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Arqueareth

A Sombra no Fogo

J. F. Costa
“Desde tempos imemori|veis,
a escuridão prospera no vazio,
mas sempre se submete
{ luz purificadora.”

Avatar, a Lenda de Aang, Livro Três: Fogo, Capítulo 19 – O Cometa Sozin – parte 2: Os Ve-
lhos Mestres, Michael Dante Dimartino e Bryan Konietzko, Nickelodeon.

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1. Atrás da Porta 7
2. A Joia do Meio-Norte 14
3. Os Estratagemas das Sombras 33
4. Os Caçadores 42
5. Reunião de Família 54
6. Gom’Padol 65
7. Acampando 78
8. Desaparecida 85
9. O Jardim de Panathos 92
10. A Decisão da Macieira 106
11. O Encontro com a Verdade 112
12. O Fim do Jardim 123
13. Na Estalagem 131
14. O Plano 140
15. O Sonho e o Trem-de-Nuvem 147
16. A Viagem a Nelayahs 155
17. Yu-chen 162
18. A Fortaleza de Fogo 167
19. A Prisioneira 175
20. O Governante da Fortaleza 182
21. O Futuro e o Selo 191
22. O Dragão Emplumado 199
23. A Fuga 206
24. Liberdade 212
25. A Dobra Temporal 219
26. A Demoção do Concile 226

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Capítulo Um
Atrás da Porta

– Hayrim! – Andrew estava aterrorizado. A porta havia se aberto, permitindo-lhe ver a


garota agachada. Percebeu instantaneamente que ela ouvira mais do que deveria.
– Então é isso! Vocês nunca gostaram de mim mesmo, não é!? – esbravejou a garota de
longos cabelos louros e olhos tão verdes que pareciam transparecer sua alma inocente e pura.
– Querida, você entendeu mal cada palavra que escutou – Skuld estava ainda mais alar-
mada que Andrew. Seus olhos expressavam uma efusão de temor e espanto.
– Não, eu entendi tudo perfeitamente. Vocês nunca tiveram a intenção de–
– Você – Andrew gaguejou e caiu mudo na poltrona com os olhos vazios e a face pálida
de medo.
– Confiei em você! Pensei que você não me via como a Filha do Futuro. Você é igual a e-
les. Você é como todo mundo. Sempre esperando que eu seja um prodígio (ou o maior fracas-
so). Esperando que eu herde o Oráculo, não estava?
Ela dirigiu um olhar perfurante a Andrew, mas este nem pareceu notar a ferocidade da
garota. Mantinha-se vazio, distante e amedrontado. Ela nem percebeu isso e voltou sua ira
para sua mãe da maneira mais vil que conseguiu.
– E você, mãe! Eu tinha a certeza mais absoluta que você me veria como sua filha, não a
do Futuro. Mas, não...Você é só – Hayrim chorava. Era um choro doloroso que lhe apertava o
coração com suas garras afiadas e impiedosas. Um choro que tornava o mundo lento e pesado,
que deixava o ar insuportavelmente difícil de respirar. Era um choro tão impiedoso, que Ha-
yrim voltou-se para Skuld e desferiu um golpe terrível:
– Você não me ama, mãe?
Mãe foi dito de uma maneira tão cruel que Skuld começou a chorar – suas lágrimas
grandes brilhantes arremessados contra o piso de mármore violentamente. Foi a palavra que
a feriu da maneira mais mortal em toda a sua vida. O coração de Skuld era estrangulado por
uma mão invisível que sufocava qualquer tentativa de aplacar a dor.
– M– as palavras se perderam no ar antes de serem proferidas – Nós pensamos que seria
melhor –
–Melhor!? Melhor? Para quem? Para vocês? Porque isso não vai fazer bem algum. Me
mandar embora para essa ... prisão só vai arruinar minha vida. Só que isso não importa para
vocês, não é?
Seria muito fácil confundir Hayrim e um pitbull raivoso. Sua expressão de dor fora su-
plantada pela raiva, ainda mais enérgica do que antes.
Skuld esboçou uma reação, mas foi novamente interrompida por Hayrim:
– Não quero ouvir suas desculpas. Estou cansada delas. Estou cansada de ser a menini-
nha bobinha.
– Já chega! – vociferou o até então mudo Andrew – Chega dessa insensatez, Hayrim! Es-
tou farto disso!
Ela ficou mais em estado de choque do que normalmente seria plausível; pensava em
uma maneira de revidar, mas Andrew foi mais rápido. Veio o cheque-mate:
– Direto pro seu quarto! Já passou da hora de você dormir – disse ele apontando o cor-
redor e olhando-a fria e duramente.
Hayrim nunca havia visto Andrew tão furioso e – ainda nervosa e contrariada com uma
reconhecida derrota humilhante – subiu as escadas no final do corredor. Não disse uma pala-
vra, mas dentro de si sentia o rugir de uma fera. Teve vontade de voltar e agredir fisicamente
Andrew, mas não teria muita utilidade, nem tampouco era provável que ela conseguisse feri-
lo de uma maneira satisfatória.

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Em sua cabeça ainda lampejavam momentos de felicidade que tivera com Andrew e sua
mãe no passado. Estava alterando suas próprias memórias. Via agora olhares conspiratórios
na mesa de jantar, no piquenique dos jardins ornamentais, na noite anterior quando sua mãe
leu a Lenda de Nollian para ela – o livro de capa verde e grossa parecia querer devorá-la para
mantê-la prisioneira dentro de suas grades.
Hayrim procurava se lembrar do que era Cardie Munum, mas não sabia. Achava que era
uma prisão. Pelo jeito que eles falavam dela devia ser uma prisão. Mas e se não fosse uma pri-
são? Se fosse algo pior? Não sabia, mas estava segura agora, em seu quarto. Afinal, ele era dela
e lá ninguém poderia roubar-lhe o direito de escolher seu próprio caminho.

A sala havia mergulhado em um silêncio mordaz. Foram longos e excruciantes segundos


– especialmente para Skuld, que mergulhara na parte mais remota e sombria das profundezas
de mente tão atormentada pelas visões dos últimos meses.
A princípio, Andrew falou sozinho. Ou talvez não estivesse falando, a escuridão solitária
que envolvia os pensamentos de Skuld sufocava cada som vindo do exterior. Sussurrava em
palavras antigas, cujo significado poucos compreendiam, o destino que aguardava Hayrim e o
Oráculo e por fim o destino reservado a ela, ao resto do mundo.
Inathsie um’har thelamir ingoren verthik untinaf vershevk.
A voz parava de tempos em tempos e sua voz rouca ria uma gargalhada zombeteira de
hiena.
Asgarsuf enthilar vrinar rorsiek guilonai vershevk.
Inde laf sui merc frisac norvasiek.
Kirshik cielagron fon raftaten.
Larvec bishnak truiasec ursk varastak.
A voz soltou um grunhido perfurante que poderia ser tomado por uma risada de puro
mal.
Você escolheu escrever uma Profecia, agora não negue o preço por ela, mas saiba que pa-
gá-lo não significa que ela se cumprirá.
A risada maléfica de hiena sufocou as palavras seguintes e a tentativa de Skuld de es-
trangular a voz (ou vozes – não parecia ser uma só pessoa, mas várias pessoas de voz arrasta-
da, rouca e seca) tão sombria.
Querida, você vai pagar por desafiar a unidade das sombras. Vou devastar seus tesouros
mais preciosos. Não vai sobrar pó para contar a história.
A escuridão sussurrou uma palavra que não foi muito clara.
... para exaltar a minha glória. O mundo se partirá em dois antes que possa destruir as
sombras.
A sombra envolvia cada vez mais os pensamentos de Skuld. Ela estava sendo engolida
pela escuridão pouco a pouco, a tristeza por causa da discussão com sua filha havia tirado-lhe
as forças para enxergar algum horizonte para além das sombras.
Um pequeno risco de luz cortou a escuridão e uma mão agarrou e puxou Skuld. Ela esta-
va de volta à sala.
– Skuld, você está bem?
Era Andrew. A escuridão havia se dissipado definitivamente. A lareira crepitava em esta-
lados lentos e vigorosos.
– Eu...
– O que aconteceu? Por um instante achei que não poderia encontrá-la mais. Você estava
escondida na parte mais sombria do labirinto de sua mente. Não queria deixar que eu me a-
proximasse, havia ... alguma coisa. Uma coisa como nada que eu já tivesse visto antes. Algo
obscuro, muito poderoso. O que estava acontecendo?

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– Eu ... tive uma visão. Uma visão muito sombria. Uma visão de um futuro não muito dis-
tante. Um futuro que eu tentei durante todos esses anos evitar, mas que tive certeza de que
virá, apesar de ter duvidado de quase todas as últimas visões que tive.
– Tem alguma coisa que você está escondendo, mas eu ficarei sabendo depois, quando
estiver pronta para me contar, como sempre foi.
Ela aquiesceu levemente.
– O que você acha que Hayrim ouviu? – perguntou Andrew com um olhar preocupado
mais com a suposta visão de Skuld do que com a garota de fato.
– Tudo vai acontecer como deve acontecer. O Futuro se alinhou conosco muitos decênios
antes de sermos esboçados para a existência. Não se preocupe com ela. Vai ficar bem.
– E quanto a nós? – perguntou ele, hesitante.
– Quanto a nós, preocupemo-nos com Nix.
Ela se levantou e saiu da sala, o fogo da lareira incandescendo os longos fios loiros de
seu cabelo.

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Capítulo Dois
A Joia do Meio-Norte

Hayrim era do tipo de garota cujas emoções facilmente transpareciam, em especial no


que se referia a chorar ou comemorar algo de forma bem indiscreta. Subiu para seu quarto
muito descontente, chorando copiosamente, e se jogou sobre a cama. Consumiu longos mo-
mentos encharcando-a com lágrimas amargas de lembranças alteradas.
Por que estavam fazendo aquilo com ela? Por que ela nunca havia percebido as inten-
ções reais deles? Por que falavam dela daquele jeito? Ela não era um brinquedo quebrado que
podia se remetido ao fabricante. Não era certo o que eles intencionavam fazer. Não era justo.
Ela não poderia deixar que fizessem aquilo com ela. Não poderia ir para aquele lugar. O
que seria da vida dela? Como ela podia viver sem sua melhor amiga? Sem tudo em que confia-
ra até agora?
O chão firme sobre o qual construíra todas as suas esperanças vertera-se em um pânta-
no lodoso que dragava todos os seus sonhos. Quanto mais tentava se livrar dele, mais ele a
puxava para baixo. Estava fadada a se afogar nele. Ou pior, ser aprisionada nele para sempre.
Não, não poderia deixar isso acontecer. Mas era uma idéia tola a que tivera. Deveria exis-
tir outra maneira.

Foram necessárias muitas lágrimas para que ela se rendesse a única solução imediata
que encontrara para o problema. Desistiu de buscar por outra resposta, fugir era sua única
escolha. Não poderia esperar até amanhã. Tinha que ser naquela noite, naquele instante.
Ela correu até a janela e com um sussurro quase mudo chamou:
– Saysa.
O choro de Hayrim havia parado e na escuridão da noite, nenhum som era percebido. Al-
go grande, mas indistinguível, moveu-se entre as voluptuosas nuvens do céu, apenas seus con-
tornos fracamente iluminados eram vistos.
A grande esfera de mármore no véu negro dos céus não era capaz de quebrar a escuri-
dão triste que se abatera sobre o Oráculo naquela noite. A mesma escuridão parecia ter emu-
decido cada criatura viva em um raio de quilômetros. Não era uma escuridão ordinária. Era,
apesar de Hayrim desconhecer isso, muito semelhante à escuridão que envolvia a mente de
Skuld alguns minutos antes. Estava viva e parecia ser ciente de seus atos e ter vontade pró-
pria. Poderia falar, era só pedir.
Hayrim se sentia atraída por ela de uma forma incomum, quase involuntária. Suas pál-
pebras pesavam, precisava tocar a escuridão. Ela estava chamando-a. Quase não conseguia
ouvir a voz da sombra absoluta que encobria todos os terrenos do Oráculo. Precisava alcançar
a voz, mesmo que ela estivesse oculta nas sombras.
Talvez se subisse no peitoril poderia ouvir melhor o que a voz dizia. Mas a voz, que já era
muito silenciosa, pareceu falar ainda mais baixo. Tinha que se inclinar mais para ouvir. Só um
pouco mais. Ainda mais um pouco. Quase conseguia ouvir a voz com clareza, mas ela se afas-
tou. Inclinar-se-ia mais.
Seus pés escorregaram e ela se projetou para além da janela, caindo em queda livre com
uma pequena sacola, a qual continha par de roupas, amarrada às costas. Seus cabelos ficavam
para trás, longas madeixas tentando resistir à queda.
Eram trinta metros da janela da torre, em cujo topo ficava o quarto de Hayrim, até o pá-
tio de trás do Oráculo. O chão se aproximava cada vez mais e a voz tornou-se finalmente dis-
tinguível do silêncio que a rodeava.
Venha criança, venha para o seu destino. Finalmente você vai deixar de interferir no meu
destino.
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A voz começou doce e, em seguida, verteu-se na mesma que havia atormentado Skuld
momentos antes. Por fim soltou uma gargalhada que estremeceria os ossos de qualquer pes-
soa. Mas Hayrim mal notou a voz, o encantamento tirara-lhe a consciência do que acontecia
naquele instante. Estava alheia a tudo, até mesmo à queda.
– Hay! – um vulto surgiu da escuridão e agarrou Hayrim no ar. Era uma espécie de cobra
alada, com patas curtas e penas cobrindo-lhe todo o corpo. Tinha também uma longa cauda
composta de cinco penas de mais de um metro cada. Na escuridão da noite não era muito fácil
perceber, mas as penas tinham uma suave mudança de cor: a base era quase branca e adquiria
uma coloração cada vez mais azul-acinzentada conforme se aproximava da extremidade.
Hayrim caiu montada sobre o animal, que pousou suavemente no pátio, na única área
razoavelmente iluminada a céu aberto em quilômetros. Era uma área semelhante a uma praça,
com uma fonte muito delicada no centro. A iluminação de pavirotes azulava tudo o que tocava,
em especial a água.
– Temos que fugir, Saysa. Me leve para longe daqui, por favor.
– Mas o que está acontecendo, Hay? Por que esse desespero?
– Eles, – ela apontou o Oráculo – os traidores. Querem que eu seja infeliz para o resto da
minha vida. Sempre mentiram para mim, Saysa. Me enganaram o tempo todo. Por favor, eu
imploro, me tire daqui.
– Querida, você sabe que não devo levá-la para além das terras do Oráculo. Você deve fi-
car aqui, com a sua mãe. Não deve sair daqui.
– Era o que eu também achava.
O coração de Hayrim era afligido por um desgosto que deturpava cada coisa com eficácia
estupenda, dando-lhe a sensação de ser traída a cada instante por cada pessoa. Sentia-se cada
vez mais sozinha, abandonada. Até Saysa estava nesse esquema? Estava com eles, tramando
para mantê-la lá te que chegasse o dia em que seria levada para a prisão.
– Não! – Saysa sentiu-se ao mesmo tempo compadecida e ofendida pelo fato de aquela
ideia passar pela cabeça de Hayrim. Afinal de contas, ela não fazia ideia de que se tratava a tal
traição a que Hayrim se referia sucessivamente.
– Você vai me ajudar então, como prova de que você não está com eles?
Aquela pergunta punha Saysa diante de um dilema terrível: se não levasse Hayrim, ela
nunca mais confiaria nela, perdendo uma grande amiga; se levasse, o problema viria de cima,
Skuld e Andrew, que apesar de sempre bondosos e complacentes, nuca perdoavam uma trai-
ção de qualquer tipo.
O olhar penetrante e verde Hayrim fez com que ela pendesse para ajudar a menina para
onde quer que fosse o destino dessa fuga. Depois de muito hesitar, ela disse de uma forma
impressionantemente resoluta que ajudaria Hayrim, pois acreditava que seria melhor ficar de
olho nela a deixar que fosse só. Perguntou então qual seria o destino da fugitiva.
Hayrim percebeu nesse momento que o plano da fuga era por demasiado imediatista e
não havia sido cuidadosamente planejado além do ponto em que havia chegado. Sabia apenas
que queria sair do Oráculo. Além do que, essa era a parte de Saysa no plano.
– Plano? Parte? Como assim?
A entonação estúpida das perguntas sobressaltadas de Saysa fez Hayrim esboçar um
sorriso, o qual fez com que ela dissesse com firmeza que queria ir ao lugar mais bonito naque-
la direção, apontando ao acaso o horizonte. Montou próxima à cabeça de Saysa e o cielagron
alçou voo.

Elas estavam escondidas em uma caverna a poucos quilômetros das Planícies de Aethal.
Chovia forte naquela noite e, na escuridão completa do céu, veios luminosos rasgavam as nu-
vens cruzando toda a extensão visível do céu.

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Saysa havia providenciado uma fogueira bem rústica ao redor da qual as duas se deita-
ram intencionando dormir. Hayrim estava toda encolhida, com a cabeça sobre a pequena mo-
chila que carregava.
Também chovia no Oráculo, alguém estava olhando o espelho de fundo prata-azulado de
Skuld. Era uma mulher de cabelos longos como seu vestido de seda. Ambos eram tão escuros que
pareciam se mesclar e a divisão entre eles se perdia no ar. A cor de ônix dos cabelos e vestes da
mulher contrastavam violentamente com a pele pálida do braço direito.
Hayrim não conseguia ver o rosto dela, estava de costas, inclinada na direção do espelho.
Ela parecia observar atentamente algo no espelho posicionado sobre a mesa. Tinha certeza de
que conhecia a dama de vestes negras, apesar de nunca tê-la visto.
Não havia mais ninguém na sala. Hayrim não tinha coragem de perguntar à mulher o que
fazia ali. A mulher parecia alheia à presença da garota.
Andrew entrou na sala pela porta lateral e sussurrou algo ao ouvido da mulher. Hayrim
não conseguiu escutar uma palavra que fosse. Viu apenas a mulher assentir com a cabeça e pa-
rar como se sentisse que algo estava errado.
Ao lado da fogueira, Hayrim estava irrequieta. Os olhos fechados não encobriam o des-
conforto que transbordava da face da garota.
Hayrim ouviu uma risada dissimulada e silenciosa vinda da mulher, que indicou a Andrew
a porta de onde este havia vindo.
Teve vontade de avançar mais alguns passos, mas deteve-se quando ouviu um vaso que-
brar no salão de entrada. A porta grossa de madeira branca estava atrás de Hayrim. Sabia que
estava fechada, mas sentia que era perigoso ficar ali.
A mulher riu outra vez e Hayrim teve a impressão de que as sombras se moveram.
Hayrim, saia daqui, gritou uma mulher aflita, mas que Hayrim desconhecia.
A mulher virou-se com uma adaga prateada na mão e intencionava atingir Hayrim, quan-
do esta explodiu em flocos de luz.
O grito de Hayrim ao acordar foi sincronizado com um raio extraordinariamente violen-
to que rasgou o céu próximo e caiu nas proximidades. Saysa acordou de sobressalto, Hayrim
pingava suor.
– O que aconteceu, Hay? – Saysa perguntou um pouco zonza.
– Eu ... vi uma mulher ... e ela falou com Andrew e... – as ideias difusas de Hayrim não elu-
cidaram muito, talvez até tornaram tudo mais confuso para Saysa, que não entendia muito
sobre pesadelos. – Eu não sei, Saysa. Foi tão real. Tão assustador. Ela queria me acertar com
aquela adaga.
– Que adaga? Não tem ninguém aqui, criança. Acalme-se agora.
Mas Saysa não estava certa disso. Desde mais cedo, naquela noite desconfiava da caver-
na que adentrava a montanha muito mais do que elas haviam avançado. Sabia que existia algo
nas profundezas da caverna, por isso ficaram em um lugar onde podiam ver bem o mais fundo
que seus olhos alcançavam e também se proteger da chuva, sem se afastar da entrada. Os
maiores temores de Saysa no momento se realizaram e ela ouviu algo ou alguém se movendo
nas profundezas da toca.
Só agora ela havia percebido o quanto o formato era familiar: toupeiras-de-casco-córneo
faziam buracos exatamente com aquela forma oval com sulcos profundos no topo. Tinham que
sair dali naquele instante, pois essa espécie peculiar de toupeira era, além de sentimental, ex-
tremamente protecionista com seu território.
– Mas agora, Saysa? No meio dessa chuva?
– Você não vai querer ficar aqui, Hay. A mulher do seu sonho ruim não chega nem perto
dessa criatura quando ela está nervosa. E eu acho que ela está bem nervosa agora. Sobe logo.
O grunhido raivoso da toupeira se aproximava e as passadas pesadas tornavam-se cada
vez mais violentas e audíveis.
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Hayrim terminava de montar em Saysa quando o focinho da criatura gigantesca foi ilu-
minado pela luz da fogueira. Era enorme, o focinho era, talvez, maior que a própria Hayrim. As
garras da pata que surgiu em seguida poderiam fatiar uma rocha ao meio.
A toupeira emitiu outro grunhido, desta vez, mais irado que antes, e avançava rumo às
duas. Saysa agitou suas asas e a criatura gigantesca já se aproximava delas, pronta para atacar.
A pata direita se ergueu no ar, Saysa voou e por poucos centímetros as poderosas garras não
atingiram Saysa e Hayrim.
Elas voaram para fora da caverna, penetrando na escuridão molhada da noite.
Durante o voo, a visão de Saysa era tremendamente prejudicada pela chuva e, eventual-
mente, um relâmpago rasgando o céu a cegaria por alguns segundos. O barulho da chuva cain-
do e as deformidades do relevo e vegetação naquela região só reforçavam sua dificuldade de
orientação. Estava voando aleatoriamente.
Hayrim desconhecia esse fato, estava mais concentrada em quão fria estava a chuva ou
ainda na toupeira, que agora parecia mais engraçada do que assustadora, e vez ou outra, a
visão do Oráculo lampejava em sua cabeça, cada vez mais diluída e indistinguível. Por mais
que se esforçasse para lembrar com perfeição do que vira, cada lembrança parecia menos com
a realidade e mais com um quadro abstracionista.
Algo tornava a viagem mais difícil ainda para Saysa. Procurava um local onde pudessem
se abrigar, mas não conseguia vez nenhum. Voava baixo para não atrair um raio e quanto mais
se concentrava nas eventuais árvores pelo caminho, mais difusa se tornava sua visão. Apurou
os olhos e as coisas pareceram piorar, pois além da visão turva sentia agora uma vertigem
incomum.
Estava prestes a cair. Procurou um lugar mais apropriado para pousar, mas seus olhos
não colaboravam. Uma mão de madeira surgiu quando o céu relampejou e, depois, sentiu uma
forte dor na cabeça e tudo escureceu, tudo sumiu por completo.

O galho da árvore em que Saysa bateu a cabeça deixou uma marca que só no dia seguinte
seria vista. A queda em si não foi muito preocupante, estavam a pouco mais de um metro do
chão e as folhas caídas da árvore caduca amorteceram qualquer impacto mais sério.
Não chovia naquela parte da província. Era a única região onde toda a chuva havia para-
do, apesar de as nuvens tornarem o céu mais ameaçador ali do que em qualquer outro lugar.

Despertaram com Vidempol brilhando mais do que o tradicional. Saysa ainda estava
meio zonza e Hayrim estava por entender o que havia acontecido.
Saysa não teve coragem de admitir o acidente e ficou muito reticente durante a manhã,
período em que elas decidiram descansar ali mesmo, nas Planícies de Aethal. Comeram algu-
mas frutas que encontraram em um bosque próximo.
Quando por fim decidiram seguir em frente, Saysa descobriu que a dor que sentia em
sua asa direita não era passageira, havia um hematoma enorme ali. Ao agitar as asas, Saysa
caiu no chão se contorcendo de dor. Era excruciante. Hayrim disse-lhe que ficasse calma, pois
interromperiam a viagem e seguiriam para a cidade mais próxima, onde encontrariam meios
para cuidar da lesão.

As duas caminharam através das verdejantes planícies, em direção à Floresta de Aea-


thoe1. A vegetação da floresta era muito vistosa e tinha características muito próprias, como a

1
O mais correto seria denominá-la de bosque, pois não restavam muito mais que metros quadrados da
vegetação nativa. Isso só mudou realmente um ano depois do 28º senso unificado do Conselho, quando
foram redefinidos os padrões gerais de nomenclatura. Esse acordo, de 1797, foi posterior ao tempo de
que se trata aqui.
10
predominância de araucárias gigantescas e de um terreno plano. Por essas razões, transpô-la
não foi nenhum grande desafio, nem tampouco demorado. Estava claro, pois muita luz cruza-
va as copas das árvores.

O choque quando se saía da floresta era tremendo. A última árvore, talvez a maior de to-
das, ficava exatamente no meio de uma rua2.

Vale, contudo ressaltar que já nos anos de 1750, essas mudanças eram discutidas, assim como a
pertinência do reflorestamento da região. Quando em Sarsanel, Hayrim veria um grupo de homens
que discutia esse assunto acaloradamente. Tratava-se do mais influente especialista no assunto, o Dr.
Hathor, tentando convencer os membros da Secretaria de Planejamento Urbano, Rural e do Manejo
de Recursos da necessidade de se tomar uma atitude. A única atitude tomada foi renomear o lugar.
Aqui se mantém a nomenclatura da época.

2
A história dessa árvore é cheia de mitos e foi sendo alterada conforme a ideologia de quem a contava.
Mas a versão mais provável é a que envolve um rico pouco generoso e um falido.
O falido fora um homem rico e extravagante, que adorava adquirir residências exóticas, dentre
elas a árvore, sobre a qual pretendia construir uma mansão de estilo élfico. Mas o jogo e as dançarinas,
com os quais convivia quase que diariamente, levaram tudo o que tinha e mais um pouco (uma soma
suficiente para garantir uma vida boa a toda uma geração da província – estima-se que só uma mulher
tenha carregado mais de dois milhões de rastas).
Devendo tanto que não tinha o que comer, começou a se desfazer das posses que ainda tinha.
Vendeu as duas mansões de veraneio e se salvou de ir para cadeia. Conseguiu um emprego de limpador
de chaminés que só serviu para pagar os juros da multa sobre a dívida que nutria com o único banco
que restara na cidade após sua falência (este banco comprara os outros dois que existiam antes, pois
eles eram de posse do falido).
O dono do outro banco não era um fã do falido, além de ser extremamente avaro. Em sua ânsia
de ser melhor do que o rival, comprou tudo que o falido possuía, até mesmo a escritura da árvore.
O banqueiro rico e avarento, de nome Bentham Wilkshire, nunca vendera uma posse sua que
fosse e só emprestava dinheiro após a assinatura de um contrato de posse vitalícia – o banco podia to-
mar tudo do devedor (até a liberdade) como pagamento por uma prestação atrasada em mais de um
mês.
O senhor Wilkshire não era apegado à árvore, mas ao que ela lhe custara – duzentas rastas.
Quando a administração da cidade decidiu que por ali passaria uma rua e que a árvore deveria ser der-
rubada, Wilkshire entrou com uma ação contra a Secretaria por danos materiais e desapropriação in-
devida, além de requerer uma indenização por isso, pedia também a soma de duzentas mil rastas como
pagamento pelos custos do processo.
Wilkshire venceu e ganhou além dos valores que pedia no total – mais de meio milhão de rastas
– uma mesada generosa do governo de doze mil rastas mensais, em troca de nenhum processo posteri-
or. Ficou determinado também que a árvore deveria ficar de pé. Devido a uma falha na lei, quando
Wilkshire morreu, todos os seus bens foram leiloados, exceto a árvore, que não era de ninguém, mas
não podia ser derrubada ou vendida pelo governo porque era propriedade particular.
11
A cidade, vertical, majestosa e esfuórica, encantou Hayrim. Sarsanel era realmente gran-
diosa. Tanto vidro nas construções que, quando iluminadas pelo crepúsculo elas pareciam
resplandecer e brilhar mais que o próprio astro-rei, mas sem ser uma visão cansativa para os
olhos. Era apenas maravilhosa. Tinha vida a cidade.
O mesmo não poderia ser dito do povo. A população de Sarsanel, numerosa e uniforme,
seguia pelas ruas sempre com a mesma indiferença no rosto. Sempre muito calados e muito
distantes, ou pelo menos era o que Hayrim achava.
Seguindo os conselhos prévios de Saysa, ela não falou com ninguém. Estava muda que só
vendo pra se acreditar. Mas sua cabeça, por outro lado, fervilhava de observações sobre a ci-
dade. Ela nunca havia visto tantos arranha-céus juntos. Para ser sincero, creio que ela nunca
tenha visto um arranha-céu de verdade que seja. O mais próximo disso havia sido o próprio
Oráculo, que apesar de suntuoso e enorme, não se comparava àqueles monstros belíssimos
que se erguiam por toda parte.
As ruas eram pavimentadas com um material claro, de um tom entre o amarelo e o cinza.
As construções se mesclavam em um emaranhado tão difuso de tons e curvas, que era impos-
sível determinar onde começava uma e terminava outra. Mas era apesar de quase psicodélica,
extremamente harmoniosa, fruto do planejamento do governo central. Era esse mesmo plane-
jamento que garantia o ar puro da cidade.
As pessoas eram, para os padrões ocidentais, absolutamente excêntricas, apesar de apá-
ticas. Quem quer que fosse, trajava uma espécie de casaco firme, com mangas longas e que
descia até a altura dos joelhos. Quase tão rígido quanto metal, o casaco se alargava da cintura
para baixo e era aberto na frente. Além do casaco, era quase que absoluta a presença de calças
leves e retas e de uma espécie de solidéu mais elaborado. O casaco e o solidéu, que pareciam
ser do mesmo material, eram sempre escuros, quase pretos. No decorrer de alguns instantes,
Hayrim observou um padrão nas vestimentas: muitas jovens usavam azul-petróleo; alguns
poucos homens, vermelho; muitos deles, verde e todos os outros usavam aquele preto opaco e
muito triste.
Apesar disso, Hayrim ainda não se conformava com o olhar vazio de todos por quem
passavam, exceto pelos homens de vermelho e por algumas mulheres mais velhas que tinham
um olhar frio. Era um olhar firme. Amargurado? Talvez. Mas era sem sombra de dúvida dife-
rente dos demais. Nem por isso era melhor, talvez até mais angustiante fosse. Essas pessoas
de olhar firme e rosto impassível fixavam as duas quando passavam, sem, contudo mover
muito mais que os olhos.
Elas haviam andado por algumas quadras quando chegaram a uma das muitas praças da
cidade. Ela era, como todas as outras, simétrica e, aos olhos de Hayrim, muito bonita. Era re-
pleta de canteiros com tulipas violeta, que contrastavam violentamente com a alvura das pe-
dras usadas em sua construção.
Um grupo de anciões discutia de uma maneira amigável e acalorada junto à fonte no cen-
tro da praça. Hayrim ficou imaginando sobre o que falavam, mas não teve nem a coragem nem
a oportunidade de se aproximar, pois uma senhora a impediu. Ela tinha feições rústicas e im-
passíveis. Vestida de preto, deixava transparecer a sua alma amargurada e seu coração de pe-
dra.
Sua voz ríspida e seca arranhou o ar em uma pergunta um tanto incisiva e tão firme
quanto sua face:
– Você não é daqui. É, criança?

No fim a árvore se tornou parte da vida cotidiana da cidade e diversos movimentos de agressão
contra e de proteção da árvore surgiram. Ela só saiu do meio da rua quando morreu e tombou, mais de
trezentos anos após a morte do banqueiro.
12
– Não. Eu estava procurando uma pessoa que minha amiga conhece. É que Saysa machu-
cou a asa.
Hayrim indicou a asa da amiga na maior inocência, imaginava que, talvez, a mulher não
fosse rude propositalmente, que aquele fosse o jeito natural dela.
– E qual o problema dessa sua amiga?
A voz da mulher havia adquirido uma entonação de extrema rispidez, flertando com um
sarcasmo maldoso. Causa, por isso, um desconforto tremendo em Hayrim, que começava a
duvidar das intenções reais da mulher. Tudo reforçado pelo semblante pálido e sólido e pelas
vestes negras.
Hayrim lhe perguntou sobre a Estalagem de Mme. Casássono, o lugar de que Saysa lhe
falara. Era na estalagem que encontrariam ajuda para a asa. Narrou tudo o que pode a respeito
de suas intenções sendo o mais breve possível. Queria sair dali e acabar aquela conversa. O
olhar da mulher ficava cada vez mais desagradável.
Conforme ouviu aquilo, a mulher, não fosse mal-humorada o bastante, adquiriu ares de
reprovação e até mesmo espanto. Pensava consigo mesma: Como é possível? A garota conside-
ra a besta como um amigo... Essa menina não é normal.
– Sabe onde posso encontrar essa estalagem?
A mulher preparava-se para responder do modo mais mal-educado que podia conceber,
mas algo que viu para além da praça fez com que respondesse polidamente que a garota deve-
ria seguir o poente até o limite da cidade. Era para lá que iam os que procuravam Casássono.
Ela não fez questão de demonstrar qualquer afeição pela dona da estalagem, sublinhando o
nome com certo asco.

