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Humano, muito humano, e angelical

Leitura da obra Leão Lírico, de Elaine Pauvolid1

Por Marcelo Moraes Caetano

CNPq/PUC-RJ

I-2010

1
Rio de Janeiro: Edição da autora, 2008
Este não é um leão comum. Não possui apenas a envergadura dos grifos
rompantes medievais. Não é detentor exclusivamente da juba auriflamígera dos
felinos africanos. Não ousa sequer arvorar-se o rótulo de quem se expressa pelo
corpo ou pela linguagem da fala. Expressa-se pela apolínea lira, derramando,
entretanto, um dionisíaco passeio pelas searas da humanitude. É, portanto, um
Leão Lírico. Aos poucos, mas também subitamente, este mesmo leão apossa-se
de sua coroa, de seu cetro, de sua juba, de sua língua de fogo, de seu
medievalismo, de sua africanidade, de seu corpo e de sua fala – e toma-nos como
quem entra em nossas vidas por obra do acaso... mas permanece para sempre.

O poema que abre a obra – e lhe é homônimo: “Leão lírico” – como que
profetiza, vaticina a aventura humana, centrada e simbolizada no “signo” (verso 3)
que “trará o cetro à mão” (verso 4). Seria este centro/cetro o esplendor do signo
no sentido de Ferdinand de Saussure, de Barthes, de Derrida, de Foucault, de
Peirce, de Iser, de Gadamer, de Lacan, de Jung? Pela leitura da obra, este signo
tem o sentido atribuído por todos esses nomes e por mais alguém que, nas
constelações de leão ou virgem ou libra ou sagitário, ainda não se manifestou.
Mas fá-lo-á. Assim é o livro que “não será lido nem escrito / será intuído pela graça
do leão lírico” (versos 13 e 14). O primeiro poema, metonímia do livro inteiro, por
identificar-se ao significante do título de toda a obra, é um poema com tom
apocalíptico às avessas: não intui o fim da raça humana, tampouco o começo –
mas o meio, um meio possível de detenção sem “remissão” (verso 18).

O embate entre a dor transcendentalista da existência pós-Sartre, ou seja,


do fato de decepcionar-se com a própria decepção, se dá em contrastes coloridos,
como no seu “Dia-a-dia”, que segue o vaticínio do “Leão lírico” e é arrebatado em
vales de lágrimas por uma “Verônica” minúscula, humanizada, ao lado da “Virgem”
maiúscula (verso 12, outro signo/constelação?), a quem se iguala “Sevilha” (verso
13), que se saúda com o “Ave” (v. 13) proverbial da Virgem Maria. (Este trecho me
fez lembrar uma peça de Wedekind , O tenor, que traduzi para a SBAT, em que se
fala: “As cidades acesas são mais bonitas do que as estelas”) Seria isso verdade?
Seria esta hermenêutica válida ou simplesmente pecaminosa e espúria? Seria
mesmo a Verônica, ou melhor, a verônica do Santo Sudário? Ou há algo além em
Sevilha, “a cidade mulher”, como disse João Cabral de Melo Neto? Santas
mulheres, cidades ou pessoas? Qual o limite entre elas e nós, seja você quem
for?

Os poemas de Leão Lírico são como o sertão de Guimarães Rosa: você


pode achar-se ou perder-se ali. Isso foi o que disse o autor de Grande Sertão à
sua tradutora Harriet de Onís, referindo-se ao sertão, a si mesmo e à literatura de
um modo geral. É preciso ter um Goethe dentro de si, lembrou o pai de Riobaldo.
E Leão Lírico o tem. Afinal, Diadorim era homem ou mulher?

Era um ser humano. Como Goethe concebeu.

