obras que serão apresentadas, houve uma pesquisa sobre o
sobre a figura histórica de Conselheiro. A visão sobre sua utilização dentro da literatura
brasileira é importante para que se entenda, ainda mais, a criação de Veiga sobre esse
Conselheiro dentro do âmbito ficcional. Ainda mais importante é o fato de que foi
favorável ao líder de Canudos, fazendo julgamentos que lhe são positivos, como quando
afirma que Conselheiro e sua gente não roubavam nem depredavam pelas redondezas do
arraial, apenas queriam viver suas vidas, sem que ninguém os molestasse. Nem ele
mesmo, Conselheiro, incomodava os vizinhos. Por idéias como essa, é possível afirmar
que Arinos mostrava uma face positiva dos canudenses e seu guia, mesmo sendo
sobrevivência sobrenatural de Conselheiro, mas, mesmo tendo sido comentada por ele,
tal possibilidade não é confirmada pelo próprio narrador, mas por personagens que já
- 59 -
haviam sido descritos como de crença mística e transcendente. Dessa forma, o peso da
confirmação da sobrevivência mística fica sobre personagens não têm força dentro do
Através de seu romance histórico intitulado João Abade, de 1958, João Felício
dos Santos apresenta o arraial de Canudos, como o próprio diz no começo do romance,
de dentro para fora, com toda a sua gente; nesse âmbito, Conselheiro não aparece com
muita insistência e, quando o faz, não toma contornos heróicos ou de coragem, pelo
contrário: o narrador chega a dizer que as pregações de Conselheiro são fracas e sem
sentido.
seco e nada idealizado do arraial, mostrando intrigas, rixas e até prostituição, imagem
Por fim, é fundamental, também, relatar que em João Abade, o autor foge à base
Dessa maneira, a visão de Euclides se construíra de fora para dentro, enquanto João
uma literatura com tom revisionista com As meninas do Belo Monte. Constituído de três
Josefa, quase cem anos depois, o livro de Chiavenato busca mostrar como a guerra
- 60 -
Durante a trama, o personagem Antônio Conselheiro não apresenta grande
Em 2007, houve a publicação de mais uma obra que tem Conselheiro como
espera da ressurreição do líder canudense por seus seguidores, mas tal fato não se dá e o
que o narrador apresenta, então, é a revelação de que a realidade que levou à construção
vencidos.
Conselheiro vem sendo feito ao longo dos séculos: desde o fim da guerra até o início do
século XXI. Nesse caso, Veiga está incluído nessa vertente que tem, por observação e
se observará como José J. Veiga usa esse mesmo tom para construir seu Conselheiro
Após essa breve apresentação de como Antônio Conselheiro tem sido retratado
ao longo dos séculos na literatura brasileira, neste capítulo se buscará a análise de dois
pontos fundamentais para a compreensão do intuito de Veiga ao lançar a nova luz sobre
- 61 -
perspectivas ficcionalmente construídas que desarticulam o olhar oficial sobre Canudos
Conselheiro, desde sua figura historicamente reconhecida pelos ritos oficiais, até sua
Uma das principais articulações feitas pelo narrador é a ligação entre o ficcional
começo da narrativa, ao relatar para o leitor o plano para enganar os federais, o narrador
corrobora o acontecido com uma notícia de jornal, além de mostrar o sentimento dos
soldados combatentes:
A partir dessa afirmativa, já se pode perceber qual será o tom a ser seguido ao longo da
comissão de oficiais aceitou que aquele era o cadáver do Conselheiro. Precisava que
- 62 -
fosse, tinha que ser. Todos seus membros queriam encerrar logo o assunto e voltar para
casa como heróis [...]”; assim, o que se apresenta é a possibilidade ficcional, que usa
também histórico, de uma nova imagem de Conselheiro, bem como uma outra vertente
de como a história se seguiu a partir dali. Tudo isso mostrado e apontado pelo narrador,
pelos soldados do governo, pois põe em dois lados distintos a ficção e a história:
para que a ficção tome outro caminho em relação ao que oficialmente ocorreu,
baseando-se numa fuga de uma situação de morte para que aconteça a sobrevivência e
transformação de Conselheiro.