13
Capítulo Três
Os Estratagemas das Sombras

Era uma noite de escuridão opressiva. Locusnuy estava, como de praxe, negra como ônix
e tremendamente erma. Um lugar em especial estava ainda mais silencioso. Tratava-se de um
dos maiores cômodos do Palácio, a Sala do Trono. Dela emanava um medo, cuja origem era um
homem encapuzado, que se ajoelhava trêmulo, com a cabeça baixa, perante a rainha.
A rainha era, ao mesmo tempo, um ser que inspirava o medo mais profundo nos cora-
ções humanos e hipnotizar os mesmos ruma a uma armadilha de amor irreal. Era linda e me-
donha. Seus longos e lisos cabelos brilhantes tinham o mesmo tom negro dos olhos e lábios.
As longas mechas se perdiam em meio à roupa de seda. Seus olhos eram expressivos e, ainda
assim, capazes de ocultar qualquer segredo e seus lábios carnudos.
Ela estava deitada sobre o trono, com as costas apoiadas em um dos braços do jade ne-
gro de que era feito o mesmo e as pernas sobre o outro. Apesar da postura um tanto quanto
infantil e da face jovem – não aparentava mais do que vinte anos –, inspirava autoridade de
uma forma nata e incomum.
O chefe do gabinete de espionagem, Ilbem Meokiav, era daquelas pessoas que não inspi-
rava um sentimento amistoso. Tinha também uma autoridade nata, mas que nem poderia ser
comparada à da rainha.
A diferença era tamanha que Meokiav, por si só capaz de amedrontar a maioria dos mor-
tais, tremeria de uma forma incontrolável não fossem suas habilidades de disfarce. Estas lhe
permitiam “internalizar emoções” 3.
A rainha parecia ignorar a presença de Meokiav. Ele, por sua vez, esperava que ela falas-
se primeiro. Temia os terríveis relatos de audaciosos que ousaram se adiantar e foram traga-
dos pelas sombras, perderam completamente a consciência da realidade e se comportavam
como avestruzes; ou ainda, os inúmeros que sofreram castigos piores só descritos em A Ver-
dade das Sombras, cujo autor desapareceu poucas semanas após a publicação.
Eram, todavia, descrições exageradas pelas bocas populares. Pelo menos, ele preferia a-
creditar que eram, era mais confortável assim. Por alguma razão, sentiu-se tentado a falar,
mas lembrou-se do irmão de Alegodo, seu colega no gabinete.
Meokiav ia até a sala do trono e viu pela porta entreaberta, o irmão de Alegodo, recém-
promovido a general, conversando com a rainha. Ela bebia vinho das catacumbas de Pmoraiv,
feito com uvas endêmicas da região. Não parecia de todo interessada no que ele dizia.
Foi quando ele, hesitante, mencionou algo sobre uma das colônias do Sul. Ela verteu-se
em cólera. Parecia querer engolir todo o ódio do mundo para cuspi-lo em chamas sobre o ge-
neral.
3
De acordo com Eleanor Ridge, estudiosa aficionada do assunto, conduz-se o “movimento indesejado
a partes por demais perigosas do corpo”, desde o coração e os pulmões, até “ambos os intestinos; o que
costuma resultar em uma miríade de efeitos adversos, que variam desde uma simples flatulência – de-
veras incômoda –, até a fibrilação cardíaca e o rompimento de tecidos [...] constituintes dos pulmões;
podendo culminar [...] em mortes mais agonizantes e desagradáveis como o rompimento de vasos san-
guíneos por todo o corpo ou o contato do ácido gástrico com os órgãos internos (corrosão interna do
indivíduo”. Essas reações são, “em geral, dependentes do próprio indivíduo”. (Ridge, Eleanor – A ori-
gem, o destino e as consequências do complexo compêndio de emoções humanas: Um Tratado sobre a unicidade
corpo-espírito e a necessidade do autocontrole, Ed. Adamicilis, 1749)
Apesar de tudo, o processo permanece um mistério de conhecimento exclusivo dos melhores
agentes de algumas poucas instituições de espionagem.
14
Foram alguns segundos aterrorizantes, mas ela subitamente se controlou. Disse ao gene-
ral que fosse para casa, cuidar de sua família. O general alegrou-se e foi direto para casa, nem
notou Meokiav atrás da porta.
Quando, mais tarde, Meokiav foi visitar o general, encontrou a casa vazia. Sem nenhum
sinal de vida existindo ali. Perguntou aos vizinhos por eles e só obteve vagas perguntas a res-
peito de quem era essa pessoa. Não o conheciam. Nem mesmo a fofoqueira que morava na
casa em frente. Eles simplesmente não pareciam ter existido.
No dia seguinte, um dos departamentos de administração do distrito foi transferido para
o imóvel. Nunca mais se ouviu falar da família do general. Nem Alegodo se lembrava de ter
tido um irmão. Todavia, dizem que à vezes é possível ouvir gritos vindo das profundezas nas
proximidades da casa.
Nem o próprio Meokiav sabia discernir com precisão o que havia visto de fato e o que
criara naquele instante por causa do medo que lhe envolvia.
– Então, – a voz da rainha perpassou o corpo de Meokiav, provocando-lhe um arrepio na
espinha e ampliando ainda mais seu medo – que me diz você?
– Bem, majestade – ele não tinha absoluta certeza do que e de como dizer. – Observamos
uma mudança no quadro geral do 4° destacamento. Ao contrário do que foi inicialmente pres-
suposto, não será possível interceptar a garota no comboio.
– Ela vai ficar no Oráculo? – ela inquiriu sem tirar sua atenção do cálice do mesmo vinho
que na ocasião do desaparecimento general. Depois mais para si mesma:
– O que é que ela está planejando fazer? Ela deveria...
Ela voltou a atenção para Meokiav, sem, contudo tirar os olhos da cálice:
– Prossiga.
– Ela e o cielagron seguiram para Sarsanel. Estamos preocupados, pois noite passada foi
relatada a presença de membros da guarda visionária.
– Curioso...
–Entretanto, o Oráculo está vulnerável, majestade.
Ela estava contemplando uma ideia assaz maldosa e um brilho sombrio surgiu em seu
rosto enquanto enxergava seus planos no vinho.
– E quanto a nossos agentes?
Ele percebeu do que se tratava e teve medo de responder. Era uma pergunta óbvia. O 4°
destacamento estava quase que inteiramente seguindo as ordens dela, ou seja, seguindo a ga-
rota.
– Quem ainda permanece no Oráculo não levanta a menor luz de suspeita. Nosso agente-
chave continua inconspícuo e acredita termos obtido substancial vantagem com a separação
de mãe e filha. Reitero a crença de que o Oráculo está à mercê de quem chegar primeiro.
Nesse ponto ele parou, achava que havia se excedido. Curvou-se ainda mais, temeroso,
tocando o piso da sala com a testa.
– Compreendo... – ela passava o dedo médio sobre a borda da elaboradíssima taça de
cristal negro.
Depois de alguns instantes de maior contemplação da ideia monstruosa que havia ma-
quinalmente criado em instantes, pousou o cálice sobre o braço do trono e se a andar lenta-
mente em motivos aleatórios pelo negro piso do salão.
O piso não era o único ali a ser mais negro que a noite mais escura, as colunas, as pare-
des e as portas eram feitos da mesma pedra. Tratava-se de um mineral relativamente raro,
que parecia dragar a luz não importando a força desta.
O lugar era marcado por um estilo que se aproximava bastante do gótico e parecia ter
sido esculpido em uma única pedra gigantesca e uniforme. A iluminação, que bruxuleava em
um ritmo descompassado, jogando seus tons violeta-azulados sobre o lugar, consistia de rús-
ticos archotes dispersos pelas colunas.
15
A cada passo estalado da rainha, menos luz parecia haver no ambiente.
– E a menina? Quanto ela já sabe? – o tom de desprezo da voz da rainha se mesclava à
certa dose de preocupação. Não que ela estivesse com medo, era mais como uma vontade de
evitar contratempos.
– Nada, vossa majestade. Além do que, ela ainda é inocente demais.
– É exatamente o que me desagrada.
– Majestade? – ele não entendia o porquê do comentário retórico da rainha.
– Vá! Você já sabe o que fazer. Prepare os homens e avise Téstalus. Ele deve cuidar da
minha irmãzinha querida. – ela sublinhou as últimas palavras com uma ironia sádica.
~*~
Uma mulher encapuzada cruzava uma grande sala de arquitetura greco-romana. Ela se-
guia rumo à sala de Skuld, precisava falar a ela com grande urgência. Era uma questão de vida
ou morte. Apesar de seu tradicional desespero com coisas banais, ela parecia realmente preo-
cupada com algo realmente sério.
Em sua sala, Skuld observava seu espelho de mithril, o qual estava coberto por uma fina
e uniforme película de água. O espelho, posicionado sobre uma mesinha de centro, emitia uma
suave luminescência esverdeada. Skuld apurava, a cada instante, um pouco mais os olhos.
Buscava um detalhe que lhe respondesse a pergunta que catapultou aquela situação.
A imagem projetada no espelho, e aprimorada pela água, era uma visão das florestas
próximas, mais nítida no centro do que nas bordas.
A visão converteu-se em uma efusão de verdes, azuis, castanhos e marfim, que logo se tor-
nou mais nítida e verteu-se na entrada do Oráculo. Alguém estava de pé nas escadarias da en-
trada. Era uma pessoa de capa esvoaçante negra e leve. A enorme porta do Oráculo se abriu,
ninguém dentro. A aura verde do espelho tornou-se alaranjada e gradualmente se aproximava
do vermelho sangue. Alguém se aproximava do perigo mortal.
Mas quem?
Não havia ninguém no Oráculo, exceto o vulto negro.
Quem era ele? Ou ela?
Dele (ou dela), emanava o perigo crescente.
Contra quem? Aonde ia? Uma discussão interferia na nitidez da visão.
Um rosto conhecido surgia lentamente...
A visão desapareceu quando a porta da sala foi aberta e um vulto negro voou sobre
Skuld, derrubando-a.
~*~
Hayrim e Saysa saíram rapidamente da praça e desapareceram na escuridão em uma rua
próxima. Sarsanel havia engolido as duas. Sarsanel, a joia muda que brilhava indiferentemen-
te, alheia ao que acontecia.
– Sarsanel... – suspirou a sombra que observava Hayrim e Saysa despercebida.

16
Capítulo Quatro
Os Caçadores

A estalagem de Mme. Casássono se provou bastante acolhedora, tanto para Saysa, que
estava tremendamente cansada e carecia de um repouso de grande qualidade, e para Hayrim,
que sentia falta de uma estadia menos mutável e mais confortável. Não que ali se pudesse lite-
ralmente descansar. Era uma parte diferente de toda a Sarsanel.
As pessoas que lá iam tendiam a ser um pouco mais barulhentas e talvez por isso o local
fosse mais agradável. Os caçadores de recompensas eram os fregueses mais comuns da taver-
na, a parte mais importante financeiramente do estabelecimento.
Eram pessoas felizes, que falavam alto e riam bem mais alto. Era às vezes impossível
dormir quando a taverna ficava cheia, pouco depois do crepúsculo. Mas, Hayrim não se inco-
modava, gostava de ficar deitada ouvindo as conversas cheias de risadas e as discussões mais
sem sentido possíveis. Não era sempre que ela conseguia discernir muita coisa dos sons que
perpassavam o caminho até seu quarto, mas ela sempre se esforçava.
Não entendia o porquê daquilo. Mme. Casássono era uma mulher extraordinária e dava a
Hayrim muita liberdade, entretanto não permitia que a menina ficasse na taverna depois do
crepúsculo. Ela já até havia assimilado o esquema: quando chegava o primeiro freguês da ta-
verna, ela se retirava discretamente. Nunca soube nem mesmo o que eles bebiam tanto. Quan-
do perguntou à Mme. o que era aquilo, ela lhe respondeu que perguntasse novamente dentro
de uns dez anos.
– Também acho que você é muito nova para isso... – concordou Saysa, que já estava com
um ânimo muito melhor a essa altura, apesar de não conseguir voar ainda.
– Sabe, Saysa, acho que posso me acostumar a viver aqui... – disse Hayrim puxando uma
cadeira para se acomodar displicentemente, com os pés sobre a mesa.
– Eu particularmente acho que você já parece bem acostumada. Nesse caso, pode tratar
de tirar esses pés daí. – disse Mme. Casássono em tom jocoso enquanto secava alguns copos
grandes de vidro.
Todas as três riram.
A Mme. tinha um jeito muito agradável de falar, sua voz um pouco grave, era suave e ma-
cia. E, apesar de seus mais de 50 anos, estava em pleno vigor, não aparentando muito mais do
que 35 ou 40. Sempre usava uma espécie de vestido antigo, com um espartilho bem amarrado,
o que afinava sua cintura e ressaltava o volume dos seios. Sua pele alva e seus cabelos cachea-
dos, que variavam entre o castanho-claro e o loiro, só reforçavam a aparência de força marca-
da pela suavidade, com um toque do que Hayrim viria depois a conhecer por sensualidade.
A sineta no alto da porta da taverna soou e um viajante com uma capa muito surrada
sentou em uma das mesas. Pediu um copo de água, o que parecia bem estranho para a Mme.,
pois fazia muito tempo que ninguém pedia só água.
Quando olhou ao redor, Hayrim percebeu que Saysa havia desaparecido e que também
era isso o que devia fazer. Se esgueirou pelos cantos até passar pela porta atrás do balcão, que
dava acesso à cozinha. Não podia, nem queria subir as escadas, pois o viajante a veria e ela não
ouviria nada do que ele pudesse ter para falar – apesar da cara fatigada dele.
Quando foi colocar o copo sobre a mesa, Mme. Casássono deu um grito de espanto.
– Você!? O que está fazendo aqui?
– Bom dia para você também, Adelaide. Como tem passado?
A voz dele era suave e tinha uma imponência, uma classe, que a voz dos fregueses mais
comuns não tinha. Ele claramente não era um caçador de recompensas, pelo menos não um
normal. Além disso, a trivialidade de seu jeito de falar sugeria que ele era um conhecido de
longa data da Mme. – isso e o espanto dela ao vê-lo.
17
Hayrim puxou a porta da cozinha até que sobrasse apenas uma fresta por onde poderia
ver e ouvir claramente o que acontecia. Depois de uma semana vivendo ali, nunca havia visto
Mme. Casássono ficar nervosa ou assustada com nada. Muito menos tão assustada que parecia
ter visto um fantasma.
– Não posso mais vir vê-la, querida? – a entonação dele, de tão trivial, beirava o satírico.
– Você... e porque está usando essa capa? Não vai estragar seu precioso terno?
– Adelaide, eu não queria que ninguém me seguisse até aqui. Queria vê-la a sós.
Cafajeste, como ousa vir até aqui. Depois de tudo o que fez! Depois de tanto tempo...
Esse pensamento não verteu-se em palavras de puro ódio, mas sim em leveza e classe,
como era típico da Mme. Ela sentou-se à mesa, junto com ele.
Mas quem era ele? Hayrim ainda não conseguira ver o rosto.
– Me ver para que, Augusto? O que quer de verdade? Já não basta ter feito tudo o que
fez?
– Mas eu já lhe disse que nada fiz. Oh, raios! Por que na acredita em mim?
– Porque você me largou aqui sozinha.
– Como você é difícil mulher... Nunca conheci nenhuma mulher mais turrona.
Ele riu, mas sozinho. Mme. Casássono não estava muito à vontade com aquela conversa.
– O que quero de você é um favor; na verdade, dois. Mas essa parte da conversa precisa
ser confidencial. Sem ninguém atrás da porta bisbilhotando.
Hayrim percebeu que aquilo estava se tornando um hábito e se odiou muito por isso.
Mas logo se lembrou que foi também por causa daquele vício recém-adquirido que havia es-
capado de um destino terrível.
Resignada, saiu de detrás da porta e foi para seu quarto, onde provavelmente não conse-
guiria entender nada do que falavam, porque eles não estavam gritando como os fregueses
habituais.
Não muito feliz, ela bateu com força a porta do quarto.
Saysa, que estava enrolada em seu canto, riu caçoando da garota. Era uma entonação de
eu bem que avisei.
Ela continuava rindo baixinho quando Hayrim se deitou, não tão chateada por ter sido
descoberta, mas sim por estar adquirindo o costume de ser uma bisbilhoteira profissional, o
que sempre detestara.
~*~
Augusto olhava a expressão impassível de Adelaide e se divertia muito com aquilo. Que
mulher mais temperamental...
– Que favor, digo favores, você tem em mente? Vamos acabar com isso de uma vez.
– É muito simples, preciso que você–
Ana, a garota muda que vivia na estalagem também, entrou na taverna fazendo a sineta
tocar. Era uma garota pálida, com longos cabelos negros um tanto desgrenhados e, que se fa-
lava, Hayrim nunca havia ouvido.
Ela trazia nas mãos um balde e um esfregão, ia, como sempre acontecia naquela hora da
manhã, limpar a taverna. Apesar da limpeza do lugar naquele dia, Ana começou a esfregar o
chão silenciosamente a partir de um dos cantos do cômodo.
Adelaide ficou reconfortada por poder evitar conversas com Augusto. Elas eram sempre
desagradáveis ao máximo. Ele, todavia, olhava para a Mme. esperando que ela tomasse uma
providência.
Percebendo que ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa para que pudes-
sem prosseguir, disse-lhe, com a mesma a calma e com um sorriso afável no rosto:
– Talvez queira caminhar pelos campos, onde podemos continuar a conversar.
Que criatura hedionda!
Como ele sequer ousava sugerir que fossem caminhar pelos campos da propriedade de-
la? Afinal de contas, ele havia abandonado-a e não tinha direito a nada.
18
Ela o detestava por ser tão simplista com tudo. Porque não admitia logo seu erro e pedia
perdão. Ele o detestava por ser tão calmo e tão complacente. Ele deveria irar-se e então eles
discutiriam. Isso aliviaria a sensação horrível que ele estava a lhe causar.
Se brigassem de verdade e acabassem logo com aquilo, poderiam voltar a ser felizes. Mas
ela não poderia falar com ele de modo algum com a intenção de reatar. Ela tinha que ser supe-
rior. Não precisava dele. Ele a havia deixado para trás, sozinha.
– E então, o que me diz?
– Na verdade, acho uma ótima ideia.
A sineta tocou quando eles saíram.

Hayrim desceu as escadas furiosa. Como Ana havia sido capaz de fazer aquilo? Ela esta-
va, apesar de tudo, conseguindo escutar a conversa e estava prestes a descobrir o que o tal
Augusto queria de Mme. Casássono.
Ana manteve-se em seu trabalho. Esfregando lentamente o chão, para lá e para cá. O o-
lhar triste de sempre, no assoalho. Qualquer um julgaria que ela estivesse alheia a tudo que
acontecia, mas Hayrim sabia que de boba ela não tinha nada. Então porque fizera aquilo?
Silêncio.
Saysa, que descia para a cozinha para tomar sua dose de remédio, disse-lhe que parasse
de importunar a pobre coitada. Ana não havia feito nada de mais. Se algum deveria ser culpa-
do era o homem estranho que havia chegado ali. Ele havia decidido levar Mme. Casássono pa-
ra um lugar onde não pudessem ser ouvidos.
– Além do que, acho que o que quer que seja que ele queira falar com ela não é da sua
conta Hayrim. Você devia se preocupar mais com sua vida e com o que vai fazer dela.
Saysa fechou a porta da cozinha ao entrar.
Hayrim, contudo, não havia desistido. Talvez mais do que você, leitor, ela queria saber
do que eles estavam falando. Resolveu pressionar Ana um pouco mais, ela tinha que ceder.
– Por que você tinha que entrar aqui agora? Ele ia falar o que queria. Por quê?
Ana manteve a concentração no assoalho.
– Por que você fez isso, Ana?
Ana parou e olhou para o nada, prestava atenção em algo além de seus olhos.
– Shhh...
O que? Ana havia falado? Ou pelo menos emitido um som. E, além disso, estava mandan-
do-a calar a boca?
– Quem você acha–
Hayrim havia começado a discutir, seu orgulho estava mortalmente ferido. Mas Ana le-
vou a mão direita à boca da garota, silenciando-a. Lentamente, Ana conduziu Hayrim até a
porta da cozinha.
A porta se fechou quando elas passaram. Saysa olhou aquilo com relativa naturalidade.
Hayrim continuava a ter seus gritos abafados pela mão de Ana, quando a sineta da ta-
verna tocou.
Dois homens parrudos e barbudos entraram. Um deles mancava e tinha a barba em um
tom azulado, o outro carregava uma cicatriz que lhe cortava o rosto e uma barba farta e des-
grenhada negra como a noite. Eles procuraram alguém com quem falar e se aproximaram do
balcão.
Ana surgiu do nada, limpando uma caneca de vidro com um pano alvo como algodão.
O homem com a cicatriz descansou no chão o enorme machado que carregava apoiado
no ombro direito. Devia ter quase dois metros e a lâmina era tão afiada que o corte podia ser
sentido só de olhar para o gume.
– Onde está Casássono? Precisamos falar com ela. – a voz do homem era áspera e deve-
ras rude. Ele não falava em um tom casual, estava ordenando que fosse atendido.
19
Ana meramente balançou a cabeça negativamente e os dois homens interpretaram cor-
retamente a mensagem.
– Então teremos de nos contentar com você. – era o homem de barba azulada que falava.
– Procuramos esta garota.
Ele tirou de dentro do casaco um fotograma de Hayrim e segurou-o diante dos olhos de
Ana, esperando que ela o reconhece-se. Claro que não era muito fácil enxergar claramente que
se tratava de Hayrim, pois a imagem estava muito suja e os dedos do brutamonte cobriam
uma boa parte do fotograma.
Ana observou atentamente a imagem, franzindo o cenho como se estivesse a se esforçar
para reconhecer o rosto.
– E então?
O homem da cicatriz tinha tanto a voz quanto a postura e a arma mais ameaçadoras, a-
lém de ser o mais impaciente. Uma combinação perigosa demais.
Ana balançou a cabeça negativamente.
– Tem certeza? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.
Ela olhou um pouco mais atentamente. Era uma representação magistral. Murmurou
com a voz rouca:
– Tenho.
– Talvez sua patroa saiba mais do que você. – ele se virou e foi andando para uma das
mesas. – Empregados...
Sentaram-se próximos à porta e pediram uma rodada de cingal. Beberam silenciosamen-
te, estavam cansados por causa da longa jornada em busca da garota.
Ana serviu-lhes e voltou para a cozinha, onde Saysa estava segurando Hayrim, a qual es-
tava amordaçada. Era um arranjo improvisado, mas servira a seu propósito.
– Promete que não vai gritar? – perguntou Ana, se aproximando dela e levando as mãos
à mordaça.
Hayrim assentiu com a cabeça e ganhou o direito de falar novamente. Mas foi Ana quem
falou.
– Eles chegaram antes do que eu imaginava. E são bons. Mandaram os irmãos Parroca.
Estão maiores do que nunca. Vocês têm que ir agora. – ela sussurrava e parecia fazer um
grande esforço para falar.
Hayrim se recusou a ir. A solução encontrada pelas duas foi atingir-lhe na cabeça, de
modo que ficasse inconsciente. Ana colocou-a no dorso de Saysa e esta saiu andando, carre-
gando a garota.
A asa de Saysa não estava em condições de voar ainda e, portanto elas foram andando e
se embrenharam em um bosque.

Ana estava escondendo o pano da mordaça atrás de um saco de arroz quando o homem
do machado entrou na cozinha.
– Com quem você estava falando?
– Ninguém.
A voz de Ana saiu esgarçada.
– Com quem você estava falando? Onde está a garota?
– Não sei de quem está falando. – Ana teve um leve acesso de tosse. Estava forçando mui-
to, não podia continuar falando.
Ele estava perdendo a paciência, se é que ele já havia tido alguma. Ergueu o machado no
ar ameaçadoramente. A lâmina cortava o ar acelerando o movimento em direção a Ana. Ela
não conseguiria desviar. O homem não intencionava parar. Era o fim.

20
Capítulo Cinco
Reunião de Família

– Verlandi!?
– Skuld! Como vai?
As duas se levantaram bastante desnorteadas. Os guardas pediam desculpas à sacerdoti-
sa pela interrupção, mas a mulher havia deliberadamente invadido a sala.
– Tudo bem. Tudo bem. Agora podem ir. Ela vai me receber. – disse a mulher encapuza-
da.
– Está tudo certo. Podem ir. – Skuld concordou em tom de resignação.
Depois que a porta foi fechada, Skuld voltou-se para Verlandi repreendendo-a com o o-
lhar.
– O que você está fazendo aqui? – ela estava quase sussurrando.
– Eu... precisava falar com você.
– Então poderia ao menos tirar o capuz? Você já veio até aqui, o capuz não vai fazer mui-
ta diferença agora.
Verlandi tirou o capuz, revelando sua pele negra, reluzente, perfeita. Tinha cabelos ne-
gros e olhos que pareciam revelam as profundezas do limbo de tão escuros. Era uma mulher
de quase quarenta anos de idade, mas não parecia ser muito mais velha que Skuld. Apesar de
tudo, seu rosto revelava que deveria haver certa diferença de idade entre elas. Complicado de
entender e duas vezes mais difícil de explicar.
– Eu avisei para ela não vir – disse o camaleão que se esgueirou para fora da túnica de
Verlandi. – Mas já tem um tempo que ela parou de se importar com a minha opinião – Ele sus-
pirou, cansado.
– Do que se trata? O que era tão importante que não poderia esperar até o fim do ano,
quando eu fosse lhe visitar?
Verlandi colocou o camaleão de lado e ele foi comer alguns biscoitos que estavam sobre
uma mesa de canto. Era um ser de hábitos bem distintos, ou melhor, exóticos. Afinal de contas,
não é nada, digamos, convencional que um camaleão se alimente de biscoitos e sim, de insetos.
– Eu... Como eu posso explicar...? Você sentiu? A mudança?
– Talvez. Se estivermos falando da mesma coisa, sim.
– Acontece que nesses últimos dias eu tenho visto que Nix está planejando alguma coisa.
Ela está se movendo. Avançando devagar, ela quer sua filha.
– Eu sei. Já tive visões perturbadoras do futuro. Você acha que...? – a voz de Skuld sumiu
lentamente.
– Que a Profecia está se concretizando? Estou com medo de que sim. Nós temos que...
– Impedir? Como, se nós não podemos nem interferir?
– Eu... – Verlandi parecia perdida, desiludida. – São nossos filhos! Não me diga que você
vai simplesmente deixá-la ir!
– Eu... não tenho... não sou eu que decido... fomos nós que escrevemos a Profecia... não
podemos decidir ir contra ela de uma hora para a outra...
– Mas não podemos aceitar isso assim. É um destino que eu não quereria nem para as
nossas irmãs. E olha que eu não gosto mesmo delas.
– Não há o que fazer. Profecias, por mais vagas que sejam, são absolutas. E fomos nós
três que escrevemos. Se fosse só eu, ela poderia ser uma possibilidade falsa. Eu poderia estar
errada. Mas fomos nós três. Usamos o bloco completo do tempo, sem falhas, apenas impreci-
sões. Mas quanto aos nossos filhos, ela é absolutamente clara. – Skuld chorava, dois veios de
brilho lhe cortavam o rosto e caiam no espelho coberto com água.

21
– Por que nós fomos tão idiotas? Por que não percebemos que uma profecia de ódio
sempre pune seus criadores?
– Nós éramos muito novas, eu acho. Mas quem pode responder essa pergunta é só Urd e
ela fez seu voto de silêncio. Eu... só quero que ela não sofra. Se Hayrim não sofrer muito, eu
ficaria muito mais confortável.
– Eu só seria confortada se soubesse como apagar a Profecia e também se Urd me con-
tasse o que há no último verso, o que você escreveu sozinha. – Verlandi também chorava e
olhava para Skuld como se esperasse que ela lhe dissesse o que havia previsto.
– Naquela época eu não costumava me lembrar das profecias que escrevia. Mas penso
que seja algo como se eles estudarem, talvez possam evitar a Profecia. Era por isso que ia en-
viar Hayrim para o Coração do Mundo, mas ela fugiu.
Ela tentou parecer impassível,talvez isso fosse para acalmar seu próprio espírito.
– Ela o quê!? Com Nix planejando tanto contra ela? Sua filha é louca?
– Às vezes me faço a mesma pergunta... – ela olhava para o além e esboçou um sorriso ao
se lembrar de Hayrim em um piquenique com ela e Andrew.
Havia sido um dia maravilhoso. O céu estava azul e tão limpo como nunca estaria outra
vez. Vidempol iluminava o dia suavemente. Eles estavam sob uma árvore frondosa de tronco e
folhas escuros. Estavam rindo. Como havia sido bom aquele dia.
– Skuld?
– O que? – ela despertou de seu transe.
– Você está bem?
– Ah! Sim, claro. É só que estou com tantos problemas...
– Por falar em problemas, eu tenho um problema muito grande. Não consigo mais en-
xergar nossos filhos. Nenhum deles.
– Nem eu.
– Por isso o espelho? Estava tentando ver para onde sua filha iria?
– É. Mas ela é ou muito esperta, ou muito talentosa, ou talvez esteja desafiando a Profe-
cia. Quem sabe...
Skuld assoprou a água e as ondulações provocadas passaram a emitir um brilho esver-
deado suave. Ela olhava atentamente a visão que se formava.
Era uma região de florestas. Passava rapidamente e foi logo substituída por um lugar deso-
lado, pedregoso e sem vida. Uma mulher cianótica e um homem alto com uma capa negra do que
parecia ser couro de dragão celeste se olhavam. Na verdade eles se encaravam, como se prontos
a lutar.
Skuld voltou-se para Verlandi, balançando negativamente a cabeça. Não, nada havia mu-
dado.
– Eu já tentei ver Hay, mas ela simplesmente sumiu, Skuld. Procurei por ela nos últimos
dias, queria ver minha sobrinha, mas não consegui achá-la. Quando procurei entrar em conta-
to com mamãe, ela me disse que eu não devia procurar os seus netos. Nossa parte no destino
estava longe deles, ao menos pelos próximos ciclos de Arnac.
– Ela não quis me atender da última vez. Disse que eu estava querendo saber demais.
– Isso nos deixa sem opção quanto a isso. Mas você ouviu falar dos rumores sobre Trítia?
Skuld pensou bastante antes de responder.
– Não sei se acredito muito naquela história. Acho que até hoje, os únicos com bastante
poder para derrotá-la seriam papai e a ex-mulher dele – ela fez um sinal muito estranho, como
se estivesse a afastar algum mal.
– Você sempre foi mais medrosa. Mas, e se for verdade?
– Se for verdade, o que eu duvido, talvez as coisas tenham se precipitado mais do que eu
imaginava.
O camaleão resmungou alguma coisa sobre os biscoitos terem ficado secos.

