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FACULDADE DE JORNALISMO
Reportagem narrativa
COIMBRA, Oswaldo. O texto da reportagem impressa. São Paulo:
Ática, 1993, p. 44-75
Vimos que a estrutura do texto da reportagem dissertativa se apóia num raciocínio
explicitado através de afirmações generalizantes seguidas de fundamentação, que
constitui a análise feita pelo redator de um acontecimento ou de um grupo de
acontecimentos
A estrutura do texto da reportagem narrativa não se apóia num raciocínio expresso.
Sua característica fundamental é a de conter os fatos organizados dentro de uma
relação de anterioridade ou de posterioridade, mostrando mudanças progressivas de
estado nas pessoas ou nas coisas, como mostram Fiorin e Savioli (1990, p. 289).
O texto do primeiro tipo de reportagem contém um ângulo fixo e reflexão crítica sobre
as mudanças nas pessoas e nas coisas. O texto da segunda mostra as mudanças
ocorrendo.
Percebemos essa distinção de tipos de texto numa reportagem - Desquite ou divorcio?
- assinada por José Carlos Marão, na edição de julho de 1966, à página 26, em
Realidade. O texto da reportagem alterna a dissertação com a narração, no
desenvolvimento da sua pauta: a discussão da questão palpitante na época do
divorcio.
As varas da família em São Paulo e no Rio deram média superior a cinco sentenças de
nulidade, anulação e desquite por dia nos últimos anos. Mas, embora não possa ser
precisada em números há informação correta que tem de ser acrescentada: a maioria dos
casais que se separam, principalmente nas classes mais pobres, não recorre ao desquite,
"porque não resolve nada".
Lá, um dia de madrugadinha, sem mais nem menos, foi-se embora de casa o seu Armando,
disposto a nunca mais voltar, porque o seu amor dado à legítima esposa era pouco e se
acabou. Dona Lídia ficou sem saber o que fazer da vida, nem dos três anos de casamento
infeliz.
É este segundo tipo de texto - o que pretende recriar a realidade diante dos olhos dos
leitores, mostrando a eles um eterno acontecer - que passamos a estudar.
Foco narrativo O repórter Carlos Azevedo, a serviço da revista Realidade, percorreu
a pé e de canoa mais de 300 quilômetros da floresta Amazônica, acompanhado do
fotógrafo Luigi Mamprin. Os dois profissionais haviam se integrado à missão que iria
resgatar os Índios Caiabis, ameaçados de extermínio pela fome e por doença. Azevedo
assinou matéria contando o que vira, publicada na edição de dezembro de 1966, à
página 37, com o título "Resgate de uma tribo". Observe-se como os dois aparecem no
texto:
Ipepori e seus seis companheiros, 11 pára-quedistas, Cláudio Vilas Boas e dois jornalistas
- 21 homens - partiram na manhã seguinte rumo ao rio Tatuin [...]
À tarde, Cláudio resolveu que o índio Iput iria até a outra aldeia convidar o resto da tribo
a se mudar para o parque [...] Um dos jornalistas também resolveu ir.
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Proteção ao Crédito, a Polícia consegue DEseis.
pegar os JORNALISMO
Em volta, forma-se logo uma roda,
que vai crescendo, silenciosamente.
Alcance e planos de tempo Em 1966, primeiro ano de sua circulação, a revista
Realidade, nas edições de agosto (p. 19), outubro (p. 54), dezembro (p. 78), trouxe
extensas matérias sobre três países que, naquele ano, estavam nos noticiários dos
jornais: Argentina, China e Uruguai, respectivamente. O texto sobre a Argentina,
centrado nas eleições daquele ano, 1966, recuava, num box, até a eleição do
presidente Hipólito Irigoyen, em 1928, e reconstituía a sucessão dos presidentes
argentinos, desde então. Diferentemente desta reportagem, assinada por José
Hamilton Ribeiro, a sobre a China, sem assinatura, ia mais longe: recuava 20 séculos.
Com o título de "Eis a China", o texto não se prendia à história política do país. Falava
da origem do povo chinês, da invenção da pólvora, da China Medieval e chegava até a
Revolução Cultural de Mao Tse-tung, ainda em processo, naquele momento. Já o texto
sobre o Uruguai - "Uruguai, um país à espera do golpe?" -, assinado por José Carlos
Marão, na análise do que se sucedia naquele instante da vida política do país, retroagia
à gestão do presidente José Batlle, em 1903, quando foram aprovadas leis trabalhistas
importantes.
