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A paz: divergéncias dos projetos de Kant e Proudhon* Peace: Kant’s and Proudhon’s opposing projects Geraldo Alves Teixeira Jtinior Resumo © objetivo do artigo é diferenciar as propostas desenvolvicas por Kant e por Proudhon para se chegar a Paz. estudo foi realizado através da leitura de textos ¢ obras dos autores e de textos de analise das obras destes autares. Kant tem como objetivo princi- pal realizar uma filosofia que se baseie na racionalidade e nao na histéria, o que tornaria seu sistema universal. Proudhon, ao con- Uario, possui uma intengdo histérica e se serve da histéria para suas andlises. As obras dos autores sao inconciliaveis. Interyen- ges sociais podem ser justificadas com argumentas de ambas: caso se baseie nos de Kant a inten¢do serd de reformar para garan- tir a manutengdo; caso se utilize as de Proudhon o objetivo sera de alterar a ordem vigente, Palavras-chave: Guerra, Paz; Kant; Proudhon. * Esse artiga é resultado de uima pesquisa de Iniciagao Cientifica que desenvolvina PUC SP entre 2005 ¢ 2006, sob orientasio do professor Edson, Passert, a qual foi apresentada no relatdrio final cam o nome “A Paz; a andlise das forges ¢ 0 direito sinalagmatico ¢ comutativo de Proudhon contrapostos.ao contratualismo e ao direito universal de Kant” Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, 12'sem. 2007 29 Geeatbo Atves Tenens jinton P.. a elaboragao de meu relatério final procurei desenvolver ao mi: ximo as concepgodes politicas ¢ econdmicas de cada autor. Nesse espago, po- rém, tentarei realizar ndo mais que uma visio geral do tema central, a Paz, na obra dos autores, Darei prioridade & obra de Proudhon por julgar que ha um maior conhecimento das textos de Kant. Assim, penso poder atrair os interessados para a leitura de obras integrais dos autores em questao, Kant Um direito puro A expresso “como se” é freqiiente na obra desse autor ¢ traz consigo a impossibilidade da realizagao pratica de sua teoria. Kant é integrante da tradicao iluminista, criticada, posteriormente, di- versas vezes por tentar desenvolver uma raz4o que se pretende ahistérica ou, talvez, supra-histérica. Ha, logo, uma separagao rigida entre teoria e prdtica has obras desse fildsofo, de modo que a teoria deve ser valida apenas a priori, ou seja, os conceitos sic anteriores 4 experiéncia e devem ser tracados de modo a constituir uma lei universalmente aceita ¢ ndo se restringindo a casos especificos. O termo a priori € utilizado para designar um conceito anterior a qualquer experiéncia, Segundo ele, conceitos como tempo e espago na reali- dade nao sao empiricos, mas sao conceitos a priori utilizados para que possa- mos realizar nossas experiéncias. S40 esses conceitos que, se articulando, permitem que os estudos de Kant desenvolvam a “metafisica”, segunda o préprio autor, uma compreensiio isenta de excegdes ¢ que independe de qual- quer experiéncia sensivel. A critica a esse tipo de abordagem filoséfica é posterior & sua época endo se deve compreender que Kant age desse modo inconscientemente, pela con- trério, 9 autor reconhece essa separaciio entre a racionalidade e a histéria e tenta a aplicar em varios dominios para a formulagao de leis universais. Em A metafisica dos costumes, na qual se situa “A doutrina do Dir to”, por exempla, 0 que se busca sao definigtes universais que permitam a compreensao do Direito em sua tatalidade, independentemente das diferen- tes formas em que ele possa se manifestar nas diversas sociedades. Seria, se- gundo a terminologia kantiana, um Direito em sua forma pura. Tendo isso em conta, percebemos porque, quando trata das atitudes do soberano, Kant diz que este deve orientar suas a¢Ses como se agisse em nome de uma vontade geral e porque, em seu projeto de Paz Perpétua, logo de inicio, Kant explicita a inviabilidade prética de concretizé-lo, dizendo ape- nas que este projeto deveria ser perseguido como se fosse possivel. Ocorre que 30 Fronteira, Belo Horizorite, v. 6, n. 11, p, 2948, 1? sem. 2007 ‘ALPag! DINEREENEAS DOS PRO)ETOS DE KANTE PROAICHON © autor pretende formular uma idéia pura do direito, conceitualizando a justiga como algo abstrato, que deve orientar as inten¢Ges e nado medir os conflitos sociais. Anacao, o Estado ¢ o direito das gentes A paz perpétua de Kant se estrutura sobre dois pilares fundamentais, o direito das gentes eo direito cosmopolita. Para entendé-lo é precise verificar como sé configuram esses dois direitos, Para quem conhece apenas os argu- mentos desenvolvidos pelo autor em A paz perpétua, poderd ser uma sur- presa as concepgées de direito que o autor possui, em alguma medida herdeiras das tradigdes hobbesiana e liberal. Para Kant, qualquer direito pablico deve envolver uma relagio hierér- quica, uma relagaa entre stidito e soberano. Caso nao haja este tipo de rela- io, o que vigora ¢ um direito privado, nas palavras do autor, “um direito equivoco”. Os atores do direito privado possuem uma liberdade, considera- da selvagem, que ¢ valida para 9 individuo até o momento em que le encon- tre uma outra liberdade que o submeta. Assim, o unico direito que existe em tal situagao ¢ 0 direito de coergao reciproca. Esse direito sé pode conceber a igualdade frente a uma dnica lei, a lei da agao ¢ reacdo, segundo a qual qual- quer um pode reagir frente a uma agio antagénica. Essa configuragao seria caracteristica de um estado de natureza, em Hobbes e também em Kant. A diferenga entre estes dois autores esta no fato de que para Kant, diferente- mente do que acorre em Hobbes, “o estado de natureza ndo se opée a condi- 40 social, mas sim 4 condicao cris visto ser certamente possivel haver sociedade no estado de natureza, mas no sociedade civil” (KANT, 1797, p. 88). A relagdo entre os diversos Estados ¢ analisada pelo autor sob o nome de vito das Gentes, mas segundo Kant deveria ser chamada “Direito dos Es- tados”. Esse direito é semelhante ao-encontrado no estado de natureza huma no, jd que nao ha relacio hierarquica entre os Estados e algo superior a eles. O direito das gentes, portanto, ndo representa uma condigdo juridica pro- priamente dita, antes, é uma relacdo baseada naquele “direito equivaco” do qual tratamos. Esse direito é entendido, entao, como referente as agiies dos Estados em relagao a guerra. Sao, essencialmente, trés: o dircito de ira guer- ra, 0 direito na guerra ¢ 0 direito apds a guerra, esse ultimo sinénimo de direito & paz. O dircito de ir & guerra ocorre por dois motivos, pela “ameaca” e pela “retaliagdo”. © primeira deles inclui o direito de prevengao