A partir desse momento, o narrador começa a preparar o caminho para que haja
- 63 -
primeiro fator que aponta para isso é o término da campanha em Canudos e a
vitoriosa:
“[...] Quando o cadáver foi achado pela comissão dos federais no dia 6
de outubro, todos concordaram, ou puderam concordar, que se tratava
mesmo do famigerado e bárbaro Antônio Vicente Mendes Maciel,
vulgo Antônio Conselheiro, como afirma a ata então redigida, e
transcrita em parte pelo repórter Euclides Rodrigues Pimenta da
Cunha na correspondência que mandou para o seu jornal, e que faz
parte do livro que publicou sobre a campanha de Canudos cinco anos
depois.” (VEIGA, 2003, ps. 12/13)
Citando Euclides da Cunha, o resultado da afirmação fica ainda mais fortalecido pelo
caráter presencial e, acima de tudo, documental que teve a obra e a atuação de Cunha
- 64 -
Além de mostrar que, ficcionalmente, Conselheiro teve alguns dias para sua fuga, o
ficcional e criado, o texto não deixa de rearrumar o olhar sobre o que é histórico e o que
relatado.
sendo mostrada e detalhada pelo narrador, que apontará as principais diferenças que
resolve mudar o rumo, tanto na questão religiosa quanto na questão do cuidado com as
pessoas.
Esse novo rumo não deixa de surpreender até os jagunços que haviam percebido a
mudança em seu líder. Além disso, seguindo essa trama, o narrador vai apresentar os
10
Cabe relembrar a afirmação de Hutcheon no capítulo 4.1 sobre a ficção pós-moderna e sua busca pela
verdade histórica: “aquilo que venho chamando de ficção pós-moderna não ‘aspira a contar a verdade’
(Foley 1986a, 26) tanto quanto aspira a perguntar de quem é a verdade que se conta” (HUTCHEON,
1991, p. 162, itálicos originais, grifos nossos).
- 65 -
planos do autor para um novo Conselheiro, totalmente modificado, pensado como novo
Tal mudança irá se aprofundar ainda mais ao longo da narrativa e sempre mostrada pelo
narrador. Dessa forma, fica claro o plano ficcional de Veiga para refazer Conselheiro
normal.
- 66 -
nova, cara e estampa novas. E também a maneira de falar com as
pessoas: acabar com o distanciamento, que gera mais
distanciamento.” (VEIGA, 2003, p. 90, grifos nossos)
Essa última mudança radical é a que encerra o ciclo de Antônio Conselheiro como ele
mesmo, tornando-se, assim, um novo personagem que terá, como será mostrado, uma
de que Antônio Conselheiro não é mais o mesmo de Canudos e como, agora, era
“[...] Estava já com setenta anos, e a saúde falhando. Não teria mais
muito tempo de vida. [...] Falar nisso, era tempo também de ir
largando a casca de Conselheiro, que dali para a frente podia até
estorvar. Se os federais o tinham declarado morto, com
documentos e tudo, não convinha ele ficar se apresentando como
desmentido. A verdade verdadeira era que o Antônio Vicente Mendes
Maciel de hoje não correspondia mais ao de Canudos, isso qualquer
sobrevivente da guerra podia perceber. Era preciso soltar a casca
antiga. Mas não de supetão, para não assustar.” (VEIGA, 2003, ps.
104/105, grifos nossos)
documentos, mais uma vez referindo-se à chamada História Oficial. Além disso, tais
mudanças ocorrem antes das visitas de personagens históricos11, pois assim Conselheiro
um novo caminho para a visão do líder de Canudos: mais democrático e aberto, menos
- 67 -
Tal olhar sobre o outro fim de Canudos e Conselheiro vem ao encontro de que
aqui já foi abordado: A Casca da Serpente tem, conjugadamente, uma veia histórica e
pós-moderna. Dessa maneira, pode-se afirmar que Veiga atua, de maneira insistente,
para uma nova abordagem e para uma nova opinião acerca daquele acontecimento
é a voz presente naquele relato histórico (HUTCHEON, 1991). Tal fato ocorre por se
pela opinião pessoal do autor, seja do documento, livro ou ensaio. Dessa forma, o olhar
principalmente, qual sua visão e que mensagem gostaria de deixar ao relatar tais
eventos.