Deste modo, embora as três matérias tivessem em comum a preocupação de explicar
a conjuntura de cada país, em 1966, cobriam faixas de tempos diferentes. Tinham
alcances diferentes.
Alcance é a distância do afastamento do tempo em direção ao passado, ao futuro ou
entre ambos, medido a partir do que, no texto, é considerado o plano do presente. É
um elemento importante na estruturação de uma narrativa porque permite a
elaboração de segmentos dentro de vários planos de tempo.
Em geral, segundo Fiorin e Savioli, os planos de tempo são introduzidos por
demarcadores: tempos de verbos (está, estava, etc.); adjuntos adverbiais (no mês de
dezembro); estações climáticas (no último inverno) (cf. Fiorin e Savioli, 1990, p. 157).
Vejamos alguns segmentos da matéria sobre a China marcados por planos de tempo:
Milhares e milhares de soldados espalhados pelas margens do rio. De pé, sentados,
encostados em seus fuzis e metralhadoras [ ... ] Os soldados do Exército Vermelho [ ... ]
Um homem levanta os braços, vai falar. Faz-se grande silêncio. [...] Uma aclamação
ensurdecedora cai sobre suas últimas palavras. [...] Era o mês de abril de 1949 e pode-se
dizer que, ali, naquele instante, a China começava a sua longa marcha para o Comunismo.
Chiang está cada vez mais preocupado com a força crescente do partido comunista. E, de
repente, numa noite de fevereiro de 1927, o Kuomintang renuncia aos três princípios de
Sun Yat-sen e rompe com os comunistas.
Chama-se presente histórico o tempo verbal - utilizado nos segmentos transcritos -
que aproxima fatos do passado, designando-os como se estivessem ocorrendo no
presente.
Deve-se atentar, portanto, para o fato de que o tempo presente da narrativa não é,
necessariamente, o do momento da produção do texto. A reportagem sobre a China foi
produzida em 1966. O presente no primeiro segmento transcrito corresponde a 1949 e
no segundo, a 1927.
Retardação
- É só pena que avoa.
Mão Pelada gritou a frase e se atirou de barriga no chão, para escapar das balas que
varavam as casas, espirrando reboco pelo chão. A população inteira do povoado estava
como Mão Pelada, deitada para não morrer, de barriga no chão. O mulato Ferreira, que
trocava tiros com o cabo e dois soldados correu para trás de um beiral de rancho, quando
viu que a rua ficou deserta. Lá, Jogou seu chapéu no chão e continuou atirando até acabar
sua munição, uns 50 tiros depois. Foi, então, preso, bêbado de cair.
Assim inicia a narrativa sobre o garimpo no rio Paranatinga, em Mato Grosso, no texto
da reportagem “Diamante, calibre 38", assinada por Carlos Azevedo, em Realidade de
julho de 1966, à página 84.
Acompanhemos a narrativa.
Depois que Mão Pelada é preso, o povo do garimpo começa a aparecer nas portas das
casas. Os meninos vão catar cascas de balas no chão. Os homens comentam
alegremente o tiroteio enquanto limpam a poeira da roupa. Neste instante, o narrador
interrompe a seqüência dos fatos para, inicialmente, esclarecer que o tiroteio
aconteceu numa manhã de domingo. Depois observa:
Não que aqui todo domingo haja tiroteio. Mas e uma coisa que bem pode acontecer.
E acrescenta:
Aqui se procura diamante. E se acha de encher a mão. E fácil achar outras coisas também:
o diamante só vem para quem sabe e a sorte ajuda, mas a malária é violenta e o cemitério
Professor mestre Artur Araujo (artur.araujo@puc-campinas.edu.br)
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
FACULDADE
Tentei me matar três vezes. A primeira vez tinha DE JORNALISMO
17 anos, a segunda, 20, a terceira, 22. De
cada uma delas, guardei uma lembrança absolutamente diversa, mas hoje me parece que
todas as vezes foram uma só.
Tenho 27 anos e a sensação de estar só agora descobrindo o mundo. Trabalho em jornal,
escrevo. Tenho um livro para acabar de pensar, uma peça de teatro para terminar na
semana que vem, todas as inseguranças do mundo e uma fé tão grande quantas são as
minhas inseguranças. Fora isso, tendo guardado e conservado todas as experiências
suicidas por que passei - acalentando-as como uma muleta a que me apego para dizer:
aprendi, venci, logo não estou tão na fossa -, acho estranho que esteja escrevendo estas
verdades para uma revista. Enfim ...
