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Vargas e o problema da conciliação entre liberdade e igualdade.

José Murilo de Carvalho


Descolando

Para as novas gerações de brasileiros, passado meio século da morte de Vargas, sua
figura talvez já comece, de fato, a entrar para a história, esfumando-se nas brumas do
passado. Lembro-me de duas adolescentes que, ao saírem de uma visita ao Palácio do
Catete, me perguntaram: “Como é mesmo o nome do moço que se matou ali dentro?” Para
as gerações mais velhas, no entanto, a que infelizmente pertenço, Vargas ainda reside no
domínio da memória viva. Sua pessoa e suas ações despertam, inevitavelmente, discussões
apaixonadas, cujo resultado, em geral, resume-se ao reforço de posições já previamente
adotadas. A participação em algumas mesas-redondas organizadas para lembrar os 50 anos
serviu-me para confirmar este ponto. Os apresentadores eram sempre pró ou contra Vargas
e saíam dos debates ainda mais convencidos de suas opiniões prévias.
Para escapar desta armadilha, fugirei da concretitude, evitarei falar de fatos, da
pessoa de Vargas, de seu estilo de governar, de suas políticas, de seu legado. Levarei a
discussão a um nível um pouco mais alto de abstração, buscando falar antes sobre o sentido
dos governos de Vargas para a formação do Estado-nação brasileiro.

Chave da análise

A chave que usarei para abrir a análise será o problema das relações entre a
liberdade e a igualdade na história do Brasil. Liberdade e igualdade são dois valores
centrais do Ocidente desde a Renascença. A Revolução das colônias inglesas da América
do Norte neles se baseou, a Revolução Francesa os colocou em seu conhecido lema, e os
difundiu pelo mundo. O terceiro componente do lema revolucionário, Fraternidade, não
teve igual sorte. Está sendo abandonado por pressão das mulheres. Vi desfile de militantes
feministas em Paris em que as palavras-de-ordem eram Liberdade, Igualdade,
Solidariedade.

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A liberdade veio primeiro, derrubando o controle político e econômico do Estado
absolutista e o controle ideológico da Igreja, liberando o pensamento, as crenças e a
atividade econômica. Com ela, estabeleceu-se o Estado liberal e a sociedade de mercado.
Desde então, ela se tornou um valor central para todos os que conseguiam competir no
mundo da iniciativa individual, aí incluídos os campos da economia, do pensamento e das
artes. Tornou-se essencial sobretudo para os possuidores, para os que os que viviam fora do
mundo da necessidade.
A reivindicação da igualdade veio mais tarde, já em parte como conseqüência dos
resultados da liberdade. Ela sempre foi central para os não-possuidores, para os que foram
deixados para trás na sociedade de mercado, ou para os que nunca conseguiram se integrar
nessa sociedade. A igualdade sempre veio em primeiro lugar para os que vivem na
escravidão da necessidade.
Apesar de colocadas lado a lado pelos revolucionários franceses de 1789, liberdade
e igualdade só excepcionalmente se combinaram na história. A liberdade com freqüência
gerou desigualdade. Soltando as forças da competição, e dadas as diferenças dos pontos de
partida de cada um, a liberdade num primeiro momento só fez crescer a desigualdade. Por
sua vez, a igualdade, quando introduzida pelo Estado, quase sempre destruiu a liberdade.
Foi talvez Aléxis de Tocqueville quem melhor examinou a dificuldade de fazer com que as
duas convivessem. Aristocrata francês, cioso da liberdade e traumatizado pelas
conseqüências tirânicas do jacobinismo igualitário, admirava-se do fato de terem os Estados
Unidos sido capazes de manter a liberdade numa sociedade de bases igualitárias (ele falava
do Norte não escravocrata). Aí estava, segundo ele, a excepcionalidade norte-americana.

