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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE DIREITO

JOÃO VITOR RODRIGUES LOUREIRO

LETRAS, ACADEMIA E PODER:


formação e atuação dos juristas brasileiros na construção
da identidade nacional pré-independência (1772-1824)

Belo Horizonte
2009

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

JOÃO VITOR RODRIGUES LOUREIRO

LETRAS, ACADEMIA E PODER:


formação e atuação dos juristas brasileiros na construção
da identidade nacional pré-independência (1772-1824)

Monografia apresentada ao Colegiado do Curso


de Graduação em Direito da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial à obtenção do
grau de bacharel em Direito.

Orientadora: Adriana Romeiro

Belo Horizonte
2009

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A meus pais, Ana e Eduardo, pela mais rica


herança deixada: conhecimento. Que nunca se
perde, em meio aos percalços da vida.

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AGRADECIMENTOS

As letras que arranham, em grossas marcas, a textura do papel são como as


pessoas, que surgem em nossas vidas: deixam marcas eternas. As marcas do texto
deste trabalho só se fizeram gravar graças a marcas em minha formação,
inspirações decisivas e auspiciosas na jornada acadêmica.

Agradeço especialmente a orientadora deste trabalho, Profª. Adriana Romeiro,


pelo incentivo e apoio a minha travessia aos estudos históricos, à Profª. Mônica
Sette Lopes, inspiração sinestésica de criatividade no ressecado mundo jurídico, e
ao Prof. Giordano Bruno Soares Roberto, pelos materiais emprestados e a bravura
em trazer o verdadeiro debate histórico à Faculdade de Direito da UFMG. Também
agradeço ao Prof. António Manuel Hespanha, estímulo à incessante curiosidade de
historiador, pelos textos encaminhados.

Ao Grupo Vanguarda! Outras Palavras, sentido especial à minha vivência


universitária. Especialmente a Jeferson Mariano Silva, pelos momentos de
edificação de projetos e perspectivas à sinuosa estrada acadêmica, a Magnum
Lamounier Ferreira, pela persistente realização de sonhos, a Mateus Morais Araújo,
pelos incansáveis debates, e a Ricardo de Lins e Horta, pelo pontapé à crença.

Ao Mauro e à Clarissa, pelas divertidas tagarelagens históricas.

Agradeço sobretudo a Mariana Armond Dias Paes, pela enérgica disposição


às idas e vindas. E aos funcionários do Arquivo Público Nacional e do Setor de
Obras Raras da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, pela compreensão e
agilidade na disponibilização de documentos.

E, finalmente, agradeço à estimulante UFMG, pelas possibilidades.

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“O ser alienado não procura um mundo


autêntico. Isto provoca uma nostalgia:
deseja outro país e lamenta ter nascido no
seu. Tem vergonha de sua realidade.”

Paulo Freire, em Educação e Mudança


(1983).

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RESUMO

O presente trabalho realiza um levantamento de dados sobre a formação


acadêmica dos juristas, nascidos na América Portuguesa, nos finais do século XVIII
e primeira metade do século XIX, bem como traça um panorama geral do
pensamento jurídico e político vigente na Europa do mesmo período. Discute as
influências de tal modelo de formação no papel dos juristas enquanto agentes do
processo de construção de uma identidade político-jurídico-cultural brasileira, bem
como investiga os reflexos e influências dessa formação em algumas passagens do
texto da Constituição do Império de 1824.

Palavras-chave: História do Brasil. História de Portugal. Ensino Jurídico. Reformismo


ilustrado. Antigo Regime. Transição. Direito. Iluminismo. Liberalismo. Independência.
Identidade nacional. Constituição de 1824.

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ABSTRACT

This paper surveys the data on the academic training of jurists, borned in
Portuguese America, in the late eighteenth and early nineteenth century and gives a
general overview of the legal and political thought in Europe stands in the same
period. Discusses the influences of such type of education in the role of jurists as
agents of the construction of an integrated political-legal-Brazilian culture, and
investigates the influences and consequences of such education in some passages
of the text of the 1824 Empire's Constitution.

Keywords: History of Brazil. History of Portugal. Legal Education. Enlightened


reformism. Old Regime. Transition. Law. Enlightenment. Liberalism. Independence.
National identity. Constitution of 1824.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Seção I. Opções metodológicas...............................................................................1


Seção II. Apresentação..............................................................................................3
Seção III. Sobre identidade nacional........................................................................6

CAPÍTULO 01: TRAMAS DE UMA NOVA EUROPA


Seção I. Breve espectro do espaço europeu pós-revolucionário..........................8
Seção II. Configurações do contexto político português: forças conservadoras
e preservação da monarquia. Permeabilidade aos ideais ilustrados..................11
Seção III: Constitucionalismo em Portugal na transição do Antigo Regime. O
contexto político e a ideologia na cultura constitucionalista..............................15

CAPÍTULO 02: INFLUXOS. DO SABER JURÍDICO AO SABER POLÍTICO

Seção I. Academias e o Direito Comum. Discurso Jurídico e Letrados. A


Doutrina jurídica europeia na primeira metade do século XIX............................21
Seção II. Formação para os quadros institucionais. O papel de Coimbra para as
instituições políticas do Império Português no Antigo Regime..........................32

CAPÍTULO 03: COIMBRA

Seção I. As reformas pombalinas do ensino jurídico: arautos ou entraves de


uma modernização do Direito?...............................................................................35
Seção II. Que mudanças?........................................................................................47

CAPÍTULO 04: ALFAIATES SEM TECIDO

Seção I. Costurando remendos: Religar contextos separados por um


oceano.......................................................................................................................54
Seção II. Que liberalismo, que juristas, que direito?............................................67

CONCLUSÃO............................................................................................................75

REFERÊNCIAS..........................................................................................................79

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INTRODUÇÃO

Seção I: Opções metodológicas.

Este trabalho de conclusão de curso enfoca um aspecto que é crucial ao


desenvolvimento das ideias aqui propostas: trata-se de uma opção metodológica,
nos modos de se descrever e interpretar os processos históricos, que influenciou o
debate acadêmico até meados da década de setenta, o qual, no entanto, ainda não
foi superado.

Tal opção consiste, portanto, em uma maneira de se observar a história dos


homens a partir dos dados evidentes de sua realidade, e as instituições como
resultado dos modos de organização dos agentes sociais. Assim, não deve ser
observado, no decorrer da exposição, como as instituições estavam a influenciar
indivíduos no seu agir mas, de modo contrário, como indivíduos estavam a dirigir e
compor as instituições, especialmente aquelas que dizem respeito ao Direito e à
Política.

É feita, portanto, a opção de não tematizar o Direito como campo autônomo


ou fenômeno que dispense a atenção de historiadores, sociólogos, economistas ou
cientistas políticos, como algo destacado e capaz de rejeitar a análise de sua
existência enquanto resultado dos modos de organização social. Nessa perspectiva,
articula-se a temática jurídica aos dados objetivos da realidade da vida em
sociedade, a qual produz e modela os meios culturais que lhe sejam úteis ou mesmo
necessários, compondo assim o arranjo de forças e agentes responsáveis pelas
instituições.

A tendência que, infelizmente, ainda se observa (senão predomina) nos meios

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acadêmicos do Direito é a de autonomizar o fenômeno jurídico como campo de


atenção exclusiva de juristas. Perde-se, assim, o salutar debate acadêmico
interdisciplinar, em que pesquisas e estudos riquíssimos se complementam e se
enriquecem mutuamente. Trabalha-se, muitas vezes, sem a precisão de conceitos e
teorias de áreas afins, prejudicando significativamente os resultados obtidos e
criando profundos abismos entre áreas de conhecimento que, em última análise,
objetivam entender, avaliar e propor soluções àquilo a que se chama de
problemática social. Alguns defeitos graves, que reduzem o olhar histórico a meras
introduções de manuais jurídicos, ou descrevem determinado fato histórico sem
passar por uma consulta às fontes primárias acabam colocando a História do Direito
como disciplina instrumental, sujeita a demonstrar uma história positiva, de acúmulo
e progresso linear, a fim de fundamentar o argumento defendido pelos adeptos de tal
abordagem, de que o Direito seria uma construção seletiva do gênero humano
racional, e que sua condição atual seria resultado de um curso histórico
progressista.

Contrariando tal visão, o leitor lerá um texto que aborda as fontes históricas
de modo reflexivo e atento a seu contexto. Aqui não se propõe um esvaziamento do
debate político, como descrevem alguns autores 1, no momento em que foi feita a
opção metodológica por uma descrição social da história do direito. Quer-se dizer
que o conjunto institucional do Estado não é abandonado ou rejeitado para as
anotações feitas. Sem dúvida, não há como negar o papel que tem a instituição, no
processo de formação desses agentes: porém, seu papel não é decisivo, unilateral,
determinista, uma vez que se permeia de um contexto próprio, de formas e
esquemas de pensar e compreender o mundo inerentes às sociedades que
abandonavam, ainda que progressivamente, os padrões de organização jurídica
próprios do Antigo Regime. Por isso mesmo, aqui não está a se concordar com o
posicionamento de que a história social do Direito a tenha despolitizado, rejeitado a
análise da composição de fatores que, em última análise, conferem organização à

1 Como expõe o Prof. António Manuel Hespanha na introdução da obra O Direito dos letrados no império
português, p. 19: A crítica da Escola dos Annales era justa, se dirigida apenas contra quem a merecia. Mas
acabou por ter efeitos excessivos e prejudiciais (…). HESPANHA: 2006.

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vida das sociedades modernas.

Está, aqui, a se desconsiderar a leitura de fenômenos ditos de “longa


duração“: buscando-se identificar, acima de tudo, o papel social que os agentes
responsáveis pelas instituições desempenham, e como tal papel é decisivo nas
representações e imaginários políticos de então.

Os níveis de observação transitarão ora pela história em níveis estruturantes


gerais ora pela história em universos singulares, intercalando os contextos mais
amplos do Direito e da organização política das sociedades pós Antigo Regime com
as especificidades do ensino jurídico em Coimbra, ou mesmo com fontes específicas
referentes a decisões judiciais coletadas em órgãos judiciais do Brasil joanino, como
as da Corte de Apelação da Bahia, por exemplo.

Feitas tais ressalvas, o leitor passará, portanto, por diferentes leituras, ora de
contextos de espaços específicos, que encararão o Direito como fenômeno mutante,
que acompanha as transformações em processo tanto na Europa quanto na América
Portuguesa, ora de exposições gerais, que se valerão da perspectiva social do
Direito enquanto instrumento de preservação de condições tradicionalmente dadas.
Tal análise permitirá ser encadeada simultaneamente com os processos
econômicos, sociais e sobretudo políticos que influenciavam o modo de conceber e
processar o Direito.

Seção II: Apresentação.

É bastante considerada, entre a historiografia jurídica brasileira, no que diz


respeito à concepção de uma “cultura jurídica“ brasileira, a existência de um seu

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trinômio de sustentação, composto por bacharelismo, patrimonialismo e elitismo


social2. As raízes dessa cultura estão, para muitos, em meio ao modelo monolítico
da noção de Direito, decorrente da dominação colonial e da consequente importação
de discursos e práticas pré-concebidos na Europa, os quais vieram, também, a
constituir as bases da sociedade brasileira.

Este trabalho, resultado de um recorte do projeto de iniciação científica sobre


as transformações do Direito brasileiro face a chegada da família real portuguesa no
ano de 1808, visa estabelecer uma análise detida de um dos elementos desse
trinômio, o chamado bacharelismo. No entanto, a abordagem escolhida remonta ao
período imediatamente anterior ao da fundação dos cursos jurídicos brasileiros, no
ano de 1827, período este pouco estudado pela literatura jurídico-historiográfica
brasileira.

Parece fora de dúvida que o contexto brasileiro, o qual vivenciou sua ruptura
política com Portugal no ano de 1822 e teve outorgada a Constituição Política no
ano de 1824, deveria possuir, no período imediatamente anterior a tais eventos,
influências substantivas das academias jurídicas europeias, mormente da Faculdade
de Leis de Coimbra, local de formação da imensa maioria dos juristas nascidos no
Brasil ou de portugueses que vinham ao Brasil para exercer seus ofícios. Tais
influências se traduziram tanto pela apropriação de doutrina jurídica em aspectos na
prática e no discurso dos juristas brasileiros, quanto pelas formas jurídicas do
Estado e a prevalência de interesses determinados, consagrados pela Constituição
de 1824. Portanto, o período de formação do Estado brasileiro independente, com a
chegada da família real portuguesa, merece a atenção dos estudos em História do
Direito: o desenho de novos espaços institucionais que serão preenchidos por
camadas sociais em transformação, influenciadas pelo liberalismo político e
2 De acordo com KOZIMA, é perceptível a inexistência, ainda hoje, de “um Estado racional e
despersonalizado, decorrente daí, de um lado, a distinção precária entre o público e o privado... e, de outro
lado, a precariedade da segurança do indivíduo perante as possibilidades da atuação estatal”. Acrescenta,
ainda: “Nada obstante a ascensão do bacharel tipicamente brasileiro, que trouxe consigo os ideais do
Iluminismo, o que se verifica é que não houve, nem poderia haver, a conformação do Estado, efetivamente,
às ideias liberais, o que, em outras palavras, poderia significar a substituição do modelo tradicional por
uma forma de dominação de tipo racional, nos moldes weberianos. (Cf. KOZIMA: 2008, p. 370)

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econômico alavancado na Europa.

É privilegiada, para esses fins, uma análise dos juristas enquanto grupo
social, sem se ater a descrições prosopográficas, e o papel de sua formação
acadêmica na construção daquilo a que se poderia designar por cultura jurídica
brasileira e identidade nacional.

O primeiro capítulo se ocupa de desenhar o contexto europeu e português de


modo breve e geral, na transição do Antigo Regime, de modo a mostrar a Faculdade
de Leis de Coimbra como parte desse contexto, e as influências do mesmo para
formação dos juristas no primeiro quarto do século XIX.

O segundo capítulo versa sobre a proximidade dos modelos de formação


acadêmica e formação de quadros da administração e poderes, além de descrever a
doutrina jurídica que se desenvolvia na Europa e em Portugal no decorrer do século
XIX, bem como a consagração da ideologia de caráter liberal.

O terceiro capítulo desenha o espaço acadêmico de Coimbra, demonstrando


os aspectos principais de seu corpo discente e docente, a organização de seu
projeto didático e os juristas brasileiros nesse espaço.

O quarto capítulo identifica os reflexos e influências da formação


anteriormente apresentada, através da análise de peça judicial e do próprio texto
constitucional, de modo a demonstrar os contrastes e as evidências do liberalismo e
da formação coimbrã.

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Seção III. Sobre identidade nacional.

A escolha do tema deste trabalho foi feita sem a pretensão de esgotá-lo. O


título encerra as palavras “formação” e “atuação”, remetendo a primeira aos
processos formais de ensino e a segunda, aos contornos da atividade jurídica e
política dos bacharéis brasileiros. No compasso com a formação da nação, a
formação desses indivíduos contribuirá com alguns tons para a criação das
instituições nacionais, engatilhando o primeiro passo do processo de construção do
que se poderia chamar de “identidade nacional”.

Portanto, este trabalho se alicerça na noção de identidade nacional não


admitida em seu sentido mais amplo, que passa pela cultura, por construtos de
ordem comum, que impulsionam certa crença ou motivação, entre diferentes setores
sociais, de pertencimento ao bem público. Em sentido bem menos lato, o que se
busca aqui é colocar as instituições como projeções fundantes da brasilidade
independente – instituições independentes compõem a ideia de nação, apartada do
antigo laço de subordinação colonial, contribuindo à progressiva expressão da
condição de “ser brasileiro”, anos mais tarde.

Porém, é a partir de um primeiro passo que a nação se forma e, no caso


brasileiro, esse passo se dá com a emancipação política e o desenho das
instituições do Estado independente. Apesar de longo e cumulativo processo, a
emancipação política, iniciada em 1808 e manifesta em diferentes momentos, 1816,
1822 e mesmo em 1831 (MAXWELL: 2000, p. 193), introjeta perfis ideológicos nas
parcelas de organização nacional, insculpindo as primeiras noções de Brasil e
“brasileiro” em sua dinâmica.

O projeto liberal, que anuncia a suposta igualdade (ainda que formal) e, no


caso brasileiro, uma liberdade para poucos, é o primeiro passo para o surgimento
desse sentimento de pertencimento à nação. Ainda que forjado pelo molde de uma

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superposição do projeto de nação, aclamado pela autoridade e centralização da


monarquia, estranha à fragmentação (cultural, política, econômica e social) da
América Portuguesa. Um projeto das elites sociais brasileiras, as quais conduzirão a
centralização política, adotada por este trabalho como principal matriz da formação
da identidade nacional.

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CAPÍTULO 01. TRAMAS DE UMA NOVA EUROPA.

Seção I: Breve espectro do espaço europeu pós-revolucionário.

O espaço europeu ocidental vivia, na primeira metade do século XIX, os


reflexos do momento subsequente à Revolução de 1789. Sua organização política
havia sido abalada não somente pela força das baionetas dos exércitos
napoleônicos, mas também pela força de um programa definido desde meados do
século XVIII, e que veio progressivamente conquistando espaço entre grupos que
assumiam força e controle nas estruturas de poder. Tais camadas descobriam sua
importância no processo de derrubada das monarquias absolutistas. A verdadeira
face da Revolução foi, assim, o alcance do ideário iluminista em meio a grupos
sociais emergentes, cada vez mais cônscios à importância que tinham no desenrolar
dos processos políticos. Médicos, comerciantes, pequenos manufatureiros e
advogados eram responsáveis pela propagação de um ideário contrário ao regime
que se lhes impunha e que parecia, para alguns poucos setores da sociedade
insatisfeitos com as formas de atuação do poder político na economia, entravar a
modernização que o capital industrial já processava na Grã-Bretanha.

Tais setores sociais aderiram, portanto, a um conjunto de ideias que travavam


ácidas críticas à organização de diversas instituições. Era imprescindível para tais
grupos derrubar as barreiras de fundo ideológico e político, as quais impediam,
sobretudo, a consagração de princípios fundamentais ao desenvolvimento pleno do
capitalismo liberal, o que seria verificado anos mais tarde 3. É o que se nota nesta
3 Os processos revolucionários burgueses iniciados a partir do século XVIII tiveram como sua principal feição,
sobretudo, a dura crítica institucional, cuja atenção voltava-se o arranjo político das monarquias absolutas da
Europa setecentista. Certamente, a transformação de tal cenário buscava suas maiores razões na maneira que
tais instituições influenciavam as atividades econômicas, exemplificadamente, através dos pesados impostos
e entraves que recaíam sobre setores voltados às atividades produtivas e de prestação de serviços e comércio,
cujos dirigentes tornavam-se progressivamente despertos a seu papel político na consagração de liberdade em

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denúncia, datada de 1770, feita pelo Advogado Séguier:

Os Filósofos se erigiram como preceptores do gênero humano. Liberdade


de pensar, eis o seu brado, e este brado se propagou de uma extremidade a
outra do mundo. Com uma das mãos, tentaram abalar o Trono, com a outra,
quiseram derrubar os altares. Sua finalidade era modificar nas consciências
as instituições civis e religiosas e, por assim dizer, a revolução se
processou. (SÉGUIER apud AQUINO: 1995, p. 121)

O programa iluminista deslocou o olhar para o indivíduo, conceito


gradualmente construído no decorrer da Modernidade, seja pela filosofia cartesiana,
seja pelo kantismo, ou por inúmeros outros expoentes da filosofia: é esse indivíduo
que, agente, organizado, produz, altera os meios de produção e transformação
econômicos, cria, alcança espaço político, decide (por meio de seus representantes)
pelas regras necessárias ao convívio em sociedade, sem depender de uma ordem
externa, que lhe seja completamente alheia e justificada pela arbitrariedade de
Deus. Urge, para esse programa, um árbitro secular, que valha indiferenciadamente
a todos, que não se concentre nos caprichos e vontades de um único homem, mas
que permita tocar e salvaguardar os interesses os mais variados que aparecem na
trama da sociedade. Tal árbitro será, em seu sentido formal, a lei, e apoiado nela
será erigido aquilo que na teoria política se concebe como Estado de Direito.

No entanto, sem a conquista decorrente das guerras, sem a força dos


exércitos, a Revolução Francesa jamais teria feito triunfar tais modelos de
mentalidade política na Europa. A exportação de tais ideais somente foi possível,
dadas as peculiaridades da organização social de cada nação europeia (e a
permeabilidade de suas respectivas camadas burguesas nascentes, emergentes ou

suas iniciativas. É também progressivamente que será edificado o Estado Liberal, refletindo-se mormente na
consagração das liberdades civis e alterando por completo o cenário europeu pós-revolucionário. Nesse
sentido, afirmam ELZE e REPGEN que, na literatura dos tratados publicísticos, as críticas não se reduziam
somente contra o sistema tributário, mas contra o Estado como um todo, contra a sociedade, que o sustentava,
e contra as instituições, através das quais ele (o Estado) se manifestava. (In der publizistischen
Traktatenliteratur richteten sich Kritik und Reformverlangen nicht allein gegen das Steuersystem, sondern
auch gegen den Staat als Ganzes, gegen die Gesellschaft, die ihn trug, und gegen die Institutionen, durch die
er wirkte). ELZE, REPGEN: 2003, p. 265).