O verbo que introduz a fala de uma personagem chama-se dicendi.
3º) Aceleração através do antes seguido do depois. Quando nada interrompe a
seqüência linear de tempo na narrativa, ela, é claro, se desenrola mais
aceleradamente do que quando tem recuos, antecipações; digressões, etc.
Duração Neste item estudaremos a relação entre o tempo de duração de um fato e o
espaço que ele ocupa numa narrativa. Vamos, de início, comparar estas proporções.
Um incidente transcorrido em alguns poucos minutos ocupou treze linhas do texto, já
citado, "Resgate de uma tribo", na Realidade de dezembro de 1966, à página 45, sobre
os quarenta dias nos quais os repórteres Carlos Azevedo e Luigi Mamprin
permaneceram na floresta Amazônica, acompanhando a missão de resgate dos índios
Caiabis, ameaçados de desaparecimento.
O incidente:
Logo depois de uma sucuri escapar prudentemente de um tiroteio, uma anta enorme tentou
atravessar à frente da frota. Assustada, mergulhou procurando voltar por onde viera.
Reapareceu, mas um tiro de fuzil que bateu na água a meio palmo de seu focinho obrigou-a
a mergulhar outra vez. Ela só voltou a aparecer na margem 50 metros adiante. Quando ia
entrando no mato, porém, recebeu o primeiro tiro. Cambaleou. Outros cinco tiros bateram
em cheio no seu corpo. Ela caiu de joelhos e depois rolou mansamente para o rio, morta.
Pesava uns 200 quilos.
Mais à frente, no mesmo texto, à página 54, um período de tempo muito maior -
correspondente a oito dos quarenta dias que duraram a missão - Ocupa igual número
de linhas.
O avião iria demorar oito dias para vir buscar a coluna. Confortavelmente instalados num
bom acampamento na beira de um córrego de águas geladas que corriam entre pedras,
com comida farta e roupa limpa, os homens começaram a se recuperar enquanto
esperavam, impacientes, a chegada do avião.
Os que tinham emagrecido começavam a engordar. Inventavam-se doces de frutas
silvestres, saía-se para caçar. Com a fartura de remédios e os cuidados do doutor Santos,
médico dos pára-quedistas, já não havia mais doentes.
Não há, portanto, necessariamente, uma correspondência entre a duração de um fato
e a extensão de espaço que Ocupa na narrativa. Para compreendermos isto,
precisamos distinguir dois termos da teoria da narrativa: história e discurso. A história
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por balas perdidas, parecem desertos. DE JORNALISMO
Mas a cidade, que se faz de morta, res. suscita em
cada quarteirão à passagem do comboio. E das casas amarelas, verdes, alaranjadas e
azuis explode em gritos roucos um coro de fantasmas:
- Go home! Go home! Invasores, go home!
Adiante, o espaço físico da ação da narrativa se reduz:
Barraca de soldado tem 30 metros quadrados. Dá para 8 homens. A cama é de lona,
brasileira, igual para todos, até para o comandante. E as paredes da barraca estão sempre
cobertas de fotografias: garotas de biqUíni, como se vê nos filmes de guerra. Entre as
estrangeiras, Ursula Andress ganha longe. Entre as brasileiras, Marivalda está em
primeiro.
2º) Espaço social. Sem o cunho às vezes estático do espaço físico, o espaço social
apreende as atmosferas que reinam em certos ambientes sociais (cL Lopes & Reis,
1988, p. 205). Portanto, o que dá forma e significação ao espaço social é tanto a
presença nele de personalidades reconhecidas em determinados ambientes, como a de
pessoas características destes ambientes, aquelas conhecidas como tipos, quando
transportadas para o universo do texto dramático.