do século XIX e início do XX: autores e jornalistas, estando ou não presentes na região,
obras é aparente, não só pelo estilo, mas também pela descrição feita do homem
encontrado na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, autor que, à época, era repórter e
- 68 -
estava presente na campanha dos republicanos para destruir Canudos. Através dessa
obra, é possível ao leitor verificar como Conselheiro era retratado pelos jornalistas e,
mais tarde, pelo próprio Euclides da Cunha. Em um dos textos que Cunha descreve
Dessa forma, já é possível traçar um dos pontos que pode ser analisado na ótica pós-
moderna, pois fica aparente a idéia Cunha traça nessa síntese analítica do homem
Conselheiro.
Portanto, parece evidente que a escolha pela voz tomada por Euclides da Cunha pode
ser vista como dois pontos de entendimento: de um lado, mostrar Conselheiro como um
ser inferior; e, de outro, mostrava certa cautela ao analisar a atuação do lide canudense
dentro da Guerra.
sobre Conselheiro, visão essa que será retomada na obra de José J. Veiga: “Antônio
- 69 -
intelectual, [...]” (CUNHA, 2000, P. 129). Essas duas citações são suficientes para se
daquele arraial com a voz determinista e cientificista do fim do século XIX. Tal voz
longo da obra de Cunha. Segundo Rogério Silva Souza, o que Euclides fez foi “criar
de sua obra, um compromisso com uma visão de verdade histórica, [...]”. (SOUZA, R.,
2001, p. 236). E ao criar essa visão, tomou o cunho determinista como base para
Conselheiro como bandido e fora da lei, alguém que foi contra a instauração da
Conselheiro, mostrando-o como uma figura controversa às leis. Além disso, também
retrata o líder canudense como fanático e incitador a ataques a vilas próximas e, ainda,
acusado de ser contra a República. Por fim, o verbete ainda afirma que a cabeça foi
decepada para ser estudada e apurar sua sanidade mental. Dessa maneira, fica claro
oficial.
- 70 -
E no verbete que busca explicar a revolução de Canudos, novamente se
apresenta uma mera descrição dos acontecidos, deixando de lado um olhar mais crítico
Também Rogério Silva Souza revela esse olhar histórico fixador da idéia
contrária a Canudos: “Esse aspecto de idealização do sertanejo foi absorvido tanto pela
como pela análise de depoimentos orais [...]”. (SOUZA R., 2001, p. 236) E ainda a esse
respeito:
É possível afirmar que todas essas posições tomadas pela chamada historiografia
oficial contaminaram Veiga e o fizeram querer levantar uma nova hipótese: em sua
- 71 -
“Dependendo do assunto, sim. Por exemplo: para escrever A casca da
serpente, que trata de Canudos – não sei se conhecem o livro – eu tive
que reler Os sertões, de Euclides da Cunha, que havia lido na
juventude, para me botar em dia, pois se basear só na memória não dá.
Tem que fazer uma pesquisa.” (ARAGÃO, Octavio & FERNANDES,
Fábio, 2001)
apresenta, através do narrador, uma visão diferente das visões oficiais que tinham como
procura desconstruir esse julgamento ao dar a Conselheiro uma nova chance, mostrando
sertanejo.
transmite revela soldados culpados por virem atacar Canudos, embora houvesse a opção
- 72 -
Já no fim do romance, o narrador apresenta mais duas visões que desconstroem
as apresentadas pela história oficial. A primeira afirma que a experiência liderada por
de tanta conversa dói aparecendo nas simples e belas construções materiais [...] que
modelo a uma infinidade de outras mundo afora.” (VEIGA, 2003, p. 158, grifo
Ao mostrar esses dois atos que deram certo, o autor, através do narrador, aponta para o
Assim, foi possível perceber que Veiga realmente utiliza a estrutura narrativa
para mostrar uma nova probabilidade sobre Antônio Conselheiro; com isso, desmonta a
opinião que havia até então sobre tal personagem ao construí-lo ficcionalmente,
autor consegue estar a favor de um dos personagens históricos mais contrariados como é
Antônio Conselheiro.