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decadentes), na medida em que os interesses do governo constituído na Franca


após o Diretório, manifestados pela figura controversa de Napoleão Bonaparte, se
deram por meio de estratégias políticas que tinham por escopo tentar barrar o
crescente avanço econômico britânico. Noutras palavras, o que as guerras
napoleônicas fizeram não foi uma cruzada pela liberdade, mas sim a exportação do
modelo de Estado francês: Poder Executivo forte, igualdades civis e o Code
Napoléon, às nações subjugadas.4

Mesmo com a derrota de Bonaparte e seus exércitos, a trajetória política da


Europa após a Revolução Francesa já havia se definido: apesar de existirem forças
políticas conservadoras, que se revezavam no controle de territórios anexados e
catalisavam o surgimento de nacionalismos no mapa desenhado pelo Congresso de
Viena, permaneciam os programas da revolução burguesa (e os grupos deles
munidos) como chama acesa no continente, o que se espelhará na concepção
ideológica do Estado de Direito (Rechtsstaat) e influenciará, decisivamente, a Teoria
Jurídica que o sustenta.

Mais acentuadamente, o que a escalada das revoluções burguesas na


Europa produzirá é uma interposição entre as instituições judiciárias e
administrativas, na qual o Estado passa a fortalecer a letra da lei com o suporte de
seu aparato de controle e repressão, também fortalecido. Trata-se, conforme
preconiza Michel FOUCAULT, de uma fase latente de ortopedia social, em que as
redes de poder de caráter não-judiciário se verão à frente não mais de apenas punir
os indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades. (FOUCAULT: 1999, p. 86). É
portanto, a fase de transição entre letras moribundas da lei, cuja aplicação era
medida na conformabilidade de interesses e controle social a posteriori, a uma fase
de revivamento do corpo legal, em que tal controle se dará apoiado na atuação de
outros poderes que não o judiciário.

4 ELZE, REPGEN. 2003, p. 300 Studienbuch Geschichte. Livre tradução do autor: Seine Kriege waren zwar
keine Kreuzzüge für die Freiheit, aber sie exportierten das französische Staatsmodell, eine starke Exekutive,
bürgerliche Gleichheit und den Code Napoléon, in die eroberten Länder.

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A organização política desse espaço não deve ser, portanto, encarada como
uma hegemonia total e homogênea do liberalismo e do ideário iluminista,
representando um como que triunfo ideológico e de modelos de governo que
houvesse se processado de imediato após as guerras napoleônicas. Há, acima de
tudo, a configuração de antagonismos entre forças políticas, conservadoras ou
progressistas, pondo em crise o sustentáculo do Estado Absoluto, que é a
autoridade irrestrita do rei. Permanecem, entretanto, configurações do poder político
que ultrapassam um modelo acabado de Estado Liberal (aqui entendido como um
Estado guardião de liberdades individuais por meio de mecanismos jurídicos
formais). Modelo que, ao contrário das expectativas, não correspondeu a um
fenômeno imediato e abrupto, verificável em todas as nações europeias. Entre as
exceções, Portugal encontra no seu palco político verdadeiro embate entre as forças
de modernização do país e as mais conservadoras, que davam suporte à
permanência da monarquia absoluta, pondo o Império nas linhas de continuidade do
Antigo Regime. (SILVA, p 174) É o que será discutido, ainda que de forma breve e
consciente de não alcançar toda a complexidade da organização dos agentes
políticos do espaço português do primeiro quartel do século XIX, na próxima seção.

Seção II: Configurações do contexto político português: forças conservadoras


e preservação da Monarquia. Permeabilidade aos ideais ilustrados.

O reino português, dada sua condição de atraso econômico em relação às


economias do centro da Europa e a progressiva dependência em relação à
economia britânica, especialmente desde o Tratado de Methuen, no século XVIII,
constituiu-se em experiência política que refletia a condição em que se encontravam
suas camadas sociais dirigentes. O amparo na política colonial, no comércio com o
Brasil e as demais colônias, depunha o escoramento que viviam tais camadas com o
conjunto de instituições típicas do Antigo Regime. Some-se a isto os resultados do

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pragmatismo experimentado pelo reinado de D. José I, através das políticas


pombalinas, que contrapuseram modernização e administração conservadora num
mesmo governo tendo conseguido, entretanto, preservar a monarquia absoluta e
atrasar a já lenta e dolorosa gestação do Estado Moderno. (MONCADA: 1949, p.
105).

Portugal viu formar, junto ao colonialismo desenvolvido durante os séculos


XVI a XVIII, grupos sociais limitados pela própria configuração econômica do reino:
dependentes do exclusivismo colonial e do capital mercantil resultantes da empresa
colonizadora, tais grupos não haviam tomado por projeto o caminho de investimento
em atividades manufatureiras. Neste sentido, há, em razão das especificidades do
contexto lusitano, um entrave entre os setores sociais burgueses, no sentido de
buscarem promover a modernização econômica nos moldes daquela que já se
processava na Grã-Bretanha tida, à sua época, como modelo de grande nação.

A pouco diversificada economia lusitana, baseada nas atividades de produção


agrícola (especialmente de uvas e olivas) e na atividade de comerciantes
amparados nos monopólios comerciais com as colônias, denunciava quão
permeáveis estariam os agentes responsáveis por tais atividades à ideologia
burguesa que se processava na Europa de finais do século XVIII. Tal ideologia tinha
grande apelo e pano de fundo econômico. Os escritos de RODRIGUES DE BRITO,
em suas Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza das nações e
principalmente de Portugal fornecem, nesse sentido, elementos para a compreensão
da medida de infiltração do programa fisiocrata às camadas sociais em contato com
a literatura iluminista, já no século XIX, por exemplo. Assim, o que se verifica é uma
espécie de concertação de programas ideológicos à realidade econômica. O ideário
fisiocrata certamente encontrará espaço entre as elites portuguesas, em razão das
possibilidades, que se demonstravam paupáveis no contexto português: uma
economia agrícola que poderia encontrar seu caminho de modernização pela via
agrária. Nos dizeres de MONCADA,

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Mas onde as ideias dos fisiocratas, combinadas com as de Adam Smith,


numa original adaptação a Portugal, nos aparecem com mais rigoroso
espírito de análise, formando um sistema económico e político para o qual
concorrem todas as luzes do século XVIII, com o seu racionalismo
reformador, o seu empirismo científico e o seu sensualismo, à Condillac, é
na obra de Joaquim José Rodrigues de Brito, lente de leis em Coimbra. (…)
(MONCADA:1949, p. 107)

A obra de Rodrigues de Brito, publicada em 1803 expõe, de certa forma, de


que modo o programa ideológico que se constituía na Europa conferia forma às
mentalidades dos intelectuais lusitanos na alvorada do século XIX. Nascido Joaquim
José Rodrigues de Brito, na cidade de Évora em 1753, formou-se em leis na
Universidade de Coimbra e nela lecionou até 1823. O autor é, portanto, exemplo
bastante consistente de receptividade de uma principiologia de fundo liberal entre as
camadas letradas das elites portuguesas.

Essa principiologia liberal pode ser traduzida, em uma de suas facetas,


conforme os esquemas da escola fisiocrata, que propunha a terra e seu aluguel
como a única fonte de renda líquida (HOBSBAWN:2009, p. 36). Ora, defender a
riqueza nacional a partir desse modelo, numa nação cuja agricultura era sua
principal atividade econômica e relativamente autossuficiente (isto é, que não
dependia diretamente da exploração colonial) pareceria um modelo racional de
desenvolvimento para pensadores como Rodrigues de Brito. Tais pensadores
pugnavam por uma economia livre de entraves mercantis, e capaz de firmar Portugal
no quadro das grandes nações europeias.

Apesar de se verificar a permeabilidade de um pensamento de fundo


econômico entre juristas, deve-se atentar que os grupos aderidos a programas
ideológicos reformistas no plano econômico não se coincidiam por completo: juristas
não compunham necessariamente as camadas envolvidas com as atividades
produtivas (especialmente agrícolas). No entanto, muitas vezes tal coincidência se
dava em plano prático: assim, a razão jurídica, como elemento edificador de um

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saber específico e hermético de determinadas camadas sociais, influenciada e


embebida das mais variadas teorias, abocanhou conformações aos interesses de
seus próprios detentores. As camadas letradas, portanto, assumirão, por um lado, o
papel ideológico de modernizar o Estado e seu conjunto institucional, naquilo que
lhes parecesse possível e, por outro lado, preservar a configuração da economia
portuguesa às especifidades de seu contexto. 5

Compostas sobretudo de magistrados e lentes formados em Coimbra, os


quais integravam o quadro de pessoal dos funcionários reais, tais camadas já
haviam entrado em contato com o ideário iluminista. Assim, dadas as especificidades
do contexto português, é possível se observar um gradual e seletivo processo de
escolhas programáticas: as elites intelectuais, sob a égide da formação ilustrada
fomentada pelas reformas empreendidas por Pombal no século XVIII, adequavam o
aparelho das instituições do Estado às possibilidades reais de modernização do
reino.

As reformas no plano da autoridade isolada do rei não poderiam mais atender


à necessidade de modernização do Estado 6. A ideologia iluminista, mesclada ao
pragmatismo das reformas esclarecidas, já se demonstrava insuficiente aos objetivos
precisos das camadas sociais inspiradas pelo programa burguês. Estado moderno,
que oferecesse chances de progresso e acumulação de bens e condições para o
desenvolvimento do liberalismo deveriam, anos mais tarde, ser parte de um projeto
nacional.

Essa situação denunciava a alteração de modelos mentais vigentes em meio

5 Com exceção feita a Ribeiro Sanches, influenciado pela economia clássica inglesa, especialmente de David
Hume (1711-1776), todos os demais ilustrados portugueses da primeira metade do século XVIII professavam
ideias tipicamente mercantilistas. (SILVA: 2006, p. 52).
6 As reformas políticas de fundo ideológico iluminista, alavancadas pelo reformismo josefino não colocavam
Portugal ao compasso das grandes nações europeias de sua época, para as elites sociais progressistas. O
desenvolvimento tardio do jusnaturalismo filosófico em Portugal importava reformas políticas, ainda que
tardias. É o que aclama BRITO, em suas Memórias Políticas, §14: “Os fins do Legislador podem ser
differentes; mas no Estado actual da Europa, que cada um dos soberanos não póde reformar por si só,
devem reduzir-se a hum, que he a Riqueza como objecto de toda a Républica Europea. (…) A riqueza pois he
o indubitavel fim, a que tendem, e devem tender todos os legisladores.” (BRITO: 1803, pp. 21-22)

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

a grupos específicos. Conforme dito, tais grupos estavam infiltrados em toda a


administração, desde órgãos fazendários, de fiscalização e justiça, tanto na
metrópole quanto nas colônias, o que viria a desempenhar papel decisivo nas
transformações políticas subsequentes.7

Seção III: Constitucionalismo em Portugal na transição do Antigo Regime. O


contexto político e a ideologia na cultura constitucionalista.

A semeadura dos ideais burgueses na sociedade portuguesa ofereceu


significados expressivos para a promoção de rupturas fundamentais nas instituições
políticas. Apesar de existirem interesses e visões de desenvolvimento distintos, que
proporcionavam o debate e a divisão de grupos em tendências políticas muitas
vezes inconciliáveis entre si, a análise reduzida tão-somente ao aspecto da
infiltração do ideário iluminista-burguês na sociedade portuguesa não consegue
justificar tais mudanças. Além do espraiamento de tais programas ideológicos, é
necessário desenhar alguns fato(re)s que demoliam paulatinamente a estrutura
política do Antigo Regime em Portugal. Esta seção dedica-se a descrever
brevemente tais fatores, bem como a aprofundar o programa que seria desenvolvido
para o Estado.

Conforme já delineado, mecanismos formais de asseguramento de liberdades

7 O período do gabinete de Pombal em Portugal representou, comparativamente ao que se vivia até o início do
século XVIII, uma relativa racionalização dos quadros da administração pública. As medidas do governo
objetivavam debilitar estruturas rígidas ate então vigentes, que denunciavam o quadro de centralidade e
delonga na implementação das políticas. Desse modo, o esforço do governo é reaparelhar o quadro de pessoal
da administração, de modo a engendrar, através de reformas substanciais, uma burocracia estatal apoiada no
poder central, fiel e compromissada aos ideais reformistas. Portanto, é crucial atender as demandas de um
novo conceito de governança, alicerçada na propagação das luzes e que pudesse se demonstrar especializada,
revestida de autoridade técnica. Tais resultados seriam possíveis se a Academia desempenhasse seu papel
estratégico na formação de tal corpo burocrático, e são as reformas, principalmente do Ensino Jurídico em
Portugal, que o farão, resultando nas camadas letradas ocupantes de tais funções. Nesse sentido, ver SILVA,
pp. 114-115.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

individuais ganharam grande significado para a concepção do Estado de Direto


nascente. Isto quer dizer que a lei escrita torna-se a expressão maior da segurança,
encerrando o campo para incertezas e pluralidade de fontes jurídicas. Portugal
dispunha de um corpo de fontes espesso, as chamadas Ordenações do Reino
(Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que ofereciam os subsídios para a
aplicação de um direito nacional. A “Lei da Boa Razão”, de 19 de agosto de 1769,
imprimiu novo tom ao extenso corpo legislativo, volvendo o olhar dos juristas a esse
direito nacional, ao determinar a aplicação da lei em detrimento de costumes,
jurisprudência ou doutrina e reafirmando caráter subsidiário ao direito romano, que
somente deveria ser aplicado, caso não houvesse legislação do reino que tratasse
do assunto em discussão. As glosas medievais de Bártolo de Sassoferrato e Acúrsio,
tradicionais fontes consagradas pela doutrina jurídica acadêmica, serão
definitivamente banidas. Assim:

Sendo-me presente, que a Ordenação do Livro Terceiro Título Sessenta e


Quatro no Preâmbulo, que mandou julgar os casos omissos nas Leis
Pátrias, estilos da Corte e costumes do Reino, pelas Leis, que chamou de
Imperiais (…) se tem tomado por pretexto; tanto para que as Alegações, e
decisões que se vão pondo em esquecimento as Leis Pátrias, fazendo-se
uso somente das dos Romanos (…), e inteiramente alheias da Cristandade
dos Séculos, (…)
Mando por uma parte, que debaixo das penas ao diante declaradas se não
possa fazer uso das ditas Alegações, e Decisões de Textos, ou de
Autoridades de alguns Escritores, em quanto houver Ordenações do Reino
(…)

E que o costume deve ser somente o que a mesma Lei qualifica nas
palavras = longamente usado, e tal, que por Direito se deva guardar = Cujas
palavras mando; que sejam sempre entendidas no sentido que correrem
copulativamente a favor do costume; de que se tratar, os três essenciais
requisitos: de ser conforme às mesmas boas razoes, que deixo
determinado, que constituem o espírito das Minhas Leis (…) (PORTUGAL.
Lei da Boa Razão, 1769).

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Portanto, a unificação do corpo legal deveria ser um empreendimento do


Estado: um corpo de leis que assegurasse os interesses da sociedade civil seria
uma resposta aos anseios burgueses por segurança jurídica. A defesa da
propriedade, da secularização das instituições e da preservação de liberdades
individuais8 deveria estar disponível em um código escrito, que se impusesse a
todos. Além disto, o destacamento entre sociedade civil e poder político implicava a
separação nos meios formais de delimitação e asseguramento de direitos. De um
lado, era necessário demonstrar os direitos e deveres do monarca e dos cidadãos,
de modo claro e preciso (HESPANHA, 2004: p. 41), de outro, era necessário unificar
a legislação referente às liberdades civis, o que só seria feito anos mais tarde,
dependendo de uma compilação e unificação legislativa densa e meticulosa.

Foi com essa inspiração de unidade legislativa que, em 31 de março de


17789, a Rainha D. Maria I, por meio de decreto, decidira criar uma Junta de
ministros para compor um Novo Código de Direito Público, a fim de eliminar o
excesso de leis, reduzindo o corpo legislativo (HESPANHA: 2004, p. 35). António
Ribeiro dos Santos e Pascoal José de Melo Freire, ambos juristas com formação em
Coimbra travaram, na ocasião, intenso debate entre linhas de pensamento acerca do
conteúdo que deveria possuir a carta de direitos políticos de Portugal. O primeiro,
partidário da monarquia absoluta, expusera um projeto que se reduzia às regras
8 A noção de liberdades individuais é o que aparece, na historiografia, como a grande bandeira dos grupos
organizados no entorno do programa revolucionário burguês. Desamarrar as instituições ao vínculo do
soberano caprichoso, e embasá-las na vontade do indivíduos, em suas livres-escolhas, se apoiam na lei e no
Estado que nela se fundamenta como uma espécie de dogma desse pensamento liberal, que tomará as rédeas
dos processos econômicos e sobretudo políticos do cenário europeu no início do século XIX. A literatura de
pensadores desse período estende-se a sacramentar tais ideais. É o caso de Benjamin CONSTANT, cujo
pensamento será fundamental ao constitucionalismo europeu e brasileiro em tal período, o qual diz em sua
obra Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos: o direito de não se submeter senão às leis, de não
poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade
arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu
trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de
permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos e de seus passos. (CONSTANT: 1985, p. 15)

9 O decreto da rainha estabelecia que “considerando […] que esta [a felicidade dos povos] se não poderá
conseguir sem huma clara certeza e indubitável intelligencia das Leis, a qual se tem feito hoje mais difícil,
tanto pela multiplicidade de humas, como pela antiguidade de outras que a mudanca dos tempos tem feito
impraticáveis“. (Cf. SILVA:2000, p. 404).

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

sucessórias do trono português, enquanto o segundo, reagindo de modo heterodoxo


a tal concepção, defendia um projeto mais elaborado de carta política, seguindo,
ainda que moderadamente, o programa alinhavado com a ideia de direitos naturais
do homem, os quais eram superiores aos povos e ao rei. 10(MONCADA: 1949, 113).

A proposição de unificar a legislação num código de direitos de cunho político


retrata, portanto, a influência que as ideias iluministas alcançavam em meio às
instituições portuguesas. O debate entre os dois juristas antecipou boa parte dos
conflitos que marcaram a implementação do regime liberal em Portugal. (CUNHA:
2005, p. 552) Afinal, se a proposta de unificação havia partido do próprio poder real,
é possível perceber uma tênue linha de continuidade entre as diretrizes do governo
josefino, sob as orientações do gabinete de Pombal, e as que orientavam o governo
mariano. Tal linha de continuidade justifica-se pela análise de uma perspectiva
estadualista de controle político (HESPANHA: 2003, p. 241). É o Estado que
promove certezas e garante princípios alinhavados à ordem social. Ora, num
momento em que a ordem social (entendida aqui como a configuração dos grupos
sociais organizados horizontalmente em torno de ideais e princípios definidos) incita
transformações de ordem jurídica, é o Estado que, por meio de sua atuação
pragmática, atenderá a tais clamores, sendo responsável pela promoção de tais
transformações. O governo que assim agir estará a garantir linhas de continuidade
institucional, assegurando sua própria existência. Portanto, o despotismo ilustrado
do governo josefino ou as reformas de tom iluminista do governo mariano confirmam
certo pragmatismo das formas de governar, ao propor mecanismos de tratamento de
grupos sociais politicamente organizados, atendendo a seus interesses específicos.

É por esses meios que a consubstanciação de tais interesses numa proposta


de organização do Estado será larga e morosamente debatida por quase um século,
por volta de 1750 até 1850. Apesar de o projeto de Novo Código do governo mariano
não ter logrado sucesso, já constatável em suas reuniões semanais das quais os
membros da junta não chegavam a qualquer consenso (CUNHA: 2005, p. 552), o
10 O debate travado entre os juristas é amplamente descrito pelo prof. António Hespanha, na obra Guiando a
mão invisível: Direitos, Estado e Lei no liberalismo monárquico português. pp. 36-43.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

clamor por garantias de liberdade pessoal, da propriedade e mesmo de igualdade


política e jurídica tomarão a cena em Portugal, denunciando a gradual falência do
absolutismo monárquico e do mercantilismo.