22
– Talvez... Mas essa conversa deixou de ser particular. – disse Verlandi olhando fixamen-
te para o nada.
– E não teremos tempo de torná-la privada, eu acredito.
As sombras cresceram e tornaram-se ameaçadoras. Estavam envolvendo tudo, cada
fragmento de luz desaparecia.
Tudo sumiu.
~*~
A rainha estava em seu trono rindo de satisfação, mas não de alegria, era uma satisfação
maléfica.
– Ora, ora, que maravilha! Eu queria o Futuro e ganhei também um presente, ou melhor,
o Presente. – ela não conteve uma gargalhada aguda e de puro mal.
Penduradas em uma gaiola de cristal negro, as duas irmãs estavam desacordadas no
centro da sala. A gaiola era do tamanho de uma sala, com cerca de dois ou três metros de raio.
A corrente grossa que a segurava no ar desaparecia em meio à escuridão do teto abobadado.
Verlandi acordou primeiro, estava tonta e não fazia idéia de onde estavam. Examinou
rapidamente Skuld e constatou que ela estava bem, pois já acordava. Mas onde estava o cama-
leão?
A sim, debaixo do braço de Skuld.
– Olá, irmãzinhas. – ela novamente não foi capaz de deter a risada, mas dessa vez trata-
va-se de um riso sarcástico, além, é claro, do habitual recheio de medo que a rainha sempre
oferecia. – Como têm passado? Já faz muito tempo que não as vejo.
– Nem tanto quanto eu desejava ficar sem te ver, Nix – o tom de desprezo na voz de Ver-
landi feriu o orgulho da rainha, que estendeu a mão direita.
Um chicote violeta de couro se materializou ali e ela brandiu-o no ar. Ele cantou estalado
conforme atingia as grades da gaiola.
– Eu teria mais cuidado com as palavras se fosse você.
– Verlandi, acho que você devia realmente se comportar – sussurrou Skuld.
– Olá, Nix – a ironia de Verlandi nessas palavras talvez fosse pior do que se ela cuspisse
na face de Nix. Mas a rainha se conteve, pois exigiu moderação apenas com as palavras, nada
disse sobre entonação.
– O que a rainha das Terras Noturnas quer de nós?
Skuld fez uma mesura que foi quase tão irônica quanto sua voz ou a de Verlandi. Perce-
ber que Nix toleraria a ironia deu-lhe coragem para tomar uma postura mais agressiva.
– Isso me lembra de alguns anos atrás, quando eram jovens. Quando ainda não havíamos
brigado ou, no seu caso, escrito uma profecia prevendo a destruição de sua própria irmã mais
nova. Creio que deveriam se envergonhar – ela soltou um riso de hiena que parecia capaz de
perfurar qualquer tímpano.
– Falou a mocinha comportadinha – disse Verlandi com uma petulância que começava a
cruzar uma perigosa linha invisível. Estava se dirigindo ao ponto em que a rainha perderia a
paciência e a compostura, avançando contra elas.
– Basta! – a rainha chegara a seu limite de tolerância, outro insulto e ela poderia perder
o controle, o que teria consequências bem desagradáveis.
Ela caminhou um pouco e fez um movimento sutil, mas visível, com a mão direita. A
gaiola desceu lentamente até que tocasse o piso negro. A escuridão parecia crescer conforme
elas desciam e, com isso, a pele de Nix ficava cada vez mais pálida, ao ponto de parecer com a
luz do luar. Não era de todo uma cena agradável, na verdade, era um luar medonho.
– Eu, preciso de um serviço de vocês.
– A Grande Rainha, onipotente, que usurpou o trono de papai a tantos decênios, está pe-
dindo ajuda? E o melhor, a suas duas irmãs encarceradas por ordem dela mesma? Onde estão

23
as câmeras? – Verlandi olhou em volta, mas moderou o tom jocoso quando percebeu o olhar
soturno de Skuld. – O que você quer?
– Em primeiro lugar, não estou pedindo, estou requisitando. Em segundo lugar, você po-
deria ser mais educada quando falando comigo. E por fim, vocês vão me dizer onde está a Fi-
lha do Futuro e o que ela vai fazer, para onde vai. Além é claro de me dizerem como acabar
com aquela palhaçada de profecia.
– Mas eu sempre pensei que você tivesse os melhores espiões de todos, com exceção tal-
vez dos de Hemera. – a pronúncia daquele nome foi especialmente maldosa por parte de Ver-
landi.
A rainha estremeceu de ódio só de ouvir o nome de sua irmã gêmea, ela não se lembrava
que Verlandi poderia ser tão inoportuna.
– Quando eu digo que quero saber dela, me refiro às intenções dela e não se faça de de-
sentendida. Quero saber como e onde devo detê-la. Se ela desconfia de mim. Quero ter certeza
de meus planos. Quero perfeição em sua execução. E vocês duas são a chave para tal.
– E se nos recusarmos? – Skuld disse, pois era da sua filha que falavam, não poderia en-
tregá-la assim. – O que vai fazer? Não me diga que quer fazer conosco o que fizeram com o
papai?
A voz de Skuld não tinha nenhum traço de medo. Era até mesmo audaciosa.
– Não, tenho meios piores de persuadi-las. Até porque, matá-las não seria muito provei-
toso – ela estava falando em um tom tão trivial como se conversassem sobre o tempo. Adicio-
nou com malícia – ainda. Vocês vão me falar o que quero saber, por bem, ou (meu favorito)
por mal.
– Me desculpe, mas acho que escolheu as imortais erradas. Você deveria ter procurado a
Verdade, ela lhe diria o que você quer saber – disse Skuld.
– Acha que eu não procurei? Aquela desaforada, quis um tributo... Não me foi nem um
pouco útil!
Verlandi não conteve uma risada silenciosa, mas profundamente debochada.
– Acha tudo muito engraçado não é? Veremos se continuará achando engraçado depois
que eu terminar com vocês. Como você mesma disse, vocês são imortais. Não será fácil cessar
sua existência, logo posso me empenhar ao máximo. Acredito que serão meus melhores mo-
mentos de diversão nos últimos séculos – a face dela adquiriu um tom mais sombrio com cada
palavra pronunciada.
As irmãs capturadas se entreolharam preocupadas.
– Vamos começar a brincar, irmãzinhas.

24
Capítulo Seis
Gom’Padol

O homem de barba azul havia percebido a movimentação do lado de fora da taverna e foi
ver do que se tratava. Quando viu a cauda azulada e de longas penas do cielagron desaparecer
em meio à mata fechada. Era muito diferente da Floresta de Aeathoe, tinha uma vegetação
mais diversa, apesar de característica do mesmo clima das araucárias.
– Ei, esperem! – gritava ele enquanto corria.
Corria bem rápido, principalmente levando em conta seu porte físico não muito magro e
sua idade um pouco avançada. Aparentava chegar perto dos cinquenta, tinha muitas rugas
principalmente próximo aos olhos.
Ia de encontro a uma árvore e a colisão parecia inevitável. Por maior que fosse, o homem
barbudo seria esmagado contra o imponente tronco do carvalho. Era uma árvore antiga, de
raízes profundas e firmes, nem um pouco frágil. O tempo havia lhe garantido mais força contra
qualquer tipo de impacto. Uma manada de búfalos selvagens não seria capaz de removê-lo.
Mas o homem não parou.
Ele seguia em frente, firme em seu caminho. Ergueu o braço e zaz! O carvalho estava vo-
ando pelos ares. Seu tronco de quase dois metros de diâmetros havia se partido como se fosse
feito do material mais frágil. Lascas de madeira suspensas no ar. Foi como um tiro em um uma
taça de cristal muito fina. Não era tanto uma cena impressionante quanto assustadora.
O homem continuava correndo e havia destroçado o tronco do carvalho como se fosse de
palha com um único golpe. E o pior, não parecia ter sentido nada com isso.
Elas continuavam fugindo. Em especial agora, corriam com todas as suas forças. Quem
não o faria depois de ver algo tão extraordinário?
Ele gritava para que parassem, mas não seria de todo necessário. Ele estava se aproxi-
mando com uma velocidade incrível. Era uma locomotiva acelerando ao máximo em direção
às duas. Era como um concorde perseguindo um ciclista, por mais que o último se esforçasse,
o primeiro sempre o alcançaria. Isso fiava mais claro a cada segundo.
Não adiantava tentar usar as árvores para retardá-lo, ele não se importava com elas. Um
golpe e pronto. O caminho não poderia ser obstruído, o que fariam?
Não fariam.
Resolveram, por sugestão de Saysa, parar. Correr não teria a menor utilidade,talvez a
persuasão fosse mais eficaz. Apesar de que, aquele homem não parecia de todo humano era
muito alto, muito forte e muito estranho.
– Estou com medo, Saysa.
– Não se preocupe, vai dar tudo certo. Tenho um plano – ela desviou o olhar para algum
ponto da mata, como se a procurar meios pra que escapassem. Seu olhar confiante quando
virou-se para Hayrim um segundo antes de o ensandecido homem alcançá-las tranquilizou a
garota.
– Finalmente. Finalmente alcançamos vocês. Já faz muito tempo que tentamos alcançá-
las. Vocês não são difíceis de seguir, mas de encontrar – ele riu, não havia se cansado nem um
pouco, ao contrário de Hayrim e do cielagron, que estavam, de certa forma, ofegantes.
– O que você quer de nós?
Hayrim disse aquilo com uma audácia tal que pareceu Verlandi falando.
– Hehe! Não está claro ainda? Um mundo está atrás de vocês duas, as recompensas são
as maiores nos últimos anos. Mais de 3 milhões e meio de rastas só pela garota. As duas, jun-
tas e vivas, valem mais de 6 milhões. É dinheiro para eu e meus descendentes podermos nos
aposentar confortavelmente. Mais de duzentos caçadores estão procurando vocês. Meus pa-
rabéns.
25
O jeito do homem falar pareceu, agora, muito familiar a Hayrim. Ela o conhecia de algum
lugar. Só não se lembrava de onde ou quem ele era.
– Isso, sem falar da possibilidade de entregá-las à autoridade sombria para julgamento.
Eles oferecem 10 milhões pelas cabeças das duas em uma bandeja de prata, 8 e meio só pela
garota.
A entonação dele continuava um tanto impessoal, mas ele não parecia ter a intenção de
receber da tal autoridade sombria, ou seja, seu destino poderia não ser tão cruel.
– Agora venham comigo. Vamos para a estalagem, quero beber alguma coisa. E também
acho que vocês estão com sede – ele sorriu afavelmente. Parecia até ser digno de confiança.
Mas de onde Hayrim o conhecia? E quem era ele na verdade? Ele não era só o caçador de
recompensas que estava perseguindo-as. Ela não conseguia se lembrar.
Depois, muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo: uma pedra voou pelo ar e passou
zumbindo pelo ouvido de Hayrim, Saysa deu um sorrisinho de satisfação, alguma coisa acer-
tou a cabeça do homem e ele caiu desmaiado com um grande estrondo, alguém puxou o braço
de Hayrim.

Elas não estavam mais naquela parte da mata.


Em um instante, o homem de barba azul havia desaparecido. A vegetação fechada e des-
truída pelo brutamonte havia sido por mata virgem e, mais especificamente, uma clareira.
Tudo foi tão rápido que ela nem havia percebido.

– O que?
Um rapaz de sorriso agradável estava olhando-a com carinho e afagou a cabeça de Saysa.
Ela consentiu sem nenhuma rejeição.
– Mas... hein!?
– Eu disse que tinha um plano.
– Quem é esse cara?
Hayrim estava bem confusa por causa dos eventos recentes. Somando-se a isso a aparen-
te intimidade entre Saysa e o rapaz, ela declarou oficialmente para si mesma que não havia
entendido coisa alguma.
– Esse cara – Saysa disse em tom de repreensão – é um velho amigo meu. O nome dele é
Tom, e foi ele quem nos ajudou com aquele cara.
Ela olhou afetuosamente para o rapaz e Hayrim não pode evitar dois pensamentos bem,
digamos, mexeriqueiros: De onde eles se conhecem? e Por que eles ficam se olhando assim?
Acho que Saysa não está me contando alguma coisa.
– Olá – disse ele sorrindo um pouco sem graça. O que aquela garota tinha? Por que o o-
lhava daquele jeito?
Ele começava a imaginar que tipos de amizade Saysa havia feito nos últimos anos.
– Hayrim, por favor, seja um pouco gentil, pelo menos. Eu te conto a história depois.
Ela detestava quando Saysa lia o que ela estava pensando, ainda mais na frente de outras
pessoas – especialmente desconhecidos, ao menos para Hayrim.
– Acho bom mesmo. Então, quem é você? – ela perguntou como se aquilo fosse algo bem
trivial.
– Hayrim!
– Não, está tudo bem. Eu sou um, digamos, guardião. faço serviços de guarda-costas, por
assim dizer. Estava viajando para a casa de minha mãe e vi vocês precisando de uma ajuda e
resolvi... ajudar – Ele riu de leve, mas Hayrim achou aquela história muito imprecisa e vaga.
Apesar disso, achava que talvez estivesse começando a gostar daquele cara.
Se Saysa era amiga dele, ele devia ser um cara legal.

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Eles seguiram para uma cidadezinha de nome Gom’Padol. Em kushar antigo, Não-
normal, seja lá o que isso significasse. Era lá que a mãe de Tom morava.
Gom’Padol era um lugar muito diferente de Sarsanel. Mais vazia e simp|tica. Menos sun-
tuosa e mais acolhedora, parecida com a Estalagem da Mme. Casássono. Uma lembrança que
levou Hayrim a imaginar quais eram os favores que o homem queria dela. Era tudo tão enig-
mático que forçava Hayrim a imaginar e não esquecer a conversa dos dois.
– Então, Tom, você é daqui? – Hayrim perguntou da maneira mais casual e inocente pos-
sível enquanto entravam na cidade.
Eles passavam por casebres de madeira antigos o bastante para nenhuma pessoa viva se
lembrar da construção dos mesmos. Uma velha senhora tricotava sentada à porta de sua casa
de adobe, uma das poucas que não eram feitas de madeira.
– Na verdade, sim e não. Sim, porque minha mãe é daqui e eu nasci aqui; não, porque eu
mudei daqui quando tinha pouco mais de seis meses. Então não lembro muito de imagens
dessa cidade quando era mais novo. Depois que mudei, só voltei aqui quando completei vinte
anos e minha mãe se aposentou. Essa deve ser a décima vez que venho aqui.
– E onde você mora, agora? – ela queria conhecer o homem antes de dar sua confiança a
ele. Era uma reação natural, principalmente de uma pessoa que sentia traída da forma que
Hayrim estava.
Saysa não interveio. Até porque, achou a conversa muito normal. Afinal de contas, Ha-
yrim era muito curiosa; talvez, até demais.
– Eu moro na cidade de Falahran, fica bem mais ao sul do que Sarsanel, ou o Oráculo.
O Oráculo? Mas quando foi que eu falei disso para ele? Eu não... Mas como?
– Ele sabia que nós vivemos lá, Hay. Você é conhecida, estão todos te procurando – sus-
surrou Saysa ao pé do ouvido de Hayrim, antes que essa começasse a desconfiar do pobre
Tom.
Ufa! Talvez eu esteja ficando paranoica. É claro que é isso. Mas porque eu estou com essa
mania de perseguição?
– Então, você conhece um bom pedaço do mundo, Tom? Se viajou tanto...
– Eu não diria que conheço muito, mas talvez um pouco mais que muitas pessoas. Na
verdade, nunca viajei para o oriente. É um dos meus objetivos na vida: conhecer os povos do
Oriente de perto. A cultura deles é fascinante. Dizem que a civilização deles é tão diferente da
nossa porque quando o mundo foi dividido, as rainhas do leste se recusaram a ter muito a ver
com suas irmãs do oeste. Faz mais de um milênio que isso aconteceu e até hoje somos tão di-
ferentes.
– Você gosta de história, não é?
– Sim, eu sou guardião apenas nas férias, para passar o tempo – ele mantinha a simpatia
o tempo todo, não se incomodava com nenhuma das perguntas, por mais invasivas que pudes-
sem se tornar. – Na verdade, trabalho como professor de História e Antropologia da Universi-
dade dos Conselheiros.
“Talvez um dia você queira conhecer o lugar. É um prédio gigantesco e lindo. Já me perdi
várias vezes lá dentro quando era mais novo. Pedi também muitas horas de sono enquanto
era aluno. Foram bons anos aqueles, não é Saysa?”
Hayrim olhou para Saysa inquisitivamente. Como ela poderia saber dos tempos de univer-
sidade? A menos que...
– Você frequentou a faculdade, Saysa?
– Sim, sou formada em História e tenho menção honrosa em estudo de lendas. Estudei
também doze línguas antigas. Achei que já tinha lhe contado isso antes.
Saysa falou com muito orgulho de suas conquistas, mas mentiu no final. Ela não havia se
esquecido, foi proposital. Já era bastante incomum que um cielagron frequentasse a faculdade,

27
quanto mais que tivesse menções honrosas. Havia lhe falado que conhecia algumas línguas
antigas, mas doze era um pouco demais para se dizer que eram algumas.
Enquanto na faculdade, Saysa na havia sido muito bem recebida a princípio pelos cole-
gas, que sentiam ultrajados por estudar com um “animal”. Ela, contudo, havia ignorado os idi-
otas e feito uma grande amizade com Tom. Depois de nove anos de estudo, ela se tornou a
primeira não-humana a se formar. Além disso, foi considerada a melhor aluna em 135 anos.
Mas, Hayrim não precisava saber de todos esses detalhes.
– Então, vocês se formaram juntos. Isso explica muita coisa.
Mas não tudo. Essa história ainda não está completa.
– Mas... –
– Depois, Hayrim.
– Vocês esperam aqui, enquanto vou comprar frutas para mamãe. Presente na chegada.
Acalma a fera. Deveria ter chegado semana passada – ele riu um pouco constrangido.
Elas assentiram com a cabeça. Sentaram-se próximas à fonte no centro da única praça da
cidade. Mais além, descendo a rua, ficava a feira.

Hayrim...
Hayrim...
Ela podia ouvir claramente que uma voz estava chamando. Era uma voz assoprada. De
onde vinha? O que queria?
Hayrim... Venha cá, criança. Aproxime-se. Aproxime-se para ouvir o que temos a lhe dizer.
Realmente, eram vozes, sussurros, levemente descompassados. Seus olhos pesaram um
pouco.
De onde vinham as vozes? Eram tão estranhas, mas parecia com algo familiar. Ela podia
perceber uma voz predominante. Era uma mulher que ela conhecia. Mas, quem?
Ela se sentiu atraída pela voz. Vinha de algum lugar entre duas lojinhas. Era uma casa ve-
lha e escura, com janelas cobertas por pesadas cortinas roxas.
As vozes continuavam a chamar, quase um sussurro, mas tão alto quanto gritos. Uma
corda invisível arrastava-a rumo à porta de madeira. Era tão forte e tão ... macia. Por que não?
Ela não tinha nada a fazer por enquanto. Talvez...
Alguns segundos, e ela estava dentro de uma sala escura e pequena. Havia esferas de vi-
dro em prateleiras por todo o lugar.
No centro da sala, havia uma mesa redonda com um orbe preto-esverdeado. A esfera pa-
recia cheia de um líquido negro que continuava a mover o fino veio de luz verde-clara no inte-
rior da mesma.
Cuidado! – veio uma voz ainda mais arranhada que a que Hayrim ouvira antes. Prosse-
guiu:
Algo lhe será tomado.
Busque reavê-la, e rápido.
Não confie na verdade que lhe é dita.
O destino é ardiloso e incompreensível.
A Verdade é traiçoeira, mas a Mentira lhe devoraria.
O Mal está à espreita.
Uma mão cadavérica se erguia das sombras e ia em direção a Hayrim. Ela estava focada
na esfera e não percebeu. A mão se aproximava lenta e silenciosamente, além de perigosa-
mente.
Se esconde nas sombras,
Quer você, criança.
Fique atenta.
O Mal está atrás de você.

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A mão se aproximava do ombro de Hayrim. Se tivesse um punhal não poderia ser mais
ameaçadora.
Ele se aproxima sorrateiramente.
Quer te destruir, Filha do Futuro.
Não deixe que ele vença.
Você é forte, mas ainda não o suficiente para vencer o Mal.
Ele está atrás de você.
A mão agarrou o ombro de Hayrim.
– Ah! – Hayrim gritou aterrorizada. Estava paralisada de medo, mas virou sua cabeça
lentamente.
– Quer alguma coisa, querida? – uma senhora doce de cabelos grisalhos amarrados em
coque lhe sorria. A mão não aprecia nem um pouco cadavérica, era apenas muito enrugada.
– N... N... Nada – gaguejou a garota.
Ela fugiu da senhora afável, que a pouco lhe parecera uma múmia, ou talvez um monstro
vindo dos mais terríveis filmes de terror.
Ela correu para fora da sala.

29
Capítulo Sete
Acampando

– Parece que você conheceu minha mãe! – foi o que Tom disse ao esbarrar com Hayrim
quando esta saia desesperada da pequena loja escura.
– Hayrim, como você some assim, sem nem mesmo me avisar? – perguntou uma Saysa
que estava mais preocupada com a situação atual de Hayrim do que com seu sumiço.
– Desculpe, havia uma voz e... – ela perdeu as palavras antes de concluir a frase.
– Tudo bem – Tom estava sendo bem compreensivo, apesar de ser sua mãe. – Ela já não
tem mais seu juízo no lugar perfeito. De qualquer maneira, não vou forçá-la a ficar aqui, de-
pois de ela te assustar assim. Ela faz muito isso. Mas faço questão que aceitem ir acampar co-
migo essa noite nas colinas.
– Sua mãe não vai se incomodar? – perguntou Saysa, esperando por um não.
– A verdade é que eu tenho que ir embora hoje mesmo. Só passei para falar com ela. Só
um “alô”. Ela não vai se incomodar.
– Nós aceitamos, então – Saysa respondeu pelas duas, pois Hayrim ainda estava um pou-
co assustada por causa da experiência na loja.

Naquela mesma noite, eles foram para as colinas, onde dormiriam em sacos de dormir.
Tom estava se provando ser um cara muito legal. Nem bem conhecia Hayrim e já sabia agradá-
la como poucos conseguiam. Ela simplesmente adorava acampar. Quando no Oráculo, ela se
ressentia do fato de que não acampavam nas florestas próximas com muita frequência.
As colinas de Gom’Padol eram uma região muito bonita. A grama verde e macia, quando
banhada pelo luar, tornava-se um carpete extraordinariamente confortável.
A leste, erguia-se a poderosa cadeia de montanhas de Brilho, todas com pico nevado e,
quando no amanhecer, semelhante a diamantes gigantescos. Eram muito imponentes as mon-
tanhas.
A oeste, tinham o rio Wapashunt; em kushar, serpente molhada. Era um nome que lhe ca-
ía como uma luva. O rio era sinuoso como uma cobra rastejando e tinha a água mais pura que
Hayrim já havia visto. As luas formavam estranhas formas sobre a água ondulante do leito
caudaloso do rio.
Ao sul ficava o vilarejo. E, ao norte, ficava a suntuosa taiga. Era uma floresta de árvores
com forma de cone que se estendia por quilômetros, talvez um dos maiores biomas do plane-
ta.
Quando chegaram a uma colina de topo mais plano, Tom disse-lhes que aquele era o lu-
gar ideal. Poderiam espalhar o acampamento ali.
O procedimento foi simples. Saysa deixou cair a sacola com a comida de um lado e seu
confortável tapete do outro. Hayrim levava seu saco de dormir e desenrolou-o próximo ao de
Saysa. Tom arranjou a fogueira com a lenha que trouxera no lugar de seu próprio saco de
dormir.
– A grama daqui me faz um colchão muito mais confortável do que qualquer outro.
Hayrim não pode deixar de imaginar que, no final das contas, aquele cara não era nor-
mal. Afinal, que tipo de pessoa, com a idade dele, já é professor de faculdade? Ele não tinha
mais de 25 anos. Ela também não conhecia muitas pessoas que se afeiçoavam pela grama co-
mo colchão. Além, é claro, da mãe que ele tinha. Tudo isso somado com outras pequenas coi-
sas que ela foi notando, formavam uma pessoa, no mínimo, única e diferente.
Ainda assim, ou talvez por isso, ela gostava dele. Estavam gradualmente se tornando a-
migos. Era estranho, mas os olhares tortos que ela dirigiu a ele em seu primeiro encontro ha-
viam desaparecido e foram substituídos por uma expressão de tolerância a princípio e, poste-
riormente, simpatia e carinho.
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Novos amigos eram um negócio proveitoso, pois eram bons substitutos para o vazio dei-
xado pelo abandono do Oráculo. Claro que ninguém poderia substituir sua mãe, e nem ela
queria que isso acontecesse, mas ela precisava encontrar novos pilares em que se sustentar,
novas fontes de força para seguir em frente.
Hayrim riu da própria inocência. Talvez não fosse muito sábio fazer amizade tão facil-
mente com alguém, mas ele era tão legal. Além disso, se Saysa confiava nele e o conhecia há
tanto tempo, certamente era alguém de confiança.
Eles assaram alguns peixes que e comeram. Já de barriga cheia, deitaram-se sob o luar.
Observavam a escuridão do céu e as inúmeras estrelas espalhadas por ele.
– Sabe, essa é a região onde se pode ver mais estrelas em todo o continente – Tom esta-
va, mais uma vez, empolgado com a explicação. – Dizem que são milhares, se você deitar aqui
nessa colina. Sempre gostei muito dela por isso.
– Estrelas são uma coisa fantástica – concordou Hayrim.
– Você já ouviu a lenda mugavi sobre o surgimento das estrelas e das três luas Hayrim?
– Não. Eu sempre ouvi as lendas das poderosas batalhas em Dehanrif e sobre os feitos
dos Siusads.
– Quer ouvir?
– E por que não?
Eles mantinham o assunto entre si. Saysa estava dormindo, talvez tivesse comido um
pouco demais. O sono havia se abatido de forma galopante sobre ela.
– Vamos lá então! Quando o grande deus mugavi, Khanum Her, preparou a festa de ca-
samento de suas três filhas, disse-lhes que escolhessem um presente cada. Ele lhes daria o que
pedissem, pois aquele era o dia mais feliz de sua vida, suas três filhas eram lindas e se casari-
am no mesmo dia.
“A filha mais velha, conhecida por sua intelectualidade e curiosidade, pediu ao pai que
lhe desse o talento de conhecer todo o seu império. Khanum Her suspirou e concedeu o pedi-
do da primeira filha, transformou a ela e ao marido em cometas. Assim, eles vagariam pelo
espaço, vendo a grandiosa obra que o grande deus preparava para sua amada esposa como
presente de bodas de mithril, a celebração dos seus 10 milhões de pentaciclos de casamento.
Até hoje os dois vagam pelo universo apreciando as criações de Khanum Her.
“A filha mais nova, por ser impaciente e explosiva, brigou com o marido na noite do ca-
samento e pediu ao pai que os separasse para sempre. Khanum Her explicou à filha que um
casamento era um casamento, seus laços não podiam ser completamente quebrados. Trans-
formou a filha nas três luas, para que raramente se encontrasse com o marido, que foi trans-
formado em Vidempol.
“Somente quando a filha estivesse unida e harmonizada, a conjunção das luas duas vezes
ao ano, ela e seu marido poderiam se encontrar. O grande deus lhe explicou que queria que
eles não ficassem somente brigando. Ela o vê duas vezes ao ano, quando se amam, durante os
eclipses do sol.
“A filha do meio, disse ao pai que não queria nada além de ser parte da obra de seu pai.
Queria apenas fazer parte da felicidade de seus pais. Khanum Her se emocionou tanto com
aquilo que deu à filha todas as joias que pode conceber e ela passou a brilhar de um modo o-
fuscante.
“A esposa de Khanum Her tinha uma inclinação para a inveja e ao ver a filha coberta com
todas as joias que o marido pudera conceber, fez com que a filha explodisse em infinitos peda-
ços, junto com as joias. Ela se espalhou por todo o cosmos, passando a cintilar como suas joias
durante a noite, incrustada no céu.
“A mãe se arrependeu do que fez e decidiu reunir a filha novamente em um só ser. Pas-
sou, então a recolher, os pedaços espalhados por todo o cosmos em constelações, para que um
dia pudesse contemplar novamente a filha e pedir perdão.
31
“Ela chora constantemente, derramando suas l|grimas pelo mundo. É por isso que cho-
ve. Mas o marido da filha do meio, que nada sofrera, consola a sogra constantemente quando
ela chora. Ela se arrependeu, então o arco-íris a acaricia. Ele mantém a sogra forte para que
essa restaure a sua amada esposa.”
– Caramba! É uma história meio trágica, não é?
– Não sei. Talvez, sempre achei que ela era mais uma mensagem muito bonita de perdão
e arrependimento. Sempre pensei que ela tinha uma ironia muito forte no que diz respeito à
sogra. Você não acha?
Ele olhou para o lado, parando de observar as estrelas por alguns instantes, e percebeu
que Hayrim havia adormecido. Histórias quando ela estava deitada para dormir sempre ti-
nham um efeito devastador.
Tom deu de ombros, a garota havia sido um público muito bom. Virou-se e logo estava
sonhando com a história das filhas de Khanum Her.
~*~
No meio da taiga, naquela noite amena, uma sombra se movia e respirava sussurrando.
Tramava como desferir um poderoso golpe contra a garota, de modo a cumprir sua missão.

32
Capítulo Oito
Desaparecida

Hayrim acordou com o raiar dos primeiros feixes de luz vindos de Vidempol. O céu esta-
va de um azul tão límpido, que os cortes realizados pelos raios de solares pareciam rasgá-lo.
Era um dia maravilhoso. Era perfeito para que Saysa–
Onde estava Saysa?
Hayrim olhou em volta, nada. Tom ainda dormindo, se remexeu, mudando de posição.
– Saysa!? Cadê você?
Não veio resposta. Somente o silêncio desolador que se abatera sobre o lugar.
– Saysa! – chamou Hayrim, enquanto observava atentamente tudo a seu redor, em busca
da amiga.
Onde é que ela estava? Ela nunca saía sem avisar antes. Nem mesmo para dar uma volta
que fosse.
– Saysa! – ela não estava mais falando, já havia se vertido em quase um grito.
Ela correu na direção à taiga. Passou ao lado do rio, que sumia em meio à vegetação. Gri-
tava o nome da amiga, dizia que aquela brincadeira não era justa. Afinal, é muito fácil para ela
se esconder.
– Pare com isso, Saysa! – o riso estava sendo completamente sobrepujado pela preocu-
pação.
Ela continuava gritando quando entrou na floresta. As árvores se erguiam muito próxi-
mas uma das outras e acertavam Hayrim de todas as formas possíveis. Com folhas em forma
de agulha, os galhos dos pinheiros não eram nem um pouco gentis.

Tom acordou com os gritos de Hayrim se afastando. Ela estava procurando alguém, mas
por que os gritos? Ele se levantou e olhou ao redor. Estava sozinho. Alguma coisa ali não esta-
va certa.
O que lhe causava estranheza era especialmente o lugar onde Saysa deveria estar. O ta-
pete estava remexido de uma forma peculiar e havia marcas da grama partindo do tapete. A
espessa massa verde estava amassada, como se algo muito pesado houvesse passado por ali.
Em alguns pontos era possível ver a cor marrom da terra mesclada com o verde da grama.
O cielagron não havia saído dali por vontade própria.
Ele foi procurar Hayrim. Ela precisava saber. Não era exatamente seguro que uma garota
procurada pelos melhores caçadores de recompensas de toda a região ficasse andando por aí
gritando por um cielagron. Precisava encontrá-la, fazia-se necessário que ela soubesse sobre
sua amiga.

Ele entrou na vegetação densa, seguindo os gritos da garota. Que burrice a dela. Quem,
em sã consciência, ficaria por aí denunciando sua localização em uma situação como essa? A
menos é claro que ela imaginasse que estava a salvo.
Passou por muitas árvores antes de perceber que ela não gritava apenas para encontrar
o cielagron, mas também pedia ajuda.
Alguns metros à frente, ela gritava e parecia se debater, estava presa. Eram apenas de-
duções a partir da forma como ela pedia ajuda, mas pareciam bem precisas.
Estava agora bem perto, talvez faltassem uns 200 metros.
Algo se mexeu. Estava atrás de uma árvore de tronco mais grosso. Era alguém. Grande.
Tinha uma intenção nada agradável. Mirava Tom.

33
Algo enorme voou sobre o rapaz. Era uma grande massa rotunda, com uma farta barba.
Era ameaçador, com seu gigantesco machado. A lâmina, de tão afiada, chegava a arder e a cor-
tar só de se olhar. Descia rasgando o ar.
Tom estendeu o braço, a mão espalmada. A lâmina do machado gigantesco parou no ar, a
poucos centímetros do palmo do rapaz. Uma película finíssima de luz azulada havia se inter-
posto entre os dois. Era apenas como um círculo de luz, mais fino que papel, entretanto deteve
o poderoso golpe.
Andrew gritou Anuhar e projetou a espada curta, que sacara da muito discreta bainha
em sua cintura, pelo círculo de luz. Uma espiral de luz azulada e granulada envolveu a espada
enquanto ela avançava em direção à lâmina do machado.
Um estalo agudo.
O poderoso artefato do caçador de recompensas havia se partido como uma taça de cris-
tal ao ser arremessada contra uma parede de granito. Os pequenos pedaços de metal no ar
cintilavam enquanto caiam rumo ao chão. O homem de fartas barbas observava aquilo atônito,
a cicatriz que lhe atravessava o rosto adquiriu um ar sombrio.
Ele tentou atingir Tom com o cabo do machado, mas o jovem foi mais rápido e partiu a
madeira como se fosse um palito de dentes. Era inútil o caçador de recompensas tentar revi-
dar, aquele rapaz era sobre-humano.
Aquilo era magia. Não havia outra explicação. A palavra proferida antes da espiral de luz,
o machado partido tão facilmente, tinha que ser. Não havia outra explicação.
Ele observava o rapaz assustado. Tentava memorizar todos os traços daquele ser anor-
mal para que pudesse evitar um confronto direto tão perigoso outra vez.
O pulso dele, havia uma marca lá! Eram nove esferas rodeando outra esfera maior. Aque-
la marca...
– Você é um subordinado do Conselho!? – o homem de barbas fartas estava surpreso por
encontrar e lutar com alguém tão importante.
– Um concile, na verdade – Tom inchou o peito ao falar isso. Tinha muito orgulho da po-
sição que alcançara.
Foi a única coisa que conversaram. Tom virou-se para o caçador e desferiu um golpe
com a empunhadura da espada que deixou o homem caído no chão. Tom havia atingido o ros-
to do caçador.
Por um instante, era possível ver o rosto sombrio de Tom. Ele não parecia o mesmo jo-
vem sorridente. Uma névoa encobria seus olhos.
Mas tão rápido quanto veio, desapareceu. Ele era o mesmo Tom de antes, sorridente e
pacífico. A espada de volta à bainha, que era praticamente imperceptível.
Alguns metros à frente, estava Hayrim, que ainda gritava o nome de sua amiga e por aju-
da.

Ela estava presa em uma árvore, em um galho mais alto. Não era plausível que aquilo
fosse um acidente. Era bem provável que alguém a houvesse colocado lá.
– Tom! – ela estava radiante de alegria ao vê-lo. – Graças à Paz! Você veio me salvar.
– Como é que você foi para ai encima? – perguntou ele em tom jocoso.
– Eu, bem... Sabe eu estava olhando o céu, procurando Saysa... – ela falava um pouco
constrangida. – Não sei como aconteceu. Em um instante eu estava no chão, depois senti meus
pés em falso e, quando fui reparar, já estava aqui... não sei como. Me tira daqui, por favor...
– Tá bom. Fecha os olhos.
Era uma altura considerável, talvez quatro ou até cinco metros. Ela estava presa por um
canto da roupa, prestes a cair. Tom apenas atingiu um esbarrão na árvore e a garota caiu, sua-
vemente, como uma pena. A gravidade não parecia puxá-la com tanta força.
Ela caiu sobre os braços estendidos de Tom. Estava a salvo.

