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dos editores

Juca e Caju

Ano 3 - 2009
É impossível prever quais serão as reações do leitor ao passar os olhos por nossa
revista. Podemos, no entanto, garantir que, ao analisarAorevista dosdas
conteúdo alunos doque
páginas Instituto
se Rio Branco

seguem, resultado de um ano de constante e nem sempre trivial trabalho, o público estará
reagindo a um retrato, a uma fotografia de nosso tempo.
Nesta edição:
A definição dos temas, o tom dos textos, o ângulo das fotografias e o estilo das
Especial:ilustrações refletem a tensão entre o que nos define e o que nos motiva, entre o que
MundonosLusófono
trouxe até a diplomacia e o que faremos dela ao longo de nossas vidas profissionais.
JUCA 03 é, por isso, um reflexo do que somos.
Entrevistas:

jucajucajucajucajucajuca
Embaixador Arnaldo
A escolha Carrilho
de ilustrar a capa com um caju – além de uma excelente oportunidade de

cajucajucajucajucajucaju
Professorhomenagear
Cançadoo Trindade
nome de nossa revista com um anagrama bem-humorado-, é uma tentativa

jucajucajucajucajucajuca
de sintetizar, por meio da imagem de uma fruta genuinamente nacional, essa nossa
Perfil:

cajucajucajucajucajucaju
identidade. Profundamente brasileira e diversificada, é verdade, mas também atenta ao que
Embaixador Francisco Alvim

jucajucajucajucajucajuca
se passa no mundo.Viemos de diferentes partes do país, somos mulheres, homens, negros,
Depoimento:
brancos, pobres e ricos. Em breve, representaremos o Brasil diante do mundo.

cajucajucajucajucajucaju
Crônicas do Sauípe
Seríamos, quem sabe, como a técnica do grafite, usada para desenhar o nosso grande

jucajucajucajucajucajuca
caju: uma arte irreverente e representativa da cultura urbana, que sai das ruas das grandes

cajucajucajucajucajucaju
cidades brasileiras para ocupar espaço de destaque nos museus de todo o mundo e,

jucajucajucajucajucajuca
assim, talvez, aproximar a arte e a beleza do nosso cotidiano.

cajucajucajucajucajucaju
Para nós, Juca representa o ponto em que a diplomacia se mistura com a vida e

jucajucajucajucajucajuca
em que se encontra prazer na tarefa de descobrir o Brasil para representá-lo, não
só com a responsabilidade de sempre, mas também com prazer. Significou conjugar

cajucajucajucajucajucaju
a poesia da Língua Portuguesa ao projeto político possibilitado pela identidade
criada pelo compartilhamento de um idioma, como mostramos no especial “Mundo
Lusófono”. Representou a oportunidade de conhecer poetas disfarçados de diplomatas
e de descobrir que grandes servidores desta Casa nem sempre tiveram trajetórias
profissionais que correspondem ao que se esperaria deles.
Fazer esta revista foi uma tarefa desafiadora e coincidiu com o processo de conhecer o
mundo da diplomacia, de descobrir a unicidade de cada colega e de rever a maneira como
enxergamos o mundo. Enfim, leitores, esperamos que vocês também se identifiquem com
a imagem aqui refletida. Que venham os próximos Jucanos!

_
dos editores
Juca e Caju

É impossível prever quais serão as reações do leitor ao passar os olhos por nossa
revista. Podemos, no entanto, garantir que, ao analisar o conteúdo das páginas que se
seguem, resultado de um ano de constante e nem sempre trivial trabalho, o público estará
reagindo a um retrato, a uma fotografia de nosso tempo.
A definição dos temas, o tom dos textos, o ângulo das fotografias e o estilo das
ilustrações refletem a tensão entre o que nos define e o que nos motiva, entre o que
nos trouxe até a diplomacia e o que faremos dela ao longo de nossas vidas profissionais.
JUCA 03 é, por isso, um reflexo do que somos.

jucajucajucajucajucajuca
A escolha de ilustrar a capa com um caju – além de uma excelente oportunidade de

cajucajucajucajucajucaju
homenagear o nome de nossa revista com um anagrama bem-humorado-, é uma tentativa

jucajucajucajucajucajuca
de sintetizar, por meio da imagem de uma fruta genuinamente nacional, essa nossa

cajucajucajucajucajucaju
identidade. Profundamente brasileira e diversificada, é verdade, mas também atenta ao que

jucajucajucajucajucajuca
se passa no mundo.Viemos de diferentes partes do país, somos mulheres, homens, negros,
brancos, pobres e ricos. Em breve, representaremos o Brasil diante do mundo.

cajucajucajucajucajucaju
Seríamos, quem sabe, como a técnica do grafite, usada para desenhar o nosso grande

jucajucajucajucajucajuca
caju: uma arte irreverente e representativa da cultura urbana, que sai das ruas das grandes

cajucajucajucajucajucaju
cidades brasileiras para ocupar espaço de destaque nos museus de todo o mundo e,

jucajucajucajucajucajuca
assim, talvez, aproximar a arte e a beleza do nosso cotidiano.

cajucajucajucajucajucaju
Para nós, Juca representa o ponto em que a diplomacia se mistura com a vida e

jucajucajucajucajucajuca
em que se encontra prazer na tarefa de descobrir o Brasil para representá-lo, não
só com a responsabilidade de sempre, mas também com prazer. Significou conjugar

cajucajucajucajucajucaju
a poesia da Língua Portuguesa ao projeto político possibilitado pela identidade
criada pelo compartilhamento de um idioma, como mostramos no especial “Mundo
Lusófono”. Representou a oportunidade de conhecer poetas disfarçados de diplomatas
e de descobrir que grandes servidores desta Casa nem sempre tiveram trajetórias
profissionais que correspondem ao que se esperaria deles.
Fazer esta revista foi uma tarefa desafiadora e coincidiu com o processo de conhecer o
mundo da diplomacia, de descobrir a unicidade de cada colega e de rever a maneira como
enxergamos o mundo. Enfim, leitores, esperamos que vocês também se identifiquem com
a imagem aqui refletida. Que venham os próximos Jucanos!

_
expediente
Diretor Honorário
Embaixador Fernando Guimarães Reis
Agradecimentos
Editora-Chefe - Laís de Souza Garcia Embaixador Celso Amorim
Diretor Executivo - Marcelo Almeida C. Costa Embaixador Jerônimo Moscardo
Editoria de Resenhas - Ramiro Breitbach Embaixador Arnaldo Carrilho
Editoria de Textos Literários - Krishna Mendes Embaixador Francisco Alvim
Monteiro Ministro Sérgio Barreiros de Santana Azevedo
Editoria do Dossiê - Eduardo Brigidi de Mello Secretário Aurélio Romanini de Abranches Viotti
e Eduardo Freitas de Oliveira Secretário Leonardo de Almeida Carneiro Enge
Editoria de Perfis e Entrevistas - Rodrigo de C. Secretário Rodrigo de Oliveira Castro
Dias Papa e Rafael Rodrigues Paulino Secretário Filipe Nasser
Editoria de Artigos e Ensaios - Izabel Cury de Secretário Felipe Krause Dornelles
Brito Cabral e Luiz Felipe Czarnobai Secretário Raphael Oliveira do Nascimento
Edição de Arte - Amena Martins Yassine e Secretário Octávio Moreira Guimarães Lopes
Marco Kinzo Bernardy Ana Claúdia Milhomem Freitas
Edição de Texto - Igor Trabuco Bandeira Equipes Juca 01 e Juca 02
Relações Públicas - Filipe Abbott Galvão Professor Antônio Augusto Cançado Trindade
Sobreira Lopes Deputado José Fernando Aparecido de Oliveira
Diretor Jurídico - Fernando de Azevedo Miguel Girão de Sousa
Silva Perdigão Pedro Passos
Diretor Financeiro - Eduardo Minoru Chikusa Renato Cabral de Rezende
Revisão - Filipe Abbott G. Sobreira Lopes Museu da Língua Portuguesa
Editora Capivara
Caju
Laís, Marcelo e Marco

Direção de Arte e Diagramação


Fabiana Marafiotti (marafiotti@gmail.com)

_

Perfis Artigos e Ensaios


06 Vida de Cinema 70 Josué de Castro: 101 anos
Amena Yassine, Igor Trabuco Bandeira, de nascimento. Quantos mais de
Marcelo Almeida C. Costa e Rodrigo de esquecimento?
Carvalho Dias Papa Marcelo Almeida C. Costa e Pedro Vinícius do
12 Revolucionar a Corte Valle Tayar
Internacional de Justiça. Pour quoi 75 Ordem Internacional e Potências
pas? Amena Yassine, Filipe A. G. Sobreira Médias: uma importante lacuna
Lopes e Pedro Veloso da teoria das relações
20 Chico, o Poeta internacionais
Ramiro Breitbach Paulo Thiago Pires Soares

sumário
78 Sfumato: A dimensão ambígua
da linguagem
Diego Kullmman
84 Deus e o Charlatão
Gustavo Henrique Maultasch de Oliveira
Especial: 88 Augusto Ruschi: O homem que
Mundo Lusófono falava com beija-flores
28 Embaixador José Aparecido: Ricardo dos Santos Poletto