- 73 -
Dessa maneira, toda a reconstrução do líder de Canudos aparenta uma nova
5. CONCLUSÃO
narrativa que buscava apresentar pontos de desequilíbrio aos quais eram submetidos
situação diária das pessoas que lá viviam. Tal ação podia ir desde a chegada de uma
empresa que, teoricamente traria o progresso, até invasão de animais às casas dos
criada pela invasão de fatores externos, a ficção veigueana foi, por anos, tida como o
retrato do momento que o país atravessava: uma ditadura por vezes ferrenha, a falta da
representativo da realidade ao seu redor. Como foi mostrado aqui, o próprio autor tinha
consciência de que era virtualmente impossível ficar imune às ocorrências ao seu redor,
Após um certo ponto, Veiga já buscava extrair dele mesmo uma saída mais
amena ao que parecia ser sombrio. Dentro dessa perspectiva, o autor perseguia, já
- 74 -
acontecimentos que surgiam no contexto social brasileiro. E, em 1980, é publicado o
livro De jogos e festas, obra que, segundo o próprio escritor, procurava mostrar um
novo aspecto: menos sombria, menos agressiva, enfim, menos sufocada pela violência e
invasão do espaço de convivência. Ainda segundo José J. Veiga, não obteve êxito na
sua tentativa, pois percebia que ainda estava contaminado pelo que acontecia ao seu
Mesmo depois desse desassossego mostrado pelo autor ao não obter sucesso
com essa tentativa de trazer um novo ar à sua narrativa, ele não desiste e escreve o livro
que foi objeto de análise desta pesquisa, A casca da serpente. Já no fim da década de
1990, talvez tomado pela mudança política presenciada, Veiga procura mostrar uma
opção mais amena e mais branda a todo seu projeto ficcional que foi construído ao
longo das últimas quase três décadas. E, para além, tal obra iria abrir a porta de uma
nova possibilidade que Veiga criara para sua narrativa ao focar em um evento histórico
acontecido quase cem anos antes da publicação do romance, mas não de forma inocente:
oxigena suas vertentes narrativas buscando um fim mais positivo, mas contrário ao que,
ao longo de sua carreira anterior àquele momento, o escritor apresentava em seus textos.
Pelo próprio momento político vivido e pelo novo que via florescer, ficava claro,
portanto, que alguma inovação deveria acontecer. Após sua frustrada tentativa em De
jogos e festas, isso ficou provado com a quebra do Ciclo Sombrio e a composição d’A
casca da serpente.
- 75 -
Com esse livro, Veiga estava olhando para um horizonte, para ele, inovador em
vários âmbitos: desde a perspectiva de uma mudança política até o uso de ferramentas
que eram novas até para o autor consagrado. Primeiramente, o escritor mostrava uma
no país: uma abertura para a liberdade, alterando o tom sombrio quem havia no
momento e que Veiga empregava em seus textos. Além dessa mudança de projeto
práticas de escrita que eram inovações para as narrativas veigueanas: o tom pós-
moderno do romance recebe destaque por ser uma ferramenta original nos escritos de
Sombrio por Veiga e que foram a base do questionamento e posterior análise deste
construção ficcional que apresenta a obra; o segundo está relacionado com a influência
possível apontar algumas resoluções feitas a partir dos questionamentos guias desta
análise.
pontos que são fundamentais para tal estudo. Como visto nesta pesquisa, o romance
- 76 -
matéria de extração histórica, ou seja, um evento, fato ou parte que seja
requisitadas de um romance para ser chamado de histórico, viu-se que essa é a mais
matéria de extração histórica, a ficção de Veiga abrange todas essas peculiaridades. Tal
romance aqui analisado: a maneira que Veiga toma esses fatos e os reanalisa também é
Através dessa reorganização histórica, Veiga traz uma nova luz sobre a figura
que se havia defendido até aquele momento. Isso se dá, principalmente, por meio do
embate das idéias que são construídas sobre o líder revolucionário com as defendidas
por alguns jornalistas e escritores, como Euclides da Cunha. Com base determinista,
Cunha desvela um Conselheiro produto de seu próprio meio, fadado, juntamente com o
- 77 -
povo sertanejo, à extinção com a chegada do progresso e das cidades. Além de Cunha,
ficarem claras as posições tomadas pelos autores que seguem a linha oficial; por outro
lado, Veiga constrói um homem mais tolerante, observador e aberto ao diálogo, guia de
seu povo para um novo povoado e ali consegue realizar seu sonho de uma comunidade
igualitária.