34
– Temos que conversar, Hayrim. Há uma coisa que preciso lhe contar.
Eles estavam de volta ao local onde haviam acampado naquela noite.
– Saysa foi sequestrada. Ela foi levada durante a noite. Não sei quem foi. Mas dá para ver
pelas marcas perto do lugar onde ela dormiu.
– Mas, quem–
– Eu, honestamente, não sei. Mas, sei de alguém que sabe.
– Me leve até esse alguém.
– Fica ao sudoeste daqui, é conhecido como o Jardim de Panathos. Se você quiser, pode-
mos perguntar ao espírito que vive lá. Ela sabe de muita coisa.
– Nós vamos – a voz dela era firme e decidida. – Não vou parar até encontrar Saysa. Não
vou deixar minha vida se estilhaçar assim.

35
Capítulo Nove
O Jardim de Panathos

A viagem foi feita em uma carroça aérea, que era um veículo típico da região de Sarsanel.
Consistia de uma confortável carruagem, puxada por dois hipogrifos, ou, em alguns casos de
maior elegância, dois grifos. Nesse caso, era apenas um dragão-de-cauda-contínua, rápido,
esguio e de baixo custo.
Eles desceram da carruagem na parada mais próxima do jardim, o que significava uma
caminhada de quase dez quilômetros por uma intrincada rede de cavernas túneis. Era o único
caminho, o Labirinto de Panathos.
Panathos era um homem orgulhoso que queria proteger seu maior tesouro, o jardim. Por
ser o engenheiro e arquiteto mais talentoso e criativo de sua época, criou uma rede de túneis
praticamente intransponível.
– Dizem que ninguém consegue sobreviver ao Labirinto, mas eu já conheci muitas pes-
soas que disseram ter falado com o espírito, inclusive meu pai. E nele, eu acredito.
– Seu pai já esteve aqui?
– Bem, – disse ele enquanto seguiam para dentro da caverna, – ele me dizia que havia
vindo aqui quando minha mãe sumiu. Foi o espírito antigo que vive aqui disse a ele onde ela
estava sendo mantida refém. Sinto muita falta dele.
– Eu sinto muito por isso.
Hayrim havia percebido pela entonação e pela forma de falar que o pai de Tom já não
era mais vivo.
– Já faz bastante tempo. Acho que, de certa forma, me acostumei. A gente acaba se acos-
tumando com essas coisas. Mas, ainda assim, a gente vai sempre sentir muita falta. Ele era fan-
tástico...
Ela não podia ver bem o rosto de Tom, ele segurava a tocha que iluminava o caminho de
uma forma que pouco ou nada se via dele. Mas, ela estava certa de que ele chorava. Afinal de
contas, ele era humano.
As cavernas eram túneis grandes escavados na pedra avermelhada. Diversos desenhos
rústicos e de runas antigas se espalhavam pelas paredes, eram feitos de um material granula-
do azulado que reluzia ao ser iluminado pela tocha. Eram motivos muito bonitos, mas cujo
significado não era claro para Hayrim. Tom, por outro lado, parecia entender ao menos um
pouco deles.
Eles andaram por muito tempo, passando por bifurcações e outras divisões mais com-
plexas do caminho, que Tom parecia conhecer. Algumas vezes, quando parecia não se lembrar
de para onde ir, Tom observava as marcas nas paredes por alguns instantes e depois indicava
que direção tomar.
Hayrim achou que deveriam estar andando em círculos, pois os caminhos pareciam mui-
to iguais. Logo a caminhada tornou-se cansativa e desconfortável, pois Tom não falava muito e
nem ela sentia vontade de conversar. Era uma caminhada ao som de seus próprios passos.
Nada mais.

Foram horas, pareceu quase um dia inteiro de caminhada, mas chegaram à luz, ao fim
dos túneis. Na verdade, não levou muito mais que uma hora e meia, mas para Hayrim pareceu
muito mais.
Haviam chegado a um grandioso portão de metal com cerca de três metros de altura.
Depois dele, ficava o jardim.

O Jardim era considerado uma maravilha perdida do mundo. E não por acaso. As árvores
não havia sido plantadas por ninguém, cresceram naturalmente em um padrão belíssimo. Era
36
algo entre uma floresta tropical e um jardim ornamental planejado. As cores e a vivacidade da
vegetação formavam um caleidoscópio capaz de hipnotizar as pessoas.
Os grandes ipês quebravam completamente a massa de infinitas tonalidades de verde.
Era como observar a manifestação mais pura da vida. Diversas trepadeiras e cipós serpente-
ando pelas árvores maiores e formando verdadeiras cortinas naturais. Nenhuma mão humana
poderia conceber uma obra tão bela.
O jardim ficava aninhado no vale interno a uma coroa de montanhas. Todas tinham o pi-
co nevado e pareciam intransponíveis a não ser pelas cavernas.
O mais inusitado era o fato de que a vegetação não havia se espalhado para além das
grades, era como uma parede invisível impedindo que elas fossem além. Sempre com muita
naturalidade.
Não se ouvia animais em parte alguma. Ao menos não animais de grande porte, apenas
alguns insetos, como formigas e gafanhotos, aqui e acolá. Às vezes, alguns pássaros se espa-
lhavam no verde provocando uma efusão de cores únicas.
Decidiram acampar perto de uma clareira naquela noite, estava tarde e eles não poderi-
am alcançar o centro do jardim, onde o espírito vivia. Iriam dormir ao pé de uma macieira.

Estava tudo escuro.


Hayrim estava sozinha em meio ao vazio. A voz falava outra vez. Era a mesma voz cheia de
sopros e sussurros, arranhada e de alguma forma familiar.
Que palavras estava dizendo? Eram tão estranhas. Hayrim conseguiu perceber apenas al-
gumas palavras familiares.
“... Skuld um’ho Verlandi ... Hayrim em’ho cielagron tacshi.”
A voz soltou uma risada esganiçada ao dizer que a garota sem o cielagron pereceria. Aqui-
lo era alguma variante de Shinkar, a língua dos deuses. Mas Hayrim só conhecia meia dúzia de
palavras no dialeto dos seres antigos, pois Saysa ainda não lhe ensinara muito.
A voz falava com alguém. Um subordinado provavelmente.
“Nussaar salamur ... visnurak unversum.”
Alguém estava escutando a conversa. Quem?
“Olá, Hayrim!” a voz falava com ela. Era familiar, de alguma forma, mas nem um pouco a-
fável ou simpática. “Está se tornando inconveniente garota.”
Um brilho azulado reluziu acima da cabeça de Hayrim. Era a lâmina da adaga que a mu-
lher de negro havia levantado contra ela no Oráculo. Foi salva pela mesma mulher aflita, cujo
grito distante lhe advertiu que fugisse.
Hayrim se desfez em grãos luz quando a lâmina afiada estava para lhe atingir.

Hayrim acordou assustada. Estava todo suada. Ainda estava muito escuro, virou-se e
tentou se lembrar do sonho. Quanto mais se esforçava, mais as palavras se perdiam, exceto
aquele trecho que jamais esqueceria: “Hayrim em’ho cielagron tacshi.”
Sem o cielagron, Hayrim pereceria.
O movimento dos pirilampos azulados daquela região lhe incitou o sono e ela logo pôs-
se a dormir e sonhar novamente.

Tudo escuro.
Uma mulher de cabelos, pele e vestes mais escuros que o próprio preto estava sentada pró-
xima a um lago de águas ameaçadoramente negras e espessas. Era um lago com vida. Um lago
com vida sombria.
A floresta ao seu redor era composta de árvores velhas e desfolhadas, muitas exalavam um
odor acre de madeira podre. Era um lugar sem qualquer traço de felicidade. As árvores envoltas
em uma aura negra tornavam o lugar mais sombrio a cada instante.
37
Ashlay, jovem filha do Futuro, aproxime-se, disse a mulher. Mesmo estando naquele lugar
e vestindo-se daquela maneira tão assustadoras, a mulher lhe inspirava simpatia. Sua voz era
amável, muito macia e acariciava o coração perturbado de Hayrim.
Hayrim andou até a mulher e perguntou-lhe quem ela era.
Sou aquela que vem e que vai. Sou quem mais é necessária aos imperfeitos humanos. De
mim vem o suporte do mundo, de mim parte também seu colapso. Sou a causa da existência
do tudo e do nada. Sou quem faz do mundo o que ele foi, é e será. Sou do espírito que busca.
Sou aquela que conforta o coração atribulado de qualquer ser ciente. Meu nome é Kaslak, o
espírito gêmeo de Aklask, a irmã de Suneth, a mulher falava com a mesma calma o tempo todo.
Nossa! Ela é importante!, pensou Hayrim. Irmã de Suneth, o espírito do Tempo. Quem se-
rá ela de verdade?
Hayrim não teve coragem de externar suas dúvidas. Por mais que a mulher fosse agradá-
vel, havia algo de estranho nela. Talvez fossem os olhos fechados durante todo o tempo.
Faça a pergunta que tanto aflige seu coração, criança, disse o espírito com calma, enquan-
to pegava uma jarra repleta da mesma água sombria e viscosa do lago.
Eu não...
Hayrim não fazia a menor ideia do que aquilo poderia significar. Pergunta que afligia seu
coração? Talvez estivesse falando do desaparecimento de Saysa. Era isso, só podia ser.
Eu gostaria de saber para onde e por quem foi levada minha amiga, Saysa.
Ao fim do questionamento da garota, o espírito despejou o conteúdo da jarra no lago e as
águas turvas se mesclaram de forma impressionante. As ondulações que surgiram na superfície
da água emitiam um suave brilho sombrio cada vez mais forte.
Uma imagem distorcida de formava na água. Hayrim não compreendia nada daquilo. E-
ram riscos estranhos e aparentemente aleatórios. Alguns se repetiam bastante.
Sua amiga foi levada...
E foi tudo que o espírito disse por um bom tempo.
O silêncio mordaz só foi quebrado o espírito virou-se para ela. Seu rosto inexpressivo tinha
uma pele perfeita, tão lisa que era difícil acreditar que era real – mas, é um espírito, eles sãos
seres antigos, donos de uma sabedoria maior, pensou Hayrim. O espírito disse não.
Apenas disse que não. Que a garota não havia feito a pergunta de seu coração. E que por
isso não merecia viver. Nem merecia saber a resposta certa para sua pergunta. Como ousava
tentar enganar o espírito que mais sabia da diferença entre mentira e verdade?
A mão da mulher ergueu-se no ar, segurava a mesma adaga que Hayrim havia visto em ou-
tros sonhos. Era o mesmo movimento. Mas não era a mesma pessoa que a atacava.
Foi, contudo, o mesmo grito que a salvou.
A mesma mulher aflita, gritando-lhe que fugisse dali.
Novamente, Hayrim se desfez em flocos de luz.

Tom acordou com o grito aterrorizante de Hayrim. Era um urro de desespero e dor.
Ela estava ensopada de suor; ele, um pouco perdido com aquilo.
– Você está bem?
– Eu ... ehr... foi só um sonho ruim.
Ela não queria lhe falar das coisas horríveis que havia visto em seus sonhos. Poderia pa-
recer que ela estava ficando louca ou que não estava apta a continuar sua jornada em busca do
cielagron.
– Mas você gritou tão alto que espantou qualquer criatura viva do jardim.
– Eu já falei, Tom. Foi só um pesadelo bobo. Coisa de menina.
– Coisa de menina, sei... – ele estava bastante cético. Não havia nenhum pesadelo bobo
que fizesse uma pessoa gritar daquele jeito.
– Querem fazer o favor de calar a boca! – reclamou uma poderosa voz de tenor rouco. –
São quatro da madrugada e eu quero dormir.
38
Hayrim foi salva pelo gongo. Não teria que se explicar mais. Quem quer que fosse o ho-
mem dono da potente voz, havia mudado completamente os rumos da conversa, talvez até
encerrado-a. Mesmo que essa não fosse sua intenção, ele havia evitado que Hayrim tivesse
que expor seus pesadelos a Tom. A vontade de agradecer a esse homem era gigantesca, mas
foi sobrepujada pelo questionamento de quem era ele.
– Quem sou eu? Ora, quem sou eu? Vocês entram aqui sem nenhuma permissão formal e
querem saber quem sou eu?
Tom se apressou em melhorar a situação antes que o homem ficasse irremediavelmente
nervoso.
– Bem, desculpe-nos senhor. Ela quer saber apenas para que possamos tratá-lo com
propriedade. Para que não sejamos desrespeitosos por nossa ignorância – Tom disse, olhando
ao redor em busca do proprietário da voz.
O tenor rouco parecia ter um orgulho muito grande e se achar muito superior aos ou-
tros, pois despendeu severos instantes ponderando a desculpa de Tom. Parecia realmente
adequado. Eles realmente pareciam ter a intenção de tratá-lo com o devido respeito se sou-
bessem quem ele era. Pobres mortais, tão burros. Mas mereciam que ele se apresentasse, pois
o jovem rapaz havia demonstrado excelente dicção e polidez, era quase um lorde.
– Eu sou a Macieira.
Foi somente isso que ele disse.
Espíritos tendem a ser muito vagos ou muito sucintos em suas respostas. Eles ou falam
muito e dizem quase nada, ou falam quase nada e dizem menos ainda. É muito comum que a
linguagem diferenciada dos espíritos antigos não seja completamente entendida pelos mor-
tais, a não ser pelos Filhos de Dois, que mantêm um laço muito mais próximo com eles.
O tenor rouco esperava que os dois se voltassem para ele e fizessem uma reverência. Era
óbvio que deviam fazer isso. Ele era um dos mais antigos espíritos em um raio de quilômetros.
Talvez houvesse apenas três ou quatro espíritos no continente tão ou mais velhos que ele.
Além disso, ele era um dos grandes guardiões de Panathos, o que significava que todos deve-
riam conhecê-lo, que as universidades deveriam ensinar tudo que se sabia sobre ele e que as
pessoas deveriam fazer uma prece em sua honra pela manhã todos os dias.
Mas os tempos haviam mudado, apesar de ele resistir a acreditar nessa ideia. As evidên-
cias eram claras: aqueles dois era os únicos a aparecer ali em quase meio século, ninguém vi-
nha para ouvir suas histórias ou lhe oferecer tributos como forma de honrá-lo há mais de dois
séculos. Era sua última esperança. Que aqueles jovens o conhecessem e o ouvissem. Mas era
uma esperança vazia e idiota.
A guerra, com que sonhara como razão para o afastamento das pessoas, não estava man-
tendo as pessoas ocupadas, pois era menos comum hoje do que nos tempos áureos de sua vi-
da. Não, eram relativamente poucos nas guerras nos últimos anos. Ele sabia disso.
Mas a Macieira era um espírito dos mais antigos e, portanto, dos mais convencidos e or-
gulhosos. Nunca admitiria que o mundo o houvesse abandonado voluntariamente. Nem para
ele próprio. A cada semana que passava, inventava uma nova razão para o desaparecimento
das pessoas. Havia começado a dormir mais do que dois terços do dia para fazer alguma coisa
a não ser ficar pensando nisso.
Era evidente, mas ele nunca aceitaria. Preferia mentir para si mesmo, estava mais velho
e se esquecia das coisas com mais facilidade. Apesar de espíritos não envelhecerem, pelo me-
nos não no sentido humano de decadência senil.
Visto que não obteria resposta, repetiu:
– Eu sou a Macieira, um espírito antigo, anterior às guerras e à Traição do Sairiklave. Sou
da terra e da vida, sou aquele que o grande arquiteto de mundos, Panathos, convocou como
espírito guardião e responsável pela integridade da jóia que este jardim protege. Sou aquele
que controla as visitas à Verdade.
39
Percebendo que eles não faziam ideia da origem da voz, a Macieira acrescentou:
– E estou atrás de vocês.
Eles se viraram e deram de cara com uma árvore de tronco lenhoso, recoberto por cas-
cas grossas e cheias de ranhuras profundas. Não era uma macieira comum. Era uma árvore de
copa relativamente baixa, atingia no máximo três ou quatro metros de altura. Folhas verdes e
muito escuras, tal qual o tronco.
Observar as ranhuras na madeira eram como observar um desenho escondido sob outro.
Elas se torciam e cruzavam e seguiam paralelas de forma aparentemente randômica, mas um
olhar atento revelava um rosto. Era rústico e difícil de perceber claramente, mas era definiti-
vamente um rosto.
Tom apressou-se em curvar o corpo e cutucar Hayrim de modo que esta fizesse uma me-
sura. Não conseguiu pensar em nada melhor, então Tom acompanhou a reverência com:
– Honorável, procuramos a Verdade.
– Eu já imaginava. Ninguém vem aqui para me ver já faz muito tempo – disse a Macieira
em um tom cansado e triste. Mas seu orgulho apressou-se em acrescentar:
– O que, a propósito, não faz a menor diferença. Afinal, sou o espírito que vigia os viajan-
tes, não faço questão de receber visitas.
– Pode nos dizer onde está o espírito que procuramos, grande espírito antigo?
– Meu jovem, você é bem educado e porta-se como um lorde ante entidades superiores,
mas isso não é o suficiente para que veja a Verdade. Precisa que eu lhe dê permissão. E, tam-
bém lhe diga onde ela está.
Tom não cometeu o despropósito de dizer umas verdades ao espírito com quem falava.
Não havia perguntado exatamente aquilo?
– Mas, – a árvore prosseguiu – não vou lhes dizer a respeito da Verdade. Não os conside-
ro aptos a ver um espírito tão belo e poderoso quanto ela.
Ele foi seco, quase arrogante. Aparentemente estava ofendido com alguma coisa.
– Podem sair do Jardim agora, vocês não verão a Verdade. Eu não os aprovei. Saiam ago-
ra.

40
Capítulo Dez
A Decisão da Macieira

A Macieira era um espírito extremamente orgulhoso e convencido de sua própria supe-


rioridade, logo era difícil imaginar qualquer coisa que fizesse o tenor rouco mudar de ideia.
Era um veredicto sem apelações. Definitivo e sem volta. Mas Hayrim não estava disposta a
aceitar que tudo acabasse assim. Fora sua culpa o rapto de Saysa e era seu dever encontrá-la.
Ela não chorou nem reclamou a princípio, apenas fitou os olhos de madeira da árvore.
Como podia ser tão rude? Tão impiedoso?
Tom estava levemente apático, nas lembranças que tinha das histórias de seu pai, a Ma-
cieira era muito educada e até prestativa. A única coisa que conseguiu imaginar para se justifi-
car na busca pela verdade lhe escapou da boca em um instante:
– Não poderia reconsiderar? Precisamos muito falar com ela.
– Não! Não vou reconsiderar. Quem vocês pensam que são para questionar a decisão de
um espírito?
Tom não respondeu, mas Hayrim, que não tinha nada a perder, foi petulante o bastante
para tal.
– Eu sou Hayrim, Filha do Futuro e herdeira de sangue do Oráculo. Estou procurando es-
se espírito para que ele possa me ajudar a achar minha melhor amiga nesse mundo todo. E
não vou desistir até conseguir falar com ela.
Ela não achava que aquilo fosse causar qualquer impacto em um lugar tão distante, mui-
to menos em uma árvore isolada há tanto tempo, mas valia a tentativa.
Veio um silêncio arrebatador. Nenhum som podia ser ouvido por longos segundos. A ár-
vore permanecia impassível, Tom esboçava medo – o que seria deles se o espírito se zangas-
se? – e Hayrim olhava para as ranhuras, procurando a reação da Macieira.
– Sigam pela trilha até o centro do jardim, ela estará lá. Empurrem a porta de pedra e en-
treguem essas frutas a ela como tributo pela informação que querem. Vão logo antes que eu
mude de ideia – um galho desceu com duas frutas enormes e vermelhas. Pareciam maçãs, só
que muito maiores, com o dobro ou o triplo do tamanho.
Era a segunda vez nos últimos dias que Hayrim se surpreendia drasticamente com al-
gum evento. Primeiro, Tom sabia perfeitamente como driblar os labirintos escavados nas
montanhas para que chegassem até ali; agora, um espírito antigo havia mudado sua decisão
apenas por ouvir o nome dela. O que será que ela não estava percebendo? Ela tinha certeza de
que estava deixando escapar um detalhe, alguma razão para isso, mas o que?
Talvez ele tivesse se compadecido da garota. Ela estava em busca da amiga, talvez mere-
cesse essa pequena ajuda. Mas ainda assim, ele não expressou resignação. Foi algo mais como
obrigação de ceder. Era tudo muito bom, mas muito estranho também.
– Talvez ele só não quisesse que você ficasse lá, impedindo que ele dormisse. Acho que
ele só queria se livrar de você. Também acho que ele tinha razão – disse Tom jocoso, enquanto
seguiam pela trilha.
– Hahaha! Muito engraçado você!
– Olha, estou só especulando. Tenho outras teorias também. Acho que ele talvez estives-
se um pouco zonzo, meio dormindo e não entendesse muito bem o que a gente estava falando.
– Não acho que era isso não...
– Então o que? Monstros ameaçando fazer lenha com ele? –aqui ele fez uma careta e se
aproveitou do jogo de luz provocado pelo amanhecer para tentar uma face assustadora. Tudo
que conseguiu ficou bem aquém de suas expectativas.
– Parece que você está constipado! – ela não conteve um riso.
– E você consegue fazer melhor para estar me criticando?
41
– Lógico! Eu sou fantástica – ela torceu o rosto e se valeu da iluminação. O resultado foi
pior do que o de Tom.
– Pelo menos eu estou só constipado. Você está com alguma coisa bem pior. Só não vo-
mita em mim.
Ambos riram de uma forma extraordinariamente espontânea.
Era bom rir depois de tanta preocupação. Eles se sentiam mais aliviados só de imaginar
que havia vencido tantos obstáculos e chegado tão longe. Saysa estava mais próxima a cada
instante.

Eles haviam chegado à enorme porta de pedra. Era maciça, como se fosse feita do mes-
mo material das montanhas. Por toda ela estavam espalhados os mesmos símbolos que se via
nas cavernas. A vegetação fazia com que ela ficasse praticamente oculta entre tanto verde e
castanho.
Tom precisou fazer bastante força para abri-la.
A ansiedade tomava conta de Hayrim, finalmente encontraria o espírito que lhe diria on-
de encontrar Saysa.
Um brilho fraco e azulado vinha de detrás da porta, era muito parecido com o brilho dos
pirilampos. Era algo transcendental, exatamente o que Hayrim esperava de um espírito tão
poderoso quanto a Verdade.
A luminosidade cegou Hayrim por alguns instantes.
~*~
A Macieira voltava a dormir quando foi novamente acordada por um humano.
– Mas o que é dessa vez? – reclamou em alto e bom som.
Não conseguia ver ninguém com sua visão turva de sono. A luminosidade do dia era a-
bundante, mas não achava quem havia o despertado.
– Mostre-se, seja quem for! – a ordem não foi dirigida a uma direção específica.
Atrás de uma árvore um vulto negro se moveu e voou sobre a Macieira. Havia uma in-
tenção assassina nos olhos vermelhos do ser encapuzado.
– Não lhe concedo permissão para ver a Verdade. Pode voltar.
– Não preciso de sua permissão – veio a voz doente do vulto.
Estava claro que ele não era uma pessoa muito saudável – caso fosse uma pessoa. Exala-
va um odor pútrido de animal em decomposição. Alguns poucos insetos o seguiam, eram atra-
ídos pela carne morta e apodrecida.
Sua capa puída ondulava no ar durante o voo rumo à Macieira. Um brilho metálico sur-
giu de sob a capa e atingiu a copa da árvore. Um galho com três maçãs caiu no chão e o vulto
recolheu todas.
A dor causada pelo corte roubou toda a voz da Macieira. A ferida sangrava seiva. Parte
da vida do espírito escorria rumo ao chão.
O vulto seguiu pela trilha. Tinha um encontro com a Verdade.

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Capítulo Onze
O Encontro com a Verdade

Quando seus olhos se acostumaram ao brilho do lugar, Hayrim pode perceber que ele
provinha do lago cristalino rodeado de árvores absolutamente saudáveis. Elas eram vigorosas
e tinham folhas verde-bandeira que adquiriam uma coloração azulada por causa do lago. O
solo dali era plano e a grama verde e fofa.
Sentada próxima ao lago, estava uma mulher de pele muito pálida. Seus cabelos longos e
lisos tão brancos como algodão. A mesma alvura tingia suas vestes de tecido leve, proporcio-
nando uma falta de nitidez nos contornos das roupas, dos cabelos e até da pele. Era como uma
enorme massa branca ao lado do lago. Ela tinha um brilho próprio, transcendental e pálido
como sua pele. Seus olhos fechados e a face inexpressiva impediam qualquer tentativa de a-
preender o que se passava na mente dela.
– Ashlay! Aproxime-se, Filha do Futuro, e faça a pergunta que lhe aflige – disse o espírito,
movendo suavemente os lábios pequenos e etéreos. Sua voz era uma mescla de várias repeti-
ções descompassadas das mesmas palavras. Não era difícil entender o que ela dizia, mas ainda
assim, não era uma voz humana, não era uma voz clara. Ela falava paulatinamente, com os
ecos de sua própria voz se sobrepondo e criando uma impressão de poder em Hayrim. Ela
acreditava que por se tratar de um ser poderoso e antigo, era natural que tivesse aquela voz
exótica.
Hayrim andou alguns poucos passos, afinal a porta não distava muito do lago. Era estra-
nho, mas aquilo fazia com que ela se lembrasse de seu pesadelo e, ao mesmo tempo, achasse
tudo muito parecido e diferente.
Elas fitavam uma à outra, em silêncio. O espírito, com os olhos fechados, provavelmente
esperando a pergunta; Hayrim, tentando descobrir qual era realmente a pergunta que seu
coração queria fazer. Novamente, estava em dúvida se realmente a pergunta que queria tanto
fazer era sobre a localização de Saysa. Algo lhe dizia que aquela não era sua maior dúvida, mas
se não fizesse aquela pergunta, nunca mais encontraria Saysa e estaria, portanto, traindo-a –
nunca perdoaria a si mesma se fizesse isso.
– Eu... Eu...
– Fale, criança, pois não deve temer fazer o que julga certo, nem tampouco o espírito da
verdade.
– Seria possível você ... digo, a senhora ... me dizer para onde e por quem foi levada mi-
nha amiga Saysa? – ela hesitou muito com as palavras, pois talvez ela fosse como a Macieira,
de temperamento explosivo.
– Possível tudo é, a menos que não o tenham tentado suficientemente ainda. Devo re-
querer que me entregue um tributo como prova de que tem boas intenções ao se valer de mi-
nha sabedoria e também de que passou pelo julgamento do guarda do jardim. Trouxe uma
maçã?
Tom, que estava com as frutas, se apressou em se aproximar para dá-las ao espírito.
– Não, criança – ela estendeu a mão esquerda e recolheu uma das frutas para debaixo de
suas vestes. – Seu companheiro tem mais urgência em ter sua pergunta respondida. Não se
incomoda de esperar, não é mesmo?
Depois de tudo o que havia acontecido, Hayrim não se sentiu desconfortável em deixar
Tom ser “atendido” primeiro. Foi sentar-se em um banco de madeira formado por diversos
pequenos galhos que pareciam ter crescido naquela forma. Ela imaginava o que Tom queria
saber, mas percebeu que não ouviria nenhuma pista. Ele falou tão baixo que o som não chegou
nem perto de Hayrim.

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A uma distância de quase três metros, Hayrim não conseguiu ver muito bem o que esta-
va acontecendo. Tom estava de costas e encobria boa parte da visão do espírito. Mudar de lu-
gar para ver melhor estava fora de cogitação (e se o espírito se zangasse?). Ela logo aceitou
que não precisaria ver tudo; afinal, ela era a próxima – o que poderia acontecer que ela não
descobrisse depois? A menos, é claro, que Tom não lhe contasse o que havia perguntado e que
resposta havia recebido.
Esse pensamento aterrorizou Hayrim, sua curiosidade estava se tornando cada vez mais
forte. Ela se pôs a prestar atenção para satisfazer em parte sua curiosidade.
A Verdade tomou uma maçã em suas mãos e examinou-a com seus olhos fechados. Não
era uma cena exatamente comum; mas era um espírito poderoso, talvez não precisasse estar
com os olhos abertos para ver. Ela, então, depositou gentilmente a fruta sobre a água. A super-
fície reluzente foi tomada por diversas pequenas ondulações enquanto a fruta era conduzida,
sobre a água, até o centro do lago quase circular.
Tudo parou. A fruta flutuando, ninguém sabia exatamente como, a não ser o espírito po-
deroso que permanecia impassível.
Foram alguns instantes assim: Tom observando a água, Hayrim na expectativa, a fruta
flutuando e o espírito imóvel, sereno.
De repente, a maça afundou com um som abafado na água. Foi muito rápido e discreto,
mas Hayrim pode ver claramente a enorme fruta vermelho-sangue submergir. O brilho azula-
do proveniente da água passou ao verde e gradualmente ao amarelo, chegando por fim ao
mesmo tom de vermelho da maçã. Hayrim teve certeza de já ter visto aquilo. Era um brilho
familiar, assim como a transição entre as cores.
Decorreram alguns minutos com Tom observando a água. Hayrim sabia que ele estava
vendo alguma coisa que ela não conseguia enxergar dali. Se ao menos pudesse chegar mais
perto...
Não! Não podia. O que seria de Saysa se ela se arriscasse tanto? Não era direito seu colo-
car tudo a perder por uma mera curiosidade. Mas, ainda assim... Por que Tom estava ali mes-
mo? Será que ele queria mesmo levá-la até lá como voluntário, porque era amigo de Saysa?
Pensando bem, ele disse que estava de passagem pela região de Sarsanel, que não ia pas-
sar muito tempo em Gom’Padol, tinha outros lugares para ir. E se ele desde o princípio tivesse
um objetivo em mente e Hayrim apenas houvesse esbarrado em seu caminho por coincidên-
cia? Será que ele já não planejava ir até a Verdade, apenas deu uma “carona” para Hayrim?
Será...? E se ele não tivesse a intenção de ajudar Hayrim depois daquele ponto? Ele teria cora-
gem de abandoná-la na busca de Saysa para seguir seus próprios objetivos? Será que ele era
tão egoísta?
Não. O egoísta não era Tom, era a própria Hayrim – afinal, ela foi quem veio depois. Ele
já tinha seus planos e não tinha nenhuma obrigação de ajudar uma garota que mal conhecia
(ainda mais uma garota que fugiu de casa, mas ela preferiu ignorar essa parte de seus pensa-
mentos). Se ele realmente tomasse outro rumo – ele não havia prometido seguir com ela em
busca de Saysa, apenas até ali – o que ela faria? Se quem levou sua amiga fora capaz de captu-
rar um cielagron tão esperto, que chance tinha uma garotinha?
Os pensamentos se tornavam cada vez mais opressivos e Hayrim se sentia mais e mais
acuada. Estava sendo empurrada para um beco sem escapatória. Era pior do que havia sido
quando escutou coisas que não devia e tomou decisões que ela agora julgava um pouco preci-
pitadas.
Mas, não. Não poderia hesitar. Havia escolhido seu caminho. Fugiu porque não tinha es-
colha e não tinha escolha agora, era sua obrigação encontrar e resgatar Saysa. E se Tom não a
acompanhasse, iria sozinha. Existiam milhões de pessoas no mundo, por que não haveria de
encontrar um outro alguém que lhe prestasse ajuda. Poderia pagar um caçador de recompen-
sas ou talvez um grande membro das associações dos justiceiros.

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Claro que, para essa solução da contratação de outrem, teria que voltar ao Oráculo e en-
frentar sua mãe, mas estava disposta a fazer tudo por sua amiga. Por ela faria tudo que fosse
necessário.

