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RESUMO: Este trabalho pretende examinar a eficácia discurso científico a partir do conto O
alienista, de Machado de Assis.
Publicado entre outubro de 1881 e março de 1882, O alienista, fundindo temática e
linguagem, trata a respeito da loucura, dos critérios de classificação das patologias mentais pela
ciência médica e, sobretudo, da autoridade do discurso científico para a sociedade brasileira
(embora, reconheçamos, tal autoridade exceda os limites do Brasil).
Em O alienista, Simão Bacamarte, personagem central deste conto, legitimado pelo status
de médico e, portanto, homem de ciência, empenha-se em ditar o que é normal e o que é patológico
dentre os comportamentos dos membros da cidade de Itaguaí. Assim, utilizando-se de sátira,
sarcasmo e ironia, Machado de Assis, pontua, mediante seus personagens deste conto, as visões do
senso comum acerca do tema da loucura e seus receios e dúvidas diante dos preceitos científicos,
embora a visão popular guarde respeito às teorias científicas. Por outro lado, através de Simão
Bacamarte, o autor expressa os equívocos, absurdos e arrogâncias (senão preconceitos) dos homens
de Ciência.
Superpondo a questão da loucura, o autor discorre muito mais sobre a postura da Ciência e a
maneira como esta se impõe à sociedade. Este fato pressupõe uma autoridade no discurso, a
começar pela linguagem, pois que esta, não só nas frases corriqueiramente constituídas pelos
médicos/cientistas procuram ser excludentes, como também pautam por palavras do tipo “jargões
profissionais” ou outras mais específicas, de modo a sobrevalorizar a si (enquanto classe) ou
confundir o senso comum.
(...) a questão da verdade, o direito que ela se dá de refutar o erro e de se opor à aparência, a
maneira pela qual alternadamente ela foi acessível aos sábios, depois reservada apenas aos
homens de piedade, em seguida retirada para um mundo fora de alcance, onde
desempenhou ao mesmo tempo o papel de consolação e de imperativo, rejeitada enfim
como idéia inútil, supérflua, por toda parte contradita – tudo isso é uma história, a história
de um erro que tem o nome de verdade? A verdade e o seu reino originário tiveram sua
história na história.(FOUCAULT, 1979, p. 19)
Mas, em observância ao que foi anteriormente afirmado, a verdade da ciência de que trata
Machado de Assis é a ciência de seu tempo: Ciência Positivista ( o que implica na longa trilha do
Positivismo no decorrer da história e sua relação com as teorias Iluministas). Esta é, ainda, a ciência
petulante que a tudo prova, que detém o direito à verdade . Representando esta realidade, Machado
de Assis traz Simão Bacamarte.
Há, porém, momentos do conto em que Simão Bacamarte mostra-se um homem de poucas
palavras, lacônico e frio como convém aos homens de ciência. É, portanto, um isolamento na
linguagem, pois somente Simão Bacamarte é o iniciado nos segredos da Ciência:
As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de
D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só
de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela
ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa
mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com gente de
juízo.(MACHADO DE ASSIS,1968, p. 20)
Ser um homem de Ciência é situar-se acima dos mortais comuns e suas frivolidades, seus
excessos sentimentais, de acordo com o exposto acima.
Para Machado de Assis, as palavras revestem atitudes críticas; muito provavelmente por
isso, atribuiu o nome “Canjica” aos representantes populares que se opunham a Simão Bacamarte –
opção por uma denominação da culinária popular, sem maiores requintes, de simplicidade e fácil de
manobrar.
Simão Bacamarte é, por sua vez, um tipificado sujeito iluminista, para o qual a razão à luz
da ciência tudo explica, tudo resolve e dá as provas. Personificando, inclusive, o perfil do
intelectual comum, Simão Bacamarte é sério, compenetrado, incapaz de brincadeiras, objetivo e
cauteloso para com sentimentos ou gostos estéticos. Bem assim, porque escolhe para sua esposa
Dona Evarista, menos por apreços do que por convicção científica:
Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas
de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia com regularidade, tinha bom pulso, e
excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além
dessas prendas, - únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta
de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir
os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
(MACHADO DE ASSIS,, 1968, p. 11)
Sem dúvidas, prevalece nesta passagem do conto a ironia de Machado de Assis, chamando a
atenção para a completa desumanização das relações entre os homens, vista, antes a partir de
conveniências que artificializam estas relações. Os determinismos biológicos de que se vale Simão
Bacamarte denunciam exatamente os abismos criados pela ciência. Por ser exata, a ciência
pressupõe uma isenção somente possível se houvesse a supressão da dimensão sentimental humana.