A acerbação dessa principiologia burguesa encontra seus extremos nas


constituições europeias do século XIX: os valores que dela decorrem passam a ser
valores que atingem o ponto de limitar as igualdades, as quais existirão apenas em
plano abstrato, formal. Iguais entre si são os detentores da propriedade, a
participação política será limitada àqueles que detinham determinada fortuna e que
pudessem tomar decisões pelos demais. A propriedade, portanto, e a riqueza eram
distintivos do exercício de direitos, com a instituição do chamado voto censitário,
pelas Constituições francesa de 1795, espanhola de 1810 e mesmo pela carta
portuguesa de 1826, por exemplo. (HESPANHA: 2003, p. 258) Trata-se de consagrar
o político pela via do formalismo jurídico: a letra seca da lei é que confere as formas
de controle e poder, ela vale universalmente ao todo da nação, constitui-se (de con +
statuere, estabelecer em conjunto) na preservação dos direitos e interesses do corpo
social organizado.

Portanto, embebidos por essa teoria jurídica nascente e crescente, os grupos


sociais afetos a aspectos ideológicos que criticavam as instituições do Antigo
Regime, rearranjam suas forças de organização, de modo a obter, em meio a um
reino invadido e sem rei, mecanismos de defesa de seus interesses. A invasão do
reino Português pelas tropas lideradas por Junot e a fuga dos Bragança para o
Brasil, em 1807, impulsionariam outro evento da história portuguesa que demonstra
a adesão do constitucionalismo por suas elites: a chamada Súplica de 1808.

Tal fato consistiu na reação de um grupo de juristas (Francisco Duarte Coelho,


Simão de Cordes Brandão e Ricardo Raimundo Nogueira), contrários à extrema
promoção que o general Junot fazia de sua figura, por meios institucionais de
proclamação de um rei (objetivava que tal fosse ele mesmo), através de uma Junta
governativa. A ideia havia partido dos representantes da administração dos três

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

estados do Reino, os quais compunham tal junta, a fim de se reconhecer a Portugal


uma constituição e um rei (CUNHA: 2005, p. 577). Inspirados pela Constituição de
Varsóvia, tais juristas tinham por objetivo a reorganização administrativa, a
separação entre Estado e Igreja, a independência das funções judiciais e a
permanência do sistema de eleição de representantes pelos conselhos municipais,
bem como um rei que fosse da família de Napoleão e um código civil (o Código de
Napoleão) (CUNHA: 2005, p. 577). Tal reação não foi bem acolhida por Junot, que
interrompera o seguimento das reivindicações esboçadas pelos suplicantes ao
imperador francês. O general, no entanto, não conseguiria retirar das mentalidades
formadas durante anos, a aspiração por uma carta política e pela transformação
institucional que desse sustentabilidade aos ideais de preservação das liberdades
individuais e da defesa da propriedade.

Daí até 1811, as forças de resistência à invasão se verão ocupadas com a


expulsão dos exércitos napoleônicos, o que alcançariam com a definitiva repulsão
das tropas da terceira invasão, lideradas por Massena. (CUNHA: 2005, p. 579)

Anos mais tarde, em 1822, após os eventos da Revolução Constitucionalista


do Porto, é que Portugal alcançará, por meio de documento escrito, a delimitação e
o asseguramento dos interesses gestados pelas elites letradas durante a transição
do Antigo Regime para a condição de Estado Moderno. A participação de sociedades
secretas, como a maçonaria, e a influência da Constituição Espanhola de 1820
serviram de forte embasamento aos acontecimentos da Revolução em Portugal
(CUNHA: 2005, pp. 580-581). Não se deterá, contudo, à análise de tal fato, pela
extensão que ele implicaria, bem como um desfoque do espaço/objeto de estudo a
que se propõe este trabalho.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

CAPÍTULO 02. INFLUXOS. DO SABER JURÍDICO AO SABER POLÍTICO.

Seção I. Academias e o Direito Comum. Discurso Jurídico e Letrados. A


Doutrina jurídica europeia na primeira metade do século XIX.

Conforme visto, se a Europa vivia uma revisão completa de suas instituições,


promovidas pelos grupos sociais adeptos de programas liberais, os quais defendiam
bandeiras como a propriedade privada, a livre-iniciativa, a liberdade de expressão, a
participação política representativa; tal programa não se reduziu apenas a um
programa ideológico mas se efetivou, sobretudo, em estados de organização das
sociedades que abandonavam progressivamente o que a historiografia denomina
por Antigo Regime11.

A fim de conduzir um mecanismo eficaz de cristalização de tais ideais, é que


será concebido, em plano prático, as instituições do chamado Estado de Direito. O
paradigma da legalidade, que descarta a vontade única do soberano, e cuja validade
se impõe acima de todas as vontades, por ser ela mesma expressão da suposta
vontade e soberania popular, é o fundamento principal de um modelo marcado pela
rigidez institucional, que privilegia a continuidade de instituições criadas ou já
existentes na sociedade. Porém, a lei depende exclusivamente de uma junção a ser

11 Este trabalho faz uso do termo Antigo Regime por diversas vezes, convém esclarecer ao leitor o uso adotado.
O termo foi inicialmente um resgate de Alexis de Tocqueville, que o usou para designar as estruturas vigentes
na França que foram destruídas pela Revolução. Segundo o autor, Mirabeau teria sido o primeiro a usar a
expressão, “Comparai o novo estado das coisas com o Antigo Regime”. Especialmente no sentido de
designar esse estado de coisas vigentes, em que se incluíam o absolutismo monárquico, os privilégios
nobiliárquicos e as desigualdades entre os membros da sociedade francesa, o termo acabou se alargando pelo
uso na literatura historiográfica, passando a designar não apenas esse estado de coisas vigente à época do
reinado de Luís XVI, mas a diferentes contextos que prevaleciam na Europa e que tinham em comum
parcelas dessas características denunciadas por Tocqueville em O Antigo Regime e a revolução. Portanto,
partilhamos do conceito alargado, ao qual boa parte deste trabalho se refere; porém, a maior parte dele diz
respeito ao contexto de finais do século XVIII. Cf. SOUZA: 2006, p. 64.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

feita entre seu plano abstrato, formal, ao plano a que se denomina prático, real,
concreto. Depende, assim, de religar os pontos de um descolamento proposto pela
teoria jurídica ao longo de séculos de doutrina, entre abstração e práxis, entre forma
e conteúdo, entre ideal e real. É essa tarefa que se propõe aos detentores do saber
jurídico, da razão jurídica, conjunto de conhecimentos de um grupo social destacado,
de formação letrada e erudita, responsável por alinhavar os traços fundamentais de
uma complexa engenharia social que começava a se estruturar, a partir da
concepção desse modelo de Estado de Direito.

Daí, importa delimitar em que espaço essa doutrina jurídica surgiu, e de que
modo tal espaço se comportava em meio às transformações de seu tempo,
readequando a conciliação entre ensino e experiência política.

A chamada “razão jurídica“, foi amalgamada pela própria erudição que a


cultura acadêmica lhe conferira desde muito. A fundação das universidades na
Europa implicou também a formação de grupos sociais típicos do espaço
universitário: a Universidade de Bolonha, desde o século XI, talvez seja o exemplo
mais conhecido dessa tradição, em que as cadeiras fundamentais do trivium e
quadrivium compunham o quadro básico do modelo escolástico de formação de
juristas. É nesse espaço que uma série de poderes e expectativas serão
estabelecidos, no intuito de encontrar, nesse mesmo meio acadêmico, soluções aos
conflitos da vida em sociedade. O plano de desenvolvimento do Direito Comum na
Europa moderna teve também importância exemplar para o prestígio que ganhariam
as academias, uma vez que soluções aos problemas concretos deveriam ser
12
equacionadas por juristas, valendo-se de sua oppinio communis doctorum . A
12 Nesse sentido, v. HESPANHA: 2003, p. 192. O conhecido privilégio de acadêmicos e professores,
inteiramente moldado em Bolonha, havia sido expressamente trazido pelo Corpus Juris Civilis e formava,
com efeito, a Lei Fundamental das Universidades Europeias, na qual o privilégio de papel jurisdicional dos
cidadãos acadêmicos, no começo da Modernidade, atingiu outros círculos, os designados “Pares da
Universidade”, desempenhando uma função até os dias de hoje e nos fracos restos de uma jurisdição
disciplinar, a qual atualmente consiste apenas em fóssil de um passado remoto (observa-se substancialmente
que essa Jurisdição tinha por objetivo final ser protegida pelos poderes estatais). (Livre tradução do autor de
EBEL;THIELMANN: 2003, p. 179: Dies beruhmten Scholaren- und Professorenprivileg, gemünzt wohl auf
Bologna, ist ausdrücklich in das Corpus iuris civilis aufgenommen worden und bildet gewissermaßen das
Grundgesetz der europäischen Universitäten, wobei das Gerichtsstandprivileg der akademischen Bürger, in
der frühen Neuzeit erweitert auf andere Kreise, die sog. “Universitätsverwandten”, bis in die Neuzeit eine

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

fundamentação de uma razão jurídica, a qual consistiria em discurso específico de


um grupo social delimitado, (inicialmente adstrito às Academias e futuramente
alargado e espraiado pela organização de uma práxis jurídica espessa, cujas bases
remontam ao Estado Moderno, práxis a ser desempenhada por juristas de formação
acadêmica) auxiliou a criação de um “discurso dos letrados“.

Letrados são, nessa medida, os agentes de tal discurso que estiveram


amparados por um modelo de formação mais ou menos tradicional e similar, que
lhes permitiria compartilhar uma mesma língua. Tal língua consiste no idioma
jurídico, cujas bases estão no esforço secular de preservação e reinterpretação das
fontes do legado romano, sobretudo, do Corpo de Direito Civil Justinianeu. Os
homens que mantém esse idioma vivo terão, no decorrer dos séculos XV, XVI, XVII e
parte do século XVIII sua formação em meio aos espaços universitários voltada a um
modelo escolástico, o qual compreendia noções fundamentais de lógica formal
aristotélica, saberes eruditos como retórica, latim e história dos povos antigos e,
acima de todos, conhecimentos a respeito do direito romano.

Portanto, o discurso que será criado sobretudo no interior das academias,


cujas bases estarão nesse modelo de educação, infiltrará os canais da vida em
sociedade pelas vias que as instituições sociais e políticas lho permitam. O discurso,
nesse sentido, toma sua feição prática, irrigando a cultura das práticas jurídicas
europeias e encontrando no meio social seus limites e feições, bem como sua razão
de sê-lo.

Obviamente, ao se admitir a existência de um discurso letrado, admite-se


também haver um discurso não-letrado em sua contraposição, que foge ao
regramento acadêmico, que escapa à atenção da história documental
majoritariamente preservada. Esse discurso permeia as sociedades do Antigo
Regime, associa-se às formas religiosas, particulares, domiciliares, familiares, orais

Rolle gespielt hat und in den kümmerlichen Resten einer praktisch nicht mehr ernst genommenen
Disziplinargerichtsbarkeit heute nur noch Fossil ist (wobei meist übersehen wird, dass diese akademische
Gerichtsbarkeit letztlich auf einen Schutz vor den staatlichen Gewalten zielte).

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

e costumeiras de se enfrentar dissídios e questões que envolvessem direitos, e


continuará a existir no espaço colonial (e posteriormente independente) por ele
determinado. Exemplos não faltam de rábulas 13 que estarão a atuar no Brasil colonial
e imperial, impacto relativo à carência de academias jurídicas, resultante da
proibição metropolitana de instalação de cursos superiores no Brasil durante vários
séculos. Proferirão, portanto, um discurso apegado às formas, mas que jamais teve
ligação às doutrinas fundamentais das arcadas e bancos acadêmicos.

Em outra posição, o discurso letrado – que a este trabalho importa como foco
de atenção – endossa três características essenciais, as quais conferiam-no sua
permanência histórica e sua face conservativa em meio às transformações sociais:
1) a finalidade de condicionamento dos agentes a sua fundamentação, 2) a
utilização de aportes teóricos e lógicos que excluíssem não-letrados de seu domínio,
e 3) a consagração de princípios edificantes da ordem política. (aqui tida como os
princípios e valores que davam sustentação às instituições políticas). Edificado com
base nesses pilares, o conhecimento jurídico não terá apenas a característica de
subproduto cultural de determinado contexto, mas sobretudo, de fator decisivo para
a permanência dos mecanismos de dominação e de organização social. Com isto, é
possível aprofundar a compreensão das características desse chamado discurso dos
letrados :

1) a finalidade de condicionamento dos agentes a sua fundamentação. A


existência do próprio discurso depende da adesão de agentes dispostos a operá-lo.
Isto significa que aqueles que estiveram ligados ao estudo (e aplicação) da
Jurisprudência tiveram de realizar uma escolha – a de ocupar papéis sociais sobre
13 Conforme se vê em Lima BARRETO, e Machado de ASSIS, o rábula, aquele que exerce os ofícios da
advocacia sem ser diplomado, é figura recorrente em diferentes períodos da literatura brasileira, tendo se
integrado como elemento da cultura bacharelista brasileira. Respectivamente: “Noticiam os jornais que a
polícia prendeu dois vadios e, de acordo com as leis e o código, processou-os por vadiagem. (…) O
legislador nunca deve admitir que vadios, homens que nada fazem, portanto não ganham, pudessem dispor
de dinheiro, e dinheiro grosso, para se afiançarem. (…) Não sou, pois, bacharel, jurista nem rábula e fico
aqui. (Cf. BARRETO, 2004, p.221). “Os olhos de Tibério Valença faiscavam. Parecia-lhe que tinha falado
claro, não querendo sobretudo falar mais claro, e Tomás, sem procurar a oportunidade daquelas
observações, perguntava-lhe o sentido das suas palavras, no tom da mais sincera surpresa. Era preciso dar
a Tomás a explicação pedida. Tibério Valença continuou:— As explicações que lhe tenho a dar são mui
resumidas. Quem lhe deu o direito de me andar namorando a filha de um rábula?” (Cf. ASSIS: 1866 , p.4)

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

os quais recai um conjunto de expectativas, advindas de certos clamores da própria


sociedade, como a aplicação de regras de equidade – e assim o fazem
disciplinarmente: deve-se proceder à escolha sistemática, à operação decisória, ao
levantamento de argumentos, para a atividade que se fundamenta na expressão oral
e escrita, em canais de comunicação marcados pela heteronomia das chamadas
“fontes de direito“. São elas que condicionam o discurso jurídico no sentido de ser
definido enquanto tal, impondo aos agentes por ele responsáveis sua vinculação
completa e condicionando suas formas de expressão.

2) a utilização de aportes teóricos e lógicos que excluíssem não-letrados de seu


domínio. O discurso jurídico, como ferramenta do jurista de formação acadêmica, é
uma porta para o já mencionado destacamento social que o mesmo ocupa. No final
da modernidade tal fato se tornará ainda mais explícito, na medida em que o uso de
regras de lógica formal para a interpretação jurídica e o surgimento de teorias (como
o voluntarismo e o contratualismo) são amplamente utilizados tanto na
argumentação quanto no ensino jurídico, além de a teoria jurídica buscar por fontes
mais particulares, mais restritas ao contexto de cada nação em formação,
abandonando gradualmente as fontes do direito romano, o que importa a edificação
de discursos semi-autônomos, no sentido de se verificar, apesar da formação do
chamado espaço de Direito comum europeu, uma fragmentação relacionada à
especificidade, que volta sua atenção à legislação nacional, ao costume local e a
fontes do direito não-tradicionais. Esse aspecto é decisivo para a constituição de
uma camada letrada cada vez mais enrijecida, que deixará de ser confundida com
agentes não-letrados, ainda que conhecedores de tradições jurídicas milenares e de
fontes antigas do direito. O ápice desse enrijecimento social tomará sua feição mais
acentuada no período de decadência do Estado absolutista e a consequente
secularização de suas instituições políticas, ardorosamente defendida pelos filósofos
iluministas desamarrando, ainda que não completamente, o conhecimento jurídico
secular de suas proximidades com o Direito Canônico. Assim, o discurso jurídico
passará por uma fase de sistematização e depuração, de modo a definir
precisamente quem serão os sujeitos responsáveis por sua produção, excluindo uma

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

parcela de agentes do discurso que não acompanhassem as mudanças de


consistência teórica nele (e por ele) propostas.

3) a consagração de princípios edificantes da ordem política. Esta a


característica de maior relevo. Conforme observado, os modos de organização
social demonstram-se imprescindíveis à faceta que o Direito assume. O discurso
jurídico é, portanto, moldado na confluência de mentalidades e culturas políticas e,
sobretudo, nos interesses que se põem à mostra nos diferentes espaços sociais,
evidenciados pelo conflito de seus membros. Trata-se de um reflexo das
mentalidades vigentes, sobre as questões mais variadas: seja da organização dos
poderes em plano público (como o direito divino dos reis, p. ex.), seja dos poderes
em plano privado (direitos reais e obrigações civis), resultando nas formas de
legitimação daquilo a que se pode designar por ordem social: valores e interesses
que merecem a tutela jurídica, no intuito de se apaziguar as tensões originadas pelo
questionamento dos mesmos interesses, que porventura surgissem no seio da
sociedade. Tais interesses certamente estiveram sob a detenção dos poderes
soberanos: no momento em que o Estado se forma, criam-se concelhos e órgãos de
jurisdição, que adentram a modernidade ganhando prestígio e reconhecimento. A
atividade de dizer o direito, distribuir concessões, conferir poderes, é espessamente
engendrada pela coroa e sua atuação. Com a edificação burguesa do Estado de
Direito e a cristalização de interesses dos grupos que operam sua engenhosa
maquinaria institucional, por meio da letra seca da lei, o prestígio que ganharão os
juristas de formação é evidente: é necessário traduzir o que fora consolidado, revelar
o real sentido do que fora sacralizado pela legislação, conduzir procedimentos
também determinados por normas, por em funcionamento o aparato burocrático das
instituições públicas, que deveriam agir em conformidade ao dogma da lei. Jurídico e
político se complementam, na tessitura de uma ordem meticulosamente pensada por
seus artífices, articulando interesses das elites dominantes ao que será manifesto
pelo discurso jurídico, cujo principal fundamento reside, sobretudo, no que diz a lei.

Tais características apresentadas conferem ao discurso jurídico sua feição

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

conservativa, em dois sentidos: na medida em que o mesmo objetivava preservar a


ordem social; e na medida em que tal discurso manteve-se substancialmente com as
mesmas características, revelando relativa continuidade no decorrer da
modernidade. Desempenhava, além desse evidente papel de preservação, o de se
propor na construção de identidade dos agentes responsáveis por sua produção.
Significa dizer que o discurso jurídico converte-se no instrumental principal de que se
valem os juristas para expressar sua própria condição de juristas: passam a
vivenciar aquilo a que se chama de papel social (resultado do ofício que
desempenham, do trabalho que desempenham), ao deterem um conhecimento que
lhes é próprio, e que depende de uma educação voltada a fins específicos, a qual
também comunga do mesmo discurso.

O caráter de conservação do discurso apresentado deve ser compreendido


como conservativo, e não como conservador, uma vez que a noção de discurso
jurídico amparado na concepção de razão jurídica expõe linhas de sistematicidade
conceitual rígidas, porém não estanques. Se o discurso jurídico tende a encontrar
mecanismos de legitimação de determinada ordem social, tal fato se deve aos limites
impostos pela língua sistemática desenvolvida a partir da construção do Direito
comum europeu. Mas a mesma língua que apresenta tais tendências, desenvolve
nuances que a tornam aberta a transformações de cunho ideológico propostas por
seus próprios falantes: é o plano de historicidade do Direito, que fundamenta o
surgimento de escolas de pensamento e rupturas no modo de concebê-lo. Há que se
pensar, portanto, em sistemas abertos de interpretação, processamento e,
principalmente, estudo do Direito.