Juca número 03
in memoria
Embaixador Francisco Alvim e Resenhas
Embaixador Celso Amorim, Ministro 94 A Viagem de Saramago
das Relações Exteriores Caio Flávio de Noronha e Raimundo
34 O Brasil e os esforços 96 Adam Smith em Pequim
pela sustentabilidade da paz Eduardo Brigidi de Mello
em Guiné-Bissau
Marina Moreira Costa e Melina Espeschit Maia Poesia e Prosa
48 Gilberto Freyre e o 102 Tatajuba
lusotropicalismo: passado, Eduardo Freitas de Oliveira
presente e futuro 106 Dedos Bailarinos
Rafael Rodrigues Paulino Eduardo Brigidi de Mello
56 Novo acordo ortográfico: 107 Delfos
língua e poder Janaína Lourençato
Marcela Magalhães Braga 108 O que não existe mais
63 Diáspora Portuguesa: Odisseia de Krishna Mendes Monteiro
uma Nação Desterritorializada 13 O Viajante
1
Rafael Soares Irineu Pacheco Paes Barreto

Depoimento
114 Crônicas do Sauípe
Eduardo Brigidi de Melllo

_
PERFIL

Vida de Cinema Amena Yassine


Igor Trabuco Bandeira
Marcelo Almeida Cunha Costa
Rodrigo de Carvalho Dias Papa

Amena Yassine e
FOTOS DE
Marco Kinzo Bernardy

_
A vida do Embaixador Arnaldo Carrilho poderia ser explicada por
uma sequência numérica: 72, 47, 37, 12, 10, 5, 4. Primeiro embaixador do
Brasil em Pyongyang, na Coreia do Norte, aos 72 anos, Carrilho tem 47
anos de carreira no Itamaraty, tendo passado 37 anos no exterior, sendo
12 no Mundo Islâmico e 10 na Ásia. Abriu cinco postos: Jeddah, na Arábia
Saudita, Berlim Oriental, Bissau, Praia, e, agora, Pyongyang. Além disso,
serviu em quatro países comunistas: Polônia, Alemanha Oriental, Laos e
Coreia do Norte. Antes de chegar a Pyongyang, Carrilho foi designado
Embaixador Extraordinário junto à Cúpula América do Sul – Países Árabes,
uma iniciativa emblemática da lógica de cooperação sul – sul perseguida
pela diplomacia nacional. Antes, ainda, foi representante do Brasil junto à
Autoridade Nacional Palestina, em Ramalá, o que demonstra sua predileção
por missões consideradas difíceis.
Para Carrilho, o pragmatismo vem substituindo o romantismo no fazer
diplomático, realidade bastante diversa daquela que vivenciou em Roma,
quando compartilhou da dolce vitta com Bernardo Bertolucci e com Pier
Paolo Pasolini.

_
_perfil

Mas não só de política internacional vive o dois anos no Instituto Rio Branco, só éramos
Embaixador, conhecido cinéfilo e propagador nomeados depois. Guimarães Rosa não gostou
das causas do cinema nacional desde a década da minha redação, o tema era Ocidente x
de 1960. Amigo pessoal dos mais importantes Oriente, tirei 80 e o Ricupero tirou 100.
cineastas do Cinema Novo, como Glauber
Rocha e Nelson Pereira dos Santos, Carrilho O senhor lembra-se de algum professor
ajudou a tornar viável a exibição de filmes memorável no IRBr?
brasileiros em festivais internacionais em O IRBr era a escolinha, fazíamos todas as
pleno regime militar. Mais recentemente, já matérias. Havia um professor de inglês muito
em 2001, presidiu a Riofilme. engraçado, Kenneth Pain. Havia o professor
Carrilho é uma síntese do que se imagina de francês que diziam ser foragido do regime
de um diplomata: um homem culto, que de Vichy, havia sido préfet de Nice à época,
presenciou alguns dos principais momentos Andrés Felon. Ele gostava de mim porque eu
da história recente. Ao mesmo tempo, quebra falava francês bem, e ele me convidava pra
expectativas ao ter servido em 14 países falar para a classe. Uma vez fiz a turma dar
diferentes, muitos dos quais considerados gargalhadas incríveis, pois falei de erotismo no
desafios na carreira. Uma demonstração de cinema. Ele ficou perplexo.
que trajetórias profissionais bem-sucedidas
não têm de ser, necessariamente, óbvias. Muitos se tornaram Embaixadores?
Sim, vários. Um, ainda na ativa, era mais
Como foi sua aproximação com o novo da turma, o mascote, o Henrique
Itamaraty? Rodrigues Valle.
Foi por causa do Houaiss, eu o conheci em
seu período de ostracismo. Por intermédio do Como foi o período no IRBr?
João Batista Pinheiro, que era de direita. Ele Eu trabalhava fora do ministério, com o
me sugeriu que eu procurasse o Houaiss para Evaldo Cabral, no escritório da BRASTEC, de
ter aula de português. Houaiss estava sofrendo consultoria econômica. Em 1961, fui chamado
o processo durante o governo JK, junto com pelo Lauro Escorel. Este é o momento em
João Cabral. Eu, na época, trabalhava no BNDE. que começa a aproximação maior entre o
Os anos JK foram maravilhosos, mas também Itamaraty e o cinema nacional. A UNESCO
foram terríveis. Descobri que o Consulado em bancou toneladas de equipamentos (...) junto
Argel só podia conferir vistos a cidadãos de com o IPHAN (Instituto do Patrimônio
origem europeia. Contra o Houaiss e o grupo Histórico Nacional), sob liderança do
havia processos administrativos, depois eles Dr. Rodrigo Mello e Franco.
foram liberados pelo STF. Eu, Terceiro Secretario, era quem
pedia liberação na aduana para liberar os
Então o Houaiss foi uma grande equipamentos. Em 1º de abril de 1964, Deus e
influência? o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas estavam
Sim. Ele estava cedido à Agência Nacional, inscritos no festival de Cannes... Dois dias
e, conversando com ele, fui me interessando... depois fui procurado pelos militares! O golpe
Levei bomba no primeiro concurso, em 1957, de 64 foi muito traumático para mim, até hoje.
em Português oral, porque discuti com a banca, Eu trabalhava no Departamento Cultural,
sem razão. Fiquei com 58,8, precisava de 60. na DODC. Eles (os militares) falavam assim:
Guimarães Rosa me deu uma nota baixa em “engraçado eles, são hierarquizados como
cultura geral. Depois se tornou meu amigo. Fiz nós”. Aí ficou combinado que Deus e o Diabo
o concurso quatro vezes, passei em 1960. Eram na Terra do Sol seria exibido na delegacia de

_
policia, que tinha uma salinha de projeções à Alemanha, Grã-Bretanha, Japão, mas nunca
por causa da censura, pois o então Coronel aos EUA. Por isso, criou certo ar aqui dentro,
Figueiredo precisava dar o aval. quando eu estava aqui na divisão de patrimônio.