Tom estava se sentando ao lado dela. Era a vez de Hayrim encarar a Verdade. Ela não sa-
bia se havia encontrado a pergunta que realmente queria fazer, mas estava decidida a procu-
rar por Saysa e, portanto, era sobre ela que perguntaria. Tom lhe entregou a outra maçã e ela
seguiu firme, mas não tanto quanto queria, até o espírito, que aguardava.
– Ashlay, Filha do Futuro, que quer saber mais do que qualquer outra coisa? – perguntou
o espírito em um tom casual e sem uma gota de emoção, era quase maquinal, mas ainda assim
transcendental.
Hayrim pensou em tantas coisas que achou que não fosse conseguir dizer coisa alguma.
Pensou nas razões de tudo o que estava acontecendo com ela, pensou no que teria acontecido
com Ana, no que aquele homem queria com a Madame Casássono, no porquê dos estranhos
sonhos que vinha tendo nesses últimos dias e em mais uma porção de coisas que encheriam
uma resma de papel. Eram tantas coisas que passavam pela cabeça de Hayrim que ela nunca
entendeu como foi que exatamente a pergunta sobre o paradeiro de Saysa lhe escapou da bo-
ca.
– Muito bem... Nesse caso, dê-me a fruta.
A Verdade repetiu o mesmo ritual que havia feito com Tom. A fruta sobre a água, afun-
dando e depois o lago, que havia voltado ao azul, se vertendo gradualmente em vermelho.
Hayrim esperava que a Verdade lhe desse uma resposta, mas o que veio a seguir foi bas-
tante inesperado. Ela sentiu sua cabeça pesada. Estava tonta. Ia desmaiar.
Tudo escuro, Hayrim estava deitada de olhos fechados. Conseguia sentir o chão ao seu
redor, era firme sólido. Estava úmido, mais especificamente, o lugar estava molhado, mas era
uma água morna. Era quente ali. Em algum canto água pingava sobre uma poça e sobre a testa
de Hayrim havia outra goteira.
Ela abriu os olhos. Não fez muita diferença. Estava em um lugar escuro, provavelmente
escavado na pedra. Era basalto, majoritariamente. O calor da água era provavelmente decor-
rente de fontes termais. A caverna era, Hayrim percebeu alguns instantes depois, uma prisão,
pois grossas barras de ferro separavam Hayrim do corredor iluminado por archotes de luz
alaranjada bruxuleante.
Mas onde era aquele lugar? E onde estava a Verdade? Hayrim estava sozinha. Ou talvez
nem tanto.
Quando seus olhos se acostumam com a escuridão, você gradualmente passa a enxergar
contornos nas sombras. A visão de Hayrim estava se adaptando rapidamente e ela logo pode
distinguir uma massa disforme em um dos cantos da cela. Não era grande o suficiente para ser
Saysa, como Hayrim imaginou a princípio, mas tinha o tamanho exato de uma garota da idade
de Hayrim.
– Quem é você? – ela chamou, receosa.
– Ninguém em particular. Sou apenas uma prisioneira de Thrall, o Ogro, Encarregado da
Fortaleza de Fogo. Não que isso importe muito. Jamais ninguém fugiu daqui e jamais ninguém
o fará. Resignação é a única maneira de evitar a ira e as torturas de Thrall, o Ogro.
A voz da jovem parecia muito com o barulho de um pequeno rato, curta e esganiçada. Ela
não parecia ter o hábito de falar muito.
O lugar se encheu de uma luz forte e obviamente diferente dos archotes. Era uma luz
branca e transparente, mas que estava cegando Hayrim, pois seus olhos estavam preparados
para um local quase desprovido de luz e não pra um local feito somente de luz.
A cabeça pesou novamente, estava prestes a desmaiar quando viu a garota se transfor-
mar em uma mulher de vestes brancas que Hayrim achou muito parecida com a Verdade. Seus
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sentidos falharam, ela estava no meio do nada. Não ouvia, cheirava ou via. Não que estivesse
tudo silencioso ou escuro (ou branco), era algo diferente. Ela sentia apenas como se não fosse
material, não sentia a si mesma, era apenas pensamento. Apenas consciência pura e simples.
Filha do Futuro, recebeu aquilo porque ofereceu tributo. A Verdade lhe respondeu à per-
gunta que fez. Volte agora o seu lugar em Arqueareth.
A voz da verdade não era exatamente falada. Hayrim não apreendia aquilo por seus sen-
tidos, pois não os tinha no momento. Aquilo lhe ocorreu como um pensamento, mas sabia que
vinha da Verdade. Estava marcado com a essência de espírito antigo da Verdade, mas Hayrim
só não sabia como.
Hayrim imaginou se não estava daquele jeito há mais de uma semana ou talvez por anos.
Na verdade, não se importava, porque não sentia o tempo passar, entretanto lhe parecia que
muito tempo deveria ter-se passado para que tivesse como ver e pensar em tudo aquilo.

Ela estava de volta ao jardim, sentada ao lado do lago, da mesma forma que estivera
quando sentiu a primeira tontura. Não mais do que meia dúzia de minutos havia se passado e
ela sentia seu corpo pesado, com se houvesse carregado nas costas uma tonelada de grãos ao
cume da montanha mais alta. Tudo estava entorpecido, uma fadiga descomunal se abatia so-
bre a garota.
Ela se sentia muito fraca e suas extremidades pareciam estar dormentes, não sentia es-
pecialmente os dedos da mão esquerda. Ela sentia a cabeça doer e zumbir como se um enxame
de abelhas houvesse substituído seu cérebro e a ferroasse constantemente. Participar de uma
visão daquelas não era um esforço para o qual uma criança de 11 anos estaria preparada.
Tom correu para segurá-la ao sentir que logo ela desmaiaria. Foi algo intuitivo, mas ele
sabia exatamente o que fazia, como se houvesse treinado muito tempo para aquele tipo de
situação.
– Filha do Futuro, – veio a voz da Verdade, a princípio suave como antes, mas depois rís-
pida, como a que sempre afligia Hayrim em seus sonhos – não foi sincera com sua pergunta.
Foi-lhe dito que fizesse a pergunta que mais angustiava seu coração. A intenção desse espírito
era que esclarecesse sua maior dúvida entre todas e você mentiu. Mentiu para a Verdade. Não
fez uma escolha sábia. Deve agora pagar um preço por isso, conforme reza a Lei Original.
Hayrim viu tudo perder as formas. Os contornos se diluíam e o cansaço crescia. Logo tu-
do estava escuro. Ela havia desmaiado.

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Capítulo Doze
O Fim do Jardim

A Lei Original foi um acordo assinado mesmo antes dos tempos de Vid, En e Pol, os três
irmãos, e era a lei absoluta que regia os princípios de todos os espíritos que ainda viviam em
Arqueareth.
Quando, nos primeiros dias dos espíritos anciões convivendo com os homens, surgiram
as primeiras desavenças, os maiores espíritos daquela época se reuniram e escreveram um
tratado para fundar as bases dos acordos entre as duas raças. O ponto primordial dessa lei era
que os espíritos realmente existiam para auxiliar os homens, que são “seres demasiado imper-
feitos”, nas palavras da própria Verdade. Além disso, ficava determinada uma tabela de preços
a serem cobrados caso os acordos entre homens e espíritos para prestação de serviços.
O que aconteceu depois que Hayrim desmaiou foi consequência do preço que a Verdade
queria cobrar.

Sempre repetindo que queria receber um pagamento justo por ter sido enganada e que a
garota deveria lhe pagar com sua vida, a Verdade avançou sobre Hayrim, que estava, obvia-
mente, ainda desacordada. Tom teve que deixar a garota cair ao seu lado para segurar o espí-
rito.
– Se quiser a vida da menina, terá que me derrotar antes – disse Tom em uma voz muito
mais corajosa do que a que a maioria das pessoas estava acostumada a associar a ele.
– Com prazer! – disse a Verdade, mais parecendo uma cobra do que o espírito de alvura
impecável que eles encontraram mais cedo.
Ele a segurou pelos braços e ela arreganhou a boca emitindo um grunhido quase aliení-
gena. Com um chute ele a arremessou longe, mas não foi muito eficaz, ela voltou quase lite-
ralmente voando. As vestes leves ondulando com a movimentação do espírito davam ainda
mais velocidade à cena.
Foi tudo muito rápido. Quando a Verdade voltou para atacá-lo e ele sacou sua espada e
repetiu o mesmo movimento de antes quando estava lutando contra o caçador de recompen-
sas. O círculo de luz parando as mãos da Verdade, Anuhar e a espada atravessando o círculo de
luz e sendo envolta por uma espiral de luz granulada.
O golpe atravessou o peito do espírito, que guinchou de dor e se desfez em luz branca
granulada. Estava acabado.
A Verdade não existia mais como espírito corpóreo.

Hayrim ficou desacordada por muito tempo, mas sempre sonhando com e examinando
as lembranças que tinha da visão com as respostas de sua pergunta:
Thrall, o Ogro. Fortaleza de Fogo.
Ela repetia isso tantas vezes que logo parecia que só conseguia pensar naquilo durante
toda a sua vida. A resposta ecoava por decisão da própria Hayrim, pois se esquecesse, nunca
mais encontraria Saysa.

Tom olhou a seu redor. O que havia feito? O que estava pensando quando fez aquilo? De-
fender a garota, tudo bem; mas atacar e destruir a forma corpórea de um espírito tão podero-
so? Onde estava com a cabeça? Ele não poderia ter feito aquilo. Não, não poderia, mas não ti-
nha escolha. O que deveria ter feito a não ser aquilo? Deixado a garota perecer? Não, isso seria
ainda pior.

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Mas se não contasse a ninguém, quem descobriria? Nem uma única alma viva ia sequer
ao jardim fazia muito tempo. Quem, então, sentiria falta do espírito? Ninguém. Mas e se a ga-
rota acordasse ali? Não, tinha que tirá-la dali já.
~*~
Mas eles não eram os únicos ali.
O encapuzado que os perseguia deixando um rastro fétido para trás logo chegou ali. Seus
alvos não estavam mais no jardim àquela altura, mas ele queria aproveitar a viagem para falar
com a Verdade.
– Mas onde está aquela esquisita? – ele olhava ao redor, procurando por alguém. – Não
se pode confiar em espíritos.
Ele andou silenciosamente por alguns instantes, examinando o lugar. Abaixou-se em um
lugar próximo ao lago, cuja luminescência azulada havia desaparecido. A grama, antes verde-
jante, escurecia. Aquilo era, no mínimo, incomum. A Verdade mantinha sempre o jardim verde
e vivo, nenhuma planta morria. Entretanto, ele podia notar claramente que a vida deixava a
grama e logo toda ela havia morrido.
Lentamente a princípio, depois com velocidade próxima à de uma locomotiva, a vegeta-
ção foi morrendo a partir das margens do lago. As folhas secavam e escureciam, depois caiam
todas. As árvores, já nuas, começavam a se retorcer conforme seus troncos e galhos perdiam
toda a vida. Algumas perderam até mesmo galhos menores.
Por fim, toda aquela região do jardim estava morta e seca. As folhas caídas formavam
uma massa de quase dez centímetros de espessura. Veio uma lufada suave de vento e somente
os troncos das árvores não se verteram em pó e voaram.
O vulto de capa puída e olhos raivosos vermelhos observou tudo aquilo com atenção.
Percebeu, quando viu todo aquele pó sendo levado, que o espírito que procurava havia deixa-
do o jardim e sua forma corpórea. Ele olhou toda aquela morte que havia substituído o antes
glorioso Jardim de Panathos e sorriu.
– Parece que tenho uma presa audaciosa e poderosa. Isso está ficando cada vez mais in-
teressante – disse ele ainda com o sorriso malicioso no rosto antes de sair em perseguição de
seus alvos.
~*~
Hayrim acordou com um fino fio de luz que entrava por um furo na cortina e que cutuca-
va seu olho. Estava deitada em uma cama rústica no que parecia ser um quarto da Estalagem
da Mme. Casássono. Era tudo muito simples, mas ainda assim aconchegante, de certa forma.
– Quanto tempo tem que eu tou dormindo?
Ela levou a mão até a cabeça, pesada de tanto dormir. Parecia que estava desacordada há
mais de uma semana. O tempo havia esfriado e Vidempol estava menos brilhante do que an-
tes. Parecia que o inverno estava chegando.
Ela se levantou e foi até a porta. Estava com uma calça e uma blusa de um material muito
confortável e leve. Não conhecia aquelas roupas, mas estava gostando. Girou a maçaneta e
ouviu o chiado das dobradiças. Aquele lugar realmente se parecia com a Estalagem, até o chiar
das portas era idêntico.
O corredor conduziu Hayrim até uma escada de madeira clara, tal qual o resto do lugar,
desde o piso até as portas e janelas. Não desceu de imediato, ouvia uma conversa entre um
homem e uma mulher no cômodo de baixo.
– Acho que devo ir. Quem sabe eu não consigo encontrá-lo, Adelaide? – disse o homem,
que Hayrim reconheceu como sendo Tom.
– Mesmo assim acho que você está se precipitando. E se o que ela quis dizer era que ele
estava vivo, mas no próximo nível. É uma forma que os espíritos antigos costumam usar muito
para falar da morte. Eles nunca são completamente sinceros e claros sobre ela porque não a
veem como nós – respondeu a mulher com sua voz afável, mas vigorosa.

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Hayrim se lembrou imediatamente da Madame, Adelaide. Será? Claro que não. Como isso
seria possível?
– De qualquer jeito, eu vou. Em todo caso, é uma pequena chance, mas é uma chance.
Não posso desistir.
– Ainda penso que é tolice sua. Não passa de perda de tempo. Você vai gastar muito tem-
po com uma busca insensata. De todo modo, boa sorte.
– Obrigado, mas não vou partir ainda. Preciso terminar algumas coisas que comecei.
– Eu não o estava mandando embora, até agora – disse ela em tom jocoso. Depois, virada
para outro lado, gritou:
– O bolo ainda não está pronto, Ana?
Ana? Tinha certeza. Tudo se encaixava, estava na Estalagem da Mme. Casássono.
Desceu correndo as escadas e tropeçou no último degrau de tanta euforia. Ela voou so-
bre Ana, que trazia um enorme bolo de laranja, com cobertura de coco. O bolo se espatifou
contra a parede enquanto as duas caiam no chão.
A cena provocou risos histéricos em todos, principalmente quando viram o delicioso bo-
lo escorrer pregado à parede. As garotas se levantaram com a ajuda de Tom e se encaram ain-
da com o sorriso no rosto.
– Hayrim! – Ana abraçou-a afetuosamente.
– Como é que você está menina? – perguntou Mme. Casássono quando abraçava-a.
– Tou bem. Assim, um pouco triste porque acabei de destruir o bolo, mas bem.
– Tudo bem – disse Ana. – Talvez você se sinta melhor se comê-lo antes que chegue ao
chão.
Todos riram.
Hayrim podia não ter consciência disso ainda, mas havia muito que conversar com seus
amigos. Queria perguntar a Tom o que a Verdade havia lhe dito; de Mme. Casássono queria
saber o que aquele homem queria dela e de Ana, por que ela havia agido tão estranhamente
naquele dia em que os dois caçadores de recompensas foram procurar por ela e Saysa e por
que era tão calada antes.
Mas agora estava com tanta fome que poderia comer um elefante sozinha.
– O que tem pra comer? – perguntou, sorrindo de alegria por ter reencontrado tantos
amigos.
– A menos que você jogue tudo na parede, ainda tem pão, mel e geléia, além do suco.
Novamente todos riram do comentário jocoso de Ana.

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Capítulo Treze
Na Estalagem

Hayrim comeu tanto que todos acharam que ela fosse passar mal por causa disso. Eles
riram e falaram de amenidades enquanto tomavam o desjejum. Foi maravilhoso para ela po-
der ficar um tempo sem tantas preocupações lhe martelando a cabeça. Anunciou sem cerimô-
nia, quando terminava de engolir o último pedaço de pão de centeio, que precisava conversar
com todos, pois sua curiosidade estava atingindo níveis insuportáveis. Ana foi voluntária pra
ser a primeira.
Quando Mme. Casássono e Tom saíram para cumprir com o que quer que tivessem para
fazer, elas ficaram limpando a mesa e Hayrim foi direto ao ponto que lhe interessava:
– Ana, por que é que você foi tão estranha naquele dia? O dia em que a gente fugiu dos
caçadores de recompensas.
– Eu estava te ajudando, oras.
Muito evasiva.
– Mas você me arrastou para a cozinha! Claro que você me salvou, mas ainda assim, você
nunca falava e me mandou calar a boca.
Ana riu e depois decidiu ser mais sincera e menos evasiva:
– Eu era calada porque sabia que você não ia ficar aqui por muito tempo. Quando eu des-
cobri que você estava fugindo de alguém ou de alguma coisa, eu logo percebi que você ia em-
bora daqui bem rápido.
– Mas como você–? Quem–?
– Ninguém me contou. Você acha que é muito difícil saber que alguém é procurado em
uma estalagem onde todas as noites um bando de caçadores de recompensas vem beber?
– É, você tem razão. Mas porque você ficava calada. O que você tinha contra mim? Era
porque eu sou fugitiva?
– Olha... Sim e não. Sim, era porque você estava fugindo, mas não era exatamente por is-
so. Sabe, é complicado. Deixa ver como eu vou explicar para você...
Ela pensou por alguns instantes e levou uma pilha de pratos para a cozinha para que fos-
sem lavados. Hayrim seguiu-a com o restante da louça a lavar.
– Eu fui largada em um orfanato quando eu tinha cinco anos e todos os meus amigos
sempre partiam primeiro que eu. Todos, sem exceção, não ficavam muito tempo. Ou um pa-
rente ia buscá-lo ou então o serviço de adoção o levava logo. E eu nunca fui. Eu sempre fiquei
para trás e nenhuma das minhas amizades durava.
“Desde então, eu tento evitar fazer amizade com pessoas que eu sei que não vão ficar por
muito tempo, porque isso é ruim. Me faz lembrar do tempo em que eu vivia no orfanato. Além
de eu sempre estar sozinha, ou as amizades ficarem muito pouco, tinha a diretora. Ela era uma
mulher má, com nariz de águia e olhos miúdos. Ela não gostava de mim e fazia de tudo para
me torturar.
“Foi só quando a Mme. Cas|ssono me adotou h| um ano e meio mais ou menos que eu
passei a fazer alguns amigos, mas eu não consigo me sentir segura para confiar em pessoas
que eu sei que vão partir logo.”
– Mas você confia em mim agora, não confia?
– Agora, é outra história. Na verdade, eu já gostava de você naquela época. Achava você e
Saysa uma dupla muito legal, mas não queria correr o risco – ela sorriu afavelmente enquanto
começava a ensaboar a pilha de pratos de quase um metro e meio que se apresentava diante
delas.
– Hum... Acho que entendi. Mas, você descobriu o que é que aquele homem veio conver-
sar com a Mme. Casássono naquele dia?
– O Dr. Augusto? Claro, ele já deve estar voltando do escritório dele.
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– Como assim?
– Eles vão se casar daqui a umas duas semanas.
– Quem vão se casar?
– A Mme. e o Dr. Augusto, ora. Vai me dizer que você não desconfiou disso quando ele
apareceu aqui?
Ana falava daquilo com a maior naturalidade do mundo. Era tão óbvio que ela mal podia
acreditar que Hayrim nem sequer desconfiasse.
– Eu... – ela não queria passar por sonsa, então arrematou com voz firme – até que pensei
nisso, mas o jeito que ele falava... Sei lá... me pareceu que ele queria alguma outra coisa.
Ana riu mais uma vez. Metade da pilha estava esperando o enxágue e a outra metade a-
inda estava suja. Ana passou a enxaguar a primeira metade.
– Você não fazia a menor ideia, não é?
– Eu? Lógico que sabia. Inclusive acho que eles são um casal muito bonitinho.
– Sei...
– Verdade, Ana. Acho que ele até que parece ser um cara bem legal.
– E como! Ele salvou minha vida naquele dia que vocês foram embora.
– Hein?
– Quando vocês saíram, um dos caçadores de recompensas veio aqui. Ele entrou na cozi-
nha e disse que eu estava mentindo e que ele queria que eu contasse onde é que você estava.
Ele estava muito nervoso. Ele ergueu o machado para me acertar. Eu vi minha vida passar di-
ante dos meus olhos quando aquela coisa tava descendo para me acertar. (Não era um filme
muito bom não.) Mas, ai, o Dr. Augusto chegou com a Mme. Casássono e me salvou bem na
hora. Foi assustador.
– Então foi por isso...
– Por isso o que, Hayrim? – ela começou a lavar a outra metade da pilha, enquanto Ha-
yrim começava a secar e guardar em um armário os pratos.
– Por isso que só um dos caras veio atrás da gente, o outro tinha ficado aqui. Nossa, ele
era assustador também. Ele arrancou um monte de árvores ali – ela apontou a porta.
– A gente viu. Acho que você vai gostar de saber que ele foi preso por devastação de ve-
getação particular. Ele vai ficar na cadeia até o final do ano, eu acho.
Elas riram de sua sorte e seguiram com a pilha de louça.

Quando estavam terminando os afazeres na cozinha, Tom entrou e pediu para falar com
Hayrim em particular. Ela não tinha muita certeza se já queria falar com ele, mas aceitou, pois
Ana disse que não se preocupasse, terminaria sozinha. Ele a conduziu pela porta dos fundos
da Estalagem até uma região de colinas verdes muito parecidas com aquelas onde haviam a-
campado.
– Hayrim eu a chamei para conversar porque há uma coisa que preciso que me conte.
Preciso saber o que a Verdade lhe disse.
– Eu também estava querendo falar com você sobre isso. Quando eu fiz a pergunta para a
Verdade, eu vi um lugar escuro, com uma menina em um canto. Era uma prisão, agora eu te-
nho certeza disso, e a menina me disse que ela estava lá porque havia sido raptada por um
cara chamado Thrall e que–
– Você quer dizer Thrall, o Ogro? – perguntou ele com olhar pensativo.
– Esse mesmo. E ela disse que ninguém jamais escapava de lá, da Fortaleza de Fogo. Eu
nunca vou esquecer isso, mas não fez a menor diferença saber onde e quem levou Saysa. Eu
não faço a menor ideia de onde esse lugar fica e nem de quem é esse tal ogro.
– É ai que você se engana. A informação que você tem é mais do que suficiente para en-
contrarmos Saysa.
– Você quer dizer que vai comigo até lá?
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– Mas é lógico. Você não estava achando que eu ia deixar você ir sozinha não é?
– Não, não é isso – ela não sabia o que dizer.
– Hoje à noite, depois do jantar, vamos traçar um plano para conseguirmos resgatar Say-
sa. Agora... Vá descansar, acho que você está precisando.
Ela não quis insistir e decidiu que era melhor seguir o conselho de Tom. Estava mesmo
sentindo seu corpo cansado.
~*~
Em um dos cantos escuros e recônditos de Sarsanel, o homem de vestes velhas e olhos
raivosos vermelhos exalava seu odor pútrido. Estava sentado em uma mesa de canto, bebendo
vinho de Pmoraiv, uma raridade naquela região.
Os tipos que freqüentavam aquele lugar eram bem menos respeitáveis que os que iam
regularmente à Estalagem da Mme. Casássono. Ele estava olhando o nada, sua cabeça, baixa,
escondida pelo capuz puído. Ninguém falava muito ali, eram sujeitos muito cheios de mistério
e, de certa forma, muito parecidos com o vulto negro que seguia Hayrim.
– Kalinak, é você? – perguntou um outro vulto negro em tom amistoso enquanto se a-
proximava do indivíduo de olhos vermelho-sangue.
– Augusto? Quanto tempo... – o vulto ainda tinha a voz arranhada, mas não havia nada de
ameaçador nela.
Ele estendeu a mão direita, coberta por uma luva, e cumprimentou Augusto.
– O que você está fazendo aqui, cara? –perguntou o futuro esposo de Mme. Casássono.
– Eu? Só o de sempre. Seguindo pessoas, tentando cortar meia dúzia de pescoços, coisas
banais... – ele riu alto com espontaneidade.
Augusto riu também.
Eles eram amigos de longa data e ficaram conversando por várias horas. Falaram dos
planos de cada um para o futuro próximo. Augusto mencionou seu casamento com verdadeira
paixão por Adelaide e convidou seu amigo para que comparecesse. Ele só respondeu que se
houvesse terminado o trabalho que estava fazendo naqueles dias, iria. Falaram de muito mais
coisas, a maioria sem qualquer relevância. Comentaram a crise financeira de Carianash, a ilha
dos algodoeiros, e a crise política do País das Águas. Augusto duvidava ainda que a rainha Trí-
tia houvesse morrido de fato, mas Kalinak disse ter confirmado com fontes seguras que ela
realmente não estava mais viva, pelo menos não nesse mundo. Depois acrescentou em tom
confidente que havia fortes rumores, difíceis de confirmar, é verdade, mas ainda assim fortes,
de que um garoto de pouco mais de 10 anos teria derrotado-a. Falava-se até no fim iminente
do antes inabalável País das Águas. Claro que, mesmo assim, ele ainda tinha dúvidas se tudo
isso era verdade.
Estava escurecendo e Augusto se levantou para ir embora. Tinha que estar em casa antes
do jantar ou Adelaide o enforcaria com o forro da mesa. Kalinak sairia poucos instantes de-
pois. Também tinha um jantar a que comparecer.

52
Capítulo Catorze
O Plano

Eram por volta de cinco e meia quando o crepúsculo se aproximava do fim e todos se re-
uniam na estalagem. Augusto foi o último a chegar e Mme. Casássono ficou bastante nervosa
com ele. Depois de alguma discussão eles selaram as pazes com um beijo apaixonado e foram
jantar. Naquela noite comeram assado de porco e arroz com lentilha, acompanhados por uma
salda fantasticamente viçosa de alface, agrião, morango e manga. Todos, em especial Hayrim,
comeram avidamente, pois sentiam-se muito cansados naquele dia.
Depois de saciarem a fome, Mme. Casássono, seu futuro marido e Ana foram para a cozi-
nha para lavar a louça do jantar, mas, principalmente, para deixar Hayrim e Tom a sós. Eles
iriam, naquela noite, planejar o resgate de Saysa e, como nenhum dos demais iria junto, essa
conversa não dizia respeito a qualquer um exceto os dois.
Tom estendeu um enorme mapa-múndi sobre a mesa. Estava um pouco desgastado nas
extremidades e o papel bem amarelado. Tinha dimensões de 0,9 x 1,6 m e exibia três conti-
nentes, os dois menores à direita e o outro, maior do que a soma dos demais, à esquerda. No
topo do mapa, sobre uma região de água, lia-se, em uma faixa que enlaçava e entrecruzava a si
própria:

ARQUEARETH
Palun’Arzel ush Palun’Unhar rasuist un Concilier

Hayrim observou aquilo com tanta atenção quanto seria possível. Ela nunca havia visto
um mapa de Arqueareth e também nunca havia visto aquela frase, nem tampouco fazia ideia
do que ela poderia significar. Ela reconhecia aquilo como sendo uma das línguas antigas que
Saysa havia tentado lhe ensinar. Parecia ser o que sua amiga chamava de Língua Primal, a lín-
gua que os seres mais antigos que os espíritos falavam e que hoje uns poucos tinham qualquer
interesse em aprender. Sabia que rasuist tinha algo a ver com proteção. Não conseguia enten-
der mais nada.
Tom fez uma reverência ao abrir o mapa e leu baixinho a frase, uma espécie de ritual que
provocou uma enorme vontade de rir em Hayrim, mas ela se conteve.
– Nós estamos aqui, a uns trezentos quilômetros da Grande Baía – ele apontou um lugar
no grande continente da esquerda. Ficava do lado esquerdo do continente. – Você disse que
Saysa está na Fortaleza de Fogo, certo? – esperou até que ela assentisse com a cabeça e pros-
seguiu – Bem, ela fica bem aqui – ele apontou um lugar mais ao sul, depois da fronteira com
outro país. –Nós temos, então, alguns problemas.
– Como assim?
– Primeiro, o lugar é bem complicado de chegar, pois só há um trem-de-nuvem que vai
para lá por semana. Ele sempre parte no sábado às seis da manhã, ou seja, anteontem. Isso
significa que só podemos partir daqui a cinco dias. De qualquer maneira, isso é bom porque
nos dá mais tempo para nos prepararmos.
– Concordo – Mentira! Eu queria sair hoje. Agora, se possível. Uma sensação de impotên-
cia se abateu sobre Hayrim, mas ela se pôs a imaginar que em uma semana provavelmente
estaria com Saysa a salvo e isso a reconfortou.
– Segundo, a Fortaleza de Fogo fica fora dos limites de nosso país. Isso quer dizer que, se
formos apanhados não teremos tanta sorte quanto se o que temos a fazer fosse aqui. Para a-
gravar um pouco a situação, a rainha Hemera recentemente teve alguns desentendimentos
com a rainha do país onde fica a Fortaleza, ou seja, ela já não gosta de estrangeiros – de nós
então... digamos que ela detestaria nos ver lá. Em resumo, essa deve ser uma missão discreta
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e, de certa forma, de espionagem. Não podemos deixar ninguém nos ver, ou saber que estamos
indo para lá.
– Nem a Mme. Casássono?
– Claro que eu não quis dizer ninguém no sentido de qualquer pessoa, mas de pessoas de
fora. Quando pegarmos o trem-de-nuvem, diremos que estamos indo para Sulesia, a cidade
mais próxima da Fortaleza.
– Ah, tá!
– Terceiro, de todas as pessoas para raptar Saysa, nós tínhamos que ganhar na loteria e
sair justamente com Thrall.
– Qual o problema com ele? É porque ele é um ogro?
– Não exatamente. Ele não é um ogro, ele recebeu o apelido de ogro porque se parece
muito com um. Ele tem um rosto grande e bochechudo, com pele lisa e rançosa, um enorme
nariz de batata e lábios pesados e protuberantes que mais parecem duas fatias de banha. Ele
tem a cabeça careca e uma enorme papada no lugar do pescoço. Uma das orelhas tem um a-
largador tão grande que poderia passar seu pinho fechado por ela com tranqüilidade. Além
disso, ele tem olhos miúdos e uma barriga gigante. Ele quase não fica de pé por causa de seu
peso, mas tem mais de dois metros de altura – alguns falam em dois metros e meio. Como não
fosse o bastante, a única coisa que ele preza mais do que dinheiro é coxa de avestruz frita.
– Credo!
Ela fez uma cara de asco. Estava imaginando a criatura mórbida.
– O que vamos fazer então, Tom?
– É ai que chegamos ao quarto problema.
– Tem mais?
– Eu não disse que tinha acabado... Nós não temos dinheiro suficiente. Se quiséssemos
pegar Saysa de volta, o jeito mais simples seria comprando-a.
Hayrim ficou indignada. – Comprar minha amiga? Você ficou louco? Quem pensaria em
vender Saysa?
– Você estava prestando atenção? Ele só pensa em coxas de avestruz fritas e em dinheiro
para poder comprar mais delas.
– Mas pra quê vender Saysa? Quem pagaria por ela?
– Um monte de gente pagaria uma fortuna por ela. Saysa é um cielagron, ela é capaz de
falar e raciocinar como qualquer um de nós (ou talvez melhor do que a maioria). Entretanto,
ela é considerada um animal, e isso atrai colecionadores. Eles são homens ricos que não sa-
bem mais o que fazer com o dinheiro que ganham. Em um leilão, um colecionador poderia
pagar por Saysa um valor suficiente para Thrall comer coxas de frango à vontade pelo resto da
vida dele e ainda sobraria muito dinheiro. O valor que ela poderia atingir é quase inestimável.
– Mas ele não pode vender Saysa. Isso é ilegal. Ele sequestrou Saysa e, mesmo assim, ela
nunca foi de ninguém – ela estava visivelmente nervosa com aquilo.
– Hayrim, Thrall é inescrupuloso. Ele parece ser tolo, mas quando o assunto é ganhar di-
nheiro, ele cria os melhores planos possíveis dentro do mundo do crime. Ele venderia a pró-
pria mãe se ela fosse viva e ele encontrasse comprador.
– Não podemos deixar que ele faça isso. Temos que salvar Saysa antes que ele venda mi-
nha amiga.
– Se ele continuar tão ganancioso como sempre foi, ele vai espera pelo menos mais duas
semanas até ela atingir um bom valor. Não se preocupe tanto. Estamos elaborando um plano e
estamos considerando todos os problemas que existem nesse caso. Vai dar tudo certo.
– Mas, o que nós vamos fazer, Tom? – ela estava ansiosa por saber qual era o plano, ou
ao menos a ideia que ele tinha para salvar Saysa desse monstro que era Thrall.
– Preste bem atenção, pois tudo tem que ser feito com perfeição. O plano é bem simples.
Nós vamos entrar escondidos na Fortaleza e resgatar Saysa. Vamos entrar sem ser vistos e

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vamos sair sem que ninguém saiba. Quando Thrall perceber o desaparecimento de sua mer-
cadoria mais valiosa, já estaremos bem longe.
– Isso! – ela não conteve sua empolgação.
~*~
Envolto em sombras, Kalinak escutava os planos dos dois e via tudo por uma das janelas
do salão. Ele riu do plano e da empolgação idiota da garota. Eles nunca seriam bem sucedidos
naquela empreitada. Agora tinha a informação que precisava.
– Tenho um encontro com Thrall, o Ogro. Acho que vou fazer uma visita à Fortaleza de
Fogo – disse ele para si mesmo e depois saiu correndo pela escuridão. Seus olhos vermelhos
encobertos pelas sombras e o som do vento abafando sua risada cheia de pestilência.

55
Capítulo Quinze
O Sonho e o Trem-de-Nuvem

Quando haviam decidido o que fazer, Tom disse a Hayrim que fosse se deitar, pois era
tarde. No dia seguinte eles estabeleceriam os detalhes do plano. Ele ficou ainda alguns minu-
tos olhando para o mapa, como se estivesse conferindo mentalmente o que havia imaginado
fazer. Tudo parecia certo, apesar de um sentimento de que ele não estava vendo alguma coisa.
Sentia como se deixasse passar algo obvio, mas não podia ser – havia pensado em tudo.
Ele, apesar desse sentimento estranho, subiu e foi para a cama, precisava descansar. Os
últimos dias haviam sido esmagadores e os que estavam por vir poderiam ser ainda piores.
Ele imaginava como conseguiriam entrar na Fortaleza e sair sem serem percebidos. Mas não
era hora para isso. Agora precisava dormir. Talvez uma boa noite de sono clareasse suas idéi-
as e mostrassem uma solução para o problema invisível que se apresentava.