Com base nessas tendências, o discurso jurídico que se desenvolve nas


frentes acadêmicas acompanhará o ritmo de desenvolvimento – que alguns autores
preferem colocá-lo sob o plano de unidade – do direito comum. Não há dúvidas de
que a Europa vivia uma espécie de sistematização de métodos e estilos de
raciocínio jurídico ao longo os séculos XV, XVI e XVII. Mas, ressalte-se, essa
unidade diz respeito essencial (para não se dizer exclusivamente) à teorização do

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Direito, a seu campo de ensino, segundo uma homogenização intelectual que se


infiltrava nos bancos acadêmicos, mas que se deparava com contextos distintos, no
que compreende as fontes de direito quotidianas. Nas palavras de HESPANHA:

O sentimento de unidade do direito foi – em grau não menor – suscitado


pela homogeneidade da formação intelectual dos agentes a cargo de quem
estivesse a criação do saber jurídico medieval – os juristas letrados.
Tratava-se de universitários com uma disposição intelectual comum,
modelada por vários factores que se verificavam em toda a área cultural
europeia centro-ocidental. Primeiro, o uso da mesma língua técnica – o latim
– o que lhes criava, para além daquele estilo mental que cada língua traz
consigo, um mesmo horizonte de textos de referência (numa palavra, a
tradição literária romana). Depois, uma formação metodológica comum,
adquirida nos estudos preparatórios universitários, pela leitura dos grandes
“manuais“ de lógica e de retórica utilizados nas Escolas de Artes de toda a
Europa. Finalmente, o facto de o ensino universitário do Direito incidir
unicamente – até a segunda metade do século XVIII – sobre o direito
romano (nas Faculdade de Leis) ou sobre o direito canónico (nas
Faculdades de Cânones), pelo que, nas escolas de Direito de toda a Europa
Central e Ocidental, desde a Cracóvia a Lisboa, desde Upsala a Nápoles, se
ensinava, afinal, o mesmo direito. O mesmo direito, na mesma língua, com a
mesma metodologia. É do trabalho combinado destes factores – a
unificação dos ordenamentos jurídicos suscitando e possibilitando um
discurso jurídico comum, este último potenciando as tendências unificadoras
já latentes no plano legislativo e judiciário – que surge o direito comum, ius
commune. (HESPANHA, 2003, p. 90)

A formação do direito comum está alicerçada na concepção de um método


comum de ensino da disciplina jurídica na Europa. Portanto, esse já apresentado
discurso dos letrados encontra suas bases no fato de seus agentes terem adquirido
uma formação semelhante, em Universidades que proporcionavam certa comunhão
intelectual: um apego demasiado às fontes de direito romano e a princípios lógico-
formais evidenciados por doutrinas escolásticas. Por outro lado, a formação de
linhas comuns na prática do direito se dará por meio do trabalho de comunhão

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

legislativa e judiciária, acentuado apenas no momento em que o absolutismo


monárquico for destronado pelos ideais liberais que rimbombavam Europa
continental afora, através dos processos revolucionários burgueses (e o clamor por
codificações de direito civil, p. ex.). Tal fato, importa dizer, implicou uma relativa
homogenização da prática jurídica. É por isso que essa unificação do direito
proposta pelos autores deve ser vista com bastante cuidado, de modo a não se
entender o processo de formação do direito comum como um fenômeno amplo e
avassalador, que não acompanhasse as diferenças entre as especificidades
culturais, políticas e econômicas de cada nação/localidade 14. O certeiro golpe de
desmontagem de tais lacunas e abismos entre as práticas jurídicas locais, entre os
costumes e regras de nações e poderes particulares, é o triunfo do liberalismo e do
Estado de Direito: propõe-se unidade legislativa, cria-se uma linearidade dos ideais
expostos pela lei, codificam-se costumes e hábitos, em direção a modelos
relativamente comuns de organização jurídica e política. A construção do direito
comum no decorrer da modernidade, até então evidenciada pela teoria jurídica
gestada no espaço acadêmico, nesse momento de edificação do Estado de Direito,
encontrará respaldo junto às instituições legislativas, administrativas e judiciárias. À
Europa será permitido falar uma língua jurídica comum, relativamente similar, tanto
em termos teóricos quanto práticos.

Esses aspectos da experiência política elevam o conhecimento jurídico à


categoria técnica: juristas são responsáveis por aplicar a lei, por desempenhar
14 O que se quer dizer nesse ponto é que o processo de recepção do Direito romano (ensinado nas universidades
especialmente por meio do Corpus justinianeu e que constituiu o fundamento desse direito comum) não se
verificou de modo total, abrupto e edificador de uma ordem jurídica única, de uma prática homogênea na
Europa ocidental moderna. Há uma recepção individual, ditada pelos aspectos particulares de cada espaço,
que adequarão práxis e teoria de modo singular, reconhecendo como fontes do direito somente o que lhes
fizesse sentido. É assim que autores como Wieacker vão tratar acerca de tais singularidades: Precisamente
porque o direito romano é direito comum, a concepção profundamente radicada no conceito medieval de
direito admite, no entanto, que o círculo jurídico mais reduzido precede o mais vasto e que este tem apenas
uma vigência subsidiária em relação aos direitos pactuados [Wilkür], aos direitos das cidades, das cortes,
das repartições e dos territórios. Já para os consiliadores italianos, a relação entre o jus commune e os
estatutos particulares, aos quais a sua práxis se aplicava, constituíra, por isso mesmo, uma questão cadente
de política d direito. Eles desenvolveram com grande cuidado uma teoria especial da aplicação do direito, a
teoria estatutária, que procurava conciliar, através de uma aplicação restritiva do estatutos, a pretensão de
validade geral do jus commune letrado com a indiscutível precedência dos direitos particulares: statuta
stricte sunt interpretanda. Na Alemanha, também esta teoria dos estatutos foi recebida. (WIEACKER: 2004,
p. 145).

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

atividades que dizem respeito à ordem social, fortemente marcada por questões de
interesse público. A operação reducionista da lei em sua dimensão pública (O Estado
enquanto lei – vide constitucionalismo; a lei enquanto manifestação do Estado),
portanto, desconsidera as formas de organização jurídicas extraordinárias,
alavancando crescente fiscalização do Estado na formação dos quadros de pessoal
para sua administração e para a defesa de seus interesses. É por meio desse
pensamento que serão fundados, com o nascimento do Estado de Direito brasileiro,
os primeiros cursos jurídicos nacionais, no ano de 1827, por exemplo.

Delimitada está, deste modo, a importância do espaço acadêmico, objeto de


observação deste estudo. Tal espaço é que gesta os aspectos teóricos que
influenciam decisivamente os modos de aplicação e mentalidade jurídica que
verificarão as mudanças propostas pela irradiação do ideário iluminista e liberal a
partir do século XIX.

Tais mudanças, constituídas a partir de uma dogmatização da legalidade,


representam a curva do olhar dos juristas e de seu discurso às codificações de
direito privado que surgiam pela Europa, que evocavam a si o título de obras
concretas da razão e da vontade geral (as constituídas sobretudo na França por
meio de processos de representação política). É esse ambiente que proporcionará a
formulação de uma doutrina jurídica definida como positivismo legalista, cujo dogma
e fonte primordial será a lei produzida conforme os parâmetros formais de criação e
interpretação do direito. A razão jurídica reduz-se à letra da lei, e a razão do
intérprete deve se limitar a traduzir o que intenta dizer a lei. É portanto, o momento
de elevação da figura do aplicador do direito, reduzido à condição de “bouche de la
loi“ (boca da lei).

Com isto, as academias sobretudo na França, desenvolverão uma linha de


orientação teórica designada por Escola da Exegese, a qual confere mínima (para
não se dizer nenhuma) importância à tradição histórica, ao costume, aos
fundamentos e práticas que marcavam o direito anteriormente aos eventos de

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

edificação do Estado de Direito (Direito que se reduz ao conceito de lei, acidulado


pelo formalismo que lhe é conexo). Trata-se de uma fortalecida aliança entre jurídico
e político: o primeiro se limita a expor e interpretar os novos códigos, criando uma
autoridade científica de tais intérpretes, enquanto o segundo invoca a permanente
autoridade do legislador, que produz o direito por meio das maiorias parlamentares
artificiais. (HESPANHA, 2003, pp. 268-270). Nessa perspectiva, o papel do jurista é
unicamente o de aplicar a lei, conforme um silogismo simples: o fato é premissa
menor, do qual se subsume determinada norma contida no texto da lei.

A Escola da Exegese caminha em direção a confirmar as facetas que o


liberalismo político construía na porção ocidental europeia. Representativismo
político, legalismo, consagração de direitos e liberdades civis eram o substantivo
leitmotiv do discurso jurídico criado nesses contornos, que destacava ainda mais o
caráter de autoridade da opinião dos doutores nas leis. Enquanto isso, se na
Alemanha e nas porções onde o liberalismo revolucionário não havia sido tão
evidente, bem como sua fragmentação política lho permitira, surgem as correntes
doutrinárias aliadas à chamada Escola Histórica, que se contraporá ao dogmatismo
cego e formal do positivismo legal e da escola da exegese, fundamentando a
importância das tradições e costumes locais para a construção de uma unidade
legislativa nacional, que se desse em plano histórico e sedimentar, e revelasse o
verdadeiro espírito do povo (Volksgeist). Tal escola de pensamento travará um
debate de relevo com a escola exegética, criando oportunas influências no
desenvolvimento do conhecimento jurídico e da doutrina, sobretudo na Alemanha,
anos mais tarde.15

Tal escola, no entanto, não teve influências substantivas na cultura jurídica do


espaço português. A escola da exegese e o legado napoleônico, esses sim,
conferirão influências muito mais perceptíveis no reino invadido pelas tropas de

15 Nos dizeres de WIEACKER, p. 403, a Escola Histórica se propõe a exploração da dimensão histórica do
direito(...) compreende não apenas o direito como história, mas também a ciência jurídica como histórica.
No entanto, no programa de uma renovação da ciência do direito positivo, isto só pode ter o sentido de que o
objeto da ciência jurídica é pré-determinado pela historicidade do direito do presente (e não pelas
abstrações do jusracionalismo ou pelos comandos dos legisladores iluministas).

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Junot em 1807, em que os ideais liberais e especificamente o Códe, servirão de


modelo ao ulterior Código Civil. (WIEACKER: 2004, p.394).

Em suma, o que Portugal vivenciará não se difere em muito daquilo que se


processará na França: um cultivo de uma dogmática formalista e abstrata (que não
se atem à correspondência ao real: a lei se considera perfeita, alienando todas as
situações da vida concreta). A ciência jurídica, desse modo, apoiará a instauração e
manutenção da ordem social burguesa, por meio da afirmação da vigência e
cogência da lei escrita, por meio de uma equiparação do justo ao legal ou mesmo
através da formulação de teorias como a da integração, que adota pontos de vista
adequados a fazer valer o direito positivo em todos os casos reguláveis
juridicamente: preconiza-se a completude lógica do ordenamento e recorre-se a
códigos estrangeiros para fundamentar aquilo que não se previsse. (HESPANHA:
1972, p. 44)

A escalada desse liberalismo em Portugal terá sintomas muito evidentes na


produção jurídica acadêmica oitocentista. O clamor por legislações corporificadas em
códigos, a necessidade de se estabelecer as regras fundamentais norteadoras de
um Estado abalado pela fraqueza de suas instituições tradicionais (uma monarquia
sem rei) abrirá oportunidades largas à escalada do poder nacional por grupos sociais
fortalecidos. É assim que em 1820 a Revolução do Porto será desenhada, cujos
autores terão por base um programa ideológico que se processara, sobretudo, em
meio aos bancos acadêmicos de Coimbra.

Seção II. Formação para os quadros institucionais. O papel de Coimbra para as


instituições políticas do Império Português no Antigo Regime.

As reformas empreendidas pelos Novos Estatutos da Universidade de

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Coimbra, no ano de 1772 (as quais serão analisadas no próximo capítulo), tiveram
por escopo corrigir alguns vícios do próprio atraso intelectual e científico de Portugal,
exaltando certas virtudes do pensamento ilustrado e, conforme SILVA:

fecundando certo sentido pragmático do saber, formando indivíduos


tecnicamente habilitados para uma atuação prática, na solução de questões
prementes, que fizessem da ciência e da ética aliados incontestáveis na
execução de reformas comprometidas, em todos os níveis, com a
preservação do regime político e da ordem social vigentes. (SILVA, 2006, p.
79)

Tratou-se, portanto, de modernizar o ensino a partir da mão do Estado, e a


partir de um contexto que evidenciava suas contradições e suas características de
atraso e arcaísmo. Significou pôr os estudantes em contato com as novas influências
do direito iluminista (e, posteriormente, liberal) e mais tarde da França.
(HESPANHA:2006, pp. 141-142). Essa direção alargada das reformas, no entanto,
inaugurará um sentido de atuação que o próprio século XVIII já anunciava: desde os
escritos de D. Luís da Cunha, que delineavam as funções precisas da colônia,
exaltando a empresa colonizadora como necessária ao desenvolvimento português,
e reconhecia também necessário se proceder a uma boa escolha de homens
públicos, objetivamente fiéis e ligados ao poder central. Apesar de averso à figura do
primeiro-ministro Marquês de Pombal, tal projeto se espelhará na organização
administrativa vivida em finais do século XVIII.

Portanto, se até meados de setecentos a administração colonial estivera


constituída sobre as bases de um compromisso firmado entre súditos e rei, o qual
concedia ou outorgava a administração de regiões ou órgãos para os quais se
buscava a recompensa real, a partir da ascensão de Pombal (e das reformas
pombalinas no ensino), a camada letrada ocupante de cargos em concelhos,
ouvidorias, câmaras, tribunais e senhorios, não mais estará acreditada, por meio de
um compromisso unilateral, de concessão do rei, em uma atividade metropolitana
em qualquer canto do mundo atlântico lusitano. Estará dependente, controlada,

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

fiscalizada – permanecendo fiel, porém mais técnica – e a serviço dos precisos


objetivos da coroa. As atividades de jurisdição, inseparavelmente, parcelas do todo
de atividades públicas na colônia, seguirão essa nova lógica, a partir das reformas
de 1772, as quais serão analisadas no próximo capítulo.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

CAPÍTULO 03: COIMBRA.

Seção I. As reformas pombalinas do ensino jurídico: arautos ou entraves


de uma modernização do Direito?

A Faculdade de Direito de Coimbra ocupou, durante muitos anos, a condição


de espaço acadêmico de formação dos juristas espalhados pelo império português.
Tal faculdade rompia as fronteiras já pouco estanques do Antigo Regime, na medida
em que comportava, em meio a seus quadros estudantis, acadêmicos nascidos em
todas as partes das colônias portuguesas, de Luanda a São Luís, em razão da
proibição de criação de cursos superiores em tais localidades. O conceito de
nacionalidade desses estudantes permanecia fluido e nublado, muito em razão de as
diferenças entre as sociedades atlânticas ocorrerem especialmente com base nas
formas de organização de suas atividades econômicas, e não pelo motivo de
“pertencimento“ desses estudantes a determinado território (a teorização de
conceitos como nação, nacionalidade, Estado, ligados ao delineamento de território
somente se tornará mais precisa a partir do século XIX). Porém, é possível se
demarcar as diferenças entre estudantes nascidos em Portugal e estudantes que a
Portugal se dirigiram para prosseguir nos estudos; ao final destes, poderiam tais
juristas diplomados iniciar sua carreira nas práticas forenses em qualquer localidade
do império, ao serem investidos nas funções de juízes de fora, por exemplo.

Tal característica é muito importante para a análise que se propõe. Nesse


momento, em que os conceitos de nação e nacionalidade não se concretizam nos
termos dos tempos atuais, os diversos níveis de poder que se organizam conforme
as necessidades e contingências de espaços diversos, em que político e jurídico se

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

imiscuem, nas suas dimensões de poderes diferenciados e concorrentes, sofrerão


alterações profundas, irrompendo no abalo de todas as formas de sua organização
então vigente. Isto significa que a desconstrução dos níveis de organização política
do Antigo Regime encontrará, no discurso jurídico, apoio fundamental (um
instrumental decisivo para o prosseguimento de tal processo): o nascimento do
Estado liberal na Europa deflagrou os processos de independência nas Américas e
anunciou a supervalorização de discursos formais (e não mais locais, particulares).
Portanto, uma espécie de sobreposição linear, no que corresponde às formas de
governar e de dizer o direito, estará intimamente ligada ao fator maior dessa
sobreposição: a lei.

Lei enquanto construção de uma mens legislatoris, ligada ao poder central de


monarcas absolutos, existiu durante todo o Antigo Regime. No entanto, a atividade
de magistrados, a expedição de ofícios, a requisição de documentos, a taxação de
impostos não estiveram sob seu império inafastável. As ordenações do Reino
Português (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) serviam, durante os períodos em que
vigeram, como fontes subsidiárias do direito e de atos oficiais de funcionários do
governo central. Entretanto, a concorrência de formas extra-oficiais, de poderes de
esferas micronucleares nas colônias, níveis diferenciados não conexos, em vários os
planos, às exigências e determinações de um poder central 16, denunciavam um
regime que não havia sido planificado e subordinado a um conjunto corporificado e
central de normas. Tal conjunto absorverá grandes parcelas de práticas e costumes,
se expressando na uniforme letra da lei, cuja validade se estenderá aos povos das
nações formadas sobretudo após os processos revolucionários burgueses, iniciados
no século XVIII.

16 A análise dos diversos níveis de poder que organizam a sociedade portuguesa e colonial de Antigo Regime, é
exposta por HESPANHA em sua obra Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político Portugal
século XVII. Segundo o autor, coexistem na sociedade vários níveis de poder e vários campos de equilíbrios
sociais; ou seja, de que tanto o poder como os equilíbrios sociais são analisáveis numa série enorme de
registos (económicos, culturais, estéticos, discursivos, etc.).Compartilhamos a análise feita na obra, e
acrescentamos que esses níveis de organização não deixaram de existir com o advento do Estado liberal de
Direito: no entanto, sua configuração é decisivamente alterada a partir desse advento, uma vez que controlar,
exercer poder em seus diversos níveis, passará a se reportar diretamente ao conjunto de princípios e valores
revestidos na forma de lei, seu fundamento maior.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Um dos níveis de organização desses poderes que sofrerá alterações


significativas é o próprio Direito. E é o discurso jurídico que espelhará as alterações
provocadas pelos agentes que o produzem. As principais origens dessas
transformações, nesse processo, remontam às reformas pombalinas do ensino
jurídico, datadas do ano de 1772, as quais alteraram profundamente o quadro de
formação dos egressos de Coimbra, e que serão analisadas em seguida.

Os Estatutos da Universidade de Coimbra, cujas origens se encontram dois


anos antes, por meio da exigência do rei D. José I, à Junta de Providência Literária
no dia 23 de dezembro (SILVA: 2004, p. 71), de que o declínio da Universidade
deveria ser analisado a fim de serem demonstradas as causas de sua decadência,
somente pode ser compreendido se relacionado às contribuições de Luís Antonio
Verney, que havia publicado, no ano de 1746, o Verdadeiro Método de Estudar. Tal
obra tinha por principal objetivo denunciar o aprisionamento das orientações de
ensino à escolástica e seu apego às tradições bartolistas, afirmando a necessidade
de os juristas se voltarem a um estudo da história dos povos com o objetivo de
alcançar a inteligência da lei. (COSTA et. MARCOS: 1999, pp. 68-69) O retorno ao
estudo de uma história geral, especialmente no que tange à história antiga, será
fundamental ao ensino jurídico da academia coimbrã, em que o Latim era a língua
principal do discurso jurídico das universidades que integravam o espaço do direito
comum europeu em desenvolvimento. O estudo de uma história nacional também
parece ser parte da preocupação de Verney. Assim:

Em quanto não aparece alguma istoria Portugueza, proporcionada aos


rapazes, que estudam nas escolas: aos quais basta dizer, o que é somente
precizo, sem tantos rodeios: o que me dizem está atualmente fazendo, um
omem douto meu conhecido.
(…) Alguma tintura de Cronologia é necesária, para intender a Istoria: e,
sem a inteligencia desta, nam se pode intender o Latim, dos-que
escreveram nesta lingua. (VERNEY: 1746, pp. 90-91)

Na mesma obra, mais adiante, o autor se retira de responsabilizar a

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Companhia de Jesus como a principal culpada pelo estágio de atraso do ensino em


geral, no reino de Portugal:

Esta reflexam para V.P. é superflua, pois conhese mui bem o meu animo; e
sabe, que eu só pego na pena para dar-lhe gosto. Mas porque poderá ler
esta carta, a algum ignorante, ou malévolo; que intenda, que eu, dizendo o
que me-parece dos estudos, com isto digo mal, da- Religiam da-Companhia
de Jezu; que neste Reino, é a que principalmente ensina a Mocidade, devo
declarar, que nem é ese o meu animo. (…)
Alem diso, aqui em Portugal, é muita outra gente que ensina; os outros
Religiozos, ensinam os seus e os de fora, os mestres seculares, tambem
ensinam. E asim as minhas opinioens, podem ter por-objeto, nem uma só
pesoa. (VERNEY: 1746, pp. 3-4)

No entanto, as rivalidades já deflagradas entre o governo ilustrado de Pombal


e a Companhia de Jesus (acirradas especialmente pela política que as missões
desempenhavam nas colônias, constituindo entrave real à empresa de
racionalização da máquina colonizadora) denunciavam o imaginário de um inimigo
do Estado, meio às camadas dirigentes, o qual impedia sua modernização, nos
termos da secularidade iluminista em voga. É nesse sentido que atuará a Junta de
Providência Literária, composta por essas camadas, não só elevando a fidelidade às
fontes e o recurso às ciências auxiliares ao Direito, através da supervalorização da
história como um desses recursos clarificantes de revelação dos sentidos das
normas; mas sobretudo desenhando uma crítica aguda à Companhia de Jesus. Era
necessário reduzir o prestígio com que os jesuítas contavam nos meios
educacionais, dado que sua presença nas colônias já se manifestava insuportável
aos interesses do governo de Pombal. É assim que o próprio título do documento
elaborado pela Junta demonstra essa aversão incontida às influências inacianas: o
Compêndio Histórico de Estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão
dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências e nos professores e
diretores que a regem pelas maquinações, e publicações dos novos estatutos por
eles fabricados.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

O conceito de um ensino jurídico reformado, com isto, necessitava não


apenas de um suporte no campo teórico (o que foi promovido em grande parte, pela
obra de Verney, de caráter claramente humanista e secular, a qual propunha a
completa revisão do ensino de Latim, Grego, Retórica, Gramática- frise-se a
importância atribuída a uma Gramática da Língua Portuguesa, Poesia e Filosofia,
por meio das oito cartas que compunham o Verdadeiro Método), mas sobretudo de
suportes efetivos, que dessem cabo a reformas de campos estratégicos, que por sua
vez permitiriam o controle de poderes oficiais cada vez mais agigantados meio ao
furacão setecentista de crise do absolutismo monárquico: o fiscalismo e a
exploração colonial do Estado de uma minoria que orienta, dirige, comanda e
explora. (FAORO, p.234). Era necessário, assim, fazer a lei do Estado presente,
agigantá-lo em seus domínios, sobretudo no recrudescimento do rigor do sistema
punitivo da Coroa. (NEDER: 2006, p. 17).