Sentia-se que a Política Externa O senhor chegou a conviver com figuras


Independente era realmente algo como João Guimarães Rosa,Vinícius de
inovador? Morais, João Cabral de Mello Neto?
Sim, mas os inovadores eram muito Sim, claro, com todos eles! Ribeiro Couto,
poucos. O Ministério era muito conservador, Antônio Houaiss, que foi o primeiro que
ligado à UDN. Senhoras protestaram contra conheci. Isso me deu muito alento. Claro que
a posse de Hermes Lima. Waldir Pires os superiores me achavam um cara pouco
seria ministro, mas não deu certo. Afonso confiável, pois eu tava discutindo sobre política
Arinos era um grande progressista entre os externa, mas estava pensando em encontrar-
conservadores. me com Bernardo Bertolucci, Glauber Rocha,
que vivia lá em casa. Isso desequilibrava um
O senhor passou muito tempo no pouco o superior hierárquico, que só pensava
exterior? e só se dedicava à diplomacia. Eu, por exemplo,
Quase 38 anos. Peguei a fase mais dura saía de uma reunião chata na Embaixada
aqui, parte do governo Médici e o governo em Roma e ia jantar com Pasolini e isso
Geisel. A segunda metade do governo gerava uma situação desequilibrante. Alguns
começou a entrar ar.Vocês não imaginam o superiores gostavam, o Gibson (Barbosa), por
que era Brasília. Fui trabalhar no patrimônio, exemplo, gostava muito, ele me convidava para
chamado pelo Raul de Vincenzi. Fiquei muito jantar para que eu convidasse o Bertolucci, e
feliz porque não queria trabalhar em nenhuma eles ficavam conversando...
divisão opinativa. Dediquei-me a cuidar do
patrimônio, cuidava do palácio, que hoje está Quem o senhor citaria como um
mal cuidado, já disse isso ao Celso (Amorim, grande chefe, marcante em sua vida?
Ministro de Estado) algumas vezes. Lauro Escorel! Era um homem muito
rígido, com passado de direita, que havia
O senhor acredita que, de fato, o sido integralista, de camisa verde.Tornou-
Itamaraty conseguiu conservar alguma se diplomata em 1943, quando teve uma
autonomia durante o governo militar? transformação em sua tomada de consciência,
Tirando o período Castello Branco, que que passou a ser democrática e progressista.
era a política da ESG (Escola Superior de Era um homem de uma correção excepcional,
Guerra), muito pró- EUA, não se esqueçam de uma inteligência fora do comum. Autor de
do episódio do chanceler Juracy Magalhães. O alguns livros bastante válidos, como o que fez
período Militar, mesmo Costa e Silva, Geisel sobre o pensamento político de Maquiavel. Era
muito, menos Figueiredo, teve um grande viés um excelente critico literário, muito amigo de
nacionalista.Toda política africana! No governo João Cabral. Inclusive tem livros bons sobre João
Costa e Silva, o Secretário-Geral, que era um Cabral.Trabalhei com ele no Departamento
aristocrata, Sergio Correia da Costa, defendeu Cultural, que se chamava, acreditem vocês,
a não adesão do Brasil ao TNP (Tratado de antes do golpe, Departamento Cultural e de
Não-Proliferação). Houve uma política externa Informações, que se referia à imprensa.
semi-independente. O governo Geisel era
antiamericano. Ele tinha horror! O Geisel é Quais os postos mais marcantes?
um direitista que eu admiro. Ele não gostava Ao falar disso, precisamos ter a noção da
do Jimmy Carter. Ele nunca visitou os EUA; foi relatividade do momento. Os tempos em que

_
_perfil

Eu gosto dessa cachaça


que vocês adotaram
por concurso:
a diplomacia.

que eu não gostaria de ir hoje para Roma


nem para Paris, a Roma de Berlusconi ou
Paris de Sarkozy, não! Gostava da Paris do
General de Gaulle, sempre provocando os
americanos... Isso acabou.

O senhor chegou a abrir quantos postos


durante sua carreira?
Vou abrir o quinto agora. O primeiro
foi Jeddah, na Arábia Saudita; o segundo
foi Berlim, RDA, os dois entre 1973 e 74.
Depois fui abrindo postos rapidamente,
Guiné-Bissau, Cabo Verde (1976), eu abria
postos com embaixadas em construção ou
por construir. Já instalei e reinstalei vários
postos. Em Lagos, já existia uma Embaixada,
mas eu fui lá para lançar a construção da
embaixada que já foi projetada como futuro
vivi em Roma foram importantérrimos. Sorte consulado em Lagos, pois havia o projeto da
minha! Eu cheguei a Roma no momento capital em Abuja. Isso tudo foi entre 74 e 76,
em que havia ainda um resto de dolce vita e eu viajava muito.
depois voltei para trabalhar na Santa Sé, na
época em que a Igreja estava implantando O senhor queria ir para São Francisco
o Conselho Ecumênico Segundo, portanto por causa do cinema?
era uma Igreja progressista, de Paulo VI. Na Por causa do cinema, dos amigos.
nossa América Latina, corria livremente a Nunca se esqueçam que Coppola mora
Teoria da Libertação, inclusive por causa em Oakland .Depois fui pra Lima, Peru.
do próprio Papa. A palavra libertação foi o Tenho saudades de Lima, vivi uma época
Papa quem usou no congresso de Medellín, de transformação do cinema peruano,
em 1978, no encerramento do congresso todos eles frequentavam minha casa.
Latino Americano. Tive essa sorte, assim Uma época de transformação do país,
como meu segundo posto foi Varsóvia, num que, em seus períodos democráticos, só
período de muita criatividade local, época tinha tido presidentes conservadores. O
dos primeiros embates contra a rigidez do presidente do meu tempo era um homem
governo soviético. Peguei uma Polônia em muito simpático, o Belaunde Terry. Eleito!
transformação, a queda de Goumuka foi algo Arquiteto! Casado com uma mulher
muito importante. Então os postos marcam chamada Carlota Aubri, prima da Cecília
também pelo que acontecia no tempo. Eu Aubri, atriz do Cluzot, e ela se apaixona
juro a vocês, sem querer ser metido a besta, por um Zambo, que era um negro. Esta é

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uma particularidade do Peru, toda classe Qual sua experiência com o mundo
política era branca, e era minoria. A maioria islâmico?
eram índios, asiáticos e negros. Os negros Eu tenho 12 anos de mundo islâmico:
são muito fortes culturalmente, na musica, Arábia Saudita; Beirute durante a guerra civil
por exemplo. Eram muito desprezados. A 89-90; saí de Argel pra ir para lá.
mulher do presidente então foge com um
negro; neste momento atuavam o Sendero E o Brasil é visto de fato como um ator
Luminoso e os Tupamaros, que explodiam importante no Oriente Médio?
bombas perto da minha casa. Outra coisa Está tentando ser. Os palestinos
foi em Melbourne, uma de minhas cidades culturalmente estão muito ligados aos
preferidas na Austrália. Sydney é uma cidade colonizadores europeus, principalmente à
bonita, maior cidade do país, concentra Inglaterra. Há então uma dificuldade cultural
um quinto da população da Austrália. porque a política externa brasileira para a
As pessoas lá só pensam em ginástica, palestina só foi tomando forma a partir do
praia, diversão. Mas lá foi palco dessa Celso Amorim. O Celso está muito certo, ele
retrospectiva completa do Antonioni, que tá indo gradualmente.
durou um mês. Outro foi uma lindíssima
exposição minimalista do artista plástico Embaixador, quais são suas expectativas
brasileiro Valtércio Caldas, em Sydney pra Coreia do Norte?
também. Fez um sucesso incrível. A terceira As melhores possíveis, estou muito
coisa foi uma mostra completa de tudo entusiasmado!
aqui que foi usado por Stanley Kubrick, no
museu de Melbourne. Mas um belo dia, eu Falando da Coreia do Norte, lembro
telefonei ao Celso Amorim, pois soube que que o senhor comentou que o
a Palestina estava vaga, e eu soube com senador Cristovam Buarque falou que
certo atraso, quase oito meses depois. Pedi Pyongyang talvez não fosse bom pro
para ir para a Palestina. seu currículo, mas seria ótimo pra sua
biografia. O senhor concorda?
Em que ano foi aberto o escritório de Sim, mas não sou vaidoso com biografia
representação do Brasil em Ramalá? não. Eu gosto dessa cachaça que vocês
Em 2004, eu fui em 2006. O escritório adotaram por concurso: a diplomacia.
ficou nas mãos de um colega nosso, que
é agora embaixador em Harare . Ele Amena Martins Yassine (turma 2008-2010
ficou dez meses lá. Entre o Brito (atual do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
embaixador brasileiro no Iraque, Bernardo pela Universidade de Brasília, mestre pela London
de Azevedo Brito) e mim. School of Economics and Political Science (LSE).
Igor Trabuco Bandeira (turma 2008-2010
O que de mais importante a diplomacia do IRBr) é bacharel em Jornalismo pela Pontifícia
brasileira logrou com a aproximação do Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Brasil em relação aos palestinos? Marcelo Almeida Cunha Costa (turma
Graças a um trabalho de Affonso Ouro- 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Medicina pela
Preto e um pouco meu, a coisa mais Universidade Federal da Paraíba.
importante que a gente fez foi mostrar aos Rodrigo de Carvalho Dias Papa (turma
palestinos que nós entendíamos a causa 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito pela
Palestina. Não no sentido propagandístico, Universidade de São Paulo e em Relações
nem demagógico, mas no sentido de direitos Internacionais pela Pontifícia Universidade
que assistem ao povo palestino. Católica de São Paulo.

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_perfil

Revolucionar a Corte
Internacional de Justiça.
Pour quoi pas?
Amena Yassine
Filipe Abbott Galvão Sobreira Lopes
Pedro Velloso

R isos! É assim que começa e termina uma conversa com Antônio


Augusto Cançado Trindade, jurista, internacionalista e o mais recente
brasileiro a ocupar um assento na Corte Internacional de Justiça (CIJ).
Professor do Instituto Rio Branco (IRBr) por três décadas e consultor
jurídico do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Cançado
Trindade assumiu, em fevereiro de 2009, seu lugar no mais importante
tribunal internacional em atividade, o qual se encontra num momento
decisivo para concretizar sua autonomia e atuação. “Um momento
histórico”, para usar uma expressão que lhe é cara. Trindade entra
determinado a imprimir sua marca, a despeito de controvérsias e
pressões que possa enfrentar e que são parte indissociável da Corte da
Haia. Nesta entrevista concedida à JUCA, a última antes de embarcar
para os Países Baixos, ele rememora, com carinho e irreverência, seus
anos no Itamaraty, sua extensa experiência no Direito Internacional,
sua eleição e suas expectativas para os anos que se seguem na CIJ.