Antes de buscar uma mulher a quem amasse, Simão Bacamarte opta friamente por aquela que lhe
parece capaz de fornecer ampla e saudável prole.
A sua hipótese fundamental é de que a sociedade humana é regulada por leis naturais, ou
por leis que têm todas as características das leis naturais, invariáveis, independentes da
vontade e da ação humana, tal como a lei da gravidade ou do movimento da terra em torno
do sol: pode-se até procurar criar uma situação que bloqueie a lei da gravidade, mas isso se
faz partindo de que essa lei é totalmente objetiva, independente da vontade e da ação
humana. Deste modo, a pressuposição fundamental do positivismo é de que essas leis que
regulam o funcionamento da vida social, econômica e política, são do mesmo tipo que as
leis naturais e, portanto, o que reina na sociedade é uma harmonia semelhante à da
natureza, uma harmonia natural.(LOWY, 1998, p.36)
Depreendemos, então, que aquela Ciência de que nos fala Machado de Assis através de
Simão Bacamarte, sentencia que é possível unificar os métodos de análise dos fenômenos, seja para
tratarmos de aspectos do social (e o ato social é exclusivamente humano), seja para dar conta da
natureza. Daí, da mesma forma como as ciências da natureza são objetivas, neutras, isentas de
juízos de valor, de resquícios ideológicos, etc., assim também é possível ao homem de ciência
adotar uma postura imparcial. Esta imparcialidade também eliminaria o fator
sentimental/emocional. Neste ponto, a escolha de Simão Bacamarte por sua esposa (Dona Evarista)
a partir dos fatores biológicos, justifica-se.
A razão, princípio idolatrado pelo alienista, aparece como supra-sumo do saber, tal como nos
pressupostos iluministas dos séculos XVII/XVIII, segundo os quais este apreço à razão daria cabo
de todos os problemas da humanidade. Com o advento do pensamento iluminista, que reclamava
para si a clareza e a razão, todos os demais meios de conhecimento, a despeito da Mitologia, do
senso comum e de várias outras instâncias de saber foram relegados à depreciativa categoria de
trevas (até mesmo a Idade Média e seu modo teológico de explicação recebeu o nome de Idade das
Trevas) e o sujeito em processo de conhecimento, por sua vez, é o aluno: aquele que não detém a
luz. O Iluminismo e o Positivismo têm raízes em comum:
Pode-se dizer que o positivismo moderno é filho legítimo da filosofia das luzes e, da
mesma maneira que esta filosofia, ele tem em um primeiro período um caráter utópico, quer
dizer, é uma visão social do mundo de dimensão utópica, crítica e, até certo ponto,
revolucionária. (LOWY, 1998, p. 37)
Inferimos, portanto, que o Positivismo que contaminará todas as ciências, e em maior grau a
ciência natural (fundamentalmente a medicina), surge com base em critérios da razão e objetivando
superar preconceitos e combater às doutrinas das classes dominantes do período. A experiência
temporal, contudo, mostrou a falência destes intuitos, suas falhas e suas impossibilidades e
inadequações. Somos forçados a ceder ao clichê literário e afirmar o quanto Machado de Assis
adianta-se aos postulados futuros acerca das ciências. O autor mostra-nos Simão Bacamarte em suas
peripécias científicas encarnando este perfil de homem da ciência:
Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr, Soares, é ver se posso extrair
a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da
razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí a insânia,
insânia e só insânia. (MACHADO DE ASSIS, 1968, p. 23)
Contrariamente ao que poderíamos ser induzidos a pensar, Machado de Assis não parece
desmerecer à Ciência em favor da defesa do senso comum. Ao contrário, considerando a Ciência
enquanto ramo do saber (e muitos são os saberes), reclama para esta um lugar de desvelamento, isto
é, um saber sem uma verdade única e absoluta e, antes, um saber que, tal qualquer outro, recobre-se
por véus. Ao cientista, como àquele que pretende conhecer, pesquisar ou descobrir, cabe retirar estes
véus sem, contudo, arrogar chegar a uma verdade última. E assim o saber é contínuo e o discurso do
cientista deveria, então, pautar pelo provisório e não pelo determinismo.
Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque
não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem ciência é outra coisa, Sr. Soares,
senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência que vai mudar a face
da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era te agora uma ilha perdida no oceano da
razão; começo a desconfiar que é um continente. (MACHADO DE ASSIS, 1968, p. 21-22)
Observemos, contudo, que ao passo que Machado de Assis fala da ciência como um saber
passível de constantes revisões, mostra o ego exacerbado do homem de ciência, preocupado em
firmar seu nome como um grande e sublime ser, acima dos demais, capaz de enxergar além da visão
mediana dos demais seres sociais. A dita experiência que mudaria a face da terra mostrou-se
ineficaz.
Sobre a desconfiança acerca de a loucura ter limites vastos, esta hipótese torna-se o
passaporte para que Simão Bacamarte venha a cooptar pessoas dos mais variados comportamentos.
Pessoas que aos olhos dos não-cientistas seriam normais, diante do argumento científico, são
enquadradas como loucas e postas à mercê da Casa Verde.
Por sua vez, a noção de senso comum trazida por Machado de Assis n’ O alienista estipula
uma validade pela tradição que, vulgarmente, convencionou-se rebaixar a superstição ou a um saber
menor, pois que geralmente, os fenômenos são explicados de forma simplória e também
determinista.
Interessante notar que ao fim de toda a trama, já percorridos os caminhos da sede de poder
tantos dos personagens populares quanto do próprio alienista, Simão Bacamarte encontra-se
voluntariamente à disposição do seu claustro (a casa Verde). Novamente, Machado de Assis infere
que a Ciência pode tornar-se vítima de si própria:
A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaiaenses como uma
das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as
tempestades só aterram os fracos; os fortes erijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte
minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.
Sim, há de ser isso, pensou ele.
Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e
moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a
veracidade, o vigor moral,a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um
acabado mentecapto. (MACHADO DE ASSIS, 1968, p. 60)
Aqui vemos o quanto Machado de Assis apela aos adjetivos para dar conta do grande ego do
cientista e, assim, além de classificá-lo como egrégio, anunciar uma tempestade moral sobre si. Em
princípio, utiliza-se das noções de fraqueza e fortaleza que são, subentendidamente, alusões às
teorias darwinistas traduzidas vulgarmente como “só os fortes sobrevivem”. Secundariamente, o
uso das imagens de luz também dá idéia de referência à razão (alumiou-se; suave claridade), para
preceder à resolução de Simão Bacamarte. Seria, grosso modo, o apogeu de um novo Narciso que,
por encanto por si mesmo, afoga-se na própria vaidade.
E é com as melhores intenções possíveis que Simão Bacamarte lança mão de meios
arbitrários de classificação de patologias psíquicas, sem, entretanto, após tal jornada, conseguir
estabelecer o tipo normal de comportamento humano.
Mas o ilustre médico, com os olhos acesos de convicção científica, trancou os ouvidos à
saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa verde, entregou-se ao
estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no
mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de
conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí; mas esta opinião, fundada
em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e
boato duvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades
do grande homem. (MACHADO DE ASSIS, 1968, p. 61)
Importante notar que por último o autor trabalhará com a noção de boato. Claro, trata-se
aqui de afirmações que não partiram de um homem de ciência e, deste modo, não teria validade e
respaldo da veracidade. É um recurso de Machado de Assis para corroborar a noção de eficácia do
discurso científico.
REFERÊNCIAS
LOWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 12 ed., São
Paulo: Cortez, 1998.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 2ª ed. – São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1995. (Coleção Ponta, v. 4)
[1]Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela UEFS, doutoranda em Letras pela UFBA,
professora substituta da UNEB campus XXIV.