De alma “fria” ou “amiga”, como no poema “Descarte” (estaria faltando um


“s” para completar o Descartes, Réné?), o eu lírico sabe: “[....] existo de certa
forma, / no entanto, cogito / que a quimera do infinito / não terá fim enquanto restar
/ um fio de dúvida em mim” (versos 8 a 12). A alusão ao “Discurso do método” é
clara, mas, ao mesmo tempo, velada sob a angústia, sentimento tão repudiado
pela herança Iluminista e Renascentista cartesiana. O homem da Renascença
seríamos nós menos nossa humanidade profunda. Humanidade esta que Elaine e
seu eu-leão lírico tentam reaver com o farol, o feitiço, o lobo, a morte e as delícias
com que Nietzsche, enfim, reinventou a situação humana de luz e sombra. É
certo falarmos em Camus também, enveredando pelas mesmas searas. Ou em
Flaubert. Em “Eça de Queirós, o homem que escreveu Madame Bovary”, como diz
Silviano Santiago em seu famoso artigo, alusivo a “Pierre Ménard, o homem que
escreveu o Quixote”, de Jorge L. Borges. Machado de Assis parodiou ou estilizou
este homem renascentista com seu satírico “humanitas” (palavra opacamente
oriunda de um latim arcaizante) exposto às primeiras páginas do eterno Quincas
Borba (nome de um cachorro): atropelem-se os velhos, pois humanitas quer
passar, ao vencedor, afinal, as eternas batatas! Disse o bruxo do Cosme Velho.

Outras figuras bíblicas são lembradas (ou evocadas) na obra, bem mesmo
ao gosto do autor de Além do bem e do mal, há pouco citado, que predizia: “O que
seria dos livre-pensadores se não fosse a Igreja?” – Disse, ipsis literis, Nietzsche.
Erra quem acha que o prussiano que amava e odiava Richard Wagner era avesso
à cristianidade. Ele era avesso ao cristianismo, o que é bem diferente. Erra,
também, quem supõe ver em Leão lírico uma única face humana. Veem-se várias
que, em vez de entrar em conflito dialético, entram em conflito dialógico, ao gosto
de Bakhtin e Kristeva (por falar em Cristo...). Assim, “Esther”, por exemplo,
aparece, lembra-nos o Velho Testamento, por enquanto só aparente em seu
contraste com o Novo Testamento, mas é riscada do livro. Mas aparece. Assim
como anjos eróticos (não pornográficos, nada pornográficos, esses anjos são de
Nélson Rodrigues e não adejaram em Leão lírico), grassam com a sutileza de um
santo altar medieval. Evocam-se mortos e evoca-se a própria voz da morte, que
culminam, todos, na “Força de Deus”, na “Praia de nudismo”, no “Cio”, nos
“Arquétipos”, na “Angústia” nos poemas “Sem título” (há coisas que, se nomeadas,
perdem-se, como disse Ludwig Wittgenstein 2, ou seja, o autor das Investigações
Filosóficas: “A linguagem é Teologia”), no “Gozo” nas “Estrelas, na “Infância
compartilhada”, estado de beatitude suprema a que se chega por via do
humanismo.

Este Leão Lírico é, enfim, um mergulho nas profundidades da superfície, no


oco da bolha de sabão que sobe a alturas vertiginosas e se vai transformar em
estrelas estupefactas. Com ele, aprendemos o que o melhor amigo de Michel de
Montaigne (a quem este homem mágico dedicou seu Ensaio “Sobre a amizade”)
disse: “O fogo que me faz arder é o mesmo fogo que me ilumina” (Étiènne de La
Boëthie). Se é um livro que evoca dor, horas que não passam, oferece, também, a
quem quiser a volta do Leão lírico, ou o “Leão lírico II”, a outra face, uma panaceia
miraculosa: demonstra que a dor é “[....] necessária quando passa” (fragmento do
título do poema da página 121). Afinal, diz o leão com sua lira a encantar até
Cérbero, o cão dos infernos: “Eu, que as sinto, que fique / para dizer que só me
foram necessárias / as dores que passaram” (versos 4 a 6).

Enfim, se o livro tem silêncios enormes, como na sétima Sinfonia de


Beethoven, ou no segundo movimento do Concerto número 4 para piano e
orquestra do mesmo compositor, então já completamente surdo, tem também
“Medo da vida” e esperas felizes. Vozes, sons, música, lira. E, ainda que com
medo assumido, erotizado, elevado às fogueiras sagradas de todos os altares dos
refolhos e das reentrâncias da alma humana, o leão o enfrenta, e, a ficar preso,
prefere a postura altiva de um anjo livre, de um Serafim ou de um Querubim
humano e escrito sob versos [....] “que aparece de repente, / feito um peixe / que
pula do aquário” (outro signo? outra constelação?).

Ponto final.

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