e se justifica quando um Estado compreende que hé “preparagdes” por parte de um outro, ou quando um Estado entra em guerra com outro e tem a possibilidade Front a, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, Tse, 2007 un Grratoo Atves Tereiea Jomion de aumentar sua poténcia devido a anexagao de territério. Desse modo, um dos direitas dos Estados encontrado no direito das gentes compreende a for- magio de aliangas para o estabelecimento de um “equilibrio de poder” — expressio citada textualmente. O direito de ir & guerra por retaliacio se da quando, frente a alguma ofensa cometida por outro Estado em relacao ao seu povo, o Estado ofendida, ao invés de tentar uma compensacao pacificamen- te, resolve usar a forga. Na guerra, segundo Kant, como nao ha uma condigao juridica em vi- gor, ndo ha, tampouco, a possibilidade de definir o que, ou quem, ¢ justo, Os meios dos quais se utiliza na guerra sao irrelevantes e podem ser usados em grau ilimitado, salvo os que “tornariam seus suditos inaptos a serem cida- dos”, 08 quais se resumem como “o uso de meias desleais que destruiriam a confianga necessdria ao estabelecimento de uma paz duradoura no futuro” adores. “E, entretan- = como 0 uso de espides, envenenadores ¢ franco: to, redundante falar de um inimigo injusto num estado de natureza, porque um estado de natureza € ele mesmo uma condigao de injustica” (KANT, 1797, p. 192). A tinica nogao concreta de justica na guerra est4 relacionada, entio, a “declaragaio de guerra”, o que seria uma espécie de contrato por meio do qual os inimigos reconheceriam que desejam buscar seu direito des- sa forma. Apds declarada, ne entanto, nao podendo uma guerra ser jusla, nao se pode ter uma guerra punitiva, uma guerra de exterminio ou uma guerra de subjugacéo, pois qualquer uma delas aniquilaria a personalidade do Estado. Pelo mesmo motivo nao ha direito de anexagio do territério do inimigo vencide ou da cobranga de indenizagao a ser paga pelo mesmo. O direito apés a guerra consiste no fato de que um Estado vencedor pode estabelecer as condigoes de um acordo com o vencido, Esse acorda teria como base a propria forca do vencedor, porém este no pode pretender a cobranga dos prejuizos causados pelo Estado vencido durante a guerra, pois se assim fosse, seria considerado que este ultimo era injusto ¢ que se estava travando uma guerra punitiva, Pelo mesmo motivo, o Estado vencido e seus stiditos nao perderiam sua liberdade civil. O direito 4 paz inclui ainda a pos- sibilidade de neutralidade de um Estado, a garantia de continuidade de uma paz cancluida e o direito de uma alianga de varios Estados, formando uma “liga” para a defesa comum contra quaisquer agressGes externas ¢ intertias, mas que nao possui o objetivo de anexacdo de territério, Odireito cosmopolita Este segundo ponto de sustentacao da Paz Perpétua de Kant se relaciona com “os homens e os Estados, na sua relagdo externa de influencia reciproca, 32 Fronteira, Bela Harizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, 18 sem, 2007 ‘ALPAZ: OIVERGENCIAS DOS PROIETOS BE KANT £ PROUBHON como cidadaos de um estado universal da humanidade” (KANT, 1795, p. 127). Esse direito surge devido ao formato esférico da Terra e 4 conseqtiente cone- x40 existente entre todos os lugares do globo — o que estabelece 0 direito de comunidade em relagdo a terra -, 0 que faz com que os individuos tenham a necessidade de'se “suportarem”, de onde provém um direito natural - que nenhum Estado formulou = chamado de “direito de hospitalidade”. Segundo as regras universais de hospitalidade, estruturadas sobre 0 “direito de visita”, um estrangeiro nao pode ser tratado de modo hostil por estar ne territorio de outra povo. Dai surge o direito cosmepolita, que tem uma finalidade, o comércio. Kant argumenta que, s¢ por um lado, a “natureza” — compreendi- da como a vontade de Deus de forma manifesta = separou os homens pelas Iinguas, pelas culturas e pelas religides, gerando guerra; de outro, cla os uniu através do “espirito comercial”, que inevitavelmente ira se despertar nos po- vos € que nao pode coexistir com a guerra. A paz perpétua Kant escreve A paz perpétua nas formas de um tratado de paz, com artigos preliminares, definitivos e até mesmo um artigo secreto. S40 trés os artigos definitivos para a Paz. Primeiramente, diz-se que a constituicio dos Estados deve ser repul icana, ja que esta & a tinica que pode estabelecer a idéia de um contrato original, segundo o qual os individuos cedem sua liberdade selvagem para a Estado ¢ a readquirem em forma de uma liberdade civil, na qual a propriedade € possivel de moda permanente. Devemos sublinhar que a repuiblica é a forma de governo que divide o poder em executiva e legislati- vo - Kant nao cita o judicidrio -, mas esse governo republicano nao devera ser democratica. Kant argumenta que a democracia é um despotismo, pais, quanto menos representative € um governo, maior sua propensdo a se tor- nar um despatismo, Isso em primeira lugar, porque o poder néo se divide efetivamente, j4 que “todas” sao os legisladores e os executores de sua vonta- de, mas, além disso: .» porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo caso, também contra um (que, por conseguinte, ndo di seu consen- tient), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem — 0 que € uma contradicdo da vontade geral consigo mesma e com a liberdade. (KANT, 1795, p. 130) O segundo artigo definitivo tem a ver com a necessidade de se formar uma federacao de Estados. Do mesmo modo que Kant argumenta em relagdo ao direito piblico, que se deve usar a forga, se necessdrio, para obrigar ou- tros individuos a entrarem em uma condicao civil, ele estipula que os Estados Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, 8. 