Era um salão de teto alto e abobadado. A nave principal havia sido esculpida na própria
pedra de uma forma muito pouco cuidadosa. Estava quente ali, alguns graus acima da tempera-
tura normal de uma região equatorial. Era calor suficiente para fazer qualquer um suar, mas
ninguém parecia estar ali para tal. As duas naves laterais, muito menores, pareciam servir ape-
nas de conectores entre a principal e os demais cômodos do lugar. Aquela rocha era negra e, de
certa forma, transmitia uma ideia de porosidade ou algo parecido.
Mas que lugar era aquele e o que ela estava fazendo ali?
Hayim percebeu, após um estudo mais apurado, que era como uma sala de trono. As colu-
nas enfileiradas deixavam um grande corredor no centro, o qual, iluminado por archotes bruxu-
leantes com fogo alaranjado, seguia na direção do trono. Mas que trono?
No lugar onde deveria estar a tão simbólica cadeira do governante que ali residia, havia
uma pesada cortina de veludo vermelho. Nada se via através dela. E era tão silencioso ali, quase
como se alguma coisa estivesse errada.
Ouviu passos. Alguém se aproximava por detrás de uma das portas laterais. Ela se escon-
deu atrás de uma coluna de onde podia ver a porta que se abria. Era uma porta de madeira mui-
to velha e podre. Ela se abriu com um rangido interminável e quase clássico. Surgiu uma criatu-
ra monstruosa.
Parecia com uma grande bola com pernas e uma segunda bola menor equilibrada sobre a
maior. Tinha uma salsicha gigantesca e dobrada saindo de cada lado da bola maior. Estava an-
dando. Era Thrall. Ela tinha certeza. A descrição de Tom se encaixaria perfeitamente naquela
situação. As duas salsichas eram, na verdade, os braços do ser terrivelmente estranho. Era algo
além do normal.
Ele caminhou até a cortina e, segurando uma enorme coxa frita na mão esquerda, puxou a
cortina com a outra mão e desapareceu. Era provavelmente atrás da cortina que estava o trono.
Mas por que a cortina?
Hayrim reparou que desde o rangido da porta, o lugar havia adquirido, na medida do pos-
sível uma certa normalidade. Thrall havia entrado cantarolando uma música antiga parecida
com: tan-taran-tantam tan-taran-tantam tariru-taran-tantam. Agora, o lugar havia adquirido
novamente o silêncio mórbido que antecedeu a entrada de Thrall. Estava quieto demais.
Mas que honra a minha, a Filha do Futuro em meus humildes domínios. A que devo essa
visita? disse uma voz forçadamente abobalhada e gutural vinda de detrás da cortina, provavel-
mente era Thrall.
Eu...
Hayrim não sabia o que dizer. Ela não havia falado sobre aquilo com Tom. Não sabia o que
fazer se encontrasse o sequestrador de sua amiga. Queria avançar sobre ele e exigir que devol-

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vesse Saysa, mas de nada adiantaria. Ele era grande demais para ela e poderia descontar qual-
quer atitude precipitada em Saysa. Poderia até mesmo... Não! Ela não queria pensar nisso.
Conforme não veio resposta, o Ogro decidiu forçar uma conversa.
Soube que você veio até aqui porque acha que tenho algo que lhe pertence. Algo que um
espírito lhe disse que estava comigo. Isso é verdade?
Não era a mesma voz. Era... diferente. Era mais forçada do que antes e menos próxima do
resultado desejado.
Não exatamente. Era melhor dizer a verdade. Primeiro porque não é algo e sim alguém.
Segundo porque ela não me pertence, ela é minha amiga. Mas sim, você está com ela e foi um
espírito muito poderoso que me disse isso.
Veio um longo momento de silêncio torturante. Depois o Ogro falou novamente.
Esse espírito mentiu para você.
Hayrim ficou aterrorizada com o que ouviu. Não pelo conteúdo do que foi dito, mas pela
voz que disse aquilo. Não era nem um pouco parecida com Thrall. Era arrastada, arranhada e
doente. Era uma voz cheia de mal.
Quem é você?
Ela viu, tarde demais, que não deveria ter feito aquela pergunta. Fosse quem fosse, era al-
guém muito perigoso. Deu alguns passos para trás por precaução.
Eu? Acho que você não viverá o suficiente para saber.
Foi tudo muito rápido. A cortina de veludo se desfez em chamas e sombras vivas voaram do
trono. Elas seguiram pelo ar em direção a Hayrim mais rápido do que um jato comercial. Ela
conseguiu distinguir olhos vermelhos na sombra do centro. A garota reagiu por impulso, cobriu o
rosto com as mãos espalmadas. Uma espada dentada surgiu na sombra do meio e seguia na di-
reção de Hayrim. A sombra de olhos vermelhos tinha, claramente, uma intenção assassina. A
sombra se desfez em flocos de luz azulada quando a espada estava prestes a atingir Hayrim. A
voz de uma mulher, a mesma dos outros sonhos, gritou para que Hayrim saísse dali. Ela se desfez
em flocos de luz.

Hayrim acordou ensopada. O pesadelo que havia tido naquela noite havia sido o mais re-
al de todos nos últimos anos. Ela sentiu como se aquilo fosse real. De alguma forma era real,
mais do que qualquer outro sonho. Quase mais do que a própria realidade. Ela demorou muito
a dormir outra vez. Aquele havia sido o mais aterrorizante de todos os seus pesadelos. Ela
pôde sentir a espada maléfica cortando sua pele.

Tom acordou preocupado. Alguma coisa não estava muito bem. Ele conseguia sentir que
alguma coisa estava tragicamente errada. Não fazia a menor ideia do que poderia ser, mas
havia algo. Ele levantou com uma pressa incomum e engoliu seu café da manhã, duas fatias de
pão, com três goles de café bem forte. Ele logo em seguida saiu.
Hayrim ainda dormia quando Tom chegava à estação aérea de Sarsanel. Era uma cons-
trução basicamente metálica, suspensa sobre diversas pilastras e com não mais do que cem
metros de trilhos. Qualquer um que entenda um mínimo sobre trens imaginaria que aquilo era
uma obra ainda inacabada, mas ela estava pronta a mais de cinco anos. A essência era que os
trens-de-nuvem só precisavam daqueles trilhos para pouso. Na maior parte do tempo eles
ficavam suspensos no ar, flutuando por causa dos inúmeros balões de gás leve e sendo guiado
por um dragão domado.
Ela estava cheia como sempre, exceto talvez por um guichê bem distante das entradas.
Ele ficava em um dos cantos da estação e era o menos atraente de todos. Sujo e bem velho, só
havia uma atendente no guichê. Uma mulher velha de cara amarrada e nariz de águia esprei-
tava por detrás de um par de óculos em meia lua. No alto do guichê, para o desapontamento
de Tom, lia-se Sulesia – cancelado.
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Ele se aproximou do vidro e encarou a mulher do modo mais penetrante possível. Ela
não moveu um músculo sequer de seu rosto de maracujá seco. Foram necessários alguns mi-
nutos para que ele percebesse que ela não falaria coisa alguma a menos que ele tomasse a ini-
ciativa.
– A senhora poderia me dizer por que o trem-de-nuvem para Sulesia foi cancelado?
– Porque ele não vai mais partir.
– Isso eu já percebi.
Que mulher mais mal-humorada.
– O que eu queria saber da senhora é o que está impedindo que ele parta?
– O dragão autorizado para fazer essa viagem ficou impossibilitado de trabalhar por al-
gumas semanas – respondeu ela rudemente.
– Mas ele não pode ser substituído?
– Se pudesse acha mesmo que a viagem seria cancelada?
Ela havia sido mais rude dessa vez e, apesar de Tom ter feito uma pergunta obviamente
inteligente naquela situação, ela fez com que ele parecesse um idiota com a maior facilidade e
naturalidade do mundo.
– Mas, então, quando essa viagem volta a ser feita?
– Não sou o Oráculo! – ela estava visivelmente nervosa. – Os técnicos da companhia fa-
lam em cerca de duas ou três semanas. Agora faça o favor de parar de me importunar, rapaz.
Some daqui.
Muito a contragosto, ele saiu. Não porque a mulher exercera alguma autoridade sobre
ele, mas porque os seguranças da estação, cada um do tamanho de um armário, já dirigiam
olhares nada amigáveis ao perguntador.

Naquela noite, depois do jantar, Tom procurou um meio de contar a Hayrim o que havia
acontecido. A viagem teria que ser feita por terra e isso levaria mais uma semana. Se tivessem
muita sorte, conseguiriam completá-la em oito dias. Caso contrário, a jornada até a Fortaleza
de Fogo poderia levar até quinze dias.
Tom disse a ela que ainda assim seriam capazes de resgatar Saysa a tempo. Ele estava
certo disso. Hayrim, que havia aprendido a confiar nele, também se sentiu confiante. Mas ficou
ainda mais confiante pelo fato de não ter que ficar sentada esperando o dia de partir. Eles sai-
riam em direção à Fortaleza no dia seguinte após o desjejum.

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Capítulo Dezesseis
A Viagem até Nelayahs

Eles viajariam de Sarsanel a Nelayahs em um trem comum ou o que o povo de Sarsanel


chamava de polivagonete. Em Nelayahs, pegariam uma carroça aérea até Sulesia. De lá, segui-
riam por conta própria até a Fortaleza. O cronograma intencionado por Tom trabalhava com
nove dias de viagem. Seriam três dias e três noites no polivagonete, mais dois dias e duas noi-
tes na carroça e, por fim, quatro dias e três, talvez quatro, noites entre Sulesia e o destino final
deles.
Hayrim ouviu tudo com atenção durante o café-da-manhã. Tudo parecia em perfeita or-
dem. Ela realmente achava que daria certo. Ela resolveu se despreocupar por alguns dias. Pelo
menos até chegarem a Nelayahs, tudo estava correndo bem. Não tão bem quanto poderia, mas
muito bem.
Eles embarcaram no trem das dez da manhã. Ele faria diversas paradas antes de chegar
a seu destino final, Nelayahs. Seria uma viagem calma, era o que prometia a companhia estatal
que administrava as rotas. Eles viajariam com conforto e segurança no mais moderno trans-
porte sobre trilhos, afirmava a jovem atendente com um sorriso afável e imutável no rosto.

A viagem de polivagonete até Nelayahs foi realmente o que a companhia prometia: cal-
ma e segura. No final das contas, Hayrim achou que ela foi quase monótona e que ela não
combinava nem um pouco com o que havia imaginado. Tom passou quase todo o tempo lendo
um livro de capa dura, couro provavelmente, de nome A Lenda das Origens. Ele não fez ques-
tão de contar do que se tratava e ela não se dispôs a perguntar.
Hayrim concentrou sua atenção basicamente na vegetação da região por onde viajavam.
Mas logo isso se tornou a coisa mais chata do mundo. Era sempre grama, da mesma cor, sem-
pre umas pequenas colinas. Nada mudava. Foram três longos dias de verde e nada de interes-
sante, exceto pela última noite no trem.
Ela estava no Oráculo. Estava escuro como na noite em que ela fugiu. Um silêncio morbi-
damente torturante imperava no local, intermitentemente quebrado por violentos trovões. De
tempo em tempo a própria escuridão era rasgada por fortes veios de luz. Uma tempestade vigo-
rosa ameaçava o lugar.
Aquela era a sala de visões de sua mãe. O espelho, coberto por uma fina camada de água,
estava posto sobre a mesa. Ele emitia uma luz avermelhada muito pálida, que tornava o lugar
tão familiar a ela assustador. Ela se aproximou da mesa. Sabia que era uma visão do futuro.
Sempre era.
Então ela viu algo que a deixou paralisada de medo. O espelho tinha duas finas linhas ver-
melho-sangue dividindo-o em quatro partes. Cada quarto exibia uma imagem diferente. Cada
imagem era pior do que a outro. A cada instante Hayrim ficava com mais medo do que viria. As
três imagens que faziam sentido para ela eram terríveis, mas a quarta, que mostrava pessoas
que ela desconhecia era a pior de todas.
No canto superior esquerdo, ela viu sua mãe e sua tia presas em uma gaiola de pássaros
gigantes. Elas estavam acorrentadas às grades e tinham as cabeças baixas. Uma mulher de rou-
pas negras que Hayrim conhecia de algum lugar brandia um chicote no ar, ameaçando as irmãs.
Elas não faziam nada. Estavam em dor profunda, seus corpos, exaustos. Elas pareciam não per-
tencer a este mundo. Seus corpos estavam cobertos de feridas e hematomas, e o chão estava em-
poçado de sangue. Era horrível demais para continuar a olhar.
À direita, Saysa era vendida por uma saca de moedas. Ela viu Thrall trocando a amiga por
dinheiro com um homem de terno acompanhado por uma dúzia de seguranças. Um brilho malé-

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fico surgiu no rosto dele. A imagem se desfez e outra rapidamente tomou seu lugar. Era Saysa
inerte no chão. Não havia vida nela.
No canto inferior esquerdo, ela viu algo ainda mais horrível. Ela estava sentada em um
banco adornado. Elas estavam em meio a uma multidão. Todos olhavam atentamente uma espé-
cie de altar. Lá, Andrew segurava uma adaga brilhante que descia rumo sua tia, Verlandi, e sua
mãe, Skuld. Ao lado dele, Tom descia uma adaga idêntica rumo a Saysa.
Ela não queria mais olhar para aquilo, mas seus olhos foram atraídos pela última imagem
projetada pelo espelho. Estava embaçada e ela não podia distinguir muita coisa a não ser uma
mulher de pele azulada encarando um grande dragão de nove cabeças, todas diferentes entre si.
O dragão pisou o chão com força e todo o planeta entrou em colapso, explodindo por fim. Ela
tinha uma visão clara disso de onde estava, vagando no espaço. O planeta ela por fim reconheceu
como sendo Arqueareth.
Vê? disse uma voz arranhada e cheia de mal vinda das sombras que circundavam Hayrim.
É isso que acontecerá com o seu amado mundo, a seus amigos e parentes. Desista de tudo e
eles serão poupados. Você não deve cumprir a Profecia, ela só trará sofrimento a todos, em
especial a você. Quer ser a causa disso?
Não! É mentira isso não vai acontecer. As previsões não são absolutas. Você está men-
tindo!
Por que eu mentiria?
Hayrim não soube responder. A voz estava certa. Ela era quem mais sofria naquelas previ-
sões. Era culpa dela, como a sombra dizia. Talvez ela estivesse certa. Era culpa dela. Se ela pa-
rasse, nada aconteceria. Ela poderia desistir de tudo. Se isolar...
Isso mesmo, criança. Não interfira no destino do mundo. Venha para mim, posso te aju-
dar. Posso te proteger.
A voz era tão suave que Hayrim se perguntava como não havia percebido aquela doçura
antes. Ela estava certa. A escuridão a protegeria...
Hayrim caminhava lentamente para longe de todos que conhecia, se esconderia nas som-
bras. A dona da voz a protegeria.
Sim... eu te protegerei. Você estará segura aqui. Venha...
Não! Sua consciência despertou de súbito. Eu fiz uma promessa a Saysa. Eu vou encontrá-
la. É por isso que estou viajando para tão longe. Eu vou salvá-la.
Por enquanto, mas o que será depois?
Mais uma vez, ela estava sendo dominada pelo encantamento. Foi então que se lembrou do
que sua mãe lhe disse uma vez.
Não importa quão real uma visão seja, ninguém pode saber se e quando ela se tornará
realidade consumada. Visões são tão imprevisíveis quanto o caos do espaço. As ações que to-
mamos hoje é que propiciam o amanhã. Não importa quão sombria seja uma visão, ela mostra
apenas uma possibilidade se nossas ações seguirem um determinado rumo. Não podemos, é
claro, saber que ações escrevem qual futuro. É por isso que viver vale a pena. Se soubéssemos
como tudo seria, viver seria a coisa mais chata do mundo.
Aquilo havia sido a primeira coisa que sua mãe lhe contara na semana em que fugiu. Era
naquela semana que aprenderia ver e controlar a velocidade das visões do futuro mais precisas,
o êxtase de consciência.
Hayrim, saia daqui.
Era a voz de sua mãe. A mulher que sempre a salvava no fim de um sonho, quando algo es-
tava para feri-la. Era sua mãe.

– Era minha mãe... era minha mãe o tempo todo. Mesmo depois de tudo... – ela murmu-
rava para si mesma quando acordou e chorava.
Estava quase amanhecendo e o polivagonete chegava a Nelayahs.

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Hayrim não se lembrava mais do que havia visto no sonho. Só se lembrava que era sua
mãe que sempre a salvava. Ela estava tão feliz e envergonhada ao mesmo tempo. Apesar de
tudo que ela havia dito e ouvido naquela noite, sua mãe a havia protegido sempre. Mesmo em
seus sonhos. Ela a amava de verdade.
Ela se sentia tão culpada por ter fugido. Talvez realmente houvesse entendido mal o que
ouviu naquela noite, afinal eles falavam com diversas palavras que ela mal fazia ideia do que
poderiam significar. Mas não poderia voltar agora, precisava salvar Saysa. Era sua obrigação.
Uma obrigação que parecia ainda maior agora. Ela havia sido capturada porque Hayrim insis-
tira em fugir. Foi culpa dela. Ela havia entendido mal o que escutara e por isso, agora sua me-
lhor amiga corria grande risco.
Ela chorou muito até que os raios luminosos do quarto dia naquele trem despontassem
definitivamente. Quando chegaram à estação e Tom acordou, ela já havia limpado o rosto e
ninguém imaginaria que havia chorado tanto. Preferiu não dizer nada a ele. Ele poderia inter-
pretá-la mal ou repreendê-la e isso era o que ela menos precisava agora.

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Capítulo Dezessete
Yu-chen

Eles comeram em uma pequena lanchonete da estação de Nelayahs. Foi um desjejum


simples e leve, pois eles precisavam partir logo a fim de cumprir o cronograma de Tom. A car-
roça cujos serviços eles contrataram pertencia a um sexagenário de ascendência oriental. Ele
aceitou levá-los até Sulesia por uma verdadeira bagatela. Tom esperava pagar pelo menos três
ou quatro vezes o valor pedido por Yu-cheng, entretanto estava em um dia de muita sorte e
não quis aumentar o valor pedido.
Yu-cheng selou o dragão-de-rabo-triplo à carroça, muito mais parecida com uma carrua-
gem do que com uma carroça propriamente dita. A madeira nova tinha um cheiro adorável
que confortou Hayrim, cuja mente estava em um turbilhão de perturbações. Sentaram-se nos
bancos um de frente para o outro, Tom com seu livro e Hayrim olhando atentamente o dragão.
Era um animal deveras magnífico. Deveria ter quase quatro metros de comprimento,
mas dois para cada uma de suas caudas, três no total. Suas escamas perfeitamente encaixadas
vibravam em um índigo magistral. Tinha longos bigodes e o rosto longo. Era uma espécie in-
capaz de cuspir fogo, mas que tinha uma adaptação rara entre os dragões: não precisava de
asas para voar. Se alimentando basicamente de vegetais fibrosos, era fácil cuidar de um des-
ses, afirmava o senhor Yu-cheng enquanto guiava o animal.
– Talvez você queira fazer um carinho nele depois, menina. Você concordaria, não é Shi-
uu?
– Ah! Eu... adoraria – disse ela um pouco incerta sobre a segurança disso.
Tom abandonou seu livro para conversar um pouco com o senhor Yu-chen, visto que ele
era de confiança.
– Então, Sr. Yu-chen, onde conseguiu esse magnífico animal.
– Foi quase um acidente, sabe. Eu estava viajando pelo oeste, tinha ido visitar uma pri-
ma, e encontrei um homem que precisava muito vender um pouco de suas posses para pagar
dívidas de jogo. Na verdade ele me pediu dinheiro quando esbarrei com ele, mas como eu não
era muito generoso há uns vinte anos atrás, eu não me dispus a pagar. Ele estava com tanto
horror nos olhos, medo por causa das pessoas para que ele devia, eu acho, que me ofereceu
um ovo por quase nada.
“O homem havia perdido a noção da realidade. Comprei o ovo do meu amigo Shiuu aqui
– ele afagou o dragão – por quase 250 rastas. Foi o dinheiro mais bem gasto de toda a minha
vida. É um dia que nunca vou esquecer, eu ajudei um necessitado, adquiri um animal para tra-
balhar comigo e encontrei um dos meus melhores amigos em toda a minha vida. Três coelhos
em uma cajadada – ele riu alto, orgulhoso pelo que havia acabado de contar.
Eles seguiram conversando e rindo por várias horas. Hayrim participava esporadica-
mente, em outros momentos observava a beleza daquela região. Os dezesseis picos nevados
de Kaslut eram visíveis a partir da tarde do segundo dia e mudavam constantemente.
– Sabe, – disse Yu-chen ao perceber o interesse da garota pelas montanhas – dizem que
quando se olha para eles você está vendo uma obra de arte única, que jamais vai se repetir.
Reza a lenda que quando o grande mago veio até nosso mundo ele as encantou para que fos-
sem a cada dia mais belas. Por isso elas mudam constantemente.
A viagem com Yu-chen foi muito mais agradável e interessante do que o polivagonete até
Nelayahs, o velho tinha sempre uma conversa agradável e, quando paravam para descansar e
comer, ele fazia as deliciosas e belas comidas de sua terra. Ele sempre moderava quando ia
colocar o tempero, dizia que muito molho poderia fazer a língua deles estranhar o sabor.
Eles partiam sempre ao amanhecer, depois de comer alguma fruta suculenta que Tom
encontrava em algum lugar próximo ao acampamento. O almoço e o jantar normalmente eram
obra das mãos hábeis de Yu-chen.
62
Hayrim não falou muito durante a viagem, estava mais preocupada em refletir sobre su-
as ações e as consequências delas. Parece estranho que uma garota de onze anos de idade te-
nha esses momentos introspectivos, mas depois de tudo o que havia feito e tudo o que havia
acontecido por causa disso, ela realmente se sentia forçada a repensar seus atos.

Sulesia era, em linhas gerais, uma cidade velha. As construções tinham um forte traço
medieval decadente e davam a ela, como diziam os adolescentes dali, um aspecto de fim-de-
mundo. Era um lugar que pouco atraía os olhares de qualquer pessoa, mesmo os mais aficio-
nados estudiosos da cultura e arquitetura medievais.
Eles se despediram de Yu-chen com um abraço apertado, haviam feito um novo amigo.
Ele ficou mais do que satisfeito quando Tom decidiu lhe pagar um valor maior do que o com-
binado. Era uma quantia que Tom considerava justa pelo serviço muito bem prestado.
Ele insistiu para que Hayrim acariciasse a cabeça do dragão. Ela hesitou muito, mas aca-
bou cedendo, pois Tom apoiou Yu-chen. Shiuu foi realmente amistoso com a garota. Ele havia
se afeiçoado a ela, como disse o velho.

Depois de adquirir alguns suprimentos e alugar dois cavalos a pretexto de passear pelos
campos por um mês, eles partiram para seu destino final. Eles estavam apenas algumas horas
fora do prazo estipulado por Tom, mas poderiam facilmente compensar o atraso viajando uma
hora a mais por dia.
A jornada em si foi tranquila e Tom aproveitou-a para explicar alguns detalhes do plano
para Hayrim. Eles deveriam entrar por uma das portas laterais e andar com o máximo de cau-
tela para evitar os guardas da Fortaleza de Fogo. Se encontrassem alguém no caminho, esta-
vam passeando durante as férias de Hayrim, ele era seu primo. Precisavam de uma história
que fizesse algum sentido ao menos, por isso combinaram esses detalhes.
De todas as etapas da viagem, essa foi a mais longa, pois a ansiedade era enorme. A cada
instante Hayrim se aproximava de Saysa. Ela estava tomada de nervosismo. E se fizesse algu-
ma coisa errada?
– Vai dar tudo certo. Não se preocupe, Hayrim. O plano vai dar certo. Nós vamos salvar
Saysa.

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Capítulo Dezoito
A Fortaleza de Fogo

Estava anoitecendo, quando avistaram a enorme massa de terra que se erguia expelindo
uma coluna discreta de fumaça negra. Era imponente, ameaçadora e sólida. A montanha gi-
gantesca era escura como as sombras que tentavam envolver Hayrim em seus sonhos e isso a
aterrorizou.
– Sim, Hayrim, é lá que fica a Fortaleza de Fogo.
– Mas, onde? Eu não estou vendo nenhuma fortaleza, só a montanha.
– Aquela montanha é, na verdade, um vulcão. E a Fortaleza se espalha em uma miríade
de túneis na parte sólida do vulcão. É por isso que ela tem esse nome.
– Mas como é que nós vamos entrar lá? Não tem como. É tudo... sólido.
– A entrada principal fica do outro lado, voltada para a capital do país. Mas existem duas
entradas laterais, uma daquele lado – ele apontou a direita – e a outra mais para lá – ele apon-
tou entre a parte de trás da fortaleza e o lado direito. – Acredito que se alcancemos a segunda
entrada dentro de alguns minutos. Ela é o ponto mais vulnerável do lugar.
“Entrar não vai ser o problema, a questão é como vamos achar Saysa lá dentro. A Forta-
leza de Fogo é mais uma prisão do que uma fortaleza propriamente dita. Existem quase mil
pessoas presas lá, desde prisioneiros de guerra até criminosos banais, fora os que Thrall man-
tém cativos para seu próprio benefício. A montanha é enorme e está repleta de celas. Percor-
rer esses corredores vai levar uma eternidade. Talvez precisemos obter alguma informação a
esse respeito antes de começar a procurar por Saysa.”
Como é que ele sabe de tudo isso? É quase como se ele já houvesse estado aqui antes. Como
será que ele faz para conhecer tão bem esse lugar?
– Entendeu?
Ela não fazia a menor ideia do que ele havia acabado de dizer, estava prestando atenção
em seus próprios pensamentos. O que devia dizer?
– Mais ou menos – ela respondeu tentando amenizar o possível resultado de uma res-
posta sincera.
– Você vai esperar ali – ele apontou uma pedra bem grande, próxima da entrada bruta-
mente escavada por onde entrariam. – Eu vou distrair o guarda e darei o sinal para que você
entre. Não saia daqui antes de eu te chamar. Estamos com sorte há só um guarda lá.
Ela aquiesceu com a cabeça e seguiu para a pedra. Ela se escondeu e amarrou o cavalo,
ficou observando Tom seguir para a entrada do lugar.
Ele chegou montado no cavalo acenando para o guarda e falando algo em firan, o dialeto
mais comum da região e que Hayrim conhecia superficialmente. Ela mal conseguia ouvir, mas
percebeu que ele dizia algo sobre vir em paz.
O guarda respondeu, mas não em firan, que ninguém poderia passar. Tom desceu do ca-
valo com a maior naturalidade, como se a ignorar o fato de que havia sido enxotado do lugar.
– Eu preciso falar uma coisa muito importante com o senhor – disse ele não se intimando
nem um pouco pelos mais de dois metros e meio do guarda ou pela armadura cheia de pontas
e chifres que cortavam só de olhar. – É que eu acho que estou perdido. Eu estava indo para a
capital entregar uma mensagem para a rainha, – ele ergueu as mãos para o céu e depois reto-
mou o que dizia – mas acho que me perdi.
A menção da rainha foi a chave para amaciar o guarda, ele parecia tremer só de escutar
aquilo.
– Ah, sim, claro! – respondeu ele hesitante com sua voz grave.
– Eu precisava que me mostrasse... Na verdade, onde estou?

64
– Ah! Senhor Mensageiro, aqui é a Fortaleza de Fogo, uma das maiores e a mais segura
das prisões externas de Sua Majestade, a Rainha – o guarda fez o mesmo movimento que Tom
ao falar da rainha.
– Verdade, mas que interessante. Eu gostaria muito de conhecer esse lugar tão famoso.
Nunca pude vir em uma das expedições reais, uma pena eu creio. O lugar deve ser fantástico.
– Claro que sim! A Fortaleza é magnífica, tem mil e setecentas celas a metade delas ocu-
padas e nunca nenhum prisioneiro fugiu daqui. Mas receio não poder levá-lo para conhecê-la,
senhor. Meu superior o Grande Thrall não permite que visitas sejam feitas há várias semanas.
– ele abaixou a voz, convertendo-a em um sussurro: – Particularmente, não sei as razões de
tudo isso, mas acho que está tentando esconder alguma coisa.
– Pois vá buscá-lo então. Eu exijo, por decreto real, examinar a Fortaleza. A minha pe-
quena história sobre ser um mensageiro não passou de um teste de sua lealdade para com seu
superior. Eu sou um inquisidor do Departamento da Fênix, estou aqui para verificar se tudo
atende os requisitos estabelecidos por Sua Majestade, a Rainha – ele ergueu as mãos para o
céu brevemente.
Visto que o guarda ficou pensativo sobre aquilo, Tom decidiu forçar um resultado me-
lhor:
– Ande logo, não tenho o dia todo – disse com ar superior e arrogante.
O guarda saiu correndo desengonçadamente, a armadura chacoalhando. Tom fez sinal
para Hayrim, que deixou o cavalo para trás e saiu correndo. Ela parou ao lado de Tom e lhe
disse que tivesse muito cuidado e que procurasse Saysa. Disse também que manteria a Forta-
leza o mais ocupada possível. Ela entrou pelo corredor escavado displicentemente na monta-
nha de fogo iluminado por archotes bruxuleantes de fogo alaranjado e desapareceu.

O guarda demorou vários minutos para voltar. A conversa com seu superior não parecia
ter sido das melhores. Ele retornou cabisbaixo e em um passo excessivamente lento. Ficou
quieto por tanto tempo que Tom achou que realmente houvesse algo errado.
– Por favor, venha comigo. Vou levá-lo para a inspeção de rotina. O governante disse sen-
tir muito não poder conduzir pessoalmente o senhor. Ele tem... muitas coisas de que cuidar.
Estamos em uma semana atribulada, sabe? – disse por fim, conduzindo Tom pelo corredor de
archotes bruxuleantes.
Tom percebeu a ansiedade do guarda, um forte indicativo de alguma coisa na Fortaleza
estava acontecendo sem o consentimento da Rainha. Isso foi a confirmação da informação que
a Verdade havia passado a Hayrim.

Quando haviam andado pouco mais de vinte metros pelo corredor, uma onda de preo-
cupação invadiu Tom, eles haviam chegado ao primeiro portão daquela ala. Era uma parede
de grades que obstruía o túnel. O cadeado e as correntes eram enormes e estavam trancados.
Se um pássaro não podia passar pelo emaranhado de barras de ferro, que dirá de Hayrim. Ele
sentiu medo. E se houvessem descoberto o plano real deles? E se Hayrim houvesse sido captu-
rada?
Não, claro que não. Ela sabia se virar. E também, ele não poderia ficar preocupado com
isso agora. Poderia se trair com o olhar. Caso não houvessem descoberto coisa alguma, a ex-
pressão de preocupação poderia ser um indício suficiente para que descobrissem. Adquiriu
novamente um rosto arrogante que casava muito bem com a suposta posição de inquisidor.
Depois de mais alguns metros, o caminho encontrava o que o guarda chamou de primei-
ro anel. Era o primeiro túnel circular da montanha, onde ficavam as celas dos prisioneiros
menos perigosos e valiosos. Eles seguiram em frente, passaram por mais dois portões e o cor-
redor começou a ficar mais largo, de modo que em cinco metros a frente havia dobrado de
tamanho.
65
Logo veio o ponto em que havia uma escada central para cima e duas laterais descendo.
Naquele ponto, depois do quarto anel, o corredor acabava.
– Para baixo, ficam as obras de expansão. Levarei o senhor lá depois. Primeiro, vamos
subir para a parte mais segura da Fortaleza. O anel principal fica quinze metros para cima, lá
ficam os prisioneiros mais perigosos e valiosos e também o escritório do Governante. Por fa-
vor, venha comigo.
Tom sabia que havia algo no andar de baixo que eles não queriam que ele visse e resol-
veu facilitar as coisas para Hayrim.Tinha a forte sensação de que ela havia subido as escadas,
apesar de não saber como.
– Quero conhecer primeiro a expansão. Sempre deixo a cereja para o final.
– Mas, senhor, todos os inquisidores sempre veem o anel principal primeiro.
– Então, acho que vamos mudar um pouco essa rotina, até porque, detesto ser igual aos
outros.
– Mas...
– Qual das duas escadas você sugere? – disse Tom se dirigindo para a da esquerda.
– Não faz diferença, elas se unem logo ali na frente.
– Nesse caso, vamos – ele indicou a escada com a mão direita em um gesto entre o irôni-
co, o amistoso e o autoritário.
Muito a contragosto, o guarda concordou e seguiu na frente.