Com isto, garantir o ensino jurídico voltado às orientações da legislação


portuguesa, ao direito nacional, abandonando parcialmente as velhas tradições do
direito romano em sua pretensa condição de construção supostamente perfeita,
capaz de solucionar todos os conflitos (LOUREIRO: 2008, p. 394) era um objetivo
central do governo de Pombal. E é assim que o ensino jurídico encontrará sólido
suporte para sua transformação: a promulgação da Lei da Boa Razão 17, em 18 de
agosto de 1769. Tal lei teve importância decisiva na orientação do ensino do Direito
em Coimbra, pois consagrava a cara principiologia iluminista de uma filosofia
secular, em que o direito canônico deixa de ter valor mesmo como fonte subsidiária
do Direito, e na qual o direito romano e as glosas de Bártolo de Sasoferrato e
Acúrsio deixariam de ser consultadas. Ademais, o direito romano e o costume
somente poderiam ser utilizados se em conformidade com a chamada “boa razão“.
No entanto, a lei, apesar de anunciar uma modernização dos métodos de

17 Conforme aduz o prof. Mário Júlio de Almeida COSTA, a designação de Lei da Boa Razão foi conferida por
José Homem Correa Telles, em seu Commentario Critico á Lei da Boa Razão, em data de 18 de agosto de
1769, datado em sua segunda edição no ano de 1824, que em breve introdução, escreve: „Huma das Leis
mais notáveis do feliz reinado do Senhor D. José, he a lei de 18 de agosto de 1769. Denomino-a Lei da BOA
RAZAO, porque refugou as Leis Romanas, quem em BOA RAZÃO não forem fundadas.“ COSTA: 1996, p.
366.

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interpretação do Direito, ainda apresentava caráter conservador, ao manter a


vontade do rei na sede de sua origem. (NEDER:2006, p. 3).

O certeiro golpe para a conclusão das Reformas dos Estatutos foi, sem
dúvidas, a promulgação de tal lei três anos antes, o que abriu campo ao
racionalismo como fundamento central do discurso jurídico, em seu plano prático. No
dia 28 de agosto de 1772, são aprovados os Estatutos por meio de Carta de Lei,
cuja parte que tratava da Faculdade de Leis e de Cânones teve como principal autor
João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho. As críticas mais importantes apontadas
no Compêndio Histórico que culminou nos novos Estatutos residiam na prioridade
que se dava ao estudo do direito romano e do direito canônico, e o desmerecimento
do direito pátrio, além de um apego demasiado à oppinio communis doctorum.
(COSTA: 1996, p. 372).

Curioso anotar que as bases da Reforma foram lançadas por um brasileiro,


Azeredo Coutinho18, o que demonstra o caráter de elasticidade da categoria de
nacionalidade: portugueses e brasileiros não se tratavam de critérios de
diferenciação relevante: importava, meio a uma sociedade de desiguais condições
de nascença, marcada pelo flagelo da escravidão e pelo estigma do latifúndio, bem
como pelas benesses e privilégios outorgados pela monarquia, apenas como se
nascera, e não onde se nascera. O núcleo familiar, desses “bem-nascidos“, se
projeta também no espaço universitário (a Universidade é um espaço destinado
àqueles pertencentes a essas famílias, que tivessem condições de ingressar em
estudos superiores, arcar com as despesas de viagem e manutenção de seus
custos). Assim:

Tratava-se então da reforma da Universidade de Coimbra. Regia-a como

18 João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho (1722-1799) nascera no Rio de Janeiro, filho de família abastada e
prestigiada, conforme se vê em PEREIRA DA SILVA: Assevera Frey Gaspar da Madre de Deus que da vasta
progenie de Amador Bueno da Ribeira é oriundo o capitão-mor Manuel Pereira Ramos de Lemos e Faria,
possuidor de terras e engenhos de Marapicú, Cabossú, Itaúna, Paúes e Pantanáes do Rio Gandú. De seu
consórcio com D. Helena de Andrade Souto Maior Coutinho nasceram João Pereira Ramos de Azeredo
Coutinho (…). Mais ou menos se celebrisáram estes irmãos todos pelas suas letras e serviços. PEREIRA DA
SILVA, J.M. Os varões illustres do Brazil durante os tempos coloniáes, vol I, tomo I. Paris: 1858, p. 283).

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seu reitor o Conde de Arganil, bispo de Coimbra, Dom Francisco de Lemos


de Faria de Azevedo Coutinho, cujo parente era. Levado aos conselhos
delle, e do seu irmão João Pereira Ramos de Azeredo Coutinho, deliberou-
se José Joaquim da Cunha de Azered o Coutinho a cursar as aulas da
universidade. (PEREIRA DA SILVA: 1858, p. 402).

Em outro nível, a entrada dos estudantes de Direito em Coimbra, com a


reforma do ensino em Portugal como um todo, passou a ser controlada pela seleção
de perfis de acadêmicos educados previamente sob o molde das reformas propostas
por Verney: era necessário que os candidatos tivessem excelente nível cultural,
demonstrando conhecimentos satisfatórios de Grego e Latim, de lógica, de retórica e
de metafísica. Para o auferimento desses perfis, eram aplicados exames
preparatórios pelo Real Colégio das Artes (COSTA et. MARCOS: 1999, p. 76). Tem-
se, com isto, níveis de seleção distintos: um primeiro diz respeito à condição de
nascença, ao meio em que o estudante nascera, que pudesse oferecer condições de
enviá-lo a Coimbra, e, num segundo momento, se tal estudante possuía a prévia
formação exigida para seu ingresso nos estudos superiores.

Se, por um lado, a revisão da entrada de discentes em Coimbra contribuiu


para as transformações da Faculdade no sentido de sua modernização (ao alinhavá-
la ao novo modelo de educação básica proposta pelo Verdadeiro Método), por outro
lado, era necessário que essa modernização se desse também em relação ao corpo
docente que a integrava.

Acompanhando a reforma em vários segmentos, o corpo docente não poderia


se furtar de ver suas condições de exercício do magistério alteradas. Nenhum dos
lentes em exercício na Faculdade de Leis e na Faculdade de Cânones fora
reconduzido às suas funções, além de terem sido criadas as vagas para lentes
substitutos para cada cadeira, as quais foram assim organizadas: Para a Faculdade
de Leis, haveria a 2a. Cadeira analítica (cadeira de Prima), a 1a. Cadeira analítica,
de Direito Pátrio, a 2a. Cadeira de Digesto, a 1a. Cadeira de Digesto, a 2a. Cadeira
de Institutas, a 1a. De Institutas e ainda cadeiras subsidiárias. Havia ainda a

49
Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Faculdade de Cânones, com suas respectivas cadeiras. E uma Cadeira comum a


ambos os cursos, a Cadeira de Direito Natural. (MERÊA, 1957, pp. 190-192). Dessas
reformas, ainda é possível auferir uma forte presença do Corpus Juris Civilis
justinianeu na formação dos estudantes: se a Lei da Boa Razão fizera o papel de
excluir o Direito Romano como fonte subsidiária quando este confrontasse ao
primado do racionalismo jurídico, os Novos Estatutos mantinham o estudo do Direito
atrelado à tradição romanística, muito em função da dispersão do conjunto de
ordenamentos nacionais em matérias de direito civil (comum). Nesse sentido, fontes
subsidiárias acabaram permanecendo como fontes principais, merecendo a atenção
de quatro cadeiras do curso de Direito.

Era atribuição dos professores fixar o programa das disciplinas, iniciadas pela
História das Leis, Usos e Costumes legítimos da Nação Portugueza: depois deveria
proceder à História da Jurisprudência Theoretica, ou da Sciencia das Leis em
Portugal: e concluindo com a História da Jurisprudência Pratica, ou do Exercício das
Leis; e do modo de obrar, e expedir as causas, e negócios nos Auditórios, Relações
e Tribunais destes Reinos. (PORTUGAL: 1772, pp. 357 e segs.).

Os Estatutos ainda trouxeram a inovação no método de ensino a ser adotado


pelos lentes, que deixaria de consistir na leitura das passagens dos textos de direito
romano e canônico e prosseguir tecendo comentários a elas referentes, para o
chamado método “sintético-demonstrativo compendiário“: por meio dele, o professor
era responsável por sintetizar a noção geral da disciplina, lançando mão de reduzi-la
a uma coleção de doutrinas sistematizada, e aumentando a complexidade das
abordagens no curso do avanço das exposições. Oferecendo base de suporte a tal
método, seriam editados ou adquiridos manuais jurídicos apropriados, os quais
deveriam ser aprovados pelo corpo dirigente das cadeiras. Tal método fora inspirado
pelo sistema alemão. Aliás, a doutrina alemã influenciava noutros aspectos também
o ensino jurídico em Portugal, especialmente a escola do usus modernus
pandectarum19, no sentido de consagrar o direito romano como fonte do direito
19 A escola do usus modernus pandectarum teve seu desenvolvimento em boa parte na região da atual
Alemanha no desenrolar dos séculos XVII e início do século XVIII: sua existência é em grande medida

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

somente se o jurista estivesse atento à realidade. (COSTA et. MARCOS: 1999, pp.
83-86)

No que concerne às avaliações dos estudantes, tal era contínua, por meio de
exercícios literários, orais ou escritos. Os exercícios orais eram aplicados por meio
de chamadas, em que se objetivava obter do estudante a repetição, de forma
resumida, da lição previamente ministrada. Também havia os exercícios orais
aplicados no sábado, que ficaram conhecidos pelo nome de sabbatinas e os
exercícios mensais, sendo que todos adotavam uma estrutura de lógica socrática,
privilegiando verdadeira disputa argumentativa. Também havia exercícios escritos,
que versavam sobre o uso moderno dos institutos de direito romano, através dos
quais era auferido o conhecimento sobre determinado texto ou questão de direito. Ao
final do curso, os estudantes eram submetidos a exames de qualificação, os quais
ganhavam nível maior de exigência, sendo que já no quarto ano obtinham os alunos
o título de bacharel. No quinto ano, procediam-se ao exames de conclusão do curso,
que versavam sobre o conteúdo de todas as disciplinas do aprendizado, e, no caso
de aprovação, confeririam o diploma de Bacharel Graduado em Direito Civil. (COSTA
et. MARCOS: 1999, pp. 88- 90).

A diplomação dos juristas representava, portanto, o fim de um ciclo de


aprendizado, e endossava a relação de confiança depositada em um grupo social
bastante delimitado. Quer dizer, um grupo social constituído em torno de um
imaginário comum, de discursos e práticas comuns, iniciados no espaço acadêmico,
e habilitado a empreender as atividades de jurisdição e administração, interesses de
acentuada estima da Coroa.

explicada pela diferente apropriação que príncipes e tribunais locais faziam das normas de direito romano,
sobretudo daquelas estabelecidas no corpo de direito civil justinianeu. Portanto, o caráter fragmentário e
plural do espaço político germânico à época, permeou a necessidade de um direito atento à realidade
específica do contexto de cada um daqueles reinos e principados, dando margem a um direito de caráter
reinícola e que determinou a recepção do direito romano de maneira diferenciada, conforme explicitado na
nota n. 13. Neste sentido, ver HESPANHA: 2003, p. 190.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Figura 01: Diploma de bacharel em Direito concedido a Lourenço Caetano Pinto, no ano
20
de 1827.

20 Apesar de a ilustração tratar de diploma conferido no ano de 1827, extrapolando um pouco o marco temporal
do presente estudo, as Reformas Pombalinas do ensino jurídico alcançaram tal ano sem terem sido
substancialmente alteradas, e o documento serve para a compreensão do espaço acadêmico de Coimbra. A
disposição visual do diploma ainda demonstra a organização do ensino jurídico em Portugal: aliadas estão as
Faculdade de Leis e a Faculdade de Cânones. Não há uma secularização absoluta, permanecendo as cadeiras
comuns de estudo entre os cursos de Direito e de Direito Canônico. Portanto, no canto superior e no canto
esquerdo do documento estão representados os símbolos tradicionais da Igreja Católica: a hóstia sagrada e a
mitra pontifical, respectivamente. Já no canto direito e inferior, se verificam representados a balança e a
espada, símbolos da equidade e da coerção do direito, remontando à figura da Iustitia latina, e o Galo de
Barcelos, símbolo português que remete à conhecida história seiscentista de um homem inocente que,
apontado como suspeito de crime ocorrido, teria sido levado à presença de juiz e, ao ser condenado à forca,
teria apontado a um galo assado, sobre mesa do banquete na ocasião posto e bravejado: É tao certo eu estar
inocente, quanto certo é esse galo cantar quando me enforcarem“. E assim teria o homem se livrado da forca,
uma vez que logo antes de sua execução, o galo teria se levantado da bandeja e cantado. Por assim dizer, o
Galo de Barcelos acabou se tornando símbolo da justiça nas tradições portuguesas, e passou a ser
representado mesmo nos documentos oficiais da Faculdade de Direito de Coimbra. No diploma acima, consta
o seguinte texto (livre tradução do autor): EM NOME DE DEUS, AMEM. Doutor Antonio Pinheiro Azevedo
Silva, irmão da Ordem do Convento de S. Tiago, Doutor em Cânones da Catedral Igreja do Algarve, e
professor público ordinário decano em Cânones Sagrados, Pro-Reitor da Universidade de Coimbra, etc: e
ao mesmo tempo ele mesmo Alma da Universidade atestamos, publicamente, e certificamos e a todos e a
cada um a quem interesse examinar as presentes Letras, que nosso dileto Lourenço Caetano Pinto, filho de
Manuel Caetano Pinto, nascido no Rio de Janeiro, é Bacharel Graduado na Faculdade de Direito Civil, foi
aceito em nossa Academia, digno de louvor e honras, curso seu de aguda moral e de antecipado Exame
Público, no qual por seríssimos e sapientíssimo professores foi aprovado por unanimidade de ritos e ainda

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Estudantes brasileiros de Direito em Coimbra


(1772-1822)
200

180

160

140
Número de estudantes

120

100 Coluna A

80

60

40

20

0
1772-1782 1783-1792 1793-1802 1803-1812 1813-1822

Intervalos de tempo

Fig.02 – Gráfico indicativo do número de estudantes brasileiros ingressos no curso de Direito


na Universidade de Coimbra, entre os anos de 1772 e 1822. (Fonte: GARCIA, Rodolfo. Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1940, vol. LXII). 21

de solenidade observada segundo os Estatutos da Universidade. Além disso foi condecorado ele mesmo
Bacharel Graduado pelo sapientíssimo e exímio preceptor José Pinto de Fontes, tendo prestado o primeiro
juramento ele mesmo defensor público e privado da Virgem Maria Imaculada Conceição mãe de Deus, dia
16 de julho de 1827, da mesma forma que no Livro de Exames, Atos e Graus do mesmo ano, folha 135, se
encontra registrado. Do que fornece testemunho público, haver escrito e oral, damos Bacharel Benemérito e
deitamos subscrição nossa e também apenso sigilo da Universidade. Coimbra, dia 17 de julho do 1827 ano
de nosso senhor.
21 A evolução dos dados apresentados no gráfico demonstra uma tendência de queda quase linear no número de
brasileiros ingressos nos estudos jurídicos em Coimbra, entre os anos de 1772 e 1812, o que pode ser
explicado, parcialmente, pela própria transferência da família real portuguesa ao Brasil (e das funções
judiciárias centrais ocupadas por um grande número de portugueses bacharéis que também ingressaram no
Brasil a partir de 1808. Fato é que, ainda que a reorganização da administração da coroa, especialmente a no
período pombalino, implicasse num aumento do número de cargos públicos, sobretudo na área mineradora,

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

É preciso ter em mente que as reformas do ensino são, antes de tudo, uma
empresa de iniciativa concentrada do governo Pombalino: as dimensões que elas
alcançam, entretanto, se processam pela atuação de agentes diversos, os quais
estavam subordinados às decisões do gabinete, e cuja fidelidade e compromisso a
tal governo denunciavam um sistema político de dependência e favorecimentos
tendentes à centralização. O ministro de D. José interferiria em todas as áreas que
considerasse relevantes, a fim de dar cabo ao projeto de reformas e modernização
do país, nos termos do programa ilustrado. Não diferente será a situação no setor
educacional, tendo o próprio Marquês trocado correspondências com o Reitor-
Reformador da Universidade de Coimbra, D. Francisco Lemos de Faria Pereira
Coutinho, defendendo a importância do estudo do Direito pátrio na formação dos
acadêmicos:

A Cadeira de Direito Pátrio já terá feito a sua utilissima abertura, e d'ella


espero admiraveis progressos para utilidade dos que seguirem o estudo da
jurisprudencia; e sendo a disciplina d'esta cadeira auxiliada pela outra da
Cadeira da História do Direito Pátrio, tenho por sem duvida que poderemos
esperar mancebos capazes de bem entenderem as Leys e de bem as
executarem. As especies concernentes a esta util Historia, que a V. Exa.
Mandei remetter, julgo que poderão ainda ser de alguma utilidade, e por
esta causa mereciam ser comunicadas aos Professores da referida
Disciplina. (BRAGA apud COSTA et. MARCOS: 1999, p. 86)

Outro sentido não poderia ser conferido à reforma: a preocupação com uma
legislação nacional faz germinar a imagem de um Estado monárquico governado
pelos motes do assim chamado despotismo ilustrado: elevar a condição do Estado e
sua importância, e organizar o corpo burocrático que gravita ao seu redor consiste
no esforço principal das políticas do gabinete pombalino. Portanto, a educação de
juristas tem o papel estratégico de vinculá-los ao conjunto de leis originadas no seio
do poder central, resultando, em última análise, em certo controle de decisões em

tal não demandava necessariamente brasileiros, tampouco diplomados, e foi suprida, em boa parte, por
portugueses.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

níveis e espaços os mais diversos, espraiados pelos domínios do Império colonial.


Vale dizer, o modelo de educação concentrado na metrópole portuguesa implicou a
vinculação de agentes investidos na jurisdição, creditados em órgãos oficiais e no
exercício da advocacia, a práticas jurídicas e a modelos de mentalidade sobre
questões de Justiça que fossem favoráveis ou bem-vistos pelo pelo poder central.

O ensino reformado aderiu às mudanças que se verificavam na Europa das


Luzes: um programa racional que compreendia a mudança dos quadros docentes,
dos métodos de avaliação e ensino, e sobretudo dos métodos de interpretação do
Direito, possibilitou um controle definido dos agentes, ligados objetivamente ao corpo
legislativo nacional. Por outro lado, tais reformas devem ser analisadas com certas
ressalvas, uma vez que ainda punham o estudo do Direito baseado no Direito
Romano; some-se a isto o fato de que a secularização do ensino jamais ter
conseguido se constituir em uma empresa de sucesso, dado que a preservação e
controle de campos do conhecimento estiveram, durante séculos, sob supervisão e
controle da Igreja. Assim é que apenas no ano de 1836, a Faculdade de Leis e a
Faculdade de Cânones deixarão de existir em separado, fundindo-se na Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra.

Seção II. Que mudanças?

Mesmo no começo do novo século, as reformas do ensino jurídico ainda se


fizeram sentir. Através do Alvará de 1 de dezembro de 1804 e o de 16 de janeiro de
1805, foram tomadas providências complementares às reformas empreendidas trinta
e dois anos antes, revisando-se a contratação de docentes e o plano de estudos das
Faculdades. (COSTA: 1996, p. 379).