O caminho dos outros

Os percursos históricos dos países ocidentais podem ser descritos em termos das
várias combinações entre liberdade e igualdade. Simplificando ao máximo, podem-se
detectar três tipos exemplares de percurso. Em um extremo, o que partiu de um sistema de
liberdade sem igualdade, do estado do laissez-faire, que poderíamos chamar de democracia
liberal, para chegar, um século depois, à liberdade com igualdade, ao estado do wellfare, a

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que poderíamos chamar de democracia social. A base desse percurso foi a revolução
econômica inglesa que introduziu a sociedade de mercado e gerou o Estado liberal.
Em outro extremo, o percurso que partiu da implantação, por via política, de um
sistema de igualdade radical sem liberdade, a que poderíamos chamar de ditadura social,
para chegar, 70 anos depois, à igualdade com liberdade, a uma democracia social. A base
desse percurso foi a revolução social soviética que implantou o planejamento estatal e a
ditadura do proletariado.
Percursos intermediários foram os seguidos pela França e Alemanha. No primeiro,
uma revolução política, na realidade várias, tentaram implantar ao mesmo tempo a
liberdade e a igualdade, gerando um pêndulo em que se passava do predomínio de uma ao
de outra, até que, ao final, se chegou também à democracia social. No segundo, deu-se
ênfase de início à igualdade imposta de cima para baixo até que, após muitas oscilações,
incluindo ditaduras violentas, se chegou também ao mesmo ponto final.

O caminho do Brasil

Os países que acabo de citar inauguraram sua trajetória moderna com revoluções,
econômica, política, ou social. O Brasil é um país sem revolução comparável à inglesa, à
francesa, à soviética. O que entre nós se chama revolução, como o movimento de 1930, foi
um reajuste de forças políticas e econômicas, uma freada de arrumação. Alguns
observadores mais insistentes chegam a detectar entre nós uma revolução passiva. Mas o
conceito é complexo e talvez na prática indique um processo lento de ajustamento de forças
derivadas de um capitalismo (revolução econômica) mal implantado, de uma liberdade
(revolução política) incompleta e de uma igualdade (revolução social) nunca atingida. Daí
nosso percurso tortuoso, aos trancos e barrancos, na direção da conciliação da liberdade e
da igualdade.
Sigamos o percurso brasileiro desde o início da República, mantendo a pontuação
tradicional de nossa história.
A República foi proclamada sob o signo do liberalismo ortodoxo. Abandonado o
paternalismo imperial, proibiu o Estado federal de legislar sobre a questão social e eliminou
a obrigatoriedade da educação fundamental. A liberdade em sociedade de mercado

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imperfeito beneficiou apenas setores burgueses aliados a velhas oligarquias. O povo não
comparecia nem mesmo politicamente. O eleitorado não passava de 5% da população, os
votantes ficavam em torno de 2,5%. O sistema nem mesmo podida ser chamado de
democracia liberal, tal era a limitação dos participantes. Seria mais adequado chamá-lo de
Estado oligárquico liberal.
Em 1930, com todas as limitações do movimento que levou o nome de revolução,
começou o Brasil moderno. O povo fez sua entrada na política na carona de um grande
conflito de elites. O governo central, sob a liderança de Vargas, aproveitando-se do impulso
revolucionário, que limitava a liberdade oligárquica, deu início à primeira política social
sistemática, criando um Ministério do Trabalho e introduzindo uma legislação trabalhista e
social elaborada por assessores socialistas. Era o primeiro avanço da igualdade, feito com
restrição à liberdade. A restauração da liberdade pela Constituição de 1934 foi de breve
duração. O liberalismo, aliás, estava sob ataque em todo o mundo europeu da época e sofria
arranhões mesmo nos Estados Unidos. No mundo soviético ele era explicitamente rejeitado
como obstáculo à igualdade.
O Estado Novo, ainda com Vargas, inaugurou nossa primeira ditadura, o primeiro
regime político que desde a Independência sacrificava abertamente a liberdade. Nele,
misturavam-se os estilos ditatoriais do mundo nazista e do mundo comunista. Do último,
tirava o nacionalismo e a política social. À medida que a Guerra começou a definir-se
contra o Eixo, o regime acentuou o lado social, introduzindo o salário mínimo e decretando
a Consolidação das Leis do Trabalho. Sobretudo, começou a interpelar diretamente os
trabalhadores, fenômeno inédito na história do país. A generalização do uso político do
rádio tornou mais eficaz essa comunicação, sem prejuízo do recurso a grandes comícios. Se
pela supressão da liberdade, o Estado Novo qualifica-se como ditadura, pela legislação e
pela referência ao trabalhador, características igualitárias, faz jus à definição de social. Se
quisermos distingui-lo de outras ditaduras da época, podemos chamá-lo de regime
autoritário social.
O final do Estado Novo mostrou com clareza o conflito entre a liberdade e a
igualdade. Contra Vargas, em defesa da liberdade, colocou-se o mundo dos possuidores; a
favor dele, o mundo da necessidade. Enquanto o primeiro apoiava a derrubada do
Presidente e a mudança do regime, o segundo, com o apoio dos comunistas, saía às ruas