Foi certamente por compreender que um país, além de poder ser visto como espaço
físico, pode ser visto também como espaço Social, e ainda por compreender também a
importância para cada ambiente, tanto das suas personalidades como de seus tipos,
que Luiz Fernando Mercadante tomou duas decisões ao ser encarregado pela
Realidade, em 1966, durante o governo do Marechal Castelo Branco, de perguntar à
população nacional se no Brasil havia liberdade. A primeira decisão foi a de dividir o
país, não geografica~ente, mas por seus espaços sociais. Deste modo, ele ouviu
pessoas ligadas aos setores político, artístico, estudantil, religioso, jornalístico e
sindical. A segunda foi a de ouvir tanto pessoas eminentes - o advogado Sobral Pinto,
o teatrólogo Dias Gomes, o jornalista Prudente de Moraes Neto, o presidente do
Senado, Auro Moura Andrade, o ministro do Superior Tribunal Militar, Mourão Filho,
entre outras - como tipos populares - um motorista de praça, um ascensorista e um
dono de bar. O que essas pessoas disseram está na matéria "Há liberdade no Brasil?",
publicada pela revista na edição de setembro de 1966, à página 22, assinada por
Mercadante.
3º) Espaço psicológico. Por se constituir em função da necessidade de tornar
evidente atmosferas densas, interfere no comportamento das personagens,
perturbando-o. Em conseqüência disto, há estreita relação entre o espaço psicológico e
as personagens (cf. Lopes & Reis, 1988, p. 205).
Essa interferência da atmosfera psicológica na atuação das personagens podemos
perceber na matéria que Realidade - edição de junho de 1967, página 44 - publicou
sobre o Haiti - "Viagem ao país do medo" -, descrito já na abertura como país
governado por um ditador, tornando-se uma terra de ódios raciais, repressão policial e
muita miséria. O clima psicológico reinante no país está refletido, por exemplo, neste
trecho do texto assinado por Milton Coelho:
( ... ) tanto nos olhos do ditador e sua atenta guarda pessoal, como nos dos escolares e da
"grand.e concentração popular", há uma expressão comum: o medo.
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estão as rústicas embarcações feitas de paus DE JORNALISMO
amarrados em forma de prancha. São
jangadas e suas velas têm a mesma cor da pele desses homens, os jangadeiros.
2º) Ambientação reflexa. É aquela em que as coisas são percebidas através das
personagens, sem a intromissão do narrador. Quase sempre, no entanto, o narrador
acompanha a perspectiva da personagem, numa espécie de visão compartilhada (cf.
Dimas, 1978, p. 22).
Como a ambientação franca, a reflexa também aparece em bloco de texto contínuo,
logo, reconhecível.
No texto assinado por Luiz Fernando Mercadante, já citado, com levantamento do grau
de liberdade existente no Brasil, durante o governo do Marechal Castelo Branco, no
qual o país é dividido por seus espaços sociais, quem descreve a atmosfera psicológica
reinante em cada setor são os entrevistados e não o narrador. O prior do Convento dos
Dorninicanos em São Paulo, frei Francisco Araújo, por exemplo, fala sobre a situação
da Igreja:
São os fatos que revelam a situação da Igreja. Há militantes cristãos perseguidos,
sacerdotes exilados, bispos caluniados e declarações do episcopado desacatadas
publicamente. Há um silêncio cúmplice e constrangedor de muitos setores da Igreja, diante
das violências, das torturas, dos atentados à dignidade humana e às liberdades que s6 se
explica, em parte, pelo medo da repressão. Existe no Brasil uma Igreja do silêncio. Esse
silêncio é subproduto do medo da violência e das terríveis campanhas da propaganda
dirigida por interesses bem definidos. Quem duvidar disso experimente fazer valer a
doutrina social da Igreja para ver o que acontece. A liberdade da Igreja é apenas aparente
e será tolerada somente enquanto não ameaçar de fato uma mudança nas estruturas
desumanas (p. 25).
As ambientações franca e reflexa, por virem em blocos de textos, compactamente, nos
quais o narrado r interrompe provisoriamente o relato da ação para se ocupar com a
inércia momentânea da descrição, podem criar o chamado vazio narrativo se forem
muito prolongadas. Aliás, para Dimas, o ponto central da questão do espaço na
narrativa é o da utilidade ou da inutilidade para a ação daquilo que é descrito nas
interrupções (cf. Dimas, 1978, p. 33).
3º) Ambientação dissimulada ou oblíqua. Ao contrário das duas ambientações
anteriormente vistas, a dissimulada ou oblíqua não trunca o fluxo narrativo. Nem o
narrador, nem uma personagem interrompem a ação para introduzi-la na narrativa.