Outro aspecto importante de tais “microrreformas“ é o alargamento que se

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

verifica das cadeiras de Direito Pátrio, além de as Cadeiras de Direito das Gentes e
Direito natural terem sido autonomizadas. Além do fato de que quatro cadeiras
passaram a ser comuns à Faculdade de Leis e à Faculdade de Cânones,
constituindo em relevante fator para a fusão das duas, anos mais tarde.

Logo em seguida, no entanto, o ensino do Direito em Coimbra se viu abalado


pelas invasões napoleônicas, as quais causaram a suspensão das atividades
acadêmicas do ano letivo de 1808.

É curioso notar que a Universidade de Coimbra, a partir do momento que as


tropas napoleônicas adentraram o território português e forçaram a transferência da
corte, era vista, aos olhos dos franceses, como potencial subordinada aos projetos
políticos do Império , conforme os ditames de Napoleão Bonaparte. Uma de suas
medidas foi o chamado Decreto Imperial, cujas linhas gerais estabeleciam a
existência de apenas uma Universidade para cada Corte de Suplicação existente, o
que demonstra uma espécie de preocupação do Estado francês com o número de
bacharéis que correspondesse às demandas judiciais. 22

Contrariando essas pretensões, as camadas letradas da população


responderiam por meio de publicações impressas sua reação, dentre as quais se
encontra a seguinte, feita no ano de 1809 , p. 175, no Correio Braziliense:

Os indivíduos podem estudar, e escrever, seguindo passo a passo os


progressos das descobertas que se vão fazendo; mas as corporaçoens, de
que failamos, são corpos numerosos, que se não movem senão mui
vagarosamente: e por tanto limitar exclusivamente toda a instrução às
formalidades destas corporaçoens, he justamente impedir o progresso das
sciencias.

Estes motivos, de se não conceder exclusivamente ás Universidades e


Academias, o direito e regular a instrução elementar, se tornam mais
ponderosos, tractando-se a respeito da Universidade Imperial, cujo plano

22 MENDONÇA, Hypóllyto José da Costa Pereira Furtado de. Correio braziliense, julho de 1809.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

parece ser o abranger os Estudos de toda a Europa; porque, além de


perverso uso que o Governo Francez hade fazer desta instituição (...) 23

A manifesta defesa, por segmentos letrados, do estágio de organização da


Universidade de Coimbra, demonstra uma tendência à continuidade das reformas
institucionais – mesmo diante das oscilações e intempéries provocadas pelas
invasões francesas – promovidas anos antes pelo governo pombalino: os esforços
de modernização do governo esclarecido se verificaram em diversos campos de
atuação estatal, porém improváveis de modificar o caráter geral das estruturas
político-sociais portuguesas, muito em razão da resistência de forças tradicionais
aristocráticas e de mentalidades constituídas durante séculos. (HOBSBAWN: 2009,
p. 101). Forças estas que, sem dúvidas, estarão a ocupar os bancos e tribunas
acadêmicos, como também ocorreu na França.

Neste ponto, deve ser observado o caráter parcial das transformações no


campo do Direito e de seu ensino: elas se reduzem tão-somente a uma expressão
do alcance de cambiações estruturais, limitando-se a uma demonstração especular
de mudanças no curso da história das sociedades, mudanças que alargaram a
discussão sobre os significados e meandros dos processos de organização das
formas de produção, disciplina e poder, próprios do contexto contemporâneo. Quer
dizer, aqui o Direito e seu ensino são encarados como reflexos de uma
transformação maior, já em curso em diferentes campos da vida social.

Tal ressalva nos leva a considerar que, apesar de tal transformação, o que se
processa em Portugal no primeiro quarto do século XIX, no que diz respeito ao
ensino jurídico, não é muito diferente dos resultados da reforma promovida pelos
Novos Estatutos no século anterior: um certo conservadorismo no uso das fontes,
um reiterado apego aos ditames da romanística, e uma resistência arcaica de
completa secularização do ensino jurídico. Há ainda vigente uma mentalidade que
privilegia o jurista em seu papel de dupla mão: ao mesmo tempo que avalia e

23 MENDONÇA, Hyppólyto José da Costa Pereira Furtado de. Reflexoens sobre o Correio Braziliense (autor
anônimo). Lisboa: Na Impressão Regia, p. 175.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

assessora a necessidade de uma lei (desde o Antigo Regime exercia o jurista o


ofício consultivo, integrando comissões preparatórias de legislação, em matérias
políticas e filosóficas de leis promulgadas pelo poder central do rei), ele passa a
avaliar, após a promulgação da mesma lei, a vontade do legislador, no momento de
interpretação, por meio de um exagerado apego às doutrinas voluntaristas então em
voga. (HESPANHA: 2008, p. 05).

Esse aspecto implica em um descarte do direito enquanto pretensioso


discurso autônomo, balizado por contextos plurais em que o exercício de dizê-lo e
processá-lo estava nas mãos inteiramente livres de homens cujo único compromisso
era, quando muito, promover a justiça. A ideia de representatividade política, de
vontade soberana é que governará o chamado império da lei, subvertendo a
produção jurídica, algemando seus artífices na busca da vontade que fora erigida no
cume do edifício legal.

O Direito em Portugal irá vestir, nesse horizonte, sua roupagem


constitucionalista, e encontrará certo apelo nos bancos de Coimbra, manifestando
relativo desapego à romanística tradicional, e a introdução de novas disciplinas, e
prestigiando cada vez mais o estudo do direito nacional.

Exemplo dessa mudança é revelada pela utilização do primeiro manual de


direito constitucional publicado em Portugal (HESPANHA, 2008, p XX), Lições de
Direito Constitucional – princípios de Direito Público Constitucional, de autoria de
Ramón Salas y Cortez, professor da Universidade de Salamanca e publicado em
língua portuguesa no ano de 1822, o qual prenunciava as feições do
constitucionalismo moderno e enterrava a doutrina canônica e escolástica, trazendo
à baila os princípios de um liberalismo progressista, tendente a criticar os setores
mais conservadores da sociedade. Em sua introdução, indaga o autor:

Porem, como poderão evitar-se estas resistências, ou ao menos debilitar a


força dellas? Nós não vemos senão um meio: a instrucção. Nada urge tanto,

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

como ensinar ao povo, quaes são seus direitos, e seus verdadeiros


interesses; fazer-lhe ver, que os que se oppoem às reformas sagradas na
Constituição, e inseparáveis della, são seus inimigos: com isto a resistência,
que encontrará outra ainda mais forte na massa dos cidadãos cederá, ou
será vencida facilmente, e sem perturbações.

Não nos cançaremos em dize-lo: em cousa alguma deve o novo governo


esmerar-se tanto, e ter tanto cuidado, como em propagar as luzes em geral,
e as doutrinas liberaes em particular. O ponto mais essencial para assegurar
todas as reformas importantes, he dispor os ânimos a deseja-las, e
adoptalas; convencendo-os da necessidade, ou da utilidade dellas. Assim,
as reformas, que não podem contentar a todo grangeao hum grande numero
de amigos e protetores, promptos sempre a defendelas contra os inimigos
dellas.

Prosseguindo, defende o autor a importância da literatura jurídica exprimir sua


universalidade, atingindo públicos variados. O conhecimento expresso em manuais
jurídicos acompanha as transformações da doutrina, abrindo espaço para a
importância dos discursos de juridicização do político, com a introdução das cadeiras
de Direito Público e Constitucional:

He para isso que nos propozemos cotribuir, quanto cabia em nós,


publicando estas lições de Direito Publico Constitucional: nella se achao os
princípios da Sciencia Social com tal clareza, que se nos não enganamos,
estão ao alcance de todos. (…)

Nós dividimos o nosso trabalho em lições; porque suppondo, que o Governo


se apressará a estabelecer nas Escollas Cadeias de Direito Público
Constitucional, quizemos publicar um livro, que possa servir de texto aos
mestres para suas explicações; e aos discípulos para se prepararem sem
grande trabalho a ouvirem com fructo a doutrina dos mestres.

Nos não podemos conceber esse projecto sem nos lembrar-mos da


Universidade de Salamanca, á qual pertencemos, e que deve dar o exemplo
ás outras escollas do Reino.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Por que razão não se principiaria immediatamente a ensinar, naquella


Universidade, a mais importante de todas as sciencias, a sciencia da
organisação social, da qual depende a felicidade do homem reunido com o
seus semelhantes?

Mais adiante, o publicista espanhol espelha o pensamento jurídico de seu


tempo, defendendo o abandono das fontes tradicionais de Direito Romano e de
direito canônico, refletindo o pensamento em voga de retorno às fontes nacionais do
Direito, o qual, com o advento do Estado de Direito, passa a ser uma produção
estatal, estampada na lei.

Isto deve fazer-se sem perda de tempo, e sem esperar a reforma geral dos
estudos, que também he huma cousa mui essencial, que senão deve
retardar. Tudo quanto se pode saber de theologia está reduzido a muito
pouco, e já se sabe: o que convem saber de Direito Romano não he muito
mais: as Leys Ecclesiasticas em breve tempo serão em Hespanha um
estudo de mera curiosidade, e erudição, como o são em Franca; a filosophia
de Gaudin para que que serve? Já he tempo, que se ensine á mocidade o
que verdadeiramente lhe importa, e resignarmo-nos a ignorar o que se-não
pode saber.

As transformações políticas portuguesas alcançadas pelas agitações do Porto


em 1821 e a consequente Constituição de 1822 não alcançaram por completo o
cerne da formação dos juristas brasileiros idos a Portugal e que ao Brasil retornaram
antes de sua independência, dada a articulação dos fatos da história política de
ambos os países. Portanto, essa doutrina incipiente, iniciada com maior vigor após a
reorganização política portuguesa (atenção especial ao fato de o primeiro manual
que trata de modo mais sistemático sobre o assunto ser estrangeiro, o que denota a
permeabilidade de Portugal às ideias constitucionalistas que ascendiam na Europa),
não será de forma institucionalizada e oficial, objeto de estudo dos estudantes de
Direito anteriormente a essa reorganização política. Porém, o pensamento que se
constituía junto a diversos canais, como impressos e panfletos e que corria nos
meios acadêmicos, demonstrando que as ideias circulam não apenas nos livros, e

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

que certamente encontrou boa acolhida entre os estudantes de direito nascidos no


Brasil ou que ao Brasil vieram exercer seus ofícios, antes da independência.

A análise deve ser voltada para um contexto – propício às novas conjecturas


do poder – que impulsionou a divulgação de um ideário liberal, de doutrinas
voluntaristas e contratualistas, e que é marcado oficialmente pelas reformas
propostas desde os Novos Estatutos. Trata-se de todo um clima de transformações,
que proporcionavam, sobretudo no campo ideológico, o engendrar dos mecanismos
de construção da nova ordem política na Europa. As Reformas do ensino, no
entanto, não representaram uma modernização completa, abrupta e inovadora da
prática dos bacharéis. Ainda permanecia um enfraquecido apego à tradição
romanística e canonística, conforme se verá mais adiante. Mas tais reformas são,
com efeito, importante passo para a gradual mudança nos modos de pensar e
conceber o Direito, o Estado e promover a também gradual derrocada do Antigo
Regime em Portugal e a consequente independência política brasileira.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

CAPÍTULO 04. ALFAIATES SEM TECIDO.

Seção I. Costurando remendos: Religar contextos separados por um oceano

Conforme visto, a Faculdade de Leis de Coimbra era, para as colônias do


Império Português, o único centro em língua portuguesa, de formação dos juristas
que iriam desempenhar suas funções no âmbito da administração colonial. Tal
condição propiciou um intenso contato entre estudantes de origens diferentes, de
várias partes do Brasil, Portugal e outras regiões. Apesar disto, o fator que mais
distinguia esses homens não era exatamente o local de seu nascimento mas,
sobretudo, suas condições de nascimento. Em outras palavras, ser estudante em
Coimbra significava ser filho de famílias brasileiras mais abastadas que pudessem
arcar com os custos da viagem a Coimbra e, pelo menos, suas despesas iniciais
naquela cidade.

O título deste trabalho, diante dessa constatação, apresenta fragilidades de


sustentação: juristas brasileiros que se ocuparam com a formação de uma nação
brasileira independente. Um significado precipitado do termo “brasileiro“ não poderia
ser pensado sem se proceder a um anacronismo também precipitado (ainda que a
literatura revele a existência do termo Brasil24 há séculos, o conceito de nação e
nacionalidade somente deterá suas características após o evento da
independência), graças às formas de governar e administrar os territórios de
24 Deve aqui ser feita a dimensão do termo “Brasil“ ora utilizado. Conforme Istvan JANCSÓ e João Paulo G.
PIMENTA o termo Brasil foi amplamente utilizado para designar o todo da América Portuguesa, sendo que
os nascidos em território brasileiro não faziam uso desse vocábulo para se referirem a um todo político de
base territorial. Brasil, nesse sentido, se referia a um continente onde se enquadravam inúmeros contextos, do
Maranhão algodoeiro ao Rio Grande estancieiro, distintos entre si. JANCSÓ, Istvan et. PIMENTA, João
Paulo G. Pecas de um mosaico(ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional
brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). São Paulo: Senac, 2000, p. 140).

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

possessão portuguesa na América do Sul. A precisão seria maior se se dispusesse a


investigar a formação dos juristas nascidos na “América Portuguesa“. Entretanto,
preferiu-se adotar o termo “brasileiro“, no sentido de prelimitar um vínculo desses
homens não somente com sua terra, mas sobretudo com o projeto de construção da
nação, cujas bases teóricas estão assentadas em literaturas e espaços de discussão
e ensino na Europa. Tais juristas existiram, sem dúvida. Mas considerar que o
modelo de formação acadêmica atingiu apenas esses, e que eles mesmos foram os
únicos artífices da independência, seria cometer um leviano e desatinado erro.

De fato, as diferenças no local de nascimento, entre brasileiros e portugueses,


eram um critério para a escolha de ocupantes de importantes funções na
administração colonial, por exemplo. Conhece-se, aliás, uma série de governantes
ilustres, de São Paulo ao Pará. Mas portugueses, não brasileiros, a ressalva há que
ser feita. (HOLANDA: 2003, p. 154). Com a transferência da corte para o Brasil,
essas diferenças passaram a ser mais marcadas, graças à chegada de portugueses,
que exaltavam sua condição nobiliárquica e muitas vezes menosprezavam certos
hábitos e costumes dos moradores locais. A atuação política desses reinóis, no
sentido de favorecer o processo de independência brasileiro, se dará em proporções
comparativamente muito menores, uma vez que a tentativa de recolonização, pelas
cortes, em 1821, expôs um embate entre forças conservadoras (às quais os
lusitanos se coadunavam) e liberais, na criação da monarquia brasileira, cujo caráter
foi, discursiva e conhecidamente, liberal.

De todo o modo, admitidas as diferenças entre o pensamento político de


portugueses e brasileiros, cabe ressaltar que esses últimos estiveram presentes nos
momentos mais importantes da história da independência política brasileira. José
Bonifácio de Andrada e Silva, nesse sentido, representa o exemplo mais evidente da
formação ilustrada coimbrense, e que esteve à frente dos processos de
emancipação e construção de ideários e projetos políticos nacionais. Tendo se
tornado bacharel em Direito pela Faculdade de Leis na data de 05 de junho de 1802,
José Bonifácio representa a ampla formação que possuía uma geração de muitos

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

dos bacharéis graduados em Coimbra durante o período pós-reformista, tendo se


formado, além das ciências jurídicas, em filosofia e matemática. (BIBLIOTECA
NACIONAL: 1940, p. 176). Sua figura será objeto de maior atenção adiante.

Precisamente, entre o ano da reforma dos Estatutos (1772) e o ano de 1820,


523 brasileiros ingressaram na Faculdade de Leis de Coimbra, tendo cursado,
muitos deles, outros cursos além do Direito. (BIBLIOTECA NACIONAL: 1940, p.
176). Essa geração de juristas, os quais vivenciaram as reformas do ensino, esteve
em contato também com um ideário propagado pelas camadas sociais médias e
urbanas pela Europa, sem contar que outra parcela de estudantes brasileiros esteve,
também no mesmo período, a ocupar vagas em universidades europeias –
sobretudo francesas – além de Coimbra, sendo influenciada pelo pensamento
francês que nelas vigorava. (HOLANDA: 2003, p. 204)

Os egressos dos estudos em Coimbra nascidos no Brasil retornavam, de


modo geral, ao local de seu nascimento ou eram designados para outras regiões, a
fim de exercitarem a prática jurídica, seja atuando como advogados, procuradores
ou juízes, ou mesmo em cargos da administração (órgãos fazendários,
administrativos ou fiscais).

A escassez de bacharéis em Direito, em diversas comarcas e localidades do


Brasil, era sensível. O modelo de concentração geográfica de formação acadêmica
não conseguia atender às demandas de todo o espaço atlântico lusitano, que
dependia de apenas uma Universidade em língua portuguesa para diplomar juristas
que manejassem leis e fórmulas interpretativas. Por essa mesma razão, deve ser
aqui apagada, para a concepção desse espaço, a figura do jurista técnico, único
detentor de saberes próprios à ciência que domina. Quer dizer, essa figura é afinal a
pretensão da cultura bacharelista, a qual adquire força em meio ao Estado Liberal de
Direito. Mas, antes disso, essa escassez de profissionais jurídicos bacharelados
tende a ser suprida por meio de esforços diversos, que tendem a privilegiar, pelo
menos, a figura do homem letrado para os quadros burocráticos. No governo de D.

64
Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

João VI, por exemplo, já se verifica um desses esforços, por meio da legislação:

III- (…) Haverá em todas as Villas hum Juiz das Sesmarias, que servirá por
tres annos: As Comarcas proporão três pessoas desta Capitania a Meza do
Desembargo do Paco, e nas mais ao Governador e Capitão General, para
se escolher dellas a que mais apta parecer, devendo ser propostos com
preferencia bachareis formados em Direito, ou Filosofia e na falta delles
pessoas que forem de maior probidade e saber25

A função de Coimbra era, deste modo, num misto de determinismo ideal e


imaginário institucional, reparar as distorções acadêmicas do mundo atlântico,
levando aos extremos das fronteiras em que o presencialismo metropolitano se
desse de alguma forma (seja pela figura de tribunais, câmaras ou conselhos), a
figura do homem letrado, de formação pessoal destacada em relação a uma
população majoritariamente ignorante das letras, a qual serviria de mediador entre a
ordem oficial (aqui se refere à ordem instituída pelos canais de poder do Estado) e a
sociedade. (ANTUNES: 2004, p. 65).

Essa função da academia será posta em especial evidência com a redefinição


das formas de pensar o político e o jurídico na transição do Antigo Regime em
Portugal. O crescimento do ideal do Estado de Direito, e do liberalismo em seus
muitos canais de propagação pela Europa, só fez criar exigências de abandono e
afastamento das formas jurídicas e políticas que prevaleciam durante o Antigo
Regime nos trópicos. Assim, juristas e letrados em contato com o nascimento de
uma nova ordem das instituições na Europa, após a Revolução Francesa,
manifestarão sua – ainda que por vezes tímida – rejeição às estruturas seculares de
poder vigentes no contexto do Brasil. São pontos de referência, nesse momento,
para as mentalidades dos juristas desse período, conceitos como lei, direitos do
indivíduo, propriedade, recorribilidade de decisões judiciais, entre outros.

25Alvará com força de lei, pelo qual V.A.R. Há por bem ordenar que se não passem cartas de concessão, ou
confirmação de sesmaria, sem proceder medição, e demarcação judicial: E estabelece a forma de nomeação dos
juizes das sesmarias, e os salários, que elles, e mais Officiaes, devem vencer. E dá outras providências, a fim da
boa ordem, e regularidade das mesmas Sesmarias. Impressão Régia: 1809. BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO
DE JANEIRO, Setor de Obras Raras.

65
Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Um Governador do Brazil, no Maranhão ou Pará por exemplo, não conhece


superior em sua jurisdicção, e as suas ordens, e mandados, são postos em
execução com o terror do poder militar. Supponhamos que o Governador de
um destes lugares, violando as leis que lhe ordenam de bem administrar a
justiça, atropella os direitos de um individuo; não ha para onde recorrer. Dirá
ao nosso A. que vá ter á corte, recorra immediatamente ao Soberano, e
agora lá está elle no Brazil.26

Nesse quadro, a chegada da Corte portuguesa produziu significados muito


expressivos para as formas de organização política no Brasil. Em especial, o
contexto em que se pensa a transição do período colonial à monarquia independente
está encerrado entre 1808-1821, período no qual é concebida, pela historiografia,
verdadeira máquina de país independente (aqui entendida como o novo arranjo de
instituições políticas e judiciárias recriadas no espaço brasileiro, bem como as
alterações de ordem econômica, como a abertura dos portos, alavancadas com a
transferência da corte e possibilitaram a ruptura definitiva com Portugal, anos mais
tarde) (NEVES: 2008, p. 144). Contexto a que se chamaria de pré-independência, no
qual se verifica um misto entre as tradições político-sociais de Antigo Regime e as
concepções políticas e jurídicas típicas do liberalismo, pelo qual se desenharão os
treze anos de permanência da corte.