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pedindo que ficasse. Exemplo quase pitoresco do conflito foi o que aconteceu ao brigadeiro
Ivo Borges, um dos participantes do golpe. Ao voltar para a casa, verificou que as
empregadas tinham desertado sob o argumento de que ele tinha deposto “nosso amigo
Getúlio”. Para surpresa dos liberais que o tinham deposto, nas eleições que se seguiram o
ex-ditador foi eleito deputado federal por seis estados e senador por dois.
Veio a seguir a primeira experiência brasileira de conciliação da liberdade e da
igualdade. O povo, novo ator da República, entrou de vez na arena política. Em 1950, havia
11 milhões de eleitores contra 1,8 milhões em 1930. Esse povo não só votava como ia para
as ruas e fazia greves. Vargas, eleito presidente, retomou as medidas igualitárias e
nacionalistas, como as da criação da Petrobrás e da duplicação do salário mínimo. Mais
ainda, radicalizou a linguagem com que interpelava o povo. Em seu último discurso de
Primeiro de Maio, em 1954, dirigiu-se aos trabalhadores dizendo: “Hoje estais com o
governo, amanhã sereis o governo.”
Cresceu a tensão entre o mundo da liberdade e o da necessidade, complicado pelo
conflito internacional da Guerra Fria. Um atentado político saído de dentro do palácio do
Catete ajudou a precipitar a crise. Novo golpe, seguido do suicídio do Presidente, assestou
o primeiro golpe na experiência democrática. A multidão de um milhão de pessoas que
acompanhou o corpo do presidente suicida indicou de que lado estava o mundo da
necessidade. Dez anos depois, um segundo golpe, que contou agora com o apoio das
classes médias, encerrou de vez a experiência, antes que completasse dezenove anos de
idade. Seguiu-se, de 1964 a 1985, o trecho mais difícil do percurso brasileiro, pois a
liberdade foi sacrificada sem que houvesse a compensação da igualdade.

Vargas hoje

Em 1985, retomou-se o ensaio de 1945. Mas até hoje a recuperação da liberdade


não tem resultado em progresso significativo da igualdade. O índice de desigualdade tem
permanecido estável nos últimos vinte anos e está entre os piores do mundo. Dependendo
do método de cálculo, chega-se à terrível cifra de 50 milhões de brasileiros vivendo abaixo
do nível de pobreza. Mais da metade da mão-de-obra encontra-se fora do mercado formal
de trabalho e o índice de analfabetismo ainda é de 13% da população. Para usar a

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terminologia que estou empregando, o Brasil continua uma democracia liberal, com
liberdade mas sem igualdade.
As últimas eleições levaram à presidência da República um líder que de novo
interpela o povo e um partido que agita a bandeira do social. Não por acaso, detectam-se de
vez em quando impulsos autoritários. Mas até agora não têm sido de porte a ameaçar a
liberdade. Caso as políticas sociais tenham maior êxito que as anteriores, estaremos
avançando no caminho para a democracia social.
Até que as duas metas sejam atingidas ao mesmo tempo, até que liberdade gere
igualdade acabando com a tirania da necessidade, e a igualdade garanta a sobrevivência da
liberdade, até esse momento a sombra de Vargas estará conosco. Nesse sentido, e nesse
sentido apenas, falando de metas e não de métodos, pode-se dizer que a era Vargas não
terminou.
(Publicado em Ciência Hoje, 35, 210 (novembro 2004), 32-35).

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