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1. Todos nós teremos um dia térebras, que abatiam, sem das palavras doces e fio umbilical que vem do cheiro nauseabundo dos há muito, não recebe
o fim, a nossa morte, a apelo nem agravo, as amargas e porque não do estômago, a única via de tecidos pútridos e qualquer assistência do
enfrentar talvez de forma muralhas inimigas. O queixo amor, extinta que foi pela raiz, acesso aos alimentos líqui- infectados. E pairando à médico, da enfermeira ou da
desconhecida: violenta- arrasou, restando apenas um deixou soltos os sons dos que mantêm a vida volta, as moscas zumbindo, assistente social, abando-
mente ou em paz, em agonia resquício do osso da man- guturais, subterrâneos, de- deste corpo invulgarmente atraídas ao repasto. nado apenas aos cuidados
quase interminável ou da mulher que também trata
subitamente, imersos no dos filhos à mistura com a
maior sofrimento ou sem labuta dos campos. Maca-
dor, sós ou acompanhados bro exemplo de qualidade de
pela família e pelos amigos, assistência portuguesa, em
em casa, no hospital ou tempos de sucesso, no final
saberemos lá onde? do século XX!
Por vezes, o cenário da Está ali um homem dócil, com
morte antecipa-se e há quem quem se pode comunicar.
o viva em jeito de aconte- Que tem uma alma ou, se
cimento prenunciado. Há quisermos, algo mais que o
doenças que se inscrevem corpo irremediavelmente
nos corpos, com o selo condenado. Quando os dois
fatídico da morte, demo- filhos entram por ali, o de
rando-se tempos que, mes- meses ao colo da mãe e o
mo que sejam curtos, não rapazito com um pássaro na
deixam de ser sofridos com mão, como eu vi nesta visita,
duração redundante. São os a emoção estala nos olhos
doentes terminais, com ainda não consumidos e
doenças crónicas que os funde-se em lágrimas que
vão consumindo inexora- brilham como gotas orva-
velmente até à morte, per- lhadas. É o reflexo da luz
manentemente anunciada. opalescente, vinda das
O caso do Casal da Serra é cercanias da serra através
de um dramatismo atroz. da larga janela do quarto,
Num homem na força da que o observador retém na
idade, o cancro partiu do memória, a assinalar con-
pavimento da boca, com tacto tão intenso, vivido
uma fúria desatinada, díbula, seco e esponjoso, em finitivamente animalescos e mutilado. Para baixo do E o que é mais espantoso é numa tarde destas de Maio,
corroendo tudo à sua volta. forma de boomerang espe- impedidos do prodígio da buço desalinhado não há saber que este doente, tão na aldeia rarefeita, mas de
É uma forma terebrante, tado pelos bicos e prestes a voz clara. mais nada, a não ser a ferida gravemente doente, foi paisagens vetustas.
actuando como essas saltar totalmente descar- Um tubo de plástico aflora na aberta a escorrer um suco enviado dos hospitais, Experiência invulgar que o
máquinas de guerra, as nado. A língua do paladar e caverna da garganta. É um amarelo-esverdeado, com o «despedido», e ali em casa, jornalista Fernando Paulou-
ro Neves, com a sua escrita a morte vem, é uma obriga- demorar tempos impre- por mais discreta que remover os tecidos mortos. acompanhado pelos
purificada, aqui deposita ção de todos, em especial visíveis e por vezes bem pareça. Quase sempre os O tratamento da dor, que e familiares e amigos, cuidado
para sempre nestas páginas dos profissionais que têm o «longos». familiares necessitam tam- um fenómeno psicossomá- pelo seu médico de família a
de memória. dever social de zelar pela Estes doentes precisam de bém de apoio, o que se tico, com componentes quem cabe um papel impor-
2. Nas longínquas e geladas saúde dos cidadãos. cuidados que permitam uma ignora com frequência. A orgânicos mas também tante, devendo ser apoiado
paragens da Estónia, os No doente que se aproxima sobrevivência que mereça gestão da verdade exige emocionais e afectivos, pelos serviços hospitalares
esquimós gravemente inevitavelmente da morte, ser vivida humanamente. uma sabedoria própria, que exige uma abordagem com- especializados para cuida-
doentes ou velhos, depois cresce um sem número de São cuidados que envol- sem ferir não traia nunca plexa e multidisciplinar. dos que não poderão
de uma cerimónia breve, necessidades nomeada- vem meios multidiscipli- aquilo que não pode ser Uma plêiade de outros pro- efectuar-se no domicílio. É
eram abandonados na mente de ordem básica, quer nares, materializados nas negado. blemas pode estar presente, necessário contudo que a
solidão das estepes, para físicas quer psíquicas. A componentes médica, de Os problemas de ordem como as náuseas, os satisfação de estar em casa
que as intempéries e o medicina de hoje tem enfermagem, de assistência orgânica são também vários, vómitos, a obstipação, a falta não seja minada pela
esgotamento pusessem soluções que permitem dar social, religiosa, familiar, dos exigindo cuidados específi- de apetite, etc, exigindo sensação de insegurança
rapidamente fim aos seus à maioria dos doentes uma amigos, etc. Só activando cos destinados a suavizar tratamentos adequados. do doente e da família»,
dias. Em várias civilizações morte mais tranquila. É pois todas estas incidências, será as queixas que mais preocu- Pois bem, qual deve ser o assim sintetizou esta magna
e durante séculos o aban- legítimo exigir que essas possível obter as melhores pam os doentes e a manter local mais apropriado para questão o dr. José Maçanita,
dono do doente terminal tem soluções sejam disponibili- condições de ordem física e uma funcionalidade aceitá- prestar esta assistência ao no XXI Curso de Pneumo-
sido uma realidade. No zadas pela organização psicológica, efectivamente vel dos diferentes sistemas doente terminal? O lugar logia para pós-graduados,
entanto, o desenvolvimento assistencial, quer na sua suportáveis. orgânicos, não prolongan- ideal será aquele que da Faculdade de Medicina
da medicina veio afastando vertente técnica quer no Problemas como a solidão, o do no entanto a vida a corresponde à satisfação de de Lisboa,em 1988.
progressivamente tal prá- apoio psicossocial. desespero, a dificuldade em qualquer preço. Mas deve- vários factores, como o Compreendemos que aos
tica desumana. Também o O que se pretende efectiva- estabelecer relações familia- se combater a infecção que desejo manifestado pelo hospitais cabe uma grande
moribundo tem tratamento e mente é uma sobrevivência res e humanas. outros obs- alastre à árvore respiratória, doente e seus familiares, responsabilidade no trata-
é seguramente nesta situa- ligada a uma qualidade de táculos de cariz social ou evitando o colapso desta susceptível de absorver o mento do doente terminal.
ção tão intensa que os vida suportável. Este mesmo financeiro, devem função, penosamente sen- dramatismo psicosocial da Mas é uma realidade que,
cuidados médicos ou objectivo é particularmente ser encarados pela equipa tido pela dispneia, pela dor doença e onde os cuidados entre nós, é em muitos casos
outros têm a sua maior desejável no doente responsável pelo tratamen- torácica, pela tosse ou pela a prestar em cada caso ou humilhante.
expressão e significado. canceroso, que habitual- to, não minimizando ou febre; é preciso prevenir a situação sejam exequíveis.
Ajudar um ser humano a mente se conserva lúcido até ignorando qualquer mani- obstrução das próprias vias «O domicílio seria talvez o
morrer, isto é a viver quando bem perto do fim, que pode festação desconfortante, aéreas, limpar as feridas e local desejável com o doente *Médico