Sem contar que já havia presente um sentimento de fundação de um Império


no Brasil já com a transferência da família real, que remontava havia anos, desde o
reinado de D. João V, no intuito de povoar e estabelecer laços de unidade ao
continente sul-americano sob domínio português (HOLANDA: 2003, pp. 155-156). A
ideia de transferência da sede do poder não é portanto nova, e diante das invasões
napoleônicas, encontrará razões ainda maiores para se concretizar.

26 MENDONÇA, Hyppólito José da Costa Pereira Furtado de. Exame dos artigos históricos e políticos, que se
contém na coleção periódica intitulada Correio Braziliense ou Armazem Litterario, no que pertence somente
ao Reyno de Portugal. Quinto Volume, que comprehende o dicto exame em duas cartas, relativas aos
Números 13, e 14 do dicto Correio Braziliense. Lisboa, na Impressão Régia, 1810. Com licença do
Desembargo do Paco. Londres. Correio Braziliense, setembro de 1810.

66
Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Assim, dos fatos que marcam a história portuguesa da primeira metade do


século XIX, a transferência da família real para o Brasil é o que possui significado
concreto mais expressivo e, por que não dizer, simbólico.

Simbólico no sentido de sua interpretação historiográfica ser normalmente


encarada como fuga da realeza. Uma realeza que fugiu da Europa em combustão,
abocanhada pelas chamas revolucionárias e devorada pelos exércitos de Napoleão.
Fugiu da crise final do Antigo Regime, prolongando sua existência numa experiência
tropical às avessas, apropriada às fundações de um Estado independente de
Portugal, e engessando a consagração política do liberalismo nas terras lusas. E,
mais importante, desentranhou da América Portuguesa algumas vísceras de seu
legado do colonialismo, introduzindo, em seu lugar, artificiais estopas e algodões
para sua independência política.

Seja fuga ou transferência estratégica, tal fato garantiu a permanência da


monarquia absoluta num Reino que havia se unido à antiga colônia em 1815 e que
aclamava a figura de um rei absoluto. Garantia, portanto, que a monarquia não
sofresse os duros golpes de eventuais setores liberais revolucionários (uma vez que
o rei não mais se encontrava em Lisboa) e garantia também a manutenção dos
privilégios nobiliárquicos, condenados pela revolução, nas terras brasileiras.

Por outro lado, a vinda da família real representou um pacto certeiro entre as
elites do espaço fluminense e a nobreza. Ainda que parcelas dessa elite estivessem
influenciadas pela doutrina liberal a que tivera contato na Europa, quando letrada, a
presença da Monarquia Lusa no Brasil influenciará decisivamente a feição da
monarquia independente brasileira, e sobretudo sua ordem constitucional. E, mais
importante, representará a transferência de instituições da metrópole para a colônia,
como a Casa de Suplicação, a Mesa da Consciência e das Ordens, para citar alguns
exemplos, em boa parte das quais se exigia a presença de doutores em leis.

Juristas enviados ou re-enviados para um contexto repleto de desigualdades,

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

no qual prevaleciam estruturas de privilégios pessoais, latifúndios, plantéis de


escravos e economia marcada pelas relações de atavismo mercantil da linhagem
fisiológica do colonialismo português; tais desigualdades não se despediam nem
mesmo com a inversão metrópole-colônia, proporcionando um debate distante,
desmedido, despregado de sentido com a realidade. É assim que despontam figuras
de juristas munidos de um referencial teórico expressivo, mas cujos projetos e
estudos ou serão modestos e contidos a exame de leis e costumes, ou apontarão a
uma principiologia visivelmente desconexa ao contexto brasileiro. É o caso de José
da Silva Lisboa (1756-1835), Visconde de Cairu, também formado em Coimbra,
solitária voz da doutrina jurídica brasileira preservada do período, que voltou também
seus interesses ao estudo da economia, refletindo em seus escritos, princípios de
economia política e inclinação ao liberalismo nos moldes ingleses. Sua obra maior
são os Princípios de Direito Mercantil e Leis de Marinha, cuja edição se iniciou em
1798. (DUTRA:2004, p. 30).

As feições inovadoras do Direito na Europa não encontrariam, portanto,


terreno sólido e propício ao seu desenvolvimento na América Portuguesa, seja pela
tardia expressão das codificações de direito privado no Brasil (o primeiro código
nesse sentido será o de Direito Comercial, datado de 1850), seja pela resistência de
difusão e concepção de valores voluntaristas, contratualistas e individualistas
resultantes do passado e suas fortes tradições coloniais. A América semi-explorada,
recortada pelas tesouras de poderes resultantes de valores tradicionais da
colonização, como o clericalismo e o patrimonialismo, ligada a segmentos de
organização politica favorável ao mandonismo e ao particularismo de “homens
bons“, mais se assemelhava a um confuso monturo de farrapos, mesmo após a
chegada da Corte, que a um tecido uniforme e bem cosido, que pudesse estar
organizado em torno de uma ideologia política homogênea.

Ainda que criadas instituições do poder central no Rio de Janeiro, a


concorrência e insularidade das dimensões dos poderes oficiais permanecem em
sua habitual dispersão no Brasil, sendo que poderes concorrentes muitas vezes

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

detinham força e eficácia muito maiores que o ditame de uma lei promulgada pelo
governo central. Sabres, bacamartes ou absolvições produziam efeitos muito mais
decisivos na determinação de condutas sociais que alvarás ou decretos reais.

E, no campo prático, o que se torna mais evidente é uma espécie de


engessamento das inovações provocadas pelo ensino jurídico reform(ul)ado. À
primeira vista, seria possível se pensar que a facilidade de acesso a doutrinas
renovadas, a um corpo docente revisado, a noções de direito pátrio e a abandonos
ou mesmo rejeições das tradições do direito romano fossem resultados verificados
sistematicamente entre os agentes do direito aportados no Brasil.

Não é o que se verifica, contudo. A educação a que tiveram contato esses


juristas revela sim uma alteração profunda na maneira que conceberiam o direito em
seus campos teóricos. Porém, as expectativas advindas de um historiador
precipitado, que naturalmente recairiam à dimensão prática do Direito, como o
abandono dessas fontes tradicionais na fundamentação de decisões judiciais, não
são máximes observáveis a todo plano. Há ainda verificada uma rigidez ampla no
que concerne às mudanças nas estruturas jurídico-argumentativas, muito em função
da inexistência de legislações eficazes do Reino brasileiro, ou da permanência de
poderes de valores tradicionais da colonização, como o clericalismo, em algumas
decisões judiciais referentes a esse período. É o exemplo da Corte de Apelação da
Bahia, anteriormente designada como Tribunal da Relação, que se reportava à Casa
de Suplicação de Lisboa. Com a vinda da família real e a transferência dos órgãos
da administração central para o Rio de Janeiro, o que incluiu a Casa de Suplicação,
as Relações do Brasil foram extintas, passando a ser designadas como Cortes de
Apelação, e se reportando diretamente à instância jurisdicional superior, então
estabelecida na capital fluminense. Permaneceram, no entanto, com as mesmas
funções que antes: apreciar pedidos de recursos, como agravos, de decisões
proferidas por juízos ordinários.

A rigidez acima referida traduz-se num revelado desapego a doutrinas

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

inovadoras, aos novos sentidos do ensino jurídico que se entoavam às mudanças de


cunho político e econômico na Europa pré e pós-revolucionária. Relegar a doutrina
justinianeia, os preceitos canônicos e da tradição cristã a um segundo ou mesmo
último plano para a fundamentação de decisões judiciais seria de se esperar de
juristas que tiveram sua formação num contexto de reformas balizadas por diretrizes
como o secularismo, o iluminismo e o liberalismo. Porém, num contexto feito o
brasileiro, que assentava suas estruturas em instituições tradicionais e engessadas,
as quais punham em funcionamento as engrenagens da máquina colonial escravista
em sua rotação lenta e vacilante, introduzir percepções no direito que o conduzissem
a mudanças ou alterações profundas pareceria desnecessário e ameaçador às
estruturas hierarquizadas e rígidas da vida social. Afinal, esse campo de
conhecimento humano, extremamente fechado a um grupo letrado e cuja existência
esteve a serviço de elites econômicas e políticas, as quais dispunham do aparato
dos órgãos oficiais e detinham condições para suportar as custas de feitos judiciais e
fazer prevalecer seus interesses, de fundo muitas vezes patrimonial, gerava um
campo enorme à incerteza. Incerteza que, nas palavras de HESPANHA, não é
igualmente boa ou má para todos. Normalmente, serve os mais poderosos, os que
têm capacidade de influenciar, de subordinar, de sustentar um litígio durante anos
em tribunal ou, pura e simplesmente, de se estribarem no parecer de um letrado por
sua conta para desobedecerem ao direito estabelecido.(HESPANHA: 2006, p. 3).
Somado a isto, inúmeras hipóteses poderiam ser apontadas para essa estrutura de
rigidez decisória, mas a principal está fundamentalmente na maneira que o corpo de
magistrados foi concebido no Brasil colonial. Um sentimento de responsabilidade de
pacto dual: em pacto tácito com as elites coloniais locais e pacto expresso com o
poder central27, nos processos de produção de decisões. Alguns trechos de um
Acórdão da Corte de Apelação da Bahia, corroboram essas constatações, dentre os
quais é possível se verificar citações das Institutas de Justiniano, e de preceitos

27 A transferência da corte portuguesa ao Brasil significou a transferência, conforme já exposto, dos órgãos da
administração central, e de seu representante maior, o próprio monarca, D. João VI. Tal fato tornou ainda
mais estreitos os laços de aproximação entre a magistratura e a Coroa, sendo que os cargos de jurisdição
passariam a ser concedidos sob a vigilância e aval direto do rei, conforme se verifica em diversas cartas de
concessão disponíveis na Coleção da Série Justiça do Roteiro de Fontes do Arquivo Nacional para a história
luso-brasileira.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

morais da tradição cristã, a título exemplificativo:

e todo aquele que recusa exhibir tem a presumpcao de dolo I Cod de Fid
Instrument e com outros P.P Castilh. Lustio controvert. Lib 8. cap. 20 n. 29 c.
30 Praesumptio oritur contra cum qui recusat exibere aut edere
instrumentum. Oritur enim praesumptio quod ei noceat si enim prodesse non
occultant.
(...)
O Referido Embargado, o seu forte he negar a verdade, que se acha
deduzida nos embargos fls.___sem se lembrar que o negar he o mesmo
que mentir, e a mentira vem a ser pecado mortal contra a natureza.
(...)
Mendacium in hominibus perfectis esse mortale peccatum contra naturam.
(...)
Esquecido então do que lhe he vedado se não intrometer em negócios
Seculares, por evitar o que delles resulta nas Usuras e Enveterado o
Relatado Embargado em tais negócios, lansou de si o direito Divino, sao as
vozes de Paulo na segunda Carta a Timóteo: Nemo militans Deo implicet
negocius secularibus.
(...)
Da mesma sorte lhe he vedado por muios Concílios e Bullas Pontifícias e
severamente reprehendido pelos Santos e entretanto he digna da nossa
atencao Ica de Sao Hierônimo lembrada por Benedictus 14 na Bulla que
principia: Apostolica servitutio = datada em 1741 contra o Clérigo, que se
intromete nos negócios seculares, tudo isso tem escurecido o Relatado
Embargado.28

A Corte de Apelação da Bahia, como instância superior da Justiça que era,


tinha em seus quadros geralmente magistrados com alguma experiência, que já
tivessem atuado nos juízos ordinários. Considere-se ainda que os trechos referidos
datam de 1815, portanto, quase 45 anos após as reformas do ensino em Coimbra
encabeçadas pelo Marquês de Pombal, tempo suficiente para que todos os
magistrados houvessem entrado em contato com essas alterações.

28 ARQUIVO PÚBLICO NACIONAL. Código de Fundo 20. Processo n. 914 m38, gal C., fl. 86.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

A essa magistratura não seria possível imputar atuação coesa, homogênea,


uniforme. Não se trata de um corpo social consciente de sua condição, agrupado,
entoado como coro unívoco. A máxima, “para cada cabeça, uma sentença“, é
adequada a essa realidade, se confrontada com a multiplicidade de fundamentações
encontradas nos arquivos de memória judiciária. São muitos os agentes, são muitas
as decisões. Além da multiplicidade de decisões, não há uma segurança observável
de fontes do direito: num contexto em que ainda prevaleciam a cultura de
compromissos pessoais, as instituições do latifúndio e escravidão, e em que cargos
judiciários eram conferidos conforme relações de graça e mercê, que sentido faria
defender força de leis que não existiam, ou assegurar direitos que não haviam?

É por essas razões que considerar que as reformas do ensino em Coimbra no


campo educacional foram medidas com resultados unilaterais, que produziram
reflexos imediatos e uniformes nos métodos de aplicação e interpretação do Direito,
não corresponde às evidências históricas. Como se apontou, muitos são os agentes:
os canais nunca seguem um fluxo cadente e único, o que se deve também a
estruturas sociais que permaneciam praticamente inalteradas, produzindo demandas
jurídicas que tampouco espelhavam profundas transformações de ordem econômica.
Propriedades em defesa, satisfação de créditos, partilhas de escravos, se até então
foram resolvidos com base em uma doutrina antiquada e estagnada, não verão
motivos para serem solucionadas por meio do enaltecimento de fontes inexistentes
ou métodos inovadores.

O quadro do ensino jurídico em Coimbra por si só, não lapidava as arestas de


homens desgastados pela reumática ordem vigente. Alguns esforços ainda partiam
do governo de D. João VI, no sentido de promover a modernização da Universidade,
realizando reformas periódicas não apenas no ensino, mas em toda a extensão da
Universidade de Coimbra, nos estudos e na produção de conhecimento, figurando-
se campo de atuação das políticas educacionais, mesmo a partir do Brasil. É assim
que nos revela um Alvará de 1815, expedido pelo monarca:

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Querendo remediar estes inconvenientes, e restituir ao Corpo Academico a


paz e o socego necessario para prosperarem os Estudos e o augmento das
Sciencias, que muito Dezejo adiantar e promover, para crescer, e medrar
cada vez mais a instrucção publica, e para se formarem cidadãos
benemeritos, e úteis à Igreja, e Estado, e conservar ao mesmo tempo o uso
das Dissertações (…) 29

À contramão desses esforços, os poderes da administração e justiça


concebidos no período colonial – fragmentados e polissêmicos – ainda
proporcionavam adequados mecanismos de controle e rigidez institucional,
preservando as formas de dominação e exploração econômica da colônia, o que, em
última análise, se traduziu por meio de certa previsibilidade dos casos levados à
apreciação judicial mesmo no período joanino. Quer isto dizer que, se os
mecanismos institucionais asseguravam a exploração econômica na colônia por
grupos que a esses mesmos mecanismos tinham acesso, ficava extremamente fácil
se prever a natureza dos litígios (sobremaneira relativos a direitos patrimoniais), e
encontrar soluções adequadas a seus interesses. Daí, a incerteza do sistema de
jurisdição ser aplicável a apenas aqueles que dele não dispusessem, alijados de
acesso à Justiça, porém, cravejados por seu controle.

É importante ressaltar que, no período em observação, deve ser extirpada a


figura do jurista em sua dimensão técnica, formalista e hermética que atualmente se
conhece. A maneira pela qual foi concebida a atividade de jurisdição na colônia e
também na Metrópole, no Antigo Regime, é essencialmente fulcrada no
restabelecimento da ordem, no dar a cada qual o que é seu, no medir as
consequências de uma justiça distributiva que conferisse seus tons aos limites de
uma sociedade organizada em torno de laços de subordinação e dependências
pessoais, fidelidades e compromissos. Daí não se poder falar em juristas técnicos,

29 Alvará com força de Lei, declarando e modificando o parágrafo quarto de outro do primeiro de Dezembro de
1804; ordenando que o voto e parecer dos Lentes Censores das Dissertaçõees, que annualmente fazer e
entregar os Doutores oppozitores da Universidade de Coimbra não seja decisivo, e à Congregação das
Faculdades fique pertencendo approvar, e repprovar as referidas Dissertações. Rio de Janeiro: Imprensa
Régia, 1815. Disponível em: <www.brown.edu/Facilities/John_Carter_Brown_Library/CB.indexes
/laws_1815_p1.html>

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

presos ao abstracionismo legal, tampouco ser possível desconsiderar sua figura na


conformação de poderes metropolitanos. Sua atuação, para além de interpretações
abstratas e aplicações legais, está baseada num compromisso com a ordem vigente
e, em razão do arranjo institucional, não pode ser tida como a de um membro de um
poder apartado e descolado de finalidades políticas. Atua o jurista com relativa
margem de escolha, optando por fontes e argumentos maleáveis, sem se amarrar à
estreiteza da lei. E, num contexto em que não há separação precisa entre funções
administrativas, judiciárias ou legislativas, sendo todas membros ou parcelas do
corpo de um Estado centralizado metropolitano, tal margem de atuação
discricionária se evidencia ainda mais.

Por isso mesmo, não é possível se estabelecer um jogo de relação causa e


efeito, entre ensino jurídico, reformismo ilustrado e independência política, como se
cada um explicasse fenômenos que dele fossem consequência direta e inarredável.
Há, no entanto, uma interposição desses fatos, que ora se explicam, ora concorrem
entre si, ora se fundamentam.

Assim, o fato de boa parte dos homens letrados que viviam no Brasil terem se
formado no curso de Direito da Faculdade de Leis de Coimbra pode não expressar,
por si só, as razoes para a independência política brasileira. Porém, levando em
conta que, conforme observado anteriormente, havia estabelecida uma cara relação
entre homens letrados e cargos ocupados na administração colonial, essa ordem
somente se romperá no momento em que a organização vigente se alterar; vale
dizer, no momento em que a condição de colônia deixe de existir. A experiência de
independência, implementada desde 1808, portanto, implicará em ruptura política às
avessas, tornando o processo muito mais uma questão de monarquia, estabilidade,
continuidade e integridade territorial que de revolução colonial. (MAXWELL: 2000, p.
186)

A lapidação acadêmica necessitava de mecanismos mais eficazes, que


fugissem à regra das sabatinas e dos ditados, das lições e das repetições, para

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

ganhar força entre seus diamantes brutos. O contato com a literatura corrente num
período de efervescentes ideias propiciou, por mais evidente que tal pareça, a
aproximação a ideais ilustrados, ao liberalismo, à secularização do Estado e a todo
um programa que parecia fazer muito sentido num contexto de dissensões e
conflitos como o europeu, mas que se via debilitado a sua propagação na América
Portuguesa.

Daí as projeções pontuais e limitadas de projetos nacionais de independência:


religar a nação em um todo pátrio, até então um conjunto desconexo de contextos e
fragmentos que compunham um extenso território. As conjurações Mineira e Baiana,
que talvez sejam as que ocupam maior expressão na história política colonial,
resumiram-se a realidades completamente distintas e agentes também dissociados
entre si, fazendo-se pontuais e desapegadas a projetos que integrassem todo o
território colonial português na América do Sul. Tais exemplos demonstram que a
colcha de retalhos brasileira não foi resultado de forças emancipatórias distintas,
mas de alfaiates que se propuseram a fazê-lo já munidos das agulhas e linhas
instrumentais do Estado, a fim de costurá-la.

Seção II. Que liberalismo, que juristas, que direito?

A trajetória exibida toca os dentes principais da engrenagem de


funcionamento da sociedade brasileira após a chegada da corte: eis que revigorada
a burocracia estatal, fortalecido o compromisso com a adequação de decisões
judiciais aos limites de poderes tradicionais e enaltecidos o espaço do centro de
decisões políticas e o liame dos agentes políticos às atividades do poder central,
tendo se tornado previsível saber de onde partiriam os autores da independência
política brasileira.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

A elite organizada em torno do centro de decisões políticas, deslumbrada com


as honrarias do palácio de São Cristóvão e alimentada pelos favorecimentos da
ordem burocrático-patrimonialista, incrustou à América austral a expressão mais
coerente a seus interesses de preservação das estruturas de poder que prevaleciam
no período do Reino. Ainda que o final do reinado de D. João VI tenha sido marcado
por uma administração rígida e estanque, em que a corrupção se demonstrava como
uma característica consentida. (HOLANDA, p. 173) Um dos exemplos que
demonstra o tipo de pensamento de juristas que também vigia em meio a uma
estrutura transplantada, encefálica, centralizadora e conservadora de governo, é o
do Ministro Tomás Antônio, que era, conforme descreve HOLANDA:

Velho desembargador, pessoalmente honrado e diferente, portanto, de


muitos magistrados que fomentavam uma descrença na justiça real,
pensava em reformar abusos, mas vivia mentalmente em pleno absolutismo
– paternalista, pois era uma sombra de D. João. (HOLANDA: 2003, p. 173).