_12
_13
_perfil

Como o senhor foi chamado a dar máximo que ele puder ler. Eu sou um livre
aulas no IRBr? pensador. Como livre pensador, na primeira
Houve um convênio, celebrado entre o metade da década de 80 eu comecei a
nosso departamento da UnB e o Rio Branco, questionar algumas posições que ainda
que acabava de se trasladar do Rio de Janeiro prevaleciam em nosso país. Precisamente
para Brasília. Eles necessitavam de novos através do vínculo com o IRBr, tive a
professores, uma vez que muitos professores oportunidade de estabelecer um novo
ficaram no Rio. Então, no âmbito desse paradigma não só no ensino como também na
convênio, eu passei a lecionar, em março de prática, ao fundamentar as novas posições do
1978, tive essa grande satisfação, e o convênio Brasil em matéria da proteção internacional
está em vigor até hoje, e,
portanto, exatamente 30 O Direito
Internacional tem passado por
anos de docência.
momentos de gravíssima de crise, mas é nos
Como foi ensinar
Direito Internacional momentos de crise que se dá saltos qualitativos.
por 30 anos?
Eu sempre busquei dar
uma visão própria do Direito Internacional. dos direitos humanos e emiti pareceres para
Nos primeiros anos, a situação pela qual mudar radicalmente a posição do nosso País
passava o país ainda era sombria e não havia e graças a Deus isso foi bem aceito pelo
uma total liberdade para abordar certos Ministério das Relações Exteriores, a quem
temas. Eu não me contentava com a doutrina fui absolutamente leal durante todos esses
prevalecente na época e já naquela época eu 30 anos. Esses pareceres que foram emitidos
questionava muito do que se ensinava nas de 1985 a 1989 serviram para inserir o Brasil
nossas faculdades. Então eu me recordo que a no plano internacional na área de direitos
expressão, por exemplo, “Direitos Humanos” humanos. A posição do Brasil e do Itamaraty
era anátema na época, então eu consegui sempre esteve à frente dessas mudanças.
incluir no primeiro programa do curso de Então isso marcou meados dos anos 80.
Direito Internacional do IRBr em 1978 um Os anos 80 foram marcados por esta
capítulo sob o título de “A Condição do ambivalência, um sonho perdido e a busca
Indivíduo no Direito Internacional.” Então eu pela construção de uma nova realidade. Na
passei, a partir daí, a ensinar um capítulo de segunda metade dos anos 80, houve algumas
Direitos Humanos no Direito Internacional. iniciativas importantes como a conclusão da
Isso foi no final dos anos 70. obra de codificação do Direito Internacional
A primeira grande oportunidade surgiu com a segunda grande Convenção de Viena
no caso do “Último Limite” brasileiro, que sobre Direitos dos Tratados. Internamente,
foi o limite litoral marítimo entre o Brasil e a com a redemocratização, foi convocada
França, e a partir daí eu cada vez mais passei a a Constituinte, aí eu tive um papel muito
colaborar com o Ministério mediante pareceres importante, não só como professor do
e, em 1985, com a redemocratização do país, Rio Branco, mas como Consultor Jurídico:
fui chamado para ser Consultor Jurídico do introdução do parágrafo 2o do artigo 5o.
Ministério, mas nunca deixei de dar aulas. (veja box na página ao lado)

O Senhor tem medo de virar um Marco Uma memória que o senhor guarda do
Teórico? IRBr com carinho?
Não, eu repudio o Marco Teórico como Eu nunca vou me esquecer nem do início
algo que inibe o jovem pesquisador a ler o nem do fim. Sempre vou me lembrar da turma

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de vocês (Turma 2008-2010).Vou me lembrar qualitativos. Assistimos a momentos dramáticos
da primeira turma, que são meus amigos até em 2003, com o problema da invasão do
hoje, alguns são Embaixadores. Um momento Iraque, uma das mais graves violações do
que me lembro bastante foi o momento em que Direito Internacional já vista. Agora, em 2009, já
me ausentei por alguns meses, logo depois que se vê com olhos críticos o que ocorreu.
assumi na Corte Interamericana de Direitos
Humanos e fui para a Costa Rica. Quando Uma memória mais inusitada, pitoresca,
eu voltei, foi uma festa no Itamaraty e no Rio ou anedótica?
Branco. Isso foi super gratificante. Fui recebido Há cerca de cinco anos, fui convidado
com muito carinho. Isso ocorreu em 1996. para ser paraninfo de uma das turmas do
Rio Branco. O cerimonial me avisou que eu
Como era dar aula de Direito tinha sete minutos para falar na formatura,
Internacional há 30 anos? porque o presidente também ia falar por sete
Há 30 anos havia muita influência no Brasil minutos. Eu perguntei: sete minutos longos ou
dos cursos de ciência política. A escola realista breves? (Risos). O pessoal no Planalto ficou
predominava e eu era sempre contrário. A preocupadíssmo, porque ninguém pode falar
resistência nas universidades era muito maior mais que o Lula. Meus sete minutos duraram
que hoje. A maioria era puro positivismo. Há 40. (risos) Quando o Lula foi falar depois, ele
30 anos, os horizontes eram mais limitados. disse que não ia ler o discurso, pois esse ia para
No nosso último semestre discutimos temas as atas. E falou de improviso por 41 minutos.
que seriam impossíveis há 30 anos, como os (risos) Nós dois falamos sete minutos longos.
tribunais de caráter universal e de direitos No final, todo mundo estava morrendo de rir.
humanos, o novo jus-gentium, a proibição do
uso da força, isso não se discutia abertamente. Como surgiu a candidatura para a CIJ?
O Direito Internacional tem passado Começou com os meus doze anos
por momentos de gravíssima de crise, mas como juiz titular da Corte Interamericana,
é nos momentos de crise que se dá saltos que marcaram época, pois o Brasil era

O parágrafo 2º do Artigo 5º da crítico feroz do parágrafo 3º somado ao


Constituição Federal de 1988 diz que Artigo 5º pela Emenda Constitucional 45
“os direitos e garantias expressos de 2004, que concedeu status de Emenda
nesta Constituição não excluem outros Constitucional a tratados de direitos
decorrentes do regime e dos princípios humanos que seguissem tramitação
por ela adotados, ou dos tratados específica no Congresso Nacional. Para
internacionais em que a República ele, foi uma adição desnecessária que
Federativa do Brasil seja parte”. Sua ainda gerou incertezas jurídicas, já que
redação foi originalmente apresentada à o novo parágrafo vai de encontro ao 2º,
Assembleia Constituinte pelo Professor que não exigia tramitação diferenciada de
Cançado Trindade, que afirma ter tido tratados para que tivessem seus direitos
a intenção de incorporar direitos incorporados àqueles garantidos pela Carta
assegurados por tratados internacionais de 1988. O parágrafo 3º não deixa claro,
ao rol de direitos e garantias fundamentais ademais, a hierarquia de tratados aprovados
listados pela Constituição. É, por isso, anteriormente à aprovação da EC 45.