66
Capítulo Dezenove
A Prisioneira

Hayrim entrou correndo e passou por diversos archotes que mal iluminavam aquela es-
pécie de caverna que era a Fortaleza. A pedra escura das paredes fez Hayrim se lembrar da
visão que a Verdade lhe concedera.
O caminho estava obstruído, havia um enorme emaranhado de metal bloqueando sua
passagem. Como iria passar por aquele portão tão grande? Talvez, só talvez, ela tivesse muita
sorte. Talvez o que sua mãe sempre havia lhe dito fosse verdade, “o destino sorri para aqueles
que lhe oferecem a chance para tal”. Decidiu que experimentaria, o pior que poderia acontecer
era ele não estar aberto e ela não ter como prosseguir.
Ela fechou os olhos e foi, hesitante, até o meio do portão. Ela não teve coragem suficiente
a princípio para abrir os olhos, mas a imagem de Saysa aprisionada naquele lugar a fez avan-
çar contra o portão. Para sua enorme surpresa, o cadeado estava destrancado. Ou o guarda era
muito distraído ou Tom havia dito alguma coisa que o havia deixado zonzo de susto, ou medo.
– O que será que ele falou? – murmurou ela enquanto abria o portão.
Ela empurrou-o para uma posição próxima da original, o guarda não havia reparado que
o portão ficara aberto, que dirá da posição em que ele estava. Pôs-se a correr pelo lado mais
escuro do corredor, precisava chegar até Saysa rápido, antes que qualquer um ali desconfiasse
deles.
Ela passou por vários anéis e não encontrou um guarda que fosse. Era estranho, tudo pa-
recia errado. Se era uma prisão, deveria haver vários guardas patrulhando os corredores, ou
coisa do tipo. Esqueça isso, Hayrim. Você precisa se concentrar em achar Saysa.
– E agora? – ela se perguntou quando encontrou as escadas. – Desço ou subo?
Ela gastou vários momentos tentando tomar uma decisão. Se subisse, talvez Saysa esti-
vesse no andar de baixo e vice-versa. Mas ela só se decidiu quando viu o guarda descendo das
escadas do meio e resmungando que os inquisidores só apareciam nas horas erradas.
– Por que será que esse cara não podia vir amanhã, quando o chefe tiver vendido aquela
bola de penas que ele fica acariciando na sala dele? – resmungou ele baixinho, mas ainda as-
sim alto o suficiente para que Hayrim escutasse do lugar onde estava, exatamente debaixo da
escada pela qual o guarda viera.
Um sentimento poderoso tomou conta de Hayrim. Ela deveria subir as escadas, sabia
que Saysa estava escada acima. Estava se preparando para sair de seu esconderijo quando
ouviu dois guardas subindo pelas escadas a seu lado. Eles também conversavam em tom res-
mungão. Ninguém ali parecia satisfeito com a visita do tal inquisidor.
– Eu não sei por que temos que ir buscar essa coisa?
– Também acho. O chefe poderia dizer que é um novo bicho de estimação. O inquisidor
nem ia se incomodar. Ele gosta tanto dessas visitas quanto a gente.
– Ouvi dizer que dessa vez é um cara novo, daqueles que acham que têm alguma coisa
para fazer aqui.
– Não sei pra que eles se aposentam. Seria muito mais fácil se o Garungak viesse todas as
vezes, ele só entra pra tomar um café com o chefe.
– Eu também queria que a gente tivesse sorte assim...
As vozes foram morrendo a partir do nome do inquisidor amigo de Thrall, até que não se
podia ouvir coisa alguma.
Hayrim sentiu-se furiosa. A coisa de que eles falavam era sua amiga, era Saysa. Tinha
certeza agora de que seu alvo estava escada acima.

67
Ficou muito tempo escondida ali, ela pensou enfim. Já podia escutar um dos portões
sendo fechado. Era Tom, com o guarda. Eles estavam se aproximando. Era agora! Começou a
subir as escadas.
Estava terminando de subir o primeiro lance quando ouviu o guarda explicando para
Tom por onde eles deveriam seguir. Ela começou a correr, subindo os degraus de dois em
dois, mas era difícil espera que ela saísse rapidamente do campo de visão de quem subia. Cada
lance da escada correspondia a mais ou menos a altura de um andar e meio.

Conforme subia, Hayrim percebeu que o calor ali dentro estava aumentando vertigino-
samente, atingindo níveis críticos. Ela chegou ao final da escadaria pingando suor, não tanto
pela subida quanto pelo calor que fazia naquela parte.
A escada terminava em uma pequena sala vazia e sem nenhuma iluminação. A única saí-
da além da escada era um corredor mais mal-iluminado do que o primeiro. Havia água por
toda a parte. Era uma água morna que brotava da parede ou pingava do teto. Hayrim não ou-
sou tocar lugar nenhum com a mão, pois o calor que emanava dali era terrível. Ela andou por
vários metros e já estava se sentindo fraca, quando chegou ao ponto em que o corredor virava
à direita e seguia de forma circular. À frente, havia a parede, onde escorria algo quase como
uma cachoeira de água quente; à esquerda havia uma porta.
Hayrim tentou primeiro a porta de pedra, mas ela não cedeu um milímetro que fosse.
A única opção era o corredor. Ela podia avistar um, talvez dois archotes. Era escuro e ti-
nha poças do tamanho de uma banheira, de tanta água que saia das paredes e teto, mas era
sua única opção.
– Vamos lá.
Ela precisou andar até a primeira fonte de luz para perceber que aquilo não era um cor-
redor comum. Havia celas dos dois lados. As primeiras por que passou estavam vazias, mas
depois de uma dúzia delas, ela pode distinguir formas humanas ou nem tanto. Estavam sem-
pre encostados nas paredes, o que tornava ainda mais difícil ver muito mais do que um fraco
contorno de suas formas.
Ela já estava achando que talvez devesse descer quando uma voz a chamou. Foi quase
um sussurro e pediu que ela se aproximasse. Era uma jovem, ela percebeu pela voz. Ela teve a
estranha sensação de que já havia escutado aquela voz.
Guiada pela dona da voz, ela se aproximou de uma cela próxima a um archote. Dentro da
cela ela só pode distinguir uma massa disforme em um dos cantos. Era, provavelmente, quem
a havia chamado.
– Quem é você? – elas perguntaram juntas, conforme a massa se movia. A jovem estava
engatinhando até Hayrim.
– Eu te conheço, menina – disse a jovem, se aproximando de Hayrim. A voz dela era curta
e esganiçada. Ali embaixo, em meio à escuridão e ao vazio, ela não parecia ter muito o que e
com quem falar.
– Eu também conheço você. Mas de onde?
– Você já esteve aqui, não é?
– Eu? Sim, mas não foi.
– Sim, eu lembro. Você é aquela garota que a mulher de branco trouxe aqui.
– Você lembra de mim?
Não fazia o menor sentido. Aquilo havia sido uma visão, não existia nenhum meio da ga-
rota se lembrar dela. A Verdade havia criado aquela imagem e aquela conversa para respon-
der à pergunta de Hayrim. A jovem não poderia se lembrar de Hayrim, porque elas nunca ha-
via se encontrado de verdade. Aquilo era só uma visão.
– Claro que lembro. Não existem muitas coisas de que possamos nos lembrar aqui em-
baixo – a voz dela estava cheia de sofrimento e tristeza. – O que você veio fazer aqui? O aviso
da última vez não foi suficiente?
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– Eu... não... Eu vim salvar minha amiga Saysa. Vou levá-la daqui.
Hayrim percebeu, tarde demais, que havia dito aquilo um pouco alto demais e os outros
prisioneiros haviam escutado. Ela então se sentiu arrependida de ter dito aquilo, pois eles ir-
romperam em gargalhadas sarcásticas e estrondosas.
– Saia você logo daqui. Se eles a virem, vão colocá-la em uma das celas e você nunca mais
verá o mundo exterior.
– Eu não posso. Onde ela está?
A jovem não respondeu, mas outra voz disse ironicamente que ela deveria seguir pelo
corredor até encontrar uma porta dupla. Ela saberia reconhecer o lugar, era a sala de Thrall.
Todos começaram a rir e a jovem lamentou a burrice da garota quando Hayrim partiu seguin-
do as instruções do homem misterioso.
– Não posso abandonar Saysa. Não posso desistir – Hayrim repetia para si mesma en-
quanto corria o mais rápido que conseguia. Estava revigorada, pois Saysa estava mais próxima
a cada instante.

69
Capítulo Vinte
O Governante da Fortaleza

Eles desceram pela escada de degraus irregulares, o guarda pegou uma das tochas da
parede para iluminar melhor o caminho. Ele tentava de todas as formas fazer com que Tom se
cansasse e decidisse seguir para o resto da Fortaleza. Além disso, ele insistia em repetir, em
um tom desnecessariamente elevado de voz, inquisidor. Cada frase recebia o vocativo no final
com uma ênfase categórica.
– Então, aqui acabam os degraus da descida, senhor inquisidor. Começam agora o corre-
dor principal da expansão; mais à frente, ele se divide em dois, formando o anel subterrâneo,
ainda em construção e que não está em uso ainda, senhor inquisidor – além da repetição ex-
cessiva do título falso de Tom, havia um medo trêmulo na voz dele.
– Interessante. Muito interessante, realmente.
– E o senhor gostaria de conhecer o anel subterrâneo, senhor inquisidor? – ele disse a-
quilo quase implorando para que ouvisse um não como resposta.
– Na verdade, eu quero sim. Quero saber como serão as instalações de alguns dos prisio-
neiros mais perigosos da nação. Isso é de interesse da Inquisidoria.
O guarda baixou a cabeça e suspirou. Aquele estava sendo um dos seus piores dias ali.
Que cara mais chato! Além de complicar os planos do chefe, ainda queria conhecer tudo minu-
ciosamente.
– Siga-me, por favor – ele foi na frente, empunhando a tocha.
~*~
Hayrim se esgueirou pelo anel de celas, os risos histéricos morriam gradativamente. De
repente, eles pararam. Tudo ficou em silêncio, exceto pelos passos dela e pelas gotas de água
que pingavam displicentemente por quase todo o lado.
As paredes ficavam cada vez mais irregulares, bem como o piso. Estava tudo cada vez
mais ameaçador. A sensação de proximidade em relação a Thrall e a ansiedade de encontrar
logo Saysa agravavam esse processo. As coisas adquiriam uma iluminação mais fúnebre e o
calor, ao qual ela estava parcialmente acostumada agora, aumentava ainda mais.
Logo ela percebeu que a frequência dos archotes cresceu rápido e, por fim, ela encontrou
a enorme porta dupla que provavelmente levava à sala de Thrall. Era toda de pedra lascada e
sua aparência rústica aterrorizou ainda mais a mente de Hayrim.
Ela sentiu uma serpente terrivelmente gelada subindo pelas suas costas. Ela escalou a
espinha de Hayrim, se espalhando em um arrepio que pôs todos os pelos do corpo de Hayrim
em pé. Seu estômago deu três giros completos e depois voltou rapidamente para a posição
normal. Ela estava com uma sensação terrível se apoderando de seu corpo. Não achava que
pudesse se mover. Ela estava paralisada de medo.
~*~
Tom se demorou bastante examinando as celas em construção, melhor dizendo, em es-
cavação. Ele gastou tantos minutos quanto pode, mas sabia que se demorasse demais talvez
pusesse Hayrim em risco. Percebendo que nada encontraria ali embaixo, seguiu, olhando ra-
pidamente para as demais celas, só por precaução.
Eles chegaram a uma segunda escadaria quase idêntica àquela pela qual desceram. Pre-
cisou examinar apenas metade do anel, pois a outra metade não tinha nem mesmo uma cela.
Subiram. O guarda se mantinha à frente, mas hesitava muito em seus passos. Estava perfeita-
mente claro que ele não estava nem um pouco satisfeito com o rumo que as coisas haviam
tomado.
Tom sentiu que não havia a necessidade e nem o tempo para examinar os anéis do tér-
reo. Deveria subir logo e verificar a sala de Thrall e o outro anel.

70
– Acho que antes de seguir com a minha visita e o exame do local, quero falar com o go-
vernador da prisão.
– Meu senhor lamenta não poder recebê-lo, senhor inquisidor. Ele está muito ocupado
com os registros da Fortaleza. Sabe, o senhor chegou em uma semana complicada, estamos
reorganizando a papelada e tudo mais, senhor inquisidor – ele falou gaguejando um pouco,
provavelmente porque tentava dar solidez a seus argumentos.
– Creio que eu não tenha sido claro o suficiente. Eu por enquanto acho que quero ver seu
superior, mas bastam alguns minutos de embromação e eu passarei a ter certeza de que quero
vê-lo, e agora. Entendeu? – ele concluiu esbravejando em um tom tão autoritário que o guarda
teve que se conter para não sujar as calças.
Quando viu o terror que havia invadido os olhos do guarda, Tom deu-se por satisfeito
com sua encenação.
O guarda meramente balançou a cabeça afirmativamente e murmurou um “sim, senhor!”
trêmulo. Ele seguiu conduzindo o inquisidor até a sala do governante da Fortaleza. Não sabia
quem seria pior, o inquisidor se não tivesse seu desejo realizado ou o seu superior se ele le-
vasse o enviado da rainha até lá depois de receber ordens expressas para impedir tal coisa.
Visto que o inquisidor tinha uma proximidade maior com a rainha, ele decidiu que era mais
seguro obedecê-lo. Ainda assim, seu superior cortaria seu pescoço em poucas horas. Que dia
horrível! Por que não havia escutado sua mãe e encontrado um emprego na capital?
Se arrependimento matasse... Talvez poupasse o trabalho que o governador da Fortaleza
teria quando o inquisidor fosse embora.
~*~
A porta só começou a ceder depois que Hayrim mentalizou a imagem de Saysa pedindo
sua ajuda. Ela encontrou forças dentro de si não só para suplantar o medo, como também para
mover a enorme e grossa porta de pedra.
Aos poucos, uma fresta entre as metades da porta surgiu. Por ela, vinha uma luz alaran-
jada que Hayrim reconheceu como sendo de outros archotes idênticos aos que se espalhavam
por toda a Fortaleza, mas esses eram muito mais poderosos. Era, de certa forma, até mesmo
excessiva a luz que vinha pela fresta. Isso só ficou ainda mais evidente quando Hayrim fez com
que a fresta se tornasse uma pequena abertura e, por fim, abrisse a porta por completo.
Ela parou novamente quando viu o local em que estava. O sonho que tivera no trem vol-
tou imediatamente a sua mente. Era exatamente o mesmo lugar.
Era um salão de teto alto e abobadado. A nave principal havia sido esculpida na própria
pedra de uma forma muito pouco cuidadosa. As duas naves laterais, muito menores, pareciam
servir apenas de conectores entre a principal e os demais cômodos do lugar. Aquela rocha era
negra e, de certa forma, transmitia uma ideia de porosidade ou algo parecido. As colunas enfi-
leiradas deixavam um grande corredor no centro, o qual, iluminado por archotes de fogo ala-
ranjado, seguia na direção do trono.
No lugar onde deveria estar a tão simbólica cadeira do governante que ali residia, havia
uma pesada cortina de veludo vermelho. Nada se via através dela. E era tão silencioso ali, qua-
se como se alguma coisa estivesse errada.
Foi como um déjà vu, só que muito mais real. Uma única diferença crucial em relação ao
sonho existia: Thrall não entrou na sala por uma porta lateral. Ela esperou ansiosamente por
isso acontecer. Não que ela quisesse que acontecesse, mas ela sentia que a qualquer instante
ele apareceria. Sorridente, percebeu que seu sonho não estava se tornando realidade.
Estava imaginando coisas. Aquele lugar era diferente do que ela havia visto no sonho. As
colunas eram maiores, a nave principal mais larga e menos comprida. Ela logo percebeu que
não se lembrava de tantos detalhes em relação ao sonho. Claro, que não. Como poderia? Até a
cor do veludo parecia diferente.

71
Em pouco tempo, ela achava que um lugar nada tinha a ver com o outro. Seu medo havia
feito com que imaginasse coisas.

– Mas eu deveria me sentir honrado, – disse uma voz forçadamente estúpida vinda de
detrás da cortina que escondia o trono, – a Filha do Futuro me agracia com sua presença. A
que devo tamanha honra?
Ela sentiu novamente a serpente gelada subir por suas costas e se desfazer em um arre-
pio. Só agora havia percebido que não tinha a menor ideia do que fazer quando encontrasse
Saysa, ou caso encontrasse alguém que soubesse quem ela era. Tom certamente havia se es-
quecido disso, o que não era uma coisa boa de forma alguma.
– Entretanto, devo me desculpar. Eu não a esperava antes de seu comparsa, por assim
dizer.
O quê!? Ele sabia que Tom estava ali com ela? O que mais ele sabia? Para conhecer tanto,
ele deveria estar ciente de todo o plano. Ela e Tom haviam caído em uma emboscada.
– Imagino que deva estar se perguntando como eu sei disso? – Ele adotou um tom joco-
so, agravado pela estupidez de sua voz. – É muito fácil seguir os dois. Deixam rastros muito
evidentes, sabe, você e seu parceiro. – Ele estava se vangloriando. – Até pensei iria perdê-los
no Jardim, mas demoraram demais lá. Tive que sair de Sarsanel naquela mesma noite em que
seu companheiro explicou as bases de seu plano. Tenho que admitir que meu prazo de tempo
era realmente curto, uma semana para chegar aqui sem nenhum transporte e subjugar aquele
gordo... Foi uma experiência interessante. Talvez uma das poucas partes divertidas dessa per-
seguição.
“Claro que domar esses paspalhos que cuidam desse lugar foi muito sem-graça e, tam-
bém, não foi um pouco chato não poder conversar mais com Augusto. Além do que, vocês de-
moraram muito para encontrar outro jeito de chegar aqui – a voz estava adquirindo uma en-
tonação doente desagradável e prepotente. – Não imaginei que fossem demorar tanto só por-
que envenenei aquele dragão. Definitivamente, eu esperava mais daquele cara. Mas vejam só,
que coisa maravilhosa, aqui est| a Filha do Futuro, comigo. É emocionante.”
Hayrim teve a impressão de que ele estava sendo irônico.
– Adoraria destroçá-la aqui e agora, mas só tenho permissão para acabar com seu ami-
guinho – isso foi quase um lamento. Em seguida, empolgação brotou na voz dele – Oh, veja só!
Acho que ele está chegando. Vamos ter que deixá-la apenas como espectadora. Sinto muito.
Falesyt.
Alguma espécie de corda invisível prendeu Hayrim na altura dos ombros, da cintura e
dos joelhos e arrastou-a até a parede. Ela não conseguia escapar, por mais que tentasse.
A porta de pedra se abriu e um guarda entrou, conduzindo alguém que ele anunciou co-
mo sendo o inquisidor. Em seguida, Hayrim viu Tom entrar na sala.
– Ora! Mas seja bem vindo, senhor inquisidor – disse a voz com a mesma ironia de ins-
tantes atrás, pontuada com uma malícia gritante. – Seja muito bem vindo, inquisidor Tomasi-
us.

72
Capítulo Vinte e Um
O Futuro e o Selo

Ele estava sentado no grande escritório nos fundos do Oráculo. À sua frente, quatro e-
normes pilhas de papéis se acomodavam, esperando o exame cuidadoso dele. Não parava nem
por um instante, lia freneticamente os registros da contabilidade em busca do erro de cálculo.
Se Skuld voltasse e descobrisse alguma coisa fora do lugar... bem... ele preferia não pensar nis-
so. Ela podia ser bem desagradável quando queria.
Andrew tentava organizar a bagunça que havia surgido depois de tanto tempo de Orácu-
lo sem a sacerdotisa. Como ela conseguia arrumar tanta coisa e ainda realizar visões? Não era
algo muito fácil, é verdade, mas devia existir alguma técnica. Isso teria que esperar, alguém
batia à porta.
– Pode entrar – disse ele, sem levantar a cabeça ou tirar os olhos do papel que rinha nas
mãos.
– Com licença, Sr. Andrew. Trago informações sobre os caçadores que mandamos em
busca de Hayrim – disse uma das funcionárias do Oráculo.
– Claro, pode falar – ele adquiriu uma expressão mais séria ainda e olhou diretamente
para a mulher, cujos corpo e rosto estavam cobertos por um fino material leve, mas opaco. –
Quantos deles mandaram alguma resposta? Encontraram a menina? – ele se inclinou para
frente, tirando os óculos de leitura.
– Para ser bem precisa, nenhum deles mandou resposta positiva. Uma boa parte mandou
um mensageiro para avisar que desiste do serviço. A única resposta positiva que havíamos
tido era dos irmãos Parroca, mas um deles foi morto próximo a Sarsanel, quando seguia Ha-
yrim e Saysa. Ele foi encontrado morto em uma cela de Sarsanel há mais ou menos uma sema-
na. O corpo estava desfigurado, as técnicas de tortura utilizadas antes do assassinato indicam
que foi obra de um dos agentes de Nix.
– Grande Palun’Arzel, ser| que ela est| mesmo atr|s de Hayrim? – ele murmurou para si
mesmo.
– O outro foi encontrado mais tarde no mesmo dia, ao lado de um dragão envenenado.
As mesmas marcas, o que indica que realmente foi intencional o assassinato dos Parroca.
– Isso quer dizer que todos os que estavam atrás de Hayrim não estão mais. Estamos de
volta à estaca zero. E Skuld? Ela ainda não voltou?
A mulher suspirou ao ver a ansiedade na voz de Andrew.
– Não. E está cada dia mais difícil lidar com as demandas de visões. A procura pelas vari-
antes mais caras cresceu muito e não temos pessoal para realizar todas. Sem a sacerdotisa,
temo que o Oráculo esteja fadado ao fracasso em um futuro próximo.
– Ela vai voltar logo. Seja o que for que ela esteja fazendo, ela deve terminar logo. Mas o
Oráculo não vai acabar só porque ela não está aqui.
– Na verdade, senhor, temo que ela esteja em grande perigo. E sim, se a sacerdotisa não
voltar logo, vamos parar de realizar visões.
– Mas o que é isso? Greve? – disse ele se levantando indignado com a forma que ela disse
aquilo.
– Claro que não, senhor. Fizemos um juramento de nunca trair o Oráculo, mas estamos
perdendo nossa clarividência. Sem a sacerdotisa, somos apenas adivinhas comuns. É só por
causa da essência dela que ainda reside aqui que podemos ter visões concisas. Entretanto,
estamos tendo problemas cada vez maiores com as visões mais elaboradas, algumas de nós
até com as mais simples. As visões estão cada vez mais confusas, como se o futuro que antes
havíamos tocado de leve estivesse se transformando.

73
– Não estou entendendo nada do que você está dizendo, Aryella. Está usando muitos e-
nigmas.
– Perdão, senhor. Vou tentar explicar melhor. O futuro não é exatamente um bloco sólido
e definido. Quando temos uma visão, estamos vendo apenas a forma aproximada do futuro. E
muitas vezes ela ainda vem de forma enigmática e simbólica, o que permite várias interpreta-
ções. Mas sempre foi possível ver alguma coisa dele.
“Recentemente, o futuro tornou-se cada vez mais diluído e embaçado. É quase como se
uma névoa se erguesse diante dele e nos impedisse de ver qualquer coisa. A cada dia, a cada
minuto, as visões tornam-se mais imprecisas e sujeitas a erros grotescos. Fatos antes tidos
como certos em todas as visões, não o são mais, como, por exemplo, a consumação da Profeci-
a. Cerca de duas semanas atrás, as visões relacionadas a isso eram absolutas, mas, especial-
mente desde ontem, qualquer tentativa de ver se ela se concretizaria foi frustrada ou teve um
resultado horrível.”
– O que você está tentando dizer com isso?
– Que, talvez, Hayrim não viva o suficiente para a Profecia se tornar real.
– Ela... Como? – horror surgiu nos olhos de Andrew, mas era impossível determinar qual
das informações era a causa principal: o não-cumprimento da Profecia ou Hayrim estar em
risco.
– Acreditamos que ela esteja em grande risco ou esteja se aproximando dele. As visões
têm mostrado sombras envolvendo a Filha do Futuro e desaparecendo com ela.
– Nix... – ele murmurou silenciosamente.
– Recomendo que o senhor pense em um jeito de salvar a filha da sacerdotisa e também
a sacerdotisa.
– Skuld!? – agora ele estava quase em estado de choque.
– Pode ser apenas um suposição ou talvez um erro de interpretação, mas todas as vezes
que vemos a Filha do Futuro sendo levada pelas sombras, logo em seguida surge a sacerdotisa
inerte, presa a grilhões em uma masmorra escura. O fato mais terrível é que, instantes depois,
ela adquire uma coloração cinzenta, o que significa–
Ele a interrompeu dizendo que sabia o que significava e que ela estava dispensada. Ela
se retirou em seguida.
Andrew gastou vários longos quartos de hora tentando encontrar um meio de salvar
Skuld e Hayrim, mas ele nem tinha um pista de onde elas estavam. A única informação que
tinha não era nem um pouco conclusiva ou útil, mas preocupante: Nix era quem ameaçava as
duas.
~*~
Skuld e Verlandi estavam em uma cela quadrada de dois metros de lado. O chão, as pa-
redes e o teto eram do mesmo material da sala do trono, aquela pedra negra e lustrosa que
aprecia sugar a luz do mundo e exalar sombras. Elas estavam acorrentadas à parede oposta às
grades, suas cabeças pendiam para o lado. Estavam desacordadas.
Um estalar ritmado ecoava pelo lugar. Sempre em batidas iguais e furiosas, ele se apro-
ximava. Nix vinha caminhando pelo corredor, sua roupa leve produzindo movimentos ousa-
dos no ar. Um guarda de armadura negra a acompanhava por mera formalidade, mas empu-
nhava uma lança fina e afiada.
As batidas penetraram as mentes vazias das irmãs acorrentadas. Elas tentaram se mo-
ver, mas seus corpos estavam doloridos e os grilhões restringiam muito qualquer movimento.
O máximo que foram capazes de fazer foi erguer a cabeça e abrir os olhos antes que a cela fos-
se aberta pelo guarda em um longo ranger incômodo.
– Dispostas a cooperar? – perguntou Nix com uma voz sádica e um pouco impaciente.
– Acho que não – respondeu Verlandi insolentemente ao esboçar um sorriso com seu
rosto inchado e roxo.
– E você, irmãzinha? – disse ela ironicamente ao se voltar para Skuld.
74
– Você não vai me convencer.
– Não mesmo? – perguntou ela cética. – E se eu lhe dissesse que sua filha tão adorável é
minha prisioneira.
Skuld virou-se desesperada para Verlandi. A irmã assentiu com a cabeça pouco depois.
– Como veem, não têm opção.
– Nesse ponto, você está certa. Não posso forçar Skuld a arriscar a vida da filha dela, mas
também não posso ajudá-la de qualquer maneira. Nem eu, nem Skuld.
– Cale a boca sua insolente. Vocês vão fazer o que eu estou mandando.
– Sabe, eu adoraria, mas nós não podemos. Nem se você reunisse nós três, não sabería-
mos quebrar o selo que protege o pergaminho.
– Não preciso quebrar o selo. Eu quero saber como evitar que a Profecia se cumpra! – ela
havia atingido o ápice de sua impaciência, estava pronta para fazer algo terrível.
– Você não entendeu nada do que Verlandi falou? – disse Skuld enfim. – O único jeito de
impedir a Profecia é se o pergaminho for destruído. Mas isso é impossível. Quando o selo foi
criado, ele foi feito para se partir somente em duas ocasiões, – Verlandi olhou para ela supli-
cante – se a Palun’Arzel foi desfeita ou se todos os herdeiros lutarem até a morte entre si.
Verlandi a interrompeu: – Todo selo precisa de um mecanismo para ser destrancado,
nós três escolhemos esses dois porque sabíamos que seria impossível atingir uma das condi-
ções. Você não tem como evitar a Profecia, a menos que faça essa pergunta à Verdade. Mas eu
fiquei sabendo que ela perdeu sua forma corpórea antes que pudesse obter qualquer coisa
dela.
O ódio tomou conta de Nix e ela desceu a mão com força sobre o rosto de Verlandi, en-
quanto xingava algo em uma língua muito antiga e perdida.

75
Capítulo Vinte e Dois
O Dragão Emplumado

– Pode sair, guarda, eu sou capaz de lidar com o inquisidor pessoalmente – disse o go-
vernante em sua entonação arrogante.
Amedrontado pela presença do inquisidor e também pelo modo de seu chefe falar, o
guarda não hesitou, por um instante que fosse, em sair e fechar a porta, produzindo um baque
surdo. Hayrim tentou aproveitar a movimentação para gritar pela ajuda de Tom, mas uma
mordaça invisível se arrastou sobre sua boca. Era algo tão real quanto qualquer tecido, só que
mais suave e que quase não tinha peso algum.
– Então esse foi o melhor disfarce que conseguiu encontrar, Tomasius? Inquisidor? – ele
estava mais uma vez se vangloriando. – Não imaginei que nem mesmo esses guardas idiotas
fossem acreditar, mas vejam só! Você está aqui.
– Eu não esperava encontrá-lo tão cedo. Achei que iria demorar mais uma ou duas se-
manas para que nos enfrentássemos – respondeu Tom em uma voz confiante e firme. Ele es-
tava tão calmo que Hayrim arregalou os olhos mais do que parecia possível de espanto.
– Mas que maravilha, você sabia então? Que coisa fantástica! Eu não esperava tanto de
um concile. Sempre achei que vocês fossem um pouco idiotas, meio paspalhos.
– Eu, por outro lado, esperava muito mais de Kalinak, o Destroçador.
– Você sabe meu nome? Que gentil da sua parte.
– Sei isso e muito mais. Você se deixa trair muito facilmente. Realmente esperava algo
melhor vindo de Nix. Ela sempre escolheu tão bem seus subordinados. Ainda assim, você tem
uma reputação esplêndida (corrija-me se eu estiver errado): são 74 condenações por assassi-
nato, 52 por roubo e é suspeito de outras 349 mortes.
– Seus dados estão um pouco ultrapassados, pois sou suspeito de 351 mortes e já ganhei
mais uma condenação. Mas não creio que você teria acesso a informação tão recente, não é?
Os últimos três assassinatos não têm nem duas semanas ainda.
Hayrim ficou horrorizada com a maneira que eles falavam. Era quase como se uma mor-
te não fosse nada. Ela só sentiu algum alívio quando Tom por fim disse que não concederia
perdão a ele pelos horrores que havia cometido.
Kalinak disse que um concile não era capaz de puni-lo e perguntou com a maior natura-
lidade quando ele havia descoberto que estavam sendo seguidos.
– Eu suspeitava desde que derrotei o segundo Parroca, mas a confirmação veio somente
em Panathos.
– Uhm! Não achei que naquela noite eu tivesse feito tanto barulho, mas vá! Acho que vo-
cê havia dito que ia me punir, não é?
– Eu não só já disse, como repito, vou fazê-lo pagar pelos crimes que cometeu.
– Acho que vai engolir essas palavras, isto é, se você ainda tiver condições de engolir
quando eu terminar. Acho que vou adicionar mais um à minha lista.