Assim, o que se poderia denominar liberalismo brasileiro nada mais foi que
um eco remanescente de um processo de descolonização já deflagrado com as
transformações políticas ocorridas a partir da transplantação do governo de Lisboa
ao Rio de Janeiro, e cujo estopim estivera com a revolução do Porto de 1820 e a
tentativa de recolonização das cortes. Não parecia adequado às elites centrais
submeter novamente o Brasil à autoridade metropolitana, e ver derrocada uma
situação favorável aos comerciantes brasileiros e portugueses (agraciados pela
abertura portuária), aos comerciantes de escravos, a alguns juristas (favorecidos e
alinhados à estrutura burocrática dos órgãos judiciários transplantada e pelas
concessões e honrarias do poder central também transplantado), aos poucos
pequenos manufatureiros (favorecidos pela liberdade de criação de indústrias, em
razão da revogação do Alvará de D. Maria que proibia a existência de manufaturas
no Brasil, por meio da carta régia de 10 de marco de 1810) e a alguns proprietários
de terras (superestimados pela sucessão de concessões de sesmarias pelo governo
joanino). Estava-se, portanto, diante de um contexto de satisfação e oportunidade 30,
30 Aqui está a se fazer menção especial às elites fluminenses, as quais tomaram decisivo papel para o desenrolar

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

no qual ainda permaneciam alguns ecos do movimento de 1817, ocorrido em


Pernambuco.

Portanto, discutir o liberalismo brasileiro é discutir um liberalismo às avessas,


melhor termo para designar o pensamento que, partido das elites letradas que com
novas linhas ideológicas já haviam mantido contato, somente germinará no Brasil
com a ameaça da possibilidade de regresso a um status quo anterior, de notável
rejeição entre tais elites. A bem dizer, elites já escoradas e infiltradas nas estruturas
da administração joanina, que não terão grandes dificuldades para fazerem
prevalecer seus interesses e promover a “ruptura política“ tão esperada.

Daí se poder falar num liberalismo de interesses, que concedia um caráter


conservador à ruptura a ser provocada com relação à Metrópole, já debilitados
desde a transferência da corte. A prevalência do comércio de escravos e do próprio
instituto da escravidão após a independência, somam as pinceladas que os
interesses econômicos confeririam ao quadro político brasileiro. Nos dizeres de
COSTA:

O caso brasileiro condensava assim um processo eivado de ambiguidades e


contradições. Ele rompia com a dominação colonial, mas ocorria como
contramarcha da revolução liberal em processo na Metrópole; ao mesmo
tempo que lançava mão do liberalismo como ideário para justificar a
separação da Metrópole, fazia desse ideário um uso conservador, pois ele
serviu também para manter a escravidão e a dominação dos senhores. Em
síntese, o movimento de independência foi nacional, pois criou a nação,

do processo de independência. Satisfação e oportunidade servem para designar certo estado de ânimo com
relação ao governo implementado no Rio de Janeiro, no que diz respeito às vantagens e concessões dele
advindas. Nos dizeres de Jurandir MALERBA, “começa a se desenhar a trama em que se ligaram a coroa e
os homens fortes do Rio de Janeiro, basicamente envolvidos no comércio de grosso trato e de almas. Uma
vez identificados os benfeitores da monarquia, faltava estabelecer as vias de mão dupla que ligavam a praça
do comércio ao paço imperial; porque se os “homens bons“ seguraram a bolsa do rei, não o fizeram por
bondade, mas impelidos por uma mentalidade arcaica, própria do Antigo Regime, a mesma que explica o
desvio de grandes somas das atividades produtivas para outras rentistas ou, como foram chamadas, bens de
prestígio. Os grandes que socorreram o rei buscavam e receberam distinção, honra, prestígio social, em
forma de nobilitações, títulos, privilégios, isenções, liberdades e franquias, mas igualmente fatores com
retorno material, como os postos na administração e na arrematação de impostos. “ (MALERBA: 2000, p.
232).

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

mas fez prevalecer uma ideia estreita de nação: a que se identificava com
os interesses dos proprietários. (COSTA: 2005, pp. 93-94)

Outro ponto de destaque é a condição em que se processou a independência


brasileira. A subordinação de um projeto que foi consagrado por correntes
historiográficas brasileiras, de uma interiorização da Metrópole, sobretudo propalada
por Maria Odila da Silva Dias (COSTA: 2005, p. 96) explicaria a formação da nação
em sua dimensão conjunta, caracterizada pela subordinação dos projetos das elites
centrais às demais elites, sucumbidas ao projeto conservador dos grupos sociais
alinhados ao eixo fluminense. Em outros termos, trata-se de uma sedimentação do
projeto imperial e sua irradiação para as demais capitanias a partir do Rio de
Janeiro, “denunciando a dinâmica de sua reinvenção, mediante recortes e
reformulações que, em último plano, conferiram tangibilidade a um corpo político
irredutível à antiga forma colonial.“ (SILVA: 2006, p. 232)

Portanto, o contexto é de desequilíbrio de forças e experiências diversas e por


vezes contraditórias entre si, em que o ideário liberal se transveste com as
pretensões e os objetivos de beneficiamento de gestão da coisa pública, por seus
artífices. Entender o discurso jurídico é, nesse quadro, de importância fundamental
para se entender os passos dessas elites, à proposta de nação. O que não se pode
fazer é dissociar os processos de construção de saberes, como se o jurídico
representasse um discurso autônomo, independente, e sem o propósito de assumir
a forma de instrumento de um projeto político.

Seja na retórica resguardada pela antiquíssima tradição civilística, a qual,


conforme visto, não era capaz de abandonar suas bases teóricas mais tradicionais,
e era apropriada para gerar discussões doutrinárias como a da natureza jurídica do
escravo (se coisa como entre os antigos romanos, ou se pessoa), ou a da
participação da Igreja em negócios jurídicos bilaterais, seja nos valores que serão
encravados à Constituição de 1824: os termos “bem“ e “propriedade“ aparecem num
total de 12 (doze) vezes, 7 (sete) para o primeiro e 5 (cinco) para o segundo, ao

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

longo do texto constitucional; o Direito manifesta em seus aspectos práticos e em


sua face abstrata não apenas um discurso hermético, isolado em si mesmo, mas um
reflexo de opções e desequilíbrios existentes na própria trama social.

A absoluta proteção da propriedade, valor caríssimo aos ideais burgueses,


fica estampada do seguinte modo na Constituição de 1824, refletindo a prioridade
dada a um direito cujo caráter é, em regra, inviolável:

Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos


brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a
propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira
seguinte:

22) É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem


público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da propriedade do
cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os
casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se
determinar a indenização. (BRASIL. Constituição do Império, 1824).

Apesar de a Constituição de 1824 ter sido redigida por um conselho de dez


membros, o qual substituiu a Assembleia Constituinte (composta por juristas como o
Visconde de Cairu e Pedro de Araújo Lima, ambos egressos de Coimbra) dissolvida
pelo Imperador, ela traduzia o equilíbrio político da sociedade em normas jurídicas
fundamentais (PRADO JR.: 1972, p. 49), além de resguardar a ordem patrimonialista
vigente, enaltecendo os pilares de um liberalismo em plano econômico, sustentado a
partir de estruturas de poder autoritárias e centralizadoras. (VASCONCELOS:2008,
p. 62). A Constituição aprovada exemplifica a derrota parcial do projeto de Antônio
Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio, e também formado na Faculdade de
Leis de Coimbra, principal responsável pelo projeto abortado de Constituição, que
tinha por objetivo descentralizar a administração do Estado e reduzir os poderes do
imperador. (VASCONCELOS: 2008, p. 48).

Deste modo, o papel dos juristas, no período em análise, envolve extremos

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

alargados: se valem de métodos para promover a trama de linhas tênues, corroborar


interesses e sobrepô-los àqueles interesses desamparados por cabedais
legislativos, por plasmas normativos, ou por teorias tradicionais.

No que diz respeito aos modelos de nação, um dos egressos de Coimbra que
estiveram à frente dos projetos nacionais de constituição e organização do Estado é
José Bonifácio de Andrada e Silva. Sua figura controversa, que depositava
esperanças em uma nação livre, despida do jugo da escravidão e inspirada pelo
liberalismo norte-americano e europeu, representa o eco de ideais e imaginários
infiltrados nas elites letradas brasileiras, diplomadas em Coimbra na transição do
Antigo Regime europeu.

Sedimentar as bases da organização política brasileira, enrijecer a estrutura


de organização nacional, impedindo-se as sedições e mantendo unidade e, acima
de tudo, promover o distanciamento do atraso intelectual da nação são objetivos do
imaginário político de José Bonifácio. Em seu pensamento ecoa a percepção das
condições tradicionais da sociedade brasileira, bem como a consciência de que era
necessário, para essa sedimentação política: abandonar o mandonismo e a força
das espadas, típicos da administração colonial, rumo a uma administração que
compusesse os diferentes interesses e pudesse promover a justiça. Nos dizeres
dele:

Quando a corte passou para o Rio de Janeiro, os povos do Brasil, imbuídos


de novas ideias, sentiam as privações em que se achavam como colonos, e
guardavam um ressentimento oculto contra o governo de Portugal: ao
governo do Brasil pertence acabar de todo esse ressentimento, sendo bom
e justo e imparcial para o Brasil, e os brasileiros. Para isto não se precisa
aumentar tropas, pagar numerosos espiões, ou fechar os ouvidos aos
clamores do povo contra os mandões; mas só de justiça, e de instrução e
nova civilização; e não querer governar o Brasil, já reino, como o Brasil
colônia. Enquanto a gente morar dispersa e isolada pelos campos e matos,
enquanto um pouco de farinha de milho ou mandioca, e um pouco de feijão
com peixe ou toucinho, os tiver contentes e apáticos, nada tem que temer o

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

governo, ainda que os governe como dantes: demais o temor dos negros, e
as rivalidades das diversas castas são o paládio contra revoluções políticas.
(SILVA: 2000, p. 79)

Considera também o patrono da independência, a respeito do Estado:

Para conservar-se um Estado, e florescer, deve seguir os seguintes


preceitos: 1°) Observância das leis [ilegível] e à letra. 2°) Antes diminuí-las,
que aumentá-las. 3°) Igualdade de justiça, e superioridade de merecimento.
4°) Bom sistema de imposição, arrecadação e despesas; o que faz pagarem
os vassalos com presteza e boa vontade, e chegar o pouco para o muito. 5°)
Ser infame o soldado fraco, o ministro ladrão, e não escapar à lei o que furta
ao Estado por comissão ou omissão. (…)8°) Dar o governo mostras
continuadas [de] que sabe castigar o duque, o desembargador, o general
como o sapateiro, logo que o merecem. 9°) que as gracas assim como os
castigos sejam conferidos por tribunais bem regulados e contidos, e não por
indivíduos, quais os favoritos, ministros, damas, etc. 10°) Liberdade de
imprensa só sujeita à lei ex post facto e não ante factum. (…) (SILVA: 2000,
pp. 79-80)

O jurista paulista ainda aponta indispensáveis, em seus projetos para o Brasil,


o exercício de controle político dos poderes constitucionais, bem como a formulação
de códigos legais que encerrassem a diversidade social brasileira. E, ainda, um
projeto ilustrado de educação, apoiado na criação de uma Universidade que
formasse pessoal indispensável ao incremento da educação e ao desenvolvimento
nacional, em diversos campos: médicos, administradores públicos, juristas, filósofos
e matemáticos. Assim:

Pois que a Constituição tem um corpo para querer ou legislar, outro para
obrar e executar, e outro para aplicar as leis ou julgar, parece preciso para
vigiar esses três poderes, a fim de que nenhum faca invasões no território
do outro, que haja um corpo de censores de certo número de membros
eleitos pela nação, do mesmo modo que os deputados em Cortes, cujas
atribuições serão: 1°) conhecer de qualquer ato dos três poderes que seja
inconstitucional, cujo juízo final de faca perante um grão-jurado nacional,

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

que será nomeado pelo corpo de censores em número igual dentre os


deputados de Cortes, Conselheiros de Estado e do Tribunal Supremo de
Justiça; 2) verificar as eleições dos deputados em cortes antes que entrem
em função, 3°) fazer o mesmo a respeito dos conselheiros de Estado (…)
4°) finalmente pronunciar a suspensão dos ministros do poder Executivo e
dos magistrados a requerimento das Cortes ordinárias. (SILVA:2002, p. 127)

5°) Que as cortes da nação na redação do Código Civil e Criminal tenham


muito em vista modificá-la, segundo a diversidade de circunstâncias do
clima e estado da povoação, composta no Brasil de classes de diversas
cores, e pessoas umas livres e outras escravas; pois estas considerações e
circunstâncias exigem uma legislação civil particular. (IDEM, p. 128)

8°) Além destes colégios, é de absoluta necessidade, para o Reino do


Brasil, que se crie desde já pelo menos uma universidade que parece
deverá constar das seguintes faculdades: 1°) faculdade filosófica composta
de três colégios – de ciências naturais, de matemáticas puras e aplicadas,
de filosofia especulativa e boas artes; 2°) de medicina; 3°) de jurisprudência;
4°) de economia, fazenda e governo. (IDEM, p. 129)

Expoente de sua geração e de sua formação, esse pensamento constituía um


projeto nacional de organização e revelava as vibrações ilustradas e liberais da
formação acadêmica na Europa em seu cerne. Esses projetos representaram formas
de pensar os modelos políticos para uma nação que nascia, e cujo principal desafio
era o de garantir sua unidade que a fundamentasse.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

CONCLUSÃO

A discussão promovida no decorrer deste trabalho, consciente da amplitude e


dos caminhos que dela se desdobram, atingiu algumas constatações fundamentais,
para se entender as influências do espaço acadêmico e da cultura letrada à
constituição da nação. Essas constatações podem ser apontadas da seguinte
maneira:

1) A identidade nacional é um mito da organização política brasileira. Os


interesses das elites voltaram, sobretudo a partir da chegada da família real
portuguesa, para um centro substituído, polo articulador de espaços sociais criados
e imaginados, no qual os modelos de administração e de poder irradiam as formas
de interação política com os demais fragmentos do território. Esses fragmentos, no
entanto, são espelhados nesse espaço, mas reportam-se a outros polos dispersos (a
Capitania de Minas Gerais, a Villa Rica, a Capitania da Bahia, a Salvador, e assim
por diante), o que artificializa a integridade territorial e as formas de costume e uso
de normas sociais e jurídicas. A teoria da “interiorização da Metrópole“, portanto,
adequa ao quadro de organização da identidade brasileira: importa em projeto
nacional que efetivamente se projeta, ou se superprojeta sobre os demais, a partir
de um centro de decisões. Os mecanismos institucionais para tal realização serão
fundamentais.

2) As instituições do Estado assentam a identidade nacional, mas esta não se dá


apenas pelas vias estatais. Se as camadas letradas esboçaram o modo como as
instituições oficiais operariam, desenharam parcialmente o Estado constitucional e

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

plantaram as matrizes de seu liberalismo incoerente, mixado às tendências


centralizadoras e autoritárias em torno da monarquia, esse esboço somente se
aproveita em razão de outras instituições, no cerne da sociedade brasileira. O
escravismo, o ordenamento estamental e a concentração da propriedade são fatores
já existentes, e que contribuem para a formação de mentalidades comuns e
programas lineares de poder, por essas mesmas elites. A dominação social,
portanto, terá canais muito mais expressivos e comuns, visto que as bases de
organização das atividades produtivas e as desigualdades regionais vetorizam a
concentração do poder nas mãos de agentes aptos a tanto.

3) O discurso jurídico é fundamental nesse processo de dominação social. As


teorias e formulações do espaço acadêmico coimbrão, apesar de apegadas a uma
tradição escolástica vezes atrasada e desapegada a transformações em curso na
Europa, são relativizadas no contexto brasileiro. Vezes se adotando a modernização
argumentativa (e a modernização do Direito), vezes cambiando a operações
silogísticas velhas e apegos à doutrina romana, a atuação praxista dos juristas
brasileiros é, acima de tudo, pragmática. Significa dizer que os contornos da prática
jurídica satisfazem, nesse período, ao contexto social que envolve a defesa de
interesses manifestos em litígios de baixa variabilidade, em cujos lados estarão por
muitas vezes homens de poder, detentores de bens que não serão tutelados por
legislações nacionais uniformes, até então inexistentes, mas por um confuso corpo
legal e um conjunto de argumentações e doutrinas também confuso. Noutro aspecto,
os juristas brasileiros serão os conselheiros do aparelho institucional: se infiltrados
no quotidiano dos órgãos de administração e justiça no Brasil joanino, formarão por
outro lado, os conselheiros do Estado: auxiliando o projeto de Constituição liderado
por Antônio Carlos de Andrada, ou integrando a Comissão responsável pelo texto da
Constituição de 1824.

4) Letramento e erudição são fatores de permeabilidade das elites políticas


brasileiras ao programa ilustrado. A formação tradicional humanista, no início do
século XIX, resumia-se muitas vezes ao curso de Leis de Coimbra. Essa formação

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

universitária, apesar de apegada a tradições rígidas e pouco inovadoras, fora


reformulada no governo pombalino. Tais reformas sintonizaram, de certa maneira, o
espaço de Coimbra ao debate acadêmico de seu tempo. Os esforços do governo
pombalino, ultrapassando as meras reformas, importaram também numa certa
sintonia de Portugal aos cânones do iluminismo europeu: a entrada de publicações
dessa natureza puseram intelectuais em contato com linhas de pensamento que
chegavam à América Portuguesa por meio desses mesmos intelectuais, em razão da
inexistência de universidades nesses territórios. Esse programa será fundamental
para a concepção do liberalismo brasileiro e dos projetos políticos nacionais.

Diante dessas constatações, o quadro de hipervalorização do bacharelismo


brasileiro encontra pilares e sedimentos típicos, com a emergência da nação.
Quando as estruturas de poder da ordem colonial são desfeitas, o Estado refeito em
seu liberalismo atípico, tende a valorizar a personalidade individual numa sociedade
que permanece com instituições emblemáticas de seu passado colonial. Nos dizeres
de HOLANDA:

Apenas, no Brasil, se fatores de ordem econômica e social – comuns a


todos os países americanos – devem ter contribuído largamente para o
prestígio das profissões liberais, convém não esquecer que o mesmo
prestígio já as cercava tradicionalmente na mãe pátria. Em quase todas as
épocas da história portuguesa uma carta de bacharel valeu quase tanto
como uma carta de recomendação nas pretensões a altos cargos públicos.
No século XVII, a crer no que afiança a Arte de Furtar, mais de cem
estudantes conseguiram colar grau na Universidade de Coimbra todos os
anos, afim de obterem empregos públicos, sem nunca terem estado em
Coimbra. (...)
A dignidade e importância que confere o título de doutor permitem ao
indivíduo atravessar a existência com discreta compostura e, em alguns
casos, podem libertá-lo da necessidade de uma caça incessante aos bens
materiais, que subjuga e humilha a personalidade. (HOLANDA: 2009, p.
157)

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

Portanto, se a identidade nacional é um mito da organização política


brasileira, não diferente é o mito do bacharelismo. Ele se escora em sua
organização. A desconstrução dos níveis de subordinação entre colônia e metrópole,
com o vigoramento da máquina de país independente prestigia e eleva um grupo
social à condição de mentor e artífice de projetos para a independência. E de
ocupantes dos cargos de alto escalão da Justiça. Eles deveriam articular a
preocupação em manter a unidade artificial, a ser garantida pela criação dos cursos
jurídicos nacionais alguns anos mais tarde, em 1827, no sul e no norte do país
recém nascido (em São Paulo e em Olinda) (NEDER: 2006, p.8). Construtores do
mito, assumiram o instrumental de uma alfaiataria social, com os recursos
institucionais para costurar a nação, os dispersos retalhos em um tecido único,
chamado Brasil.

Permaneceram, no mesmo Brasil, as vozes de uma educação jurídica


inspirada no modelo de Coimbra, agrilhoada às contingências dessa superestima
dos bacharéis, e exaltada à condição de pioneira do ensino superior brasileiro.

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Letras, academia e poder – João Vitor Loureiro.

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Lourenço Caetano Pinto. In: Roteiro de fontes do Arquivo Nacional para a história

luso-brasileira. Fichário 03, gavs. 2-3 - referência : F-3. Coleção: Série Justiça IJ4

348/ IJ4 335. Créditos da imagem: Mariana Armond Dias Paes.

Figura 02. Página 45. Gráfico elaborado pelo autor, a partir dos dados obtidos em

GARCIA, Rodolfo. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1940, vol. LXII.

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