Este tipo de ambientação é constituído de uma fusão de componentes com natureza
variada. A sua percepção requer do leitor redobrada atenção, pois "interpenetram-se
seres e coisas que somente a leitura demorada poderá separar, hierarquizar e avaliar"
(Dimas, 1978, p. 26). Há uma harmonização entre o espaço e a ação, um processo de
colaboração recíproca, que só o leitor perspicaz perceberá.
Essa fusão de espaço e ação pode ser observada no texto com a narrativa sobre o
cotidiano de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, assinada por José Carlos
Marão -"Nossa cidade" -, em Realidade de maio de 1966, à página 82.
Ao invés de o narrador interromper a narrativa para dizer que a casa do prefeito é um
imóvel de dois andares, com sofás modernos misturados a cadeiras coloniais, no andar
superior ele faz o espaço a ser descrito subjazer à ação. Diz simplesmente que, num
sábado, o juiz, o gerente do banco e o deputado local estavam
Professor mestre Artur Araujo (artur.araujo@puc-campinas.edu.br)
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sobriamente sentados nos sofás modernos DE JORNALISMO
e cadeiras coloniais do andar de cima da casa
do prefeito.
Posteriormente a ação volta a se refletir no espaço quando, para mostrar a vida
recatada do escritor do lugar, o narrador fixa-se num detalhe do espaço físico que ele
ocupa - a porta do seu quarto de pensão - e diz que ela só é aberta para a
personagem.
[...] receber visita, ir comer ou pegar o penico limpo do corredor.
Personagem - A personagem não existe fora das palavras, diz Beth Brait, em A
personagem. Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de
encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou para
dar forma às suas criaturas e aí pinçar a "vida" desses seres. O problema da
personagem é, antes de tudo, um problema lingüístico (cf. Brait, 1987, p. 11).
Vejamos, então, inicialmente, o que os leitores puderam encontrar nos textos
assinados por três jornalistas que compuseram personagens para leitores de veículos
de linguagens e públicos distintos. Os dois primeiros - Airton Almeida e Ester Rocha -
transformaram em personagem de um texto - "Fui traída à beça", publicado na edição
do primeiro semestre de 1990 da revista Som Sertanejo (Editora Azul), à página 4 - a
cantora e compositora Roberta Miranda. No texto que assinaram, ela aparece assim:
Roberta não se envergonha de assumir, de escancarar seu lado romântico, sensível. Ao
contrário, pelos seus poros exala pura emoção. Um sentimento que, segundo prega,
nenhum ser humano tem o direito de matar, uma vez que é ele que dá movimento à vida. E
é exatamente por ter essa máxima como filosofia que da veia poética de Roberta brotam
canções repletas de histórias de amor fatalmente interrompídas em seu auge. Poemas que
tocam profundamente na alma do povo. Afinal, quem não viveu uma paixão que, ao final da
chama, não se apagou, deixando marcas?
O terceiro jornalista - Alessandro Porro -, da Realidade, à página 116, escreveu sobre
Dom Hélder Câmara, na época (julho de 1966, quando circulou a edição da revista,
com sua matéria "O Padre Hélder"), arcebispo de Olinda e Recife. A personagem Dom
Hélder foi mostrada assim:
Franzino, as mãos pequenas, como as de um menino de 10 ou 12 anos, com pouco mais de
um metro e meio de altura, 57 anos de idade (nasceu em Fortaleza em 7 de fevereiro de
1909), às vezes pula como um garoto e às vezes encolhe os ombros, como um velho de vida
mansa. Raramente fica calado, e quando isso acontece nota-se a delicadeza de sua figura,
até na maneira de andar quase voando, os pés tocando o chão o mínimo indispensável.
Mas na hora em que está falando, ou seja, quase sempre, fica esquecido todo o resto e
quem ouve é levado a concentrar-se unicamente nos seus olhos. Olhos grandes, redondos,
móveis, de cor indefinida. Olhos terríveis, de general em campo de batalha, quando o
assunto é guerra, isto é, quando fala de problemas sociais e de suas soluções. Nunca,
porém, desaparece, do lado dos olhos, uma marca que foi se consolidando com os anos.
Rugas, diria alguém. Mas não são rugas: são as marcas de um sorriso permanente.
A personagem do texto assinado por Alessandro Porro é claramente mais densa que a
do texto da revista Som Sertanejo, do ponto de vista psicológico. A densidade
psicológica é um elemento importante para distinguir as personagens quanto à sua
Professor mestre Artur Araujo (artur.araujo@puc-campinas.edu.br)
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