11, p. 29-48, 1° sem. 2007 33 GeRaLDo Atves Tensei JONIOR que estabeleceram entre si uma condicéo juridica devem exigir dos outros que entrem com eles em uma federagio, Kant apresenta duas possibilidades para que a federacao se desenvolva. A que ele julga ser mais correta define que os Estados devern entregar sua liberdade selvagem ¢ formar um “Estado de povos” (civitas gentium) disposto de leis publicas coativas que englobaria, por fim, todos os povos ¢ climinaria a guerra. Essa “republica mundial” seria uma idéia positiva do direito, dado que constitui uma relacao hierérquica de poder, porém, por fim, o autor acaba por reconhecer que os Estados rejeita- tiam essa op¢do. Assim, ele prapde uma federacdo continuamente em expan- sao. Essa federagdo, no caminho oposto ao da reptblica mundial, nao pretenderia desenvolver um Estado de povos, formador de uma nagao tinica, uma vez que, como vimos, a fusio de todos os Estados em um tinico nao esti de acordo com 0 direito das gentes. Para garantir a validade do direito das gentes, a “federagéo da paz” nao deve tratar de estabelecer leis puiblicas ou. coag’o sobre os Estados federados, mas pode, indiferentemente, se reunir em torno de uma republica que possua um povo “forte e ilustrado”. O dltimo artigo definitivo se refere ao direito cosmopolita. Este artigo diz que o direito cosmopolita deve se limitar ao direito de hospitalidade, ou seja, & permissao de que um estrangeiro possa tentar estabelecer uma relacao. comercial com os habitantes de qualquer parte do globo. Nao se inclui af a possibilidade de um estrangeiro se instalar em um desses lugares. O freqliente intercAmbio comercial ¢ 0 contato entre os povos que passam a ocorrer dessa. maneira, diz Kant, pode fornccer as bases para a futura instauracdo de uma “constitui¢ao cosmopolita”. A garantia da Paz Perpétua provém da natureza. No que concerne ao direito das gentes, a natureza impede a formagdo de uma monarquia univer- sal, 0 que pode, por um lado, possibilitar a ruptura da paz, mas, por outro, impossibilita que as mesmas leis se apliquem para todos os povos. Esse impe- dimento seria positivo jé que a expansao do ambito das leis faz com que essas percam forga e, além disso, diz Kant, o despotismo excessivo poderia resultar na anarquia. Aqui, o que ocorre nao é a climinagio das forgas dos Estados, mas 0 “equilfbrio” destas, Referente ao direite cosmopolita, a natureza nado elimina nem equilibra as forcas, ela, a0 contrario, instala uma forea que ‘orienta todas os Estados para um caminho de convergéncia, o do comércio. Esta tiltima garantia é a mais significativa “Porque entre todos os poderes (mcios) subordinados ao poder do Estado, 0 poder do dinheiro é sem dtivida o mais fiel, os Estados vém-se forgados (...) a fomentar a nobre paz e a afastar a guerra mediante negociagdes ...” (KANT, 1795, p. 149). 34 Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, 1° sem, 2007 Avad: ONFEGINCIAS BOS FROWIOS OF KANT PeoUDHON Para Kant, a Paz Perpétua deve ser atingida por meio de reformas ¢ nao revolugdo. Entre outras coisas, isso se deve ao fato de nas relagées internacionais nao se poder exigir que um Estado renuncie & sua constituigio, 0 que calocaria em risco sua prdpria sobrevivéncia devido & presenga de outros Estados. Proudhon Método e filosefia na histéria Este autor possui a intencdo de que sua teoria se efetive, ndo como um fim a ser perseguido, mas como um meio de atuagio na sociedade. Sua inten- do €a de que seus eseritos sirvam como instrumentos de mudanga social. Aqui, ao contrério do que ocorre em Kant, essas mudancas partiriam da sociedade ¢ se transformariam, por fim, em mudang¢as politicas, consolidan- do uma nova forma de governo, a anarquia. Proudhon realiza seu pensamento filoséfico através de andlises histéri- cas ¢ nao através de abstragies que pretendem chegar a concepgdes puras dos elementos saciais. Ha uma critica desse autor a esse tipo de filosofia abstrata, a qual, segundo ele, se aproxima das religides, jd que discorre sobre elemen- tos metafisicos e nao sobre a realidade verificada. O que Proudhon se propGe a realizar € a descoberta de um principio que explica as condigées vividas em determinadas situagées histéricas. Desse prin- cipio, ele analisa as conseqiiéncias para, em seguida, encontrar os motivos de seus descaminhos priticos. Da seguinte maneira cle apresenta o caminho a ser tragado em O que € a propriedade: Nao discutimos, nao refutamos ninguém, nao contestamos nada; aceita- mos como boas todas as razies alegadas em favor da propriedade e nos limitamos a buscar seu principio a fim de verificar em seguida se esse prin- cipio é fielmente expressa pela propriedade, De fato, camo a propriedade nie pode ser defendida a nao ser como justa; a idéia, ou pelo menos a intengdo de justica deve necessariamente encontrar-se na base de todos os argumentos em favor da propriedade; (...). (PROUDHON, 1840. p. 38) De modo geral, 0 desenvolvimento do estudo passa, entdo, primeira: mente pela busca de um principio e, em seguida, pela descoberta de seu opos- to, dai determina-se a dialética implicita nos fatos estudados. Diferentemente da dialética hegeliana que culmina na formagao da sintese, essa dialética ¢ indissoltvel, nao possui identidade estavel e varia com a histéria, ou seja, estd sujeita a avancos e retrocessos. No momento, seguinte trata-se de anali- sar os fatores de cada um dos elementos da dialética em questao. Par ultimo, a conclusao se faz baseada em um procedimento que permita diminuir a Fronteira, Belo Horizonte, v. 6. n. 11. p. 29-48, 12 sem. 2007 35 Gerauvo Atves Taneiza Jowion influéncia na série dialética do elemento indesejado e aumentar a do elemen- to desejada, através da contraposigao orientada destes. f assim que em Do principio federativo analisa-se inicialmente os termos da dialética: a “Auto- tidade ¢ a Liberdade”. Por fim, Proudhon discorre sobre como reduzir a autoridade ao maximo, 0 que faria com que a liberdade caminhasse no senti- do inverso, se tornaria a maior possivel, A guerra: inicio da justiga, base dos regimes politicos Segundo as andlises histéricas ¢ filosdficas do autor, a guerra é algo presente tanto na vida individual quanto na social. Além disso, é essen- cial 4 condicao de ser humano e se encontra em qualquer momento na histé- tia das sociedades. Em todos os povos a guerra se apresentou inicialmente como algo divino, as religies consagraram a guerra. A guerra com seus he- réis seus mitos ¢ suas incertezas, por fim, cria as religiées, estabelece os dog- mas ¢ suas manifestagdes. Antes disso, ¢ mais que isso, ela se torna para os homens a lei do universo, a orientagdo do caos: Mas, quem nao vé que se a guerra serviu primitivamente de molde a teologia, nao é pelo efeito de uma superstigao feroz, mas precisamente porque a guerra foi concebida em tados os tempos como a lei do Univer 0, lei que se manifestava aoy olhos dos primeiras humanos, no céu pela tempestade e pelo trovao, na terra pelos antagonismos de tribos e de rages? (PROUDHON, 1861, tomo primeiro, p. 44) A guerra é a tinica maneira de se conceber um direito inicial, seja entre individuos, seja entre povos. Porque a guerra é um fenémeno essencialmente humang, e porque esse fendmeno origina a religido, simultaneamente inau- gura também o direito divino, que é apenas a representagio da natureza guerreira humana. Dai se conclui que o direito divino introduz o direito humano ou 0 inicia. © “direito de conquista” da forma a todas as nagdes modernas; instituido através da guerra, ele ¢ um direito divine. A conquista, diz Proudhon, ao mesmo tempo que molda o Estado, estabelece a soberania, E através da conquista que surgem os imperadores: assim se deu com Henri que IV, com Napoleao I ¢ com Napoledo II. A guerra é base também da democracia. A Constituicdo francesa de 1830 decreta que todo cidadao é guarda nacional. Se todos os homens lutam, todos os homens votam, pois € por eles que se manterd o Estado, Assim, segundo Proudhon, os direitos politicos nao sao outros que os direitos das armas, o sufrdgio universal é uma abstragio do servigo militar. O principio parlamentar das maiorias nao ¢ diferente, representa uma forga — da maio- — superior a outra. A constituigao politica é, portanto, essencialmente 36 Fronteira, Belo Horizonte, ¥. 6, n. 11, p. 29-48, 1° ser, 2007 ‘APAZE DINERGINCIAS BOS PROIETOS DE KANT E PROUOHON guerreira e é ela que estabelece a lei civil, que, por sua vez, tem como eixo a propriedade. De tudo isso se conclui que a guerra cria a justia: “Sim, a guer- ra é justiceira, a despeito de seus ignorantes depreciadores, Ela possui suas formas, suas leis, seus ritos, que fizeram dela a primeira ¢ a mais solene das jurisdigées, e das quais safram todo o sistema do direito” (PROUDHON, 1861, tomo primeiro, p. 51). A guerra &, portanto, integrante e constituinte da sociedade e da civilizagao. E um elemento da raz4o humana, e como tal se modifica em diferentes culturas ¢ em diferentes tempos, sem, no entanto, se extinguir. Ela se apresenta no campo de batalha tanto quanto em um tribunal, porém, sob formas diferentes. Para os outros filésofos — também para Kant — o primeiro direito a ser instituido é sempre o direito constitucional, que ird formar o Estado, o qual possibilitara a formagio de todos os outros direitos internos ¢, posterior- mente em suas relagdes com os demais Estados, ira estabelecer também o direito das gentes. O direito que funda o Estado esta atrelado, segundo estas concepgGes, simplesmente & idéia de um contrato social. Proudhon percebe Por isso que, se o primeiro direito é algo abstrato, todos os demais, que sao de alguma maneira dele derivados, também serao. No dircito das gentes, internamente, o poder coercitive dos Estados sustenta os direitos, no entan- to, em Ambito internacional, nda havendo poder coercitiv, a direito néo pode existir de maneira efetiva. Para que o direito, em qualquer esfera que ele se apresente, possa se fundar em algo pratico ¢ se tornar concreto, o primeira direito a ser reconhecido deve ser o “direito da forga”. Pelo nao reconhecimento do direito da forga, Proudhon critica os mo- delos que Hobbes, Kant ¢ Grotius propuseram para se atingir a Paz. Habbes e a supressdo da forga O homem, diz Proudhon, deseja a paz, tanto quanto ela puder lhe ser util, mas a repele ¢ a afasta sempre que seu sentimento de egoisme lhe indica que ela é desfavordvel. Pelo sentimento de egoismo o homem realiza a guerra, pelo sentimento de justica o homem busca a paz, $80, portanto, os dois ele= mentos da natureza humana, a guerra e a justiga, que os reuniu seb uma associacéo. Hobbes, s@ foi capaz de identificar o primeiro deles e, assim, os individuos que se reviniram na formacao do Estado, segundo sua concepedo, nao tinham intencdo de fazer justiga, mas unicamente de acabar com a guer- ra conservar a todo custo — mesmo que fosse com um Estado absolutista — “seus corpos e seus membros” No que diz respeito as conseqiiéncias dessa natureza humana, Hobbes se engana quando afirma que o Estado ¢ instituido apenas a fim de impedir a Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, 17 sem. 2007 7 Genateo Aves TERERA JUNIOR guerra interna, Contrariamente, o Estado surge tanto pela guerra do exte- rior quanto pela ordem do interior. A guerra entre individuos cessou pelas necessidades: internamente, pela necessidade da associagao econémica e, externamente, devido 4 necessidade de conter os ataques exteriores, 0 que fazia com que os cidadaos renunciassem & guerra privada e a reservassem ao Estado, © “materialista” Hobbes teria feito o que mais tarde se encontraria na dialética “metafisica” de Hegel, partiu do “nao ser” para chegar ao “ser”. Ou seja, do estado de guerra ao estado de sociedade, do “nao direito” ao direito. No Estado de natureza e fora das instituigdes religiosas, a tinica lei existente seria o direito de “fazer tudo” para “conservar seu corpo ¢ seus membro”, para evitar a morte ¢ o sofrimento. Esse seria um nio direito, Dessa formulagao ‘Hobbes tira sua definigao de direito, na qual seu sistema serd baseado. O obje- tivo desse autor era evitar o prolongamento do estado de natureza, da lei da forca, e tirar 0 mais rapido possivel o homem dessa condicdo. Assim, o absolu- tismo é a forma mais direta, mais “reta” para realizar essa tarefa. O Estado é criado pela negagao e institui 0 direito. Sobre o direito da forga — base de toda justica —, diz Proudhon, Hobbes sé falaria para negar, assim como fazem os juristas. “Fazer de Hobbes 0 te6rico ou 0 apologista do direito da forga, do direito do mais forte, ¢ simplesmente tomar a contra-mao de seu pensamen- to, uma pura caltinia” (PROUDHON, 1861, tomo primeiro, p. 131). Grotius ¢ a benevoléncia humana no direito internacional A idéia de direito da forga é apresentada como reconhecida pelo senso comum, mas negada pelos juristas, os quais consideram que este direito é ua contradigio nos termas. Ha o reconhecimento do uso da forca para aplicar o direito, porém, a forga continua sendo uma excecdo da justiga. Dai, as criticas as escolas que se referem ao direito das gentes, inclusive aquela que definiu esse direito, a escola grociana. Desprezando também as condigéies de necessidade interna e externa res- ponsdveis por formar o Estado, Grotius baseia seu Diteito das Gentes nos argumentes incompletos encontrados em Hobbes, ¢ por esse motive todos os juristas ¢ filésofos que o seguiram nessa argumentagao nao compreende- ram que entre nagdes nfo se poderia “nem se deveria” estabelecer o que se alcangou no plano interno, j4 que nenhuma das condigées se apresenta. Na obra Do direito da guerra ¢ da paz, Grotius sustenta que as nagées, assim como as cidadios, devem constituir um tribunal arbitral para que nao haja mais guerras. Nao se concebe a Paz sem um poder hierarquizado, uma centr do da justiga. Em Grotius, o direito da forea segue desconhecido. 38 Fronteira, Belo Horizonte, v. 4, n. 11, p. 29-48, 18 sem, 2007 APA: O1VeRGENGIAS DUS >ROIEIIS BE KANT EPROLDHON O que se retira das explicagées de Grotius ¢ que durante a guerra existem atos de humanidade, mas-que esses s4o-uma excecao a guerra, de modo que se a humanidade fosse justa as guerras nao existiriam. A conseqiiéneia dessa argumentagao é que “a guerra é uma excecao justica, provocada por uma violagao do direito”. Ao negar 4 guerra qualquer cardter juridico, de indicagao da justica racional ou divina, ela nao poderia tampouco possuir um direito; indiferen- te a isso Grotius se esforga em estabelecer as formas da guerra, “Por qual complacéncia [Grotius], apés ter deplorado a guerra como anti-juridica por sua natureza, admite para ela, em nome do direito, as praticas ditas legais (...}” (PROUDHON, 1861, tomo primeiro, p. 229). Essas regras do direito da guetra de Grotius, diz Proudhon, é 0 que preserva esse fildsofo, no entanto, elas nao estabelecem mais do que a carida- de baseada em um sentimenta de humanidade e nao um direita, o que orien- tana forma de lei e nao de conselho. Ai esta a irrepardvel lacuna da obra de Grotius. Nao apenas esse grande homem nao entendeu o direito da guerra; {...) ele nem mesmo desconfiou que negando o diteito da forga, ele construia no ar é que ele levantava um monumento, nig mais 4 justi¢a, mas ao arbitrério. (PROUDHON, 1861, tomo primeiro, p. 107) Kant, contracicées entre a guerra e o sistema Kant, diz Proudhon, tentou aplicar suas categorias 4 questéo da guerra Essa, porém, é 0 maior obstaculo de seu sistema. Ao se colocar a questo das origens de toda a furia que resulta na guerra, Kant nao encontra a resposta e faz desaparecer a questio na seguinte passagem: “A guerra’, diz Kant, ‘nao tem necessidade de nenhum motive em particu- Jar. Fla parece ter sua raiz na natureza humana, passando para um ato de nobreza, a0 qual deve levar o amor e a gloria, sem nenhuma motivasao de interesse’, (PROUDHON, 1861, tome primeira, p. 114)" Para Proudhon, Kant acaba por cair na utopia devido as contradicoes entre seu sistema ¢ a explicacio da guerra. Esse autor passa mais longe ainda que os demais da compreensio do direito da forga. Hé a critica ainda, igual- mente a realizada contra os outros dois autores, da percepcao kantiana de que para se atingir a paz seria necessdrio um arbitra, uma forga artificial. * Citacio feita de KANT, Immanuel. Principes métaphysiques du droit, trad. Tissot. In: PROUDHON, Pierre-Joseph. La Guerre et La Paix . Antony: Editions Tops / H. Trinquier, 1998, Tomo Primeiro. p. 114. Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, 9. 11, p. 29-48, 1 sem. 2007 a9 GERALDO Alves Teneins [onion Por fim, Proudhon questiona que mesmo que A paz perpétua fosse rea- lizavel como tragado, cle poderia desmoronar a qualquer momenta. Quem poderia nos garantiz que no dia em que a paz tivesse sido, por uma forga arbitréria e uma combinaede artificial, assinada e consolidada en- tre as poténcias, a guerra nao ressuscitaria mais ardente, obstinada, ¢ sem dtrvida, menos cavalheiresca, entre as pessoas? (PROUDHON, 1861, tomo primeiro, p. 66) QO fim das guerras Proudhon argumenta que s¢ a guerra fosse ebservada sob seu significa- do histérico, essa jamais se daria por meios aleatérios, ela ocorreria sempre segundo “as formas”. Algum outro fator, ento, atua simultaneamente a esse fator politico, porém, no sentido inverso deles, ou seja, na degeneracao da guerra. O fator responsavel pela corrupcao de qualquer guerra e que se en- contra presente em todas elas, segundo Proudhon, é a economia. Argumen- ta-se que o pauperismo — o distanciamento entre a faculdade e a poténcia produtiva, resultando no desequilibrio econémice = é, no ambito econémi- £0, aquilo que gera as mazelas sociais, Se internamente faz-se a revolugio para combater esse problema, externamente os Estados vo a guerra, ou seja, de modo mais familiar, poderiamas dizer que o motivo se chama “déficit”. A guerra tem seus principios politicos deturpados pela causa econémi- ca; ela é levada a cabo pelo Estado, mas mantém suas caracteristicas de guerra privada. Por isso ocorre, por exemplo, a pilhagem, 0 que nao é, como julga- vam os filésofos, uma conseqiiéncia da guerra, ao contrario, € sua causa, Isso demonstra que a propriedade jamais foi completamente reconhecida. “Coisa singular, a propriedade, que em todas os Estados é uma das colunas do direi- to civil, nao fora jamais completamente reconhecida entre nagdes, nao pode ser” (PROUDHON, 1861, tomo segundo, p. 52) Na origem desse fato estd, entia, a instituigéo da propriedade e, tam- bém por isso, Proudhon argumenta sobre a necessidade de se substituir a propriedade pela posse. As propriedades, puiblicas e privadas de um Estado conquistads passam a pertencer ao vencedor, é um Estado e sua populacdo sendo roubados por outro, por mais justo que a politica possa tentar tornar esse fato. O Estado; diz Proudhon, ¢ 0 roube, assim ele se constituiu, pela conquista, assim ele se mantém, pelos impostos e taxas. A guerra no pode solucionar 0 déficit, j4 que, logo apés a conquista, novos gastos sdo gerados, para reconstruir o territério anexado. Para ex- Pressar essa consegiiéncia natural da guerra, Proudhon utiliza a frase de Na- poledo, segundo a qual “a guerra alimenta a guerra”. Por Napoledo a frase foi 40 Fronteira, Sela Horizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, 1° sem, 2007 |APAT: BIVTRGENICIAS 005 PROIETOS. BE KANT ¢ PREUDHON utilizada para indicar que as necessidades da guerra seriam saciadas pel propria guerra, que os soldados seriam alimentados pelos recursos conquis- tadas dos territérios dos derrotados, No primeiro momento isso é verdade, esclarece Proudhon, porém, essa frase ganha outro sentido quando 0 povo vencido precisa ser assimilado, No segundo momento, “a guerra alimenta a guerra” nao porque ela iré suprir os custos da reconstrugio de um Estado, mas, pelo contrario, serd porque a guerra, ao gerar mais déficit, ira exigir que se faga mais guerra ~ ira alimentar novas guerras — e, assim, indefinida- mente, até que uma outra for¢a se oponha. Essa forca ndo necessariamente sera exterior. Como o déficit continua ¢ aumenta com novas guerras, o Esta- do tenta sané-lo também internamente, o que significa exploragao de seus prépries cidadiios. Esses, por serem explorados pelo Estado em guerra tanto quanto por aqueles contra quem se est travando a guerra, poderao em um determinado momento se epor ao Estado através da revolugao. Assim, de qualquer modo que se observe, a guerra se reduz ao absurdo, jé que o vence- dor, procurando fugir do déficit, produziria mais déficit Omutualismo Para se chegar & Paz o problema do pauperismo deve ser resolvido. Proudhon propée que isso seja feito através do estabelecimento de um Direi- to Econémico, © qual deveria ser capaz de realizar o equilibrio entre os ter- mos da dialética produgao/consumo, O direito econémico seria erigido sabre © conhecimento da produgdo e do consumo e teria na prética social o nome de mutualismo, seria a realizacio do principio de reciprocidade. Assim como Proudhon o apresenta em A capacidade politica da classe operaria, o mutu- alismo pretende realizar no campo econémico as preocupagées principais tanto do comunismo como do liberalismo — a liberdade de comércio ¢ a seguran¢a da economia —, mas sem cair na extrapolacao dos principios como ocorre nesses dois sistemas ¢ que leva As injustigas neles observadas. O mutu- alismo consagra a sociedade justa porque a reconhece como necesséria — jé que nenhum individu pode produzir sozinho tudo o que consome—; garan- tindo a igualdade, assegura também a liberdade; garante a ordem, porque acaba com a exploragdo. O sistema mutualista se mantém por um conjunte minimo de institui- goes politicas e econémicas encarregadas de sua confirmagao ¢ verificacdo, ¢ que, portanto, ndo podem ser exercidas por personalidades privadas. Esses servigos publicas sito delegados — seus realizadores podem ser substituidos em caso de ineficiéncia — e tem como objetivo principal serem oferecidos sociedade ao menor custo possivel — apenas aquele de sua manutengao — e com a maior qualidade. Proudhon faz, diversas vezes, questao de diferenciar Fron ira, Belo Horizonte, 6, n. 11, p. 29-48, 1 sem, 2007) ay GERALDO ALVES TED JUNIOR esse tipo de organizagao daquela realizada através de centralizagdo ou do comunismo, No mutualisme a sociedade trabalha para si mesma, diferente- mente dos sistemas centralizadores, nos quais os produtos so “os mais earos e piores de todos.” O governo € apenas um “sistema de garantias”, que permite, sem que se escape a igualdade, o goro da posse, a troca de produtos e de servicos. O manopélio é entao evitade, seja ele estatal ou particular. Proudhon contrapée, como vimos, ao conceito de propriedade, 0 con- ceito de posse, A diferenga estabelecida entre esses dois conceitos reside no modo de utilizagao do objeto possuido. O dircito a posse depende da capaci- dade de utilizagao pessoal por parte do possuidor da coisa possuida. direito inexiste no caso de a pessoa possuir em excesso ¢, portanto, nao uti zar de fato. Desse modo, seria possuidor aquele que se dispusesse ao trabalho ¢ apenas na medida em que pudesse produzir. Nao é concebivel para a manu- tenga da igualdade, portanto, o trabalho assalariado. E possivel que haja a uniao de duas ou mais pessoas para realizar um trabalho, porém, essa uniao se configura como uma associagdo, na medida em que todos receberiam igual- mente, Assim, podemos perceber que a associagao s6 ocorre em caso de ne- cessidade, porque exige a reparticio do valor adquirido pelo trabalho. As palavras-chave do direito econémico e do regime mutualista, entao, sao reciprocidade e garantia. “[O mutualismo] nao se estabelece para obter diretamente um beneficio, mas uma garantia” (PROUDHON, 1865, p. 148). £ com base no mutualismo que Proudhon argumenta que o governo deve se constituir através de um pacto social federativo, que se baseie em um ato juridico concreto que garante a liberdade, e nao apenas em uma idéia, Atederacao Apenas uma sociedade formulada sobre a igualdade, a liberdade e a justia poderia estabelecer o que Proudhon chama de “unidade natural” — alcangada de modo espontaneo e voluntério. Esta unidade esta baseada em fatores culturais, econdmicos e sociais ¢ nao s¢ trata de uma imposigao polf- tica de um governo centralizado como se entende ser a “nario”. A unidade natural nao significa a inexisténcia de conflitos, os quais sao inerentes a soci- edade. A articulacao dessas forcas divergentes — o que ndo significa sua ho- mogeneizagdo forcada — seria uma tarefa a ser cumprida pelo direito, jé que “lei”, para Proudhon, significa estabelecer um equilibrio de forgas, Estabele- cido um direito que se baseie no mutualismo e na reciprocidade, a ordem civil estaria assegurada, Apenas, entao, com a justica e a igualdade assegura- das é que se pode estabelecer um contrato capaz de orientar as acdes sociais, 42 Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, 1 sem. 2007 AA PAE: civerGENcias 00s PROIEIOS De KANT LPROLDION O pacto social para Proudhon deve ser algo conereto, que pode ser dis- cutido e votado segundo as necessidades. O contrato estabelecido exige a reciprocidade das obrigacdes entre os contratantes ¢ a equivaléncia das acties reciprocas realizadas, ou seja, é um contrato sinalagmdtico e comutativo. Estes termos remetem imediatamente ao de equilibria, ou seja, justamente o que Proudhon considera come Justiga — ja que resultado da lei estabelecida pelo principio da reciprocidade. Esse contrato nao exige que o individuo ceda toda sua soberania para readquiri-la parcialmente através do Estado — como © proposto por Kant. Ao contrario, uma condi¢ao primordial do con- trato federativo ¢ que cle trate de assuntos especificos, aqueles necessarios para garantir a justi¢a e, conseqiientemente, a ordem social. Desse modo, ¢ essencial que “os contratantes reservem sempre uma parte de soberania e de agio maior do que aquela que abandonam” (PROUDHON, 1863, p. 97). Seria um governo no qual nao hd a distingio entre governantes e gover- nados. A administrago da sociedade se daria como o funcionamento de uma industria, cada um exercendo deveres especificos, mas que estio, como a pré- pria sociedade, vinculados entre si. Os Orgios ptiblicos teriam papéis pontuais, objetivos e¢ limitados tanto pela existéncia de outros érgaos independentes quanto pela publicidade de suas aces, 0 que permitiria um controle da populacdo. O governo é também assim entendido; possui papel objetivo ¢ limitado ¢ esta subordinado a uma Assembléia, cujos membros so delegados, atuando na mesma condigao que em qualquer outro érgio ptiblica. Ele é 0 minimo possivel executivo eo maximo posstvel legislativo, seria, nas palavras de Proudhon, um simples “empreiteiro do servigo publico”, porém, que inaugura, nao que administra. Proudhon diz que a delimitagdio do Estado nao deve ocorrer apenas em relagao a suas fungdes, mas também em relacao & sua extensao. Politicamen- te, a unidade natural de uma sociedade ¢ manifestada pela comuna, que re- presentaria a associagio pela necessidade. Pela necessidade, seja econdmica ou de se proteger, as comunas poderiam formar federacdes. Essas federacoes, tal como entre individuos, devem ser restritas. “As atribuigGes federais nunca podem exceder em numero e em realidade a das autoridades comunais ou provinciais, do mesmo modo que estas nao podem exceder os direitos ¢ as prerrogativas do homem ¢ do cidadao” (PROUDHON, 1863, p. 91). Contrariamente Aquilo que figura na Paz perpétua, ndo é concebivel aqui uma federacdo universal, menos ainda que ela seja centralizada em um Estado “forte e¢ ilustrado”, Novamente, a federacao se estabelece pela necessi- dade das partes, o que implica no reconhecimento de sua igualdade e liberda- de. Mesmo a Europa seria ja demasiadamente grande para formar uma Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 29-48, 1° sem, 2007 4a Grratpo Auves THMERA JUNIOR federagiio tinica, “ela nao poderia formar sendo uma confederagdo de confe- deracdes”. Por fim, a federagao em Proudhon vai até suas ultimes conseqiiéncias, estabelece o direito da parte de sair do grupo quando quiser. © autor faz uma anilise critica da histéria da federagao nos Estados Unidos e na Suica para dizer que © motivo pelo qual uma federacdo permaneceria na unidade ndo deve ser pela imposigao da maioria; “O que importa para fazer a confedera- ¢do indestrutivel é dar-Ihe ja a sangao que ainda espera, proclamando a di- reito econdmice como base do direito federative e de toda ordem politica” (PROUDHON, 1865, p, 167). A Paz: anarquia A Paz seria, portanto, o estabelecimento simultaneo dos equilibrios politico e econdmico, o que resultaria na sociedade anarquista. A lei do anta- gonismo, no entanto, permaneceria, a guerra, enquanto principio, assim. como ela se apresentou em toda a histéria, nao cessaria de existir, Ndo se teria uma paz estatica ¢, muito menos, hegeménica; porém, nao seriam ne- cessdrias a morte ¢ a destruigao, ela se encontraria plenamente no campo do direite. Essa Paz €, segundo Proudhon, nao apenas possivel; é inevitdvel, j4 que ocorre pela evolugao do progresso. Para esse autor, o progresso se faz sobre a lei dos antagonismos, per meio dele se aproxima dos equilibrios estabelece a justi¢a, Ele caminha da concentracio a distribuigde, do Estado absolutista a federagao, do direito da forga ao direito civil e ao econdmico. Em resumo, a hipatese de uma paz universal e definitiva ¢ legitima, Ela & dada pela lei do antagonismo, pelo conjunto da fenomenalidade guerrei- ta, pela contradi¢ao assinalada entre a nocio juridica da guerra ¢ sua causa econdmica, pela pteponderincia cada ver. mais adquirida do traba~ Iho na ditegao das sociedades, enfim pelo progresso do DIREITO, direit da forga, dieito internacional, direite politico, direito civil, dircito econd- mico. A guetra fora o simbolo, a paz ¢ a realizagio, A constituicio da direito na humanidade ¢ a aboligao mesma da guerra; ¢ a organizagéo da paz. (PROUDHON, 1861, tome segunda, p. 166) Conclusao: problemas antigos, velhas solugdes Deacordo com o que foi apresentado, ha uma critica expressa de Proudhon a Hobbes, a Grotius e a Kant, fundadores nas Relag&es Internacionais, respecti- vamente das escolas realista, da chamada “escola inglesa” ¢ do idealismo. Criticar simultaneamente esses trés nomes nas relacdes internacionat enquanto disciplina seria voltar-se contra todas as bases ditas “classicas” dessa ci€ncia ~ que nao é outra senao a ciéncia politica internacional. Para 44 Fronteira, Belo Horizonte, ¥. 6, n. 11, p. 29-88, 1° sem, 2007 A PAZ: DIVERCENCIAS DOS PROIETOS DE KANT EPROUDHON tanto, é de se esperar, seria preciso uma andlise inteiramente nova que alte- rass¢ ndo apenas a intera¢ao dos “objetos de estudo”, os atores, das relagées internacionais, mas que fizesse mais que isso, ou seja, que estabelecesse novos conceitos que pudessem ser utilizados na pratica das transformagdes saciais, transpondo assim o limite da teoria considerada em sentido estrita como simples encadeamento légico-racional. E disso que tratam a andlise ¢ a teo de Proudhon, de reinterpretar os conceitos desses elementos ¢, através dessa nova interpretagio, de estabelecer novas relagdes entre eles. A pergunta que possibilita a critica é © que as trés teorias classicas possuem originalmente em comum que as fazern direcionar os Estados para a guerra ou, ao menos, que as fazem justificar a constante presenga da guerra nessas relagdes? O que se indica ¢ que, em primeire lugar, todas se fundamen- tam em conceitos abstratos dos direitos; que, em segundo lugar, ao fazer isso, dircito nao passa de uma ficgao ou de simples declaragées ou solicitagdes. inexpressivas; e que, por fim, os direitos nao sdo respeitados, j4 que os Esta- dos agem segundo o principio da utilidade ou da racionalidade e ndo segun- do regras puramente morais, como queriam esses autores classicos. A escola realista, de modo normativo, argumenta eae em prol da atuacio “racional” dos Estados, que devem buscar scus “interesses” em pri- meiro lugar e acima de tudo. Para essa tradig¢do quaisquer ganhos de um Estado representam perdas para todos os demais, na medida em que esses ganhos devem ser considerados como relativos. Qu seja, 0 cenario politico internacional é sempre de soma zero, se um ganha © outro perde e, por isso, deve-se sempre tentar impedir a melhoria de condigdes do outro, Diante da interpretacdo que a escola realista far dos escritos de Hobbes, Proudhon diria que os “seguidores” de Hobbes nao o compreenderam e, mais que isso, estao se contrapondo a sua idéia. Como vimos, se Hobbes diz que entre os Estados nao existe um pader superior, isso ndo é 6 mesmo que dizer que nao deve haver. Temendo o estado de natureza, Hobbes justifica a forma- ¢a0 do estado absolutista, [gualmente, jd que se trata de um sistema filosdfica, ele justificaria um “absolutismo universal” como forma direta de se abandonar 0 estado de natureza nas relagoes internacionais, Assim, Hobbes argumentaria em favor de uma autoridade superior no Sistema Internacional, enquanto que a teoria realista, em geral, em suas consideragGes, repugna muitos acordos internacionais por entender que representam uma possibilidade de que uma autoridade maior que o Estado ecorra em algum grau. A escola inglesa, diferentemente do realismo, é fiel ao seu inspirador, Grotius. Para essa niio se trata de estabelecer um poder supremo, mas sim- plesmente de manter o direito das gentes. O que se tenta encontrar ai é um Fronteira, Belo Horizane, v. 6, n. 11, p. 29-88, 1° sem, 2007 45 Geralpo Auves Tenerra Jason modo de fazer os Estados atuarem conforme esse direito, mas sem privé-los de sua soberania. © direito das gentes é exclusivo dos Estados e é por causa deste que, apesar de ndo haver um sistema internacional hierarquico, os Estados nao se encontram constantemente em guerra, Esse tipo de interpretagao jamais poderia chegar a um projeto de pacificagdo universal. Cabe af toda a critica de Proudhon em relacio ao pensamento da filosofia que considera o direito das gentes apenas como pertencente ao Estado, Se em algum momento surgisse a partir da escola inglesa um pretenso projeto de paz, essa paz representaria ndo mais que uma convivéncia pacifica entre Estados; nada diria a respeito das condicgées internas aos Estados. Assim sendo, a condigao de paz poderia ser alterada por mudangas significativas nos eventos politicos internos. Por fim, podemos nos perguntar até que ponto a escola idealista estaria de acordo com a filosofia de Kant. Quando se fala em Kant no estudo das Relacdes Internacionais, a nogao imediatamente associada a esse autor é ado direito cosmopolita. E a partir dessa concepgiio que o “idealismo politico” se apresenta para argumentar da necessidade de se estabelecer um direito de comunidade, que, portanto, seria superior a quaisquer Estados. A uti do direito cosmopolita em Kant, contudo, é bastante limitada; € 0 proprio autor quem diz que o direita cosmopolita deveria ser limitado ao direito de hospitalidade. Essa limitacao que ele institui em relacao a esse direito é fixada primeiramente para que ele nao entre em conilito com o direito das gentes e, em segundo lugar, para que o direito das gentes, logo, os Estados, nia pos- sam impedir a possibilidade de livre camércio. acio Kant em momento algum fala da aboli¢ao dos Estados para a formula- ao de um direito humano, pelo contrério, se ele propde em determinado momento uma monarquia universal, essa é apresentada apenas sob cardter hipotético, de modo que em seguida ele reconhece sua inviabilidade e retoma como base de seu projeto de Paz Perpétua o direito das gentes sobre o qual seria fundada a federacdo expansiva. Os idealistas nao apenas ndo estariam de acordo com o projeto kantiano — ja que este no pretendia estabelecer um. direito cosmopolita que fasse além do direito de visita ¢ de hospitalidade —, como também se afastam de seu sistema filoséfico ao fazer interpretagoes acerca de direitos superiores ao Estado para orientar as agdes destes. Com efeito, nenhuma das escolas classicas se preocupara com a “justica” nos ambitos interno ¢ externo, simultaneamente, ao desenvolver seus proje- tos de paz — idealismo — ou de convivéncia entre os Estados — escala inglesa e realismo. Esse é um ponto inovador e fundamental da teoria de Proudhon, segundo a qual nao se pode ao menos vishambrar qualquer espécie de paz sem. que seja feita justi¢a. Qualquer tipo de paz realizada indiferentemente a justi¢a 46 Fro ira, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 2948, 1 sem, 2007 A.PAZ: DIVIRGENCIAS BOS PROIETES DE KANT € PROUDHON seria uma paz forcada, baseada na coergao e, portanto, instavel, A questao a ser colocada sobre a diferenga da justiga na propriedade ¢ na anarquia é se nessa tiltima a teoria nao se constituiria também, apés efetivada na pratica, um impedimento 4 continuagae do desenvolvimento historico da justiga. Ou seja, sé a teoria anarquista nao agiria como agiu a teoria da propriedade, a qual depois de efetivada tornou-se um impedimento pera a modificagao do direito, E verdade que pela limitacao histérica de qualquer pensamento humano, o Ppensamento anarquista, por responder a uma situagdo histdrica especifica, se considera como o grau maximo de justiga e certamente eliminaria as injustigas que pretende combater. Mesmo assim, segundo a filosofia do progress de Proudhon — nao tratada aqui de modo aprofundado —, essa paralisacio do direito pela teoria parece dificil de acontecer na anarquia, j que se a teoria anarquista nao compreende a possibilidade de ser superada — assim como teo- rias de justiga em geral — ela considera a possibilidade de safer retrocessos, dado que a histéria desenvolve um movimento incessante. Isso significa que qualquer nova teoria que tentasse definir o direito sem utilizar o principio da reciprocidade ¢ proporcionalidade, aquele que nossa época considera como os Mais justos, estaria se opondo 4 manutengao da anarquia, tentando, portanta, definir uma nova justiga através de um conflito social. A questao da existéncia dos conflitos sociais, porém, ja havia sido apresentada e, por esse motivo, como vimos, Proudhon apresenta o conflito de forgas como orientador do governo, dizendo que o direito sé se garante pela pratica de sua realizacio. Abstract The objective of this article is to distinguish the proposals develo- ped by Kant and by Proudhon to achieve Peace. The study was made through the read of texts and works of both authors and of texts analyzing such authors. Kant has as his main purpose building a philosophical system which shauld be based on rationality and nat on history, what would produce the universality of this system. Proudhon, on the contrary, has a historical intention and uses his- tory to make his analysis. The works of the authors are irrecon ble. Social interventions may be justified with arguments from both of them: if they are basedl on Kant’s the intention will be to reform to guarantee the maintenance of the order, if they are based on Proudhon’s the purpase will be to alter the current order. Key words: War, Peace, Kant, Proudhon. Fronteira, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p, 2948, 1" sem. 2007 a7 Gren Avves Tenens Jsi0R Referéncias* HOBBES, Thomas. Leviata ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiastico e civil. Tradu- gio Jodo Paulo Monteiro ¢ Maria Beatriz Nizza da Silva. Sao Paulo; Nova Cultural, 1999. KANT, Immanuel, © que é Huminismo? ln: A paz perpétua ¢ outcos opasculos. Tradugao Artur Morao. Lisboa: Edictes 70, 1990. KANT, Immanuel. A paz perpétua um projecto filoséfico. In: A paz perpétua ¢ outros optis- culos, Traducio Artur Moro, Lisboa: Edicoes 70, 1590, KANT, Immanuel. A metafisica dos costumes. Tradugao Edson Bini, Bauru: Edipto, 2003 LANGLOIS, Jacques. La philosophie de Phistoire et du progres. Le Monde Libertaire, n.28, 7 de julho a 7 de setembro de 2005. PROUDHON, Pierte- Joseph. O que é a propriedade? Tradugao Gilson Cesar Cardoso de Soura. Sao Paulo: Martins Fontes, 1988. PROUDHON, Pierre-Joseph. La Guerre et La Paix. Antony: H. Trinquier, 1998. PROUDHON, Piewre-Joseph, Do principio federativa. Traducao Francisco Trindade, $0 Pau- lo: Imagindrio, 2001. PROUDHON, Pierre-Joseph. 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