literária por diversos autores, sendo possível afirmar que tal uso iniciou-se ainda no
século XIX e se estendeu até o século XXI. Por vezes, essa utilização literária se deu
buscando um novo olhar sobre o líder de Canudos, mas, também, houve autores o
E por Veiga perseguir essa renovação de Conselheiro, fez-se notar outro ponto
de estudo aqui abordado: a opinião que o autor inclui ao longo da obra, mostrando o
história oficial. Tal opinião demonstra duas questões relevantes a esta análise, pois além
reapresentá-lo, também existe a total quebra com o plano ficcional que era utilizado.
Até aquele momento, as obras veigueanas apresentavam uma clara referência à perda da
Veiga não apenas abarca sua opinião sobre Conselheiro, mas também aponta sua obra
para uma nova perspectiva ficcional diferente daquela que vinha seguindo nos seus
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livros anteriores, a de uma opção mais amena e uma alternativa às sociedades
de José J. Veiga e que, na obra aqui estudada, sofrem certa reinvenção por parte do
uma forte tendência à falta da liberdade e à invasão de um local pacato por corpos,
máquinas ou seres alienígenas àquele espaço. Também foi mostrado que a primeira
tentativa de fuga desse ciclo foi através do livro De festas e jogos, mas foi negada pelo
próprio autor em entrevista. Assim, chega-se à obra aqui estudada: A casca da serpente.
É com essa obra que Veiga quebra todo o seu projeto literário construído ao
longo de sua carreira de quase trinta anos: a busca por uma comunidade igualitária, a
liberdade afastada do progresso, o novo tom dado ao histórico, mas ficcional em sua
obra que José J. Veiga exprime seu desejo de uma radical mudança nas atitudes
Fez-se, portanto, uma análise d’A casca da serpente seguindo alguns passos
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conseqüente confirmação do texto aqui estudado realmente como um romance histórico;
que se suscitaram acerca da ficção escolhida para análise. Tais confirmações apenas
próprio escritor afirma: “Acho também que, além do que nós estamos vendo aqui na
superfície, por trás, por baixo, tem muita coisa que as pessoas comuns não vêem. Cabe
(ARAGÃO, Octavio & FERNANDES, Fábio, 2001). Essa afirmação de Veiga apenas vem
propósito dentro de seu plano literário, mas também se abrem a conceitos inovadores,
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6. REFERÊNCIAS
Referências Literárias
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Rio de Janeiro: Caetés, 2000.
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Paulo: Ática, 1987.
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1993.
DANTAS, Gregório. José J. Veiga e o romance brasileiro pós-64. Revista Falla dos
Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, vol. 1, n.º 1, jan./dez., 2004.
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HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. de
Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MENON, Maurício César. Dois mitos sob a ótica pós-moderna. In: IV Congresso
Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, 2001, Évora,
Portugal. Disponível em <http://www.eventos.uevora.pt/comparada/VolumeII/DOIS
%20MITOS%20SOB%20A%20OTICA%20POS-MODERNA.pdf>. Acesso em 1º de
set. de 2008.
PRADO, Antonio Arnoni. Atrás do Mágico Relance (Uma conversa com J. J. Veiga).
Campinas: Ed. da Unicamp, 1989
SANTOS, João Felício dos. João Abade. São Paulo: Círculo do Livro, 1974.
SOUZA, Agostinho Potenciano de. Um olhar crítico sobre o nosso tempo (Uma leitura
da obra de José J. Veiga). Campinas: Ed. da Unicamp, 1990.
TURCHI, Maria Zaira. As fronteiras do conto de José J. Veiga. In Revista Ciências &
Letras - Momentos do Conto Brasileiro. Porto Alegre: FAPA, 2003. Disponível em
<http://www4.fapa.com.br/cienciaseletras/pdf/revista34/art08.pdf>. Acesso em 1º de
set. 2008.
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________. A estranha máquina extraviada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
Referências Históricas
MACEDO, José Rivair & MAESTRI, Mário. Belo Monte: uma história de Canudos. 4ª
edição. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
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