_15
_perfil

absolutamente avesso à ideia de participar de O desfecho foi histórico, maior


Tribunais Internacionais. Na primeira gestão votação na Assembleia Geral. O
do Celso Amorim, como na do (Luiz Felipe) senhor estava lá? Como foi receber
Lampreia, através de conversas minhas com essa dupla notícia?
os dois, o Itamaraty tomou a liderança para Foi algo histórico. A Embaixadora
aceitar a competência contenciosa da Corte Maria Luiza RibeiroViotti me chamou para
Interamericana, que foi histórico. Eu fui o me sentar com a delegação. Eu estava
primeiro brasileiro a presidir o plenário discretamente, como bom mineiro, sentado
de um tribunal internacional, que dirigi nas laterais. Me sentei com eles já como
por meia década. Nenhum brasileiro, nem juiz eleito. Poucos dias antes, o Embaixador
vivo, nem morto, teve tanta experiência em do Reino Unido falou com a Embaixadora.
magistratura internacional. “I think our candidates will be elected.Your
Quando a Corte Interamericana veio candidate has a very good chance to come close
ao Brasil, em 2006, e teve uma sessão no to ours, after ours and the French candidate.
STJ (Superior Tribunal de Justiça), a fala do He’s just as good as ours.” (risos) Ele só não
Celso Amorim já indicava que, terminando esperava que ia ficar na frente dos dois
meu período, eu seria o candidato natural (risos). Então na primeira votação, saímos
para a CIJ. Antes eu já havia declinado eu em primeiro, em segundo o inglês e, em
pedidos. Eu sempre fui muito cauteloso em terceiro, o francês.
queimar etapas. Só fui apresentado como Na hora em que eu estava saindo, tive
candidato após ter terminado o ciclo na uma grande surpresa. O Presidente da
Corte. A candidatura teve uma acolhida Assembleia Geral era um latino-americano, o
muito positiva no plano internacional. Aqui Padre Miguel d’Escoto, antigo líder sandinista.
no Brasil, o tráfico de influência foi superado Ele desceu e me deu um grande abraço,
e a candidatura foi mantida. Um fato digno quase me beijou. Ele é engraçadíssimo, uma
de registro foi que todos os países que figura folclórica. Ele disse: “Estoy muy contento,
condenei por violações de Direitos Humanos quiero darte un abrazo en nombre de toda
votaram no meu nome para a CIJ, o que seria latinoamérica.”
impensável alguns anos atrás. No total foram
32 grupos nacionais que me apoiaram. O Brasil já teve juizes na CIJ, sem que
eles tivessem experiência de Direito
O senhor achou estranho esse debate Internacional. É possível ser juiz sem
dentro do Brasil? essa experiência?
Esse debate foi uma das coisas mais Muito difícil! É muito importante que
lamentáveis, uma das páginas mais negras de a pessoa conheça o mundo do Direito
postulação para a Corte Internacional porque Internacional, e eu estou dentro desse mundo
significou tráfico de influência de uma pessoa há muitos anos. Eu creio que o mundo de
que integra o Poder Judicíário, que não pode, Direito Internacional tem sua linguagem própria.
jamais, pedir emprego depois de lançada
uma candidatura pelo Poder Executivo. Todo Então como foi entrar numa Corte
mundo se conhece no campo do Direito Internacional pela primeira vez, na
Internacional e isso foi condenado por todos. Corte Interamericana?
Nos meus primeiros anos na Corte
O senhor entrou nesse debate? Interamericana, não era o mesmo que na CIJ.
Eu pessoalmente nunca entrei nesse A experiência e a lógica juntas é que ajudam
debate, pois a minha candidatura já tinha sido a formar um bom critério, no momento
oficializada nas Nações Unidas e todo o mundo de decidir. Nos primeiros casos, a gente
jurista brasileiro já havia condenado o ocorrido. sente uma necessidade especial de ajustar

_16
os fatos às normas. Mas depois de ter essa que eu não compartilho. Se surgir oportunidade,
experiência, isso vem naturalmente. eu terei condições para expressar o que eu
penso. Hoje há o reconhecimento do primado
Qual é a relevância de um juiz na CIJ do Direito Internacional.
para o povo brasileiro?
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça Os cinco grandes têm juízes na CIJ,
determina que os juízes devem representar garantindo, desse modo, lugares
os principais sistemas de pensamento jurídico, em dois foros privilegiados: a Corte
não seus países. Mas todo juiz é identificado Internacional de Justiça e o Conselho
com seus países de origem, para efeito da de Segurança. O Brasil logra agora um
distribuição geográfica. Existem regras não lugar na CIJ. Há nisso alguma relação
escritas que fazem que, na atualidade, dois juízes com a pretensão brasileira por um
sejam da América Latina. Então eu sempre vou assento no Conselho de Segurança?
ser identificado como um juiz brasileiro, mas eu Dentro da psicologia das Nações Unidas,
sempre fui independente nas minhas decisões e sim. É por isso que a minha eleição era uma
creio que seja importante que o juiz o seja, para prioridade para o Brasil e a próxima prioridade
que as fundamente bem. é o Conselho de Segurança. É o próximo passo
do Itamaraty, por isso é que esse debate que se
Qual a receita do seu sucesso? armou dentro no plano interno foi deletério,
É aceitar a precariedade da condição uma das páginas mais negras, de falta de visão
humana. Dar-se conta de que a gente não é de certas pessoas. Poderia ter causado um
tão importante quanto achava que era. Se prejuízo enorme ao país.
nos damos conta disso, a gente se dissocia da
própria vaidade e começa a seguir as ideias. A CIJ julga casos enviados pelo
As pessoas que se preocupam demais com Conselho de Segurança e dá opiniões
o sucesso são as que mais rapidamente se consultivas. Alguma decisão da corte
esvaem. O melhor que a gente pode fazer é pode influenciar o rumo das Nações
servir a certas ideias e causas com as quais a Unidas?
gente se identifica. É muito mais provável que Essa pergunta me foi feita em uma sabatina
se deixe uma mensagem que será lembrada. com um grupo africano da SADC (Comunidade
O maior inimigo do ser humano é a de Desenvolvimento da África Austral) e uma
vaidade. No mundo da Haia, há muita vaidade, com o CARICOM (Comunidade do Caribe),
mas eu quero me manter à parte de tudo isso, que citou o parecer do caso do muro de
para dar minha contribuição sem esse tipo de Jerusalém, para justificar a preocupação. Eu disse
preocupação. Quanto mais tarde nos dermos que a Corte tem de dizer qual é o direito, não
conta de que não somos tão importantes apenas resolver uma questão jurídica. Se uma
quanto pensávamos, pior. Espero ser capaz de sentença não é acatada, o que a Corte deve
resistir a todo esse charme da Haia. O que fazer é informar claramente que não foi acatada
me interessa é resolver os casos. na hora de apresentar seus relatórios anuais na
Assembleia Geral e no Conselho de Segurança.
A CIJ é um órgão da ONU, ligada a ela Muitas vezes o cumprimento de uma sentença
principalmente pela Assembleia Geral não é imediato, mas ele vem.
e pelo Conselho de Segurança. É um
órgão político? O senhor vê a possibilidade de ser
Não. Muita gente diz que a Corte é impedido ou atravancado em sua
politizada, o que pode ser verdadeiro. Há uma função por poderes ou razões políticas?
visão segundo a qual os órgãos das Nações Não, mas é difícil especular sobre isso. Na
Unidas não podem se controlar mutuamente, o minha experiência na Corte Interamericana,

_17
_perfil

eu enfrentei com todo vigor tentativas nesse


apresentados casos não mais pela cláusula
sentido e apliquei sanções que, depois de facultativa (de jurisdição obrigatória), mas com
mim, não foram mais aplicadas. Apliquei nobase em cláusulas compromissórias, como,
caso Fujimori e em Trinidad e Tobago. Eu por exemplo, os casos latino-americanos. Há
prefiro pensar que isso não vai ocorrer, cinco no momento, e pode haver um sexto, em
porque se nós não pudermos agir de acordo breve, invocando o Pacto de Bogotá e cláusulas
com a consciência dentro de um tribunal compromissórias.
internacional, o trabalho não vale a pena. O que isso muda? Quando a base
de jurisdição da Corte é uma cláusula
Quais desafios o senhor prevê enfrentar compromissória, é melhor no sentido
na Corte? de não haver tanto debate quanto à sua
É difícil especular. Pela primeira vez, a base. A Corte não consumirá tanto tempo
Corte tem na sua agenda casos que dizem discutindo a jurisdição e poderá passar
respeito a toda a comunidade internacional. mais prontamente ao mérito. Acaba de
entrar na Corte um
caso da Alemanha
contra a Itália. A base
Tenho sempre presente uma reflexão do da jurisdição foi um
special agreement.
Machado de Assis, de que qualquer emoção Não haverá debate
privada vale mais que cem alegrias públicas. sobre questões
jurisdicionais. Quanto
mais casos houver
desse tipo, melhor,
pois se gasta menos
tempo com questões
de admissibilidade, o
que foi fatal em alguns
casos anteriores.

Diz-se que a Corte


é reacionária. O que
Hoje em dia estão diante da Corte casos o senhor acha da atuação da CIJ hoje?
relativos ao uso da força, à proteção do meio Eu acho que a Corte terá de reavaliar sua
ambiente, à liberdade de navegação, ao Direito maneira de ver os problemas que afetam a
Internacional Humanitário, ao Princípio da comunidade internacional. Ela tem se apegado
Não-Discriminação, ao reconhecimento muito às questões de forma e de procedimento.
de Estados, ou seja, há uma variedade de No que depender de mim, ela terá em mente a
temas, o que nunca havia ocorrido antes. importância dos temas tratados.
Por outro lado, pela primeira vez há casos
levados à Corte que pertencem às diferentes Na Corte Interamericana, o senhor
regiões do sistema ONU: casos atinentes a sustentava posicões controversas para a
Estados africanos, asiáticos, latino-americanos, época, com vários votos dissidentes que,
europeus. É particularmente interessante ver depois, se tornaram padrão. O senhor
isso e poder ingressar nesse momento. pretende fazer o mesmo na CIJ?
De casos contenciosos, há um Eu pretendo chegar com bastante
desenvolvimento recente muito interessante, discrição, como bom mineiro, mas trabalhar
de que, pela primeira vez, começam a ser com eficiência. Estou muito interessado em