A cena a que Hayrim assistiu em seguida foi tão rápida quanto complexa e, de certa for-
ma, assustadora. Gritando Anuhflas, Tom estendeu a mão esquerda na direção da cortina e
desembainhou sua espada de lâmina curta. Finas farpas de luz sólida emergiram do chão, er-
guendo o pesado tecido que encobria o trono. Mal o veludo subiu, e uma massa disforme do
que parecia ser fumaça negra, só que menos sólida e com olhos vermelhos, se lançou com uma
espada contra o concile.
Tom, em um movimento muito rápido, defendeu-se com sua lâmina curta. Os golpes rit-
mados que seguiram foram tão violentos que produziram estalos em compasso com o coração
de Hayrim. As lâminas subiram e desceram, sempre se encontrando no ar. Em dados golpes,
Hayrim teve a impressão de ver faíscas saindo das armas.
76
Depois de lutar por uma boa parte do salão, a criatura estranhamente humana e etérea
em que a fumaça se havia convertido passou a obter certa vantagem. A preocupação nos olhos
de Hayrim era evidente. Ela queria poder ajudar, mas a força das cordas invisíveis que a man-
tinham presa aumentava a cada tentativa de fuga. E de qualquer maneira, não sabia o que po-
deria fazer para ajudar. Ela mal sabia correr de uma luta, que dirá de combater um monstro
como Kalinak.
Kalinak estava cada vez mais próximo de sua forma humana e os golpes por ele desferi-
dos, cada vez mais poderosos. Ele desceu a lâmina em direção a Tom e, assim, fez com que ele
caísse. Era a chance perfeita, o oponente estava com a guarda baixa. Desceu sua espada mons-
truosa em direção ao concile. Estava claro que iria atingir o coração.
– Anuhsal! Tom gritou com a mão espalmada e um círculo de luz azulada se formou, de-
tendo o ataque. A força que Kalinak impunha era sobre-humana, não seria capaz de segurá-lo
por muito tempo.
Então veio a ideia.
– Anuhar! – ele gritou, levando a espada de lâmina curta para perfurar o círculo de luz.
A lâmina começava a ser envolvida pela espiral de luz quando Kalinak gritou: – Verecs!
Quatro pequenas serpentes de massa negra e semitransparente se desprenderam da es-
pada de Kalinak e voaram em direção à lâmina de Tom. As sombras golpearam a espiral de
luz, afastando-a da espada do concile. As magias estavam desfeitas.
– Acha mesmo que pode me vencer com um truque barato desses. Até mesmo aquela
menina deve ser capaz de fazer alguma coisa decente. Sempre achei que os Conselheiros trei-
navam bons domadores, mas vejo que me enganei – ele desdenhava vigorosamente de Tom
com sua voz doente e áspera.
Tom recuou, estava perdendo. Não poderia deixar que aquele ser levasse Hayrim. Não
lhe era permitido falhar. Ele pensou em vários meios de derrotar Kalinak, mas todos esbarra-
vam na limitação física de seu corpo ou na energia que já havia gasto domando por três vezes
em tão pouco tempo.
Se ele libertasse Hayrim... Talvez... Mas era muito perigoso. Entretanto ela já tinha idade
suficiente. Era uma possibilidade...
Por fim decidiu-se a arriscar sua melhor e mais perigosa chance.
– Anflasuliek – ele gritou com a palma direita em direção a Kalinak, que olhava-o com
desdém. Centenas de finas farpas de luz azulada brotaram de todos os pontos do cômodo e se
dirigiram para Kalinak. Elas foram tão velozes que o caçador enviado pelas sombras nem teve
tempo de reagir. As farpas de quase trinta centímetros de comprimento se entrelaçaram em
uma complicada rede que o envolveu tal qual uma redoma.
As cordas invisíveis que mantinham Hayrim presa à parede desapareceram de repente
quando Tom, caído no chão, estendeu a mão em direção a ela e murmurou alguma coisa que
ela não ouviu. Estava livre.
Agora só precisava encontrar Saysa e os três sairiam dali. Apesar de estar impressionada
ao máximo com a luta de Tom, ela correu até o trono. Ao lado dele, anteriormente encoberta
pelo veludo, estava uma gaiola tão pequena que Saysa mal cabia dentro dela. O cielagron aca-
bara de despertar e tinha o rosto abatido, como se não se alimentasse verdadeiramente há
muito tempo.
– Saysa! – Hayrim chorou de emoção ao ver sua amiga e remover a corrente que manti-
nha a gaiola fechada. – Eu vim. Vim pra te buscar. Eu não te esqueci.
Saysa esboçou uma reação, mas seu corpo ainda estava por demais atordoado com o tra-
tamento que havia tido ali.Hayrim voou sobre ela e a abraçou amorosamente, o que provocou
uma sensação maravilhosa a percorrer seu corpo.

77
Tom se ergueu desajeitadamente, a mão enlaçando a barriga. Ele quase se contorcia de
dor. Havia se esforçado muito. Hayrim era, apesar de ser a menor e mais frágil normalmente, a
mais forte deles naquele momento. Precisavam sair dali imediatamente.
Saysa mostrou-se capaz de andar e Tom, apesar de suas caras feias, também.
– Vamos logo, antes que ele consiga escapar – murmurou ele fazendo uma nova careta
de dor.
A porta da sala se provou muito mais leve de abrir por dentro que por fora. O corredor
estava vazio e escuro, talvez mais do que quando ela havia passado por ele em direção à sala
de Thrall. O próximo desafio era se esgueiram por aqueles corredores rápida e furtivamente.

78
Capítulo Vinte e Três
A Fuga

– Olá, irmãzinhas queridas! – disse Nix com a voz mais desagradável que poderia ser i-
maginada por qualquer pessoa.
As duas ergueram as cabeças anestesiadas pelos castigos e pela má alimentação. Esta-
vam um pouco piores depois de alguns minutos, o que provocou em Nix um sorriso de puro
prazer sadista.
– Será que você ainda não entendeu que não podemos ajudá-la de modo algum? – per-
guntou Verlandi, cujo mal-humor havia atingido um ápice bem raro.
– Na verdade, esse é exatamente o problema. Vocês não têm a menor utilidade ficando
aqui.
– E o que você pretende fazer a respeito? Imagino que esteja aqui apenas para ter o pra-
zer de nos contar para ver nossa reação – perguntou Verlandi com desgosto e ironia.
– Sim, eu vim aqui especialmente para lhes contar. Mas não, não foi por prazer que vim
fazer isso. Foi mais por conveniência.
Skuld e Verlandi se entreolharam incrédulas.
– Digamos apenas que a presença de vocês aqui não é mais de meu agrado.
As duas irmãs acorrentadas perceberam rapidamente o que ela queria dizer com aquilo.
Ela estava provavelmente planejando alguma coisa grande. Alguma coisa que ela queria man-
ter escondida delas e a presença delas ali poderia por em risco o segredo do plano magistral.
– Creio que tenham entendido. Não posso fazer o que eu mais queria porque não me ar-
riscaria a machucar minhas queridas irmãzinhas.
Mentira! Ela só não faz isso porque sabe que incitaria os herdeiros a caçarem-na, pensou
Verlandi.
– Então, é isso. Por mais que me doa o coração dizer adeus... – ela fingiu um choro irôni-
co, ergueu as mãos e bateu palmas duas vezes. As duas irmãs acorrentadas foram envolvidas
por sombras e desapareceram.
~*~
Hayrim saiu pelo corredor escuro, nenhum guarda vista. Seguiram juntos, mas foram de-
tidos por Hayrim, quando chegaram a um certo lugar. Era a cela da jovem que havia visto na
visão da Verdade. Era sua obrigação ajudá-la.Ela se aproximou da cela e tentou ver a silhueta
da moça, depois chamou por ela em um sussurro que até mesmo Kalinak seria capaz de ouvir
de onde estava.
Nada. A jovem não estava lá, simplesmente desaparecera.Talvez fosse a cela errada. Ela
conferiu as adjacentes, mas nelas somente homens desdentados e velhos ou disformes se a-
proximaram das grades. Loucos por causa do longo aprisionamento, eles começaram a rir do
espanto da garota. A garota que imaginou alguém na cela vazia.
Tinha certeza de que não havia imaginado nada. Foi tudo tão real...
Ela cedeu à insistência para seguirem em frente de Tom e da já parcialmente recuperada
Saysa. A liberdade era capaz de operar verdadeiros milagres nas pessoas.
As escadas foram um problema particularmente complicado, se algum guarda viesse su-
bindo por ela, não teriam a menor chance. Foi Saysa que partiu na frente, sendo seguida de
perto pelos outros dois.
Nenhum guarda subiu ou fez qualquer barulho. Exceto talvez pelos prisioneiros, a Forta-
leza estava deserta.

79
O longo corredor que cruzava os anéis prisionais estava vazio e os portões, que Tom te-
mia serem seu maior problema, estavam abertos. Era quase como se a fuga deles fosse permi-
tida pela Fortaleza. Mais do que isso, incentivada.
Eles correram o mais rápido que podiam, apesar de isso significar quase uma caminhada
calma, até o fim do corredor escuro. Cada passo fazia com que Tom se contorcesse de dor e
Saysa despertasse um pouco mais.
No meio do caminho entre as escadas e a saída, eles ouviram o primeiro som a destoar
de sua respirações nervosas e passos cansados. Foi um urro, seguido do que parecia vidro se
estilhaçando violentamente.
– Ele está livre. Temos que ser mais rápidos – disse Tom entre os dentes enquanto uma
nova onda de dor o atingia.
Eles não poderiam correr sem se separar, mas Hayrim nunca deixaria Tom para trás. A-
inda mais depois do modo que ele havia lutado para ajudá-la. Iriam ficar juntos, apesar de ele
insistir que ela era muito mais importante do que ele. Saysa teria levado Hayrim dali imedia-
tamente não fossem dois empecilhos, um era o fato de ela não estar tão forte ainda e o outro
era o apego que tinha por Tom.
Passaram pelo portão mais próximo da saída quando ouviram outro som assustador. Ka-
linak estava no outro extremo do corredor, junto às escadas, possesso de ódio. Ele xingava
palavras estranhas a Hayrim, mas que ela logo percebeu como sendo afrontas graves a Tom.
Ele se transformou em fumaça negra e desapareceu, exceto por seus olhos vermelho-sangue.
Ele se aproximava como uma locomotiva desgovernada em perseguição a pequenas
formigas. Era questão de segundos até que os alcançasse. Tom não era capaz de fazer nada e
Saysa ainda precisava de muita força para ser capaz de lutar, além do que, Hayrim não estava
disposta a arriscar a segurança de sua amiga depois de fazer tanto para resgatá-la.
Kalinak urrava furiosamente e estava a menos de cinco metros de distância quando eles
saíram da Fortaleza para a escuridão opressiva da noite que havia se formado. Ele avançava e
estava para atingir todos quando Hayrim se pôs diante deles e estendeu os braços para se pro-
teger. Aquilo havia sido um movimento involuntário de defesa instintiva, mas produziu um
efeito maior do que qualquer um teria imaginado.
Pequenos pontos luminosos, fragmentos de luz, se reuniram entre as mãos de Hayrim e
aderiram uns aos outros. Eles logo adquiriram a forma de luz sólida usada por Tom, só que
com uma coloração quase branca, levemente prateada. O brilho daquelas partículas era imen-
so e fez a noite adquirir o brilho de um dia de sol forte por alguns instantes. Elas grudaram
umas nas outras, sendo moldadas em uma adaga extremamente pontiaguda.
Antes que Kalinak pudesse fazer com que sua espada tocasse qualquer um, a adaga de
luz foi disparada por uma força invisível e o atingiu exatamente na altura do coração. A fuma-
ça sombria foi envolvendo a si mesma, como se estivesse sendo dragada pela adaga de luz, até
desaparecer. No instante em que a última parte de Kalinak desapareceu, a adaga de luz explo-
diu suavemente em pequenos flocos que se apagaram gradualmente, cedendo lugar à escuri-
dão da noite.
Hayrim viu tudo rodar, sentiu seu corpo fraco. Estava mole e as coisas perdiam o senti-
do. Gradualmente, parou de sentir, ouvir, cheirar e por fim, ver. Estava tudo escuro, mais escu-
ro do que aquela noite.

80
Capítulo Vinte e Quatro
Liberdade

– Mas o que está acontecendo? – perguntou Aryella a Andrew quando entrava novamen-
te na sala.
Uma massa de sombras, que mais pareciam fumaça, começou a se formar cerca de um
metro e meio acima do chão no espaço que havia entre ela e a mesa de Tom. A escuridão havia
surgido do nada e de repente, crescendo gradativamente até atingir um tamanho considerá-
vel. A princípio, ela era bem volátil e disforme; mas, conforme seu ritmo de crescimento dimi-
nuía, ela foi adquirindo a forma de duas pessoas. Mais precisamente, duas mulheres. Quando
elas haviam sido completamente formadas, as sombras se retraíram para um ponto e desapa-
receram. Soltas, Skuld e Verlandi caíram no chão.
Andrew e Aryella abriram a boca para dizer alguma coisa, mas o espanto pelo que havia
acabado de acontecer os emudeceu.
Foi Verlandi quem falou primeiro. Com sua voz carregada de mal-humor, ela se voltou
para Andrew e o cumprimentou sarcasticamente:
– Também acho bom ver você, Andrew...
Elas cheias de hematomas e Verlandi tinha uma marca fina, semelhante a um corte, que
lhe cruzava o lado direito do rosto. Ambas tinham as faces marcadas por manchas escuras e
com alguns inchaços maiores. As costas semi-expostas exibiam marcas parecidas com arra-
nhões profundos. As roupas estavam sujas e rasgadas. Os cabelos desgrenhados e tão limpos
quanto as roupas. Não era uma coisa muito bonita de se olhar.
Andrew não sabia quem o havia surpreendido mais: Skuld ou Verlandi. Skuld havia de-
saparecido e, pelo que aparentava, estava mesmo em uma prisão de Nix. Quanto a Verlandi,
ele não esperava vê-la de modo algum, quanto mais junto com Skuld e naquele estado. Elas
tinham muito o que explicar.
Skuld pediu um banho e elas desapareceram junto com Aryella. Andrew ficou ali senta-
do, sem saber o que dizer, ou fazer, ou sequer pensar.

Quando estavam limpas e bem vestidas, elas desceram direto para a cozinha, onde satis-
fizeram uma fome acumulada e enganada parcialmente por dias. Elas comeram com tanto ar-
dor que a cozinheira se comoveu.
Andrew foi procurá-las para obter esclarecimentos sobre o que havia acontecido, mas o
máximo que obteve foi um apelo desesperado de Skuld por informações sobre sua filha.
– Nós não... Skuld tente entender, quase todos desistiram das buscas. Não temos a menor
ideia de onde ela e Saysa possam estar. Os únicos que ainda estavam seguindo a pista das duas
eram os irmãos Parroca.
– Como assim eram? – perguntou Verlandi, percebendo o que se passava pela cabeça de
Skuld.
– Eles foram assassinados violentamente, aparentemente por algum dos agentes de Nix.
Mas esse não é nosso único problema. As videntes do Oráculo têm tido problemas com as vi-
sões, principalmente quando se trata de Hayrim. Elas têm visões confusas e vagas, mas que
nos levam a acreditar que Hayrim ... bem ... que ela ... que Nix ... a aprisionou.
Skuld começou a chorar desesperadamente. Se sua filha estivesse mesmo com Nix, ela
havia libertado as duas apenas para que a distância funcionasse como uma tortura ainda mai-
or.

Skuld passou os dias seguintes na cama, sem vontade de fazer qualquer coisa. Não comi-
a, não dormia. Ela só ficava deitada, olhando o vazio ou chorando. A dor de imaginar o que Nix
81
poderia fazer com sua filha era pior do que imaginá-la viajando por ai com Saysa. Era pior do
que qualquer coisa. Mas por que tinha que ser daquele jeito?
~*~
Saysa estava dormindo ao lado de Shiuu, o dragão de Yu-chen. Hayrim e Tom estavam
deitados sobre camas improvisadas sobre a grama. Yu-chen cozinhava alguma coisa em uma
pequena fogueira improvisada. Ele cantarolava a Dança Eslava No. 7, por alguma razão, essa
música o fazia sorrir.

Hayrim acordou um pouco zonza e com uma forte dor de cabeça. Parecia que um trem a
havia atropelado. O cheiro da comida era a única coisa boa que ela era capaz de perceber. Seu
corpo não era fácil de mover e levantar estava fora de cogitação.
– Ah! Olá, garotinha. Parece que você finalmente resolveu acordar – disse Yu-chen quan-
do percebeu a movimentação de Hayrim.
Ainda estava escuro e ela não tinha a menor noção do tempo que havia passado desde
que escaparam da Fortaleza. A fome foi a primeira coisa que Hayrim sentiu e que a fez perce-
ber que tudo havia sido real. Não foi um sonho.
Yu-chen, muito amistoso, chamou-a para mais perto do fogo, para que comesse um pou-
co.
Ela aceitou prontamente.
Yu-chen ofereceu a ela uma porção de yakisoba, pediu desculpas por não poder preparar
um melhor. Ela apenas murmurou que ele não devia se importar com isso, já havia feito bas-
tante. Ele agradeceu a compreensão dela.
Depois de comer, uma tarefa terrivelmente dolorosa, Hayrim se recostou e perguntou a
Yu-chen o que ele fazia ali.
– Shiuu teve um pressentimento de que devíamos vir para cá. Ele estava impaciente,
muito nervoso sabe. Preferi não contestar. Não é muito sábio fazer isso com um dragão irrita-
do.
– E como você nos encontrou?
– Quem não encontraria? Aquele farol que vocês usaram para sinalizar deve ter alertado
quase todo mundo num raio de alguns quilômetros. Por falar nisso, de que marca era o sinali-
zador?
– Sinalizador? – ela não tinha a menor ideia do que se tratava.
– É, sabe, o brilho muito forte. De que marca era?
– Não sei. Não lembro direito. Eu desmaiei. Acho que não posso ajudá-lo.
As últimas palavras saíram entremeadas em bocejos. A última coisa que ela fez antes de
dormir foi responder educadamente quando o oriental lhe desejou uma boa noite.

Vidempol se ergueu violento e impiedoso, lançando poderosos raios luminosos sobre as


pálpebras fechadas de Hayrim, Saysa e Tom. Pequenos pássaros cantavam em algum lugar ao
sul e um riacho corria ruidosamente ao leste. Não havia uma nuvem no céu.
Hayrim foi a primeira a acordar. Estava se sentindo revigorada, a refeição preparada por
Yu-chen havia sido fantástica. Seu corpo estava descansado e ela não sentia dor ao se mover,
ou pensar. Sua cabeça adquirira uma leveza rara e o bom-humor havia tomado conta dela. Ela
olhou em volta e viu, satisfeita, que sua missão havia sido um sucesso. Saysa estava bem ali, ao
seu lado, dormindo tranquilamente.
Ela estava prestes a desejar um bom dia para Yu-chen quando percebeu que nem ele
nem Shiuu estavam mais ali. O local onde antes havia um fogueira estava como se nunca lhe
houvessem tocado. Tudo que pudesse estar relacionado à presença do oriental e seu dragão
havia simplesmente desaparecido.
– Bom dia, Hay – disse Saysa enquanto emitia um longo bocejo. Percebendo a confusão
nos olhos da garota, Saysa perguntou: – O que foi? Alguma coisa está errada?
82
– Saysa, nós precisamos conversar. Eu... cometi um erro.
– Pode falar, Hay. O que te aconteceu?
– Sabe, eu percebi que você estava certa naquele dia.
– Que dia? – perguntou Saysa com uma ponta de fingimento na voz. Ela já imaginava de
que deveria se tratar.
– Na noite, na verdade, em que eu decidi e te forcei a fugir comigo do Oráculo. Era ma-
mãe que sempre me salvava nos sonhos. Sempre, era ela o tempo todo. Ela me tirava de lá
bem a tempo e eu acho que devemos voltar.
– Sabe que eu sempre achei que você tinha errado nisso. – Hayrim entristeceu seu rosto
um pouco. – Mas, acreditei o tempo todo que você saberia fazer o que é certo. E é o que você
acaba de fazer. Nós vamos voltar se você quer mesmo. Você tem certeza de que quer voltar?
– Tenho – ela sorriu para sua amiga e elas se abraçaram.
Foi naquele momento que ambas se sentiram livres de um fardo maior do que o rapto de
Saysa, a necessidade de continuar fugindo. Imaginar que elas iriam voltar para casa era como
ter as mãos livres depois de meses atadas. Hayrim não se importava mais com e também não
se lembrava tão bem do que havia ouvido atrás da porta naquela noite antes de fugir. Ela ia
ver sua mãe em alguns dias, era maravilhoso se libertar da fuga constante.

83
Capítulo Vinte e Cinco
A Dobra Temporal

Quando Tom acordou, Hayrim teve sérios problemas em conseguir comunicar sua deci-
são. Ela se sentia mal por deixá-lo assim de uma forma tão repentina, então convidou-o a se-
guir com elas até o Oráculo. Sua mãe adoraria conhecê-lo.
– Eu adoraria, mas Saysa não pode carregar nós dois e viajar por terra seria muito de-
morado. Estou vendo que você está com vontade de ir logo, então não vou impedir que você
veja sua mãe o mais rápido possível. Além disso, eu tenho que voltar para o trabalho. Não pos-
so mesmo ir.
– É uma pena, não concorda, Saysa? – perguntou Hayrim voltando-se para ela.
O cielagron apenas encolheu a cabeça de forma que não parecesse tão constrangida com
a pergunta de Hayrim, o que não teve exatamente o resultado esperado.
Ele saiu andando na direção em que Hayrim julgava estar Sulesia. Não se despediram,
nem mesmo desejaram boa sorte. Não que não se gostassem ou não houvessem recebido uma
educação adequada, mas por um acordo inconsciente. Eles preferiam evitar qualquer chora-
deira ou afins que surgissem com um simples adeus. A última coisa que Hayrim disse a ele
naquele dia foi um agradecimento discreto. Ele aquiesceu com a cabeça com um olhar suave e
alegre.
Hayrim montou Saysa e sentiu derradeiramente o quanto gostava daquelas penas maci-
as e azuladas. Aquele instante foi quando elas se conectaram novamente, restabelecendo e
reforçando sua amizade de longa data.
Saysa saltou do chão e agitou as asas com a suavidade a que Hayrim estava acostumada.
Foi tão bom que ela mal podia imaginar como conseguiu suportar tanto tempo sem voar. O
vento agitava seus cabelos loiros e ela se deliciava com o cheiro de vida que percebia agora na
vegetação próxima. Em toda a parte, o branco era mais alegre; o verde das árvores e colinas,
mais verde que nunca e o barulho da água, delicioso e tão alto que mesmo a alguns metros de
altura, ela era capaz de ouvi-lo.

Foi um voo tranqüilo e silencioso. Elas não conversaram muito a não ser quando Saysa
pedia a Hayrim que se firmasse sobre ela para não cair. Não precisavam falar, apenas voar. O
vento levava as palavras de uma a outra em um assovio difuso e belo. Estavam mais unidas do
que nunca e também sabiam o que cada uma queria dizer sem precisar abrir a boca. Era um
laço muito poderoso, uma amizade mais forte do que nunca.
A viagem até o Oráculo não levou muito tempo, elas voaram velozmente para chegar o
quanto antes. Foram dois dias de voo quase ininterrupto. Elas pararam à noite para cochilar
nas proximidades de um rio, onde se lavaram. Mas decidiram acampar e dormir por algumas
horas porque Saysa precisava de um descanso para suas asas e também porque voar à noite
poderia ser perigoso – Saysa não tinha memórias confortáveis quanto a isso.
Eram quase quatro horas da tarde quando avistaram o Oráculo. A construção branca a-
inda era tão imponente quanto Hayrim se lembrava, mas havia adquirido um ar sombrio. Uma
sensação desgostosa se apoderou da garota e do cielagron quando se aproximaram da casa
tão esperada nos últimos dias.
Alguma coisa não estava certa e elas logo descobririam o que.

Desceram diante do portão principal, que estava aberto, como sempre, mas o que viram
a partir dali foi no mínimo estranho.
– Por que é que a entrada principal está fechada? – perguntou Hayrim a Saysa com um ar
de preocupação.
– Não sei. Mas acho que coisa boa não pode ser. Você está sentindo isso?
84
– Essa sensação de tristeza, como se todo esse lugar estivesse perdendo a vida?
Hayrim mal terminou de dizer essa frase e se arrependeu de ter definido tão bem o que
sentia, pois as árvores e flores do jardim de entrada do Oráculo começaram a murchar e ad-
quirir uma coloração cinzenta. O céu azul e limpo que se espalhava ao redor do Oráculo havia
sido substituído, sobre ele, por uma escuridão absoluta. Nuvens terrivelmente grandes trove-
javam impiedosamente sobre o lugar. Violentos raios iluminavam de forma macabra os con-
tornos das nuvens de tempestade.
Elas apertaram o passo, de modo a chegar à entrada antes da morte da vegetação.
Hayrim sentiu-se mal, seu estômago sentia vontade de colocar para fora o que não havia
nele, seu coração se contorcia em um aperto doloroso. Ela se lembrou de sua mãe. Minutos
antes estava exultante de felicidade porque ia revê-la, agora sentia como se estivesse atrasada
e prestes a ver alguma coisa horrível.
– Saysa, vamos. Precisamos estar lá dentro logo.
Bateram à porta de madeira que impedia sua passagem com um desespero latente. A ve-
getação morria cada vez mais rápido e a morte se aproximava cada vez mais do Oráculo.
A porta se abriu de leve, revelando uma mulher completamente coberta por tecido, era
Aryella, que soltou um grito de desespero, alegria e espanto:
– Grande Palun’Arzel, Filha do Futuro é você mesma?
– Aryella, o que está acontecendo? Onde está mamãe? – Hayrim estava absolutamente
desesperada, menos de um metro e meio separava a morte da vegetação da entrada.
Percebendo o que acontecia ao jardim diante do Oráculo, Aryella só não entrou em pâni-
co por causa de seu treinamento. Ela puxou Hayrim para dentro do lugar e seguiu, conduzin-
do-as pelo corredor: – Por favor, venha comigo. Explicarei tudo no caminho – ela olhou de sos-
laio para trás, mirando a porta entreaberta. Não havia muito tempo.
– Aryella, o que está acontecendo aqui? Por que está tudo tão estranho? – perguntaram
as duas ao mesmo tempo.
– Filha do Futuro, desde que você desapareceu, sua mãe tem se sentido angustiada. An-
tes de ela ter sido levada pela sombra, ela ainda tinha muita esperança na sua volta. Quando
soube do rapto de Saysa e de alguns fatos afins, ela entrou em um estado de quase completa
inanição. Ela não tem comido e estava muito fraca e ferida quando voltou. Faz mais de dois
dias que ela não sai da cama e tem recusado todos os tratamentos para as feridas, muitas es-
tão abertas e podem infeccionar facilmente. Estamos muito preocupados, todos nós. Se ela não
for tratada logo, receio que ela vá...
A frase nunca foi terminada. Hayrim saiu em disparada pelos corredores e escadas que
levavam ao quarto de Skuld. Quando passou por um dos pontos de um dos corredores, sentiu
um arrepio percorrer todo o seu corpo, eriçando cada pelo dele.

Skuld estava deitada no quarto, seu rosto pálido. A vida se afastando de seu corpo. Ela
estava morrendo. Hayrim sentiu-se desesperada ao perceber isso. Uma adaga pontiaguda a-
tingiu seu peito. Os olhos de Skuld estavam se fechando lentamente. Hayrim viu então um vul-
to negro segurando uma foice adentrar o quarto e erguê-la ameaçadoramente para sua mãe.
Ela não havia dado mais do que dois passos quando o vulto percorreu toda a extensão da por-
ta até a cama.
Não, não. Ela repetia mentalmente que seria capaz de chegar à sua mãe antes que a foice
descesse.
O grito de dor de Hayrim ao ver a lâmina reluzente descer, rasgando o ar, foi uma das
coisas mais horríveis que qualquer um pode ouvir. O vulto negro, sem face ou qualquer coisa
física segurando o capuz no ar, se voltou para ela, parando a foice no ar. Tudo ficou parado.
Hayrim ainda corria para sua mãe, mas o vulto não se movia mais, o silêncio no lugar era ab-
soluto.
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De repente Hayrim percebeu que ela também estava parando, uma força poderosa a im-
pelia a ficar fixa em um lugar. Ela não desistiu. Empurrou com mais força. Lutou contra a força
crescente que tentava pará-la. Era terrível, seu corpo sendo comprimido pela força invisível,
sua pele raspando em uma superfície rígida e áspera. Mas precisava seguir em frente. Não po-
deria parar até alcançar sua mãe.
Foi muito tempo até que a cama ficasse a uma distância pequena o suficiente para que
Hayrim pudesse tocar sua mãe. O vulto se virou para ela e aquiesceu com o que deveria ser
sua cabeça invisível.

86
Capítulo Vinte e Seis
A Demoção do Concile

Verlandi encontrou Aryella e Saysa no meio do caminho até o quarto de Skuld, Andrew a
acompanhava.
– Mas onde é que vocês estavam esse tempo todo, Saysa? – perguntou ela impaciente.
Todos mantinham um passo firme, como se sentissem alguma coisa ruim acontecendo.
– Ela não–
A frase ficou inacabada, Verlandi notou que todos haviam parado de formas bem peculi-
ares. Aryella tinha um dos pés no ar e se apoiava na ponta do outro, Saysa tinha a boca aberta
e duas patas levantadas, enquanto Andrew se mantinha sobre os dois pés, mas eles distavam
um passo um do outro.
Estavam todos imóveis e algo tentava pará-la. Ela conhecia aquilo, era uma dobra tem-
poral, mas quem estava fazendo aquilo? Minha nossa! Só poderia ser ou Skuld ou Hayrim, ne-
nhuma das duas tinha condições para isso. Ela tinha que ser rápida e os anos de treinamento
valeram muito a pena, só agora ela reconhecia isso.

A porta se abriu lentamente, ela nunca havia sido tão pesada. Verlandi viu o que temia,
Skuld estava parada, mas Hayrim caminhava em direção a ela. Ela estava se movendo com
dificuldade, mas estava se movendo, logo havia sido ela. Precisava pará-la.

Hayrim caiu sobre a cama lentamente, a força invisível suavizando sua queda. O golpe de
Verlandi havia sido preciso e atingido um ponto do pescoço da garota. Conforme Hayrim caía,
a força que a aparava no ar foi cedendo e desapareceu poucos instantes antes da garota tocar
o forro da cama.
Todos voltaram a se mover normalmente. A escuridão que pairava sobre o Oráculo de-
sapareceu, mas bloqueou a visão e a consciência de Hayrim. Ela havia desmaiado.

Skuld acordou quando Aryella e Andrew entravam no quarto, Saysa preferiu ficar do la-
do de fora por respeito. Verlandi já estava sentada em uma poltrona ao lado da cama, a cabeça
de Hayrim repousando em seu colo.
– Que horas são? – Skuld perguntou um pouco atordoada.
Ela não esperou resposta para a pergunta. Quando viu o rosto de Hayrim, desacordada,
sentiu seu coração parar e, em seguida, bater a uma velocidade alucinante. Ela logo imaginou
o pior, Nix havia mandado a garota enfeitiçada para torturá-la. Ela seria obrigada a ver sua
filha dormindo para sempre e não ser capaz de fazer coisa alguma.
Skuld estava debruçada, chorando, sobre a garota quando Hayrim acordou e murmurou,
sem entender o que estava acontecendo: – Mãe!?
Skuld se levantou e olhou para a filha por longos momentos até ter certeza de que não
estava delirando. Quando percebeu que a garota estava realmente bem e de volta em casa, o
contentamento transbordou primeiro em um sorriso, depois em um abraço, depois em beijos
e mais abraços e sorrisos e pequenos gritos de comemoração.
– Mãe, você tá me sufocando – murmurou ela entre dentes.
Todos riram. O bom-humor estava de volta. A alegria veio junto. Tudo havia melhorado.
~*~
Era uma sala escura, de teto abobadado distante e circular. As duas únicas fontes de ilu-
minação era fracas e mostravam parcialmente duas pessoas. No centro da sala, sentado em
uma cadeira de cedro, de cabeça baixa e mirando a ardósia do piso, estava Tom. Ao seu redor,
vinha uma alta bancada onde apenas se podia perceber quatro figuras de cada lado do homem
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de frente para Tom. Era um senhor idoso, de longas barbas e bigodes brancos, que se mescla-
vam ao seu cabelo. Aquela massa branca de pelos era tão lisa e reluzente que era difícil acredi-
tar que fosse real.
Ninguém falava ou se movia. O homem estava sentado, levemente curvado para frente,
examinando um longo pergaminho. A luz pálida não era de forma alguma suficiente para que
qualquer um enxergasse o papel com clareza, que dirá o que estava escrito nele.
Por fim, ele ergueu os olhos em direção a Tom e disse, com sua voz grave e poderosa:
– Tomasius Ashialenek, concile de Primeira Ordem, membro honorário do corpo docente
ativo Adamiciliano e um dos Confiados da Palun’Arzel, conhece as acusações que pesam sobre
você e a serem julgadas por este Conselho?
Tom assentiu levemente com a cabeça. Havia claramente decepção e arrependimento
nele.
– Tem a intenção de apresentar qualquer defesa além de seu relatório de conclusão de
missão?
Tom balançou a cabeça negativamente.
O homem de barbas brancas suspirou, decepcionando e anunciou:
– Nesse caso, o Conselho delibera conforme define a Suma de Leis Gerais.
Tom encolheu-se um pouco na cadeira.
– A sentença para o crime cometido no caso em questão é morte por suicídio forçado.
Tom aquiesceu com a cabeça, resignado. Ele já imaginava alguma coisa parecida com is-
so.
– Entretanto, – disse o homem quando todos os outros se preparavam para sair – há cir-
cunstâncias atenuantes. Devido ao fato incontestável de que tudo ocorreu em prol da Filha do
Futuro e de que é réu primário e um homem de confiança desta instituição, o Conselho deter-
mina sua demoção do cargo de Concile, remetendo-o a sua antiga função de catedrático desta
mesma instituição.
Tom ergueu um pouco a cabeça por causa do contentamento que se apoderava dele.
– Sessão encerrada.
As duas luzes pálidas se apagaram e tudo adquiriu uma escuridão absoluta.
~*~
Mais tarde, Hayrim pediu desculpas e lamentou o fato de ter fugido. Foi de cortar o cora-
ção de Skuld, mas o resultado era, de certa forma, previsível. Skuld disse a Hayrim que a culpa
havia sido dela, por não ter conversado abertamente sobre aquilo com a filha. Elas jantaram
em seguida, saciando uma fome arrebatadora acumulada por algum tempo considerável.
Skuld quis explicar para onde queriam mandar Hayrim e todos os detalhes afins, mas ela
se negou a ouvir. Sua única resposta foi:
– Eu aceito ir, porque confio em você. Mas...
– Sempre tem um mas, que mania essa sua, hein?
– Mas, nós temos que ir para Sarsanel na semana que vem.
– E por quê? Posso saber?
– Claro que sim. Mme. Casássono vai se casar com o Dr. Augusto e eu disse que ia. Na
verdade, eu quase prometi. E então nos vamos? – perguntou Hayrim, percebendo a resposta
que obteria.
– Está bem! Você venceu – disse ela resignada. Depois, acrescentou em tom jocoso: –
Sinceramente, preciso aprender a dizer não mais vezes para você...

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