_18
examinar de perto, com os meu pares, o Já houve outros brasileiros na CIJ. O
regulamento da Corte. Começar por aí. senhor se sente como herdeiro de
alguma atuação passada?
Que tipo de juiz está faltando na CIJ? Eu acho que é uma coisa muito
Um juiz atento aos valores, atento pessoal. Sou diferente de todos os meus
à importância dos temas que afetam a predecessores. A minha maneira de pensar é
comunidade internacional, para a além da distinta, cada pessoa é uma pessoa.
visão clássica estato-cêntrica.
Qual é a sua mensagem para quem está
O senhor vê alguma reação interna ou ingressando na carreira?
externa a essa atitude do senhor? É um serviço, é um serviço que se
Eu estou preparado para isso, pois tenho presta aos demais. Não se deixem tomar
refúgio da vida interior (risos). pelas aparências do poder. Tenho sempre
presente uma reflexão do Machado de
Existe alguma injustiça na Corte Assis, de que qualquer emoção privada
Internacional de Justiça, quanto vale mais que cem alegrias públicas. É
ao reconhecimento de questões importante ter uma vida pessoal bem
fundamentais ou de personalidades que estruturada e a noção de servir a uma
deveriam estar lá? causa, de servir às ideias, de fazer o bem.
A CIJ tem se evadido sistematicamente do
tratamento da questão das normas imperativas Agora uma última pergunta: a CIJ está
do direito internacional. Ela tem se referido preparada para o seu senso de humor?
vez por outra às obrigações erga omnes, mas Sou irreverente para poder viver no
as obrigações erga omnes são uma emanação mundo irracional. Essa irreverência é uma
das normas imperativas. Eu creio que aí existe maneira de manter a consciência viva da
um terreno fértil a percorrer no sentido de se irracionalidade do mundo. Ao mesmo tempo
pronunciar sobre essas normas, de construir um em que sou irreverente, sou respeitoso
direito internacional que se imponha aos Estados, com as pessoas, mas sou irreverente com
que não seja uma mera emanação da vontade de a irracionalidade do mundo, para que as
um ou de outro, mas em benefício de todos. pessoas não se deixem tragar pelo poder.
Essa irreverência é um instrumental para
O senhor tem várias atividades assegurar uma sobrevivência sadia. Na
paralelas: o Curso da Haia, o Rio medida em que as pessoas compreendam
Branco, a Universidade de Brasília. isso, eu creio que elas compartilharão dessa
Como vão ficar essas atividades de minha preocupação. É uma irreverência em
agora em diante? favor da consciência. (risos).
Vou continuar com todas elas. O Institut
só se reúne a cada dois anos. O curatório Amena Martins Yassine (turma 2008-2010
da academia da Haia me permitirá continuar do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
no mundo acadêmico, mesmo sendo juiz. Fiz pela Universidade de Brasília, mestre pela London
um levantamento dos juízes da Corte que School of Economics and Political Science (LSE).
continuaram a atividade acadêmica enquanto Filipe Abbott Galvão Sobreira Lopes
eram juízes. Se alguém vier me dizer que (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em
não pode, vou mostrar a lista. Não há Relações Internacionais pela Universidade McGill
incompatibilidades. Isso me dá o privilégio de (Montreal).
acompanhar a formação das novas gerações Pedro Veloso (turma 2008-2010 do IRBr) é
de internacionalistas de diversos países, bacharel em Direito pela Universidade Federal de
especialmente latino-americanos. Minas Gerais.

_19
_perfil

Chico,
o poeta
Ramiro Breitbach fotos de Laís de Souza Garcia

_20
F rancisco Alvim é reconhecido como um dos maiores poetas
brasileiros vivos. Desde a estreia com O Sol dos cegos (1968) até o mais
recente livro de poemas inéditos, Elefante (2000), Alvim vem desenvolvendo
um percurso poético rico e variado, agradando, a um só tempo, à crítica
de matriz acadêmica e artistas ligados à chamada poesia marginal, como
Cacaso, Waly Salomão, Chacal e Zuca Sardan com quem desenvolveu
fecunda colaboração.
Além da faceta poética, Francisco Alvim é diplomata de carreira
(aposentou-se em outubro de 2008), inserindo-se (embora sem que ele se
ache merecedor disso), numa galeria de grandes nomes a conciliar as duas
atividades, como Raul Bopp,Vinicius de Moraes e João Cabral de Mello
Neto .
Esbanjando alegria e generosidade, Francisco Alvim recebeu a Juca
em sua casa em Brasília para uma conversa franca e instigante sobre poesia,
diplomacia e suas experiências de vida.

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_perfil

Embora nascido em Minas, as primeiras em Jorge de Lima, na poesia visionária deste.


lembranças de Francisco Alvim são do Rio de Trocar de poeta é como trocar de universo”.
Janeiro. Seu pai fora prefeito de Araxá, onde Por volta dessa época, Francisco começou
Alvim nasceu, mas já se transferira com a a se interessar, também, pelo estudo de
família para o Rio antes de o filho completar línguas estrangeiras, motivado pela atração
dois anos. Apesar de não ter sempre vivido crescente pela literatura. Começou a pensar
em Minas, Alvim diz que, com a família mineira numa profissão (“porque precisava de uma”)
de ambos os lados, fica “aquela música, aquela e achou que o Itamaraty era uma carreira
prosódia na fala”. que não devia maltratar aspirantes a literato
“Até os 11, 12 anos, eu gostava de (“pois ali estavam, por exemplo, João Cabral e
brincadeira, bola, e gostava de batucar no Guimarães Rosa”). Além do mais, considerava
violão de minha irmã, batucar mesmo, não a diplomacia uma profissão “charmosa”, que
mexia com as cordas, o que me interessava lhe permitiria viajar pelo mundo e ter uma
era o batuque na caixa”. O contato com a vida confortável.
poesia veio um pouco mais tarde, através Em 1963, Alvim, 24 anos, passou no
dessa mesma irmã, Maria Ângela, já falecida, concurso para ingresso no Instituto Rio
11 anos mais velha, que Alvim venera. Maria Branco. Já mais maduro, foi capaz de enxergar
Ângela publicara um livro de poemas. a profissão sob novos ângulos de interesse.
“Superfície”, que, por essa época, já começara Sua geração passava por um processo
a fazer a cabeça do irmão. “Ângela ganhara de politização crescente, resultante dos
uma agendinha muito bonita de uma confrontos políticos e ideológicos do período,
empresa alemã. Um dia, eu a furtei e ela e o jovem aspirante empolgou-se com os
ficou procurando pela casa inteira.” Quando rumos da Política Externa Independente do
descobriu que o jovem Francisco tinha pego Governo Jânio Quadros. Porém, a política
a agenda e nela garatujado os seus primeiros externa, como tudo o mais no país, seria logo
versos, em vez de brigar, deu-lhe a agenda de profundamente alterada em sua trajetória
presente e passou a incentivá-lo. “Foi o meu pelos rumos da história. Após o golpe de
primeiro furto ligado à poesia. Houve outros 1964, Alvim afirma que “o trabalho no
depois, de natureza diversa, quem sabe mais Itamaraty ganhou uma dimensão ideológica
censuráveis, que foram igualmente premiados, muito forte, justamente quando comecei a
pois não me lembro de nenhuma vítima, ou trabalhar”.
alguém por ela, que os tenha denunciado. Em 1968, publicou Sol dos cegos, seu
Salvo uma vez: meu irmão caçula Fausto, primeiro livro de poesia, em edição do autor,
extremamente precoce, que já se iniciara em como seriam todas suas obras até o quarto
Machado, descobriu que não eram de minha livro, Lago, montanha, no início dos anos 1980.
lavra uns trechos do Quincas Borba que eu A gênese de Sol dos cegos foi complicada em
assumira como versos meus. Fui exposto mais de um sentido: o proprietário português
à execração de meus leitores, nessa época, da gráfica contratada para a impressão do
felizmente, apenas meus pais e irmãos. Um livro, acostumado a trabalhar para uma
vexame. Passei vergonha”. freguesia de freiras, hesitava em fazer o
Maria Ângela deu-lhe um segundo serviço porque o longo poema “Paralaxe”
presente, o exemplar da primeira edição das continha os seguintes versos:
obras completas de Jorge de Lima, que a ela
fora oferecido e autografado pelo autor, o Puxa o gogo o pedagogo
qual Alvim leu e releu fascinado, sobretudo cusporeja a grande perda
o “Livro de sonetos”. Recitou de memória Não deviam consentir
(“eu que a tenho péssima...”) um deles: A torre é mesmo um país de merda
de marfim, a torre alada... O contato com a
poesia de Carlos Drummond, em meados “O senhor está a chamar vosso país
dos anos 50, já rapaz, foi uma revelação para de ‘merda’? Não posso imprimir isso”,
Francisco Alvim. “Só lamento que Drummond argumentava o tipógrafo, talvez preocupado
tenha dado, com seu realismo, uma rasteira com o conteúdo político de um verso assim,

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às vésperas dos anos de chumbo. Alvim disse como Secretário na delegação brasileira
que compreendia as razões (“e, tanto quanto junto à UNESCO (Organização das Nações
o português, eu estivesse preocupado ...”) mas Unidas para a Educação, a Ciência e a
que não concordaria em alterar ou retirar o Cultura). Em Paris, encontrou o diplomata
verso, portanto, que ele não se preocupasse, e pensador José Guilherme Merquior, que
pois recolhia o livro. O proprietário então trabalhava na Embaixada. Merquior gostou
propôs consultar um intelectual de expressão, muito de Sol dos cegos e acabou publicando
afinado com a ideologia do período e a um artigo elogioso sobre o livro. A partir
quem recorria quando se defrontava com daí, a reputação de Alvim como poeta
situações semelhantes (que se amiudavam...); começou a se firmar, e ele recebeu um poema
dependendo do que o personagem achasse, manuscrito de Carlos Drummond elogiando
o livro seria impresso. Alvim assentiu. O sua primeira publicação. “Um poema curto, de
parecer foi algo como: “A poesia é meio circunstância – um gesto de agradecimento
ruinzinha, mas hoje está todo mundo pelo exemplar que eu lhe enviara; que ia,
escrevendo desse jeito mesmo”, e o livro contudo, bastante além para mim, pois na
foi publicado, saindo diretamente da gráfica realidade era uma apreciação crítica na qual
para um armário na casa da sogra de Alvim, apontava o que talvez seja a pulsão central de
que havia, entrementes, sido removido para minha poesia, já para ele, tão evidente naquele
seu primeiro posto no exterior. Armário meu primeiro livro”.
espaçoso, pois nele couberam os quase
mil exemplares da edição, que custou mil
cruzeiros, um cruzeiro por exemplar.
Licença do Itamaraty e a patota
Em outubro de 68, às vésperas do AI-5, De volta ao Brasil em 1971, tirou licença
Francisco Alvim partiu para Paris, para servir do Itamaraty (o clima político da época

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_perfil

talvez tenha contribuído para essa decisão) e “Era uma época muito dura (em função da
trabalhou alguns anos na Livraria José Olympio, ditadura), mas quanto mais difícil era, mais
no Rio de Janeiro, então uma das maiores dava vontade de escrever, de viver... E de um
editoras do país. O passado da editora, que convívio muito intenso entre artistas em
foi a grande casa do período áureo de nossa geral e gente que se interessava pelas artes”.
literatura, a editora de Carlos Drummond de Desse ambiente resultou a coleção Frenesi,
Andrade, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, editada por iniciativa de Cacaso, de maneira
João Cabral e tantos outros, ainda reverbera quase artesanal, de que Alvim fez parte com
em seu presente. Pela editora, transitavam os seu livro Passatempo (1974), em companhia de
nossos grandes escritores, Carlos Drummond Cacaso, João Carlos Pádua, Geraldo Carneiro
de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Murilo e Roberto Schwarz. Na mesma época, aparecia
Mendes, estes dois últimos em suas passagens o grupo de poetas Nuvem Cigana, que buscava
pelo Brasil; além de escritores já consagrados resgatar o elemento cênico na representação
de gerações posteriores, como Dalton Trevisan poética, e o grupo de teatro Asdrúbal trouxe
e Hilda Hilst. o trombone, que Alvim recorda como “um
Paralelamente, Clara, mulher de Francisco, estouro” quando do seu surgimento, com a
lecionava literatura brasileira no Departamento encenação que fizeram do Capote, de Gogol.
de Letras da PUC - Rio, o que permitiu a Alvim Talvez o único traço em comum dos
tomar contato com toda uma nova geração artistas que produziam no contexto que ficou
de poetas, como Cacaso, de quem se tornou conhecido como “poesia marginal” seja a
um grande amigo, Ana Cristina Cesar, Geraldo busca livre da experimentação, numa espécie
Carneiro, João Carlos Pádua, entre outros. de retomada dos ideais do modernismo dos
Alvim relembra com carinho a amizade que anos 20. Francisco Alvim também reconhece
unia a todos e o clima criativo dessa época: a importância da matriz da poesia concreta

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na produção da época, mas entende que “a ela. Havia muita coisa de qualidade duvidosa
geração dos anos 70 não comungava com nessa produção, o que ensejou naturalmente
os concretos. Eles tinham essa característica muita paulada justificada. Mas para o
de uma crença exarcebada na materialidade público leitor de poesia jovem e menos
da linguagem, além de um espírito muito jovem ofereceu, sem sombra de dúvida, a
combativo. Isso acabava por excluir muitos oportunidade de tomar conhecimento de
aspectos importantes da poesia, era algo um vasto território ainda desconhecido
muito programático, e essa geração [anos de enorme interesse, que se formou num
1970] surge, em alguma medida, em oposição período que a voz corrente assinalava como
ao dogmatismo da poesia concreta.” de marasmo na literatura”.
Como sua produção não saía pelas grandes Em seguida, em 1978, já de volta ao
editoras, mas por iniciativa de grupos que se Itamaraty e estabelecido em Brasília, Alvim
formavam, os poetas desses círculos acabaram publicou, ainda de seu próprio bolso e na
por desenvolver, segundo Alvim “aquela coleção marginal, por isso mesmo chamada
camaradagem, que a gente adorava. A gente “Mão no bolso”, Dia sim dia não, em parceria
não queria saber de outra coisa que aquela com Eudoro Augusto; em 1981, saíram
patota. Todo mundo fala mal de igrejinha mais dois livros, por outra coleção marginal
[panelinha, em algumas regiões do Brasil], mas - a “Capricho”: Festa e Lago, montanha. O
igrejinha é a melhor coisa do mundo. Tem que momento da publicação por uma grande
ser gente próxima, gente que você gosta”. editora chegou nesse mesmo ano de 1981,
Desse contexto de efervescência criativa, provocado por um artigo da revista Veja:
surgiria também um marco da poesia a editora Brasiliense reuniu os livros de
brasileira contemporânea: a coletânea 26 Alvim, salvo Dia sim dia não, sob o título de
poetas hoje, editada por Heloisa Buarque Passatempo e outros poemas.
de Hollanda, da qual Alvim participou, Com mais de quarenta anos desde a
juntamente com Roberto Schwarz, Roberto publicação do primeiro livro, a obra poética de
Piva, Capinam, Cacaso, Torquato Neto, Waly Francisco Alvim, que já lhe valeu dois Prêmios
Salomão, os também diplomatas Vera Pedrosa Jabutis e o Paula Brito, coube num único volume
e Zuca Sardan, entre outros. Francisco Alvim relativamente reduzido1. Sobre a concisão de
credita a publicação à persistência da editora: sua obra, o poeta diz que “não escrevo de uma
“Heloisa tem uma capacidade impressionante maneira intencional, programada. Sou dos que
de trabalho. E o mais importante: de perceber acreditam em inspiração. Somente quando estou
sob o aparente marasmo, as camadas trabalhando em um livro, tento manter uma
pulsantes que seguem por debaixo. Antena rotina de mão-de-obra, de dedicação. Por outro
fabulosa, desbravadora, que não pára de vibrar lado, o Itamaraty me tomou muito tempo. Minha
e captar. Alguém que se interessa pelo nervo obra é curta, meus poemas são curtos, porque
das coisas culturais, tempos atrás como agora, meu tempo era curto”. Sobre o novo momento
deve acompanhá-la no que anda fazendo”. de sua trajetória, após a aposentadoria do
O livro teve grande repercussão quando Itamaraty, Alvim evita fazer grandes previsões:
do seu lançamento, com farta cobertura de “Não sei, é um novo período de minha vida,
imprensa, nem sempre favorável. Mas nem de conteúdo muito especial, que extrapola de
a crítica mais contundente, pelo próprio muito o plano do trabalho literário, vamos ver
teor de contundência, deixava de expor um como me comporto”.
elemento altamente perturbador da antologia,
“o de chamar a atenção para uma produção
poética cujo sentido não se limitava ao plano
Referências
exclusivamente literário, mas ia além, ao Ao avaliar o movimento modernista
conseguir dar expressão artística a todo um brasileiro, com o qual se acha profundamente
momento extremamente significativo da vida identificado, a ponto de se considerar um
nacional e assim interagir efetivamente com “modernista tardio”, Alvim referiu-se aos
1 ALVIM, Francisco. Poemas (1968-2000). São Paulo/ Rio de Janeiro , CosacNaify/ 7 Letras, 2004

_25
_perfil

poetas que mais admira: “Drummond, em construção, os quais, contudo, nem por isso
primeiro lugar, pelo lugar que a experiência estavam fora dela. Minha aspiração máxima,
pessoal tem em sua poesia, pelo corpo a até onde percebo, não se alterou: é sempre a
corpo que mantém com a realidade e com mesma, a de despertar nos outros a emoção
a vida; Jorge de Lima, pelos jogos de sombra que sempre tive ao ler um poema”.
nas paredes da caverna; Murilo, pelo que há Sobre a “vida dupla” de poeta e diplomata,
de aéreo, de leveza e de humor em toda Alvim confessa não se sentir em condições
luz, pneuma do mundo: é pelo olho que o de ser juiz em causa própria. Reconhece que
homem respira; João Cabral, pelo batuque um diplomata tem de ter certas faculdades:
dissonante do verso de uma polegada, que alguma frieza de percepção (“sem virar uma
palmilha cada centímetro desta terra, nele geladeira...”), “certo distanciamento, acuidade,
incutindo toneladas de emoção que pretende precisão, capacidade de articulação, raciocínio
escamotear e que nos chega redobrada; rápido e preciso”. Além disso, “o diplomata
Manuel, pelas assonâncias de um espírito deve dominar a linguagem, a postura, até
clássico; Oswald, pela paulista jaula sem mesmo a postura física e o espaço.Você
grades, por onde apontam o uirapuru e o precisa ter controle da situação, saber onde
cobra norato”. está pisando e, sobretudo, quem, ou o quê,
Sobre seu próprio processo de composição, manda no pedaço. Não é essa certamente a
Alvim afirma que o senso de construção do coreografia de um poeta e a ideia de que dele
poema só veio mais tarde em seu percurso o vulgo faz. E o vulgo tem razão”.
poético. “Era muito mais uma reação como
que epidérmica a uma emoção. Só mais tarde Ramiro Breitbach (turma 2008-2010 do IRBr)
é qua essa epiderme foi desenvolvendo e é licenciado em Letras (Português e Francês) pela
fortalecendo os elementos intelectivos, de Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

_26
especial
mundo
lusófono

_27
_especial

in memoria
Embaixador
José Aparecido:

Embaixador Francisco Alvim

C omo andavam as relações com Portugal, à época em que a


Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) se constituía? Na
verdade, o período era marcado por muitas e graves dificuldades entre
os dois países.
O presidente Itamar Franco certamente tomara em consideração esse
fato, ao deslocar José Aparecido de Oliveira (num primeiro momento, ele
fora nomeado Chanceler) para a chefia de nossa representação em Lisboa.
Tratava-se de indicação muito especial, uma vez que recaíra sobre eminente
político brasileiro, com notável folha de serviços prestada ao país e que,
ademais, desfrutava da amizade e da confiança do Presidente.

_28
_29
_especial

Dentre as dificuldades que tolhiam o


relacionamento entre Brasil e Portugal,
sobressaía a questão dos dentistas,
envolvendo a regularização da situação
trabalhista desses profissionais brasileiros
que emigraram para Portugal sob o amparo
do Acordo Cultural firmado entre os dois
Aeroporto de Lisboa com o propósito de
reforçar a atuação de nosso Cônsul. Nessas
ocasiões, dentro do clima reinante, a reação
das autoridades policiais portuguesas era a
que se podia prever, mas isso não alterava a
disposição de nosso Embaixador.
Nessa conjuntura especialmente
b
países. A questão alcançou ampla repercussão delicada das relações, o projeto da CPLP
junto à opinião pública de Portugal e do terá surgido, na mente de José Aparecido
Brasil, que acompanhava, com alto teor de Oliveira, como fórmula redentora: o
emocional, a evolução de um processo de núcleo irradiador de uma agenda positiva
negociação caracterizado por impasses. entre Brasil e Portugal. O projeto vingou e,
De um lado, os brasileiros interpretavam a em retrospectiva, pode-se pensar que não
intransigência portuguesa como violadora da poderia ser de outro modo. No entanto, não
letra do Acordo: sentiam-se atingidos pela faltaram obstáculos e tropeços. Isso para
falta de reciprocidade com respeito à postura não falar de acirradas resistências, a começar
acolhedora que o Brasil sempre manteve em pelo fato de que o Governo conservador
relação ao imigrante português. Do outro do Primeiro Ministro Cavaco Silva tendia
lado, parecia aos portugueses que faltava aos a considerar a iniciativa brasileira como
brasileiros sensibilidade para as questões uma interferência indébita numa área de
derivadas do tamanho reduzido do mercado influência portuguesa.
de trabalho no setor, em Portugal, que não Um episódio circunstancial mostra bem
permitiria, sem prejuízo para o profissional as dificuldades com que se defrontava o
português, a prevalência das regras previstas nosso Embaixador no exercício de suas
no histórico Acordo. atividades, bem como o modo bastante
Para ilustrar a tensão existente, basta singular – e eficaz – de que se valia para
lembrar que o então Presidente Mário Soares superá-las. No cumprimento de uma gestão
– no texto que fez divulgar por ocasião de oficial, José Aparecido procurou falar por
homenagem prestada ao falecido Embaixador telefone com um Ministro do Gabinete
José Aparecido de Oliveira – chegou a português. Depois de sucessivas e infrutíferas
reconhecer que “a crise dos dentistas tentativas, o Embaixador acabou por dizer
brasileiros ameaçou pôr em causa as relações ao intermediário que o atendia: caso não
diplomáticas luso-brasileiras”. recebesse do Ministro uma resposta em
Havia ainda, naquele período, os frequentes dez minutos, iria apresentar seu pedido de
incidentes com brasileiros que chegavam demissão do cargo de Embaixador do Brasil;
a Portugal e eram impedidos de ingressar só que não o faria ao Presidente Itamar
no país, sob diferentes pretextos. Esses Franco, mas ao Presidente Mário Soares.
incidentes exasperavam o Embaixador O fato é que – depois disso – o reticente
Aparecido de Oliveira, que não relutava em se Ministro português respondeu à chamada
expor pessoalmente na tentativa de oferecer telefônica dentro do prazo concedido.
proteção aos brasileiros vítimas daquela Se assim era no dia a dia, Aparecido
situação, não hesitando em comparecer ao contava – em compensação – com alguns

_30
b aliados poderosos em seus incansáveis
esforços para criar a Comunidade. Em
primeiro lugar, tinha o total apoio do
Presidente Itamar Franco e de seu Chanceler,
o Embaixador Celso Amorim, que em várias
oportunidades se deslocou a Lisboa para
tratar do tema. Paralelamente, o Presidente
que essa corrente resultasse em ações que
fortalecessem o propósito de constituição
da Comunidade.
Tornou-se um viajante contumaz entre as
sete capitais, com vistas inclusive a sensibilizar
as sociedades locais e a mobilizá-las para o
projeto da CPLP. Para Aparecido, era mais do
Mário Soares era comprovado amigo do que uma campanha diplomática – era uma
Brasil e amigo pessoal de José Aparecido. cruzada cívica em nome da língua-mãe. Ele
Para ilustrar as afinidades existentes entre os se desdobrava na promoção de seminários
dois, basta mencionar a inauguração conjunta nas mais diferentes áreas, envolvendo
que fizeram, nos jardins da Embaixada, de universidades e instituições científicas e
um busto de Tiradentes, de autoria de Bruno técnicas; também no setor privado, com
Giorgi: o simbolismo do gesto ganhava maior vistas à exploração de oportunidades para
relevo naquele momento particular do um melhor entrosamento da economia e do
diálogo luso-brasileiro. Finalmente, a favor de comércio desses países; ou, voltando à esfera
Aparecido jogava o dado objetivo – por assim de atuação governamental, na realização
dizer estrutural – da vertente atlântica da de missões de cooperação, inclusive com a
própria política externa de Portugal. Nesse participação de terceiros países. O âmbito
contexto, Mário Soares seria uma peça- da cultura mereceu especial atenção por
chave: como estadista que era, sempre se parte de Aparecido, que de forma entusiástica
mostrou sensível aos vínculos históricos de promoveu encontros de intelectuais,
Lisboa com os países convidados a participar escritores e artistas, incentivando, além do
da Comunidade. O Embaixador soube mais a realização de um sem número de
valer-se dessa realidade política, de enorme eventos nessa área.
ressonância no corpo social português. Com tudo isso, o Embaixador em Lisboa
não descuidou do aspecto propriamente
h diplomático da operação: articulou sucessivas
reuniões entre os diferentes segmentos dos
De 1993 a 1995, acompanhei de Governos dos sete países para negociar a
perto a criação da CPLP, em companhia institucionalização da entidade. Sua atuação
do Embaixador Fernando Reis, então chegou a alcançar o campo da política
Subsecretário-Geral de Assuntos Políticos, externa multilateral, tendo contribuído para a
de quem fui chefe de gabinete. Em Lisboa, criação de uma instância informal de consulta
pude testemunhar o ânimo vigoroso, sem reunindo os países envolvidos nos foros
desfalecimentos, com que José Aparecido, multilaterais internacionais.
embora já a essa época bastante fragilizado O fato é que a sede da nossa missão
em sua saúde, se entregou à tarefa de diplomática em Portugal logo se tornou um
constituição da Comunidade. A iniciativa centro de convergência para todos os que
despertou uma energia prodigiosa entre estivessem vinculados à causa da CPLP, em
os países envolvidos, a que Aparecido maior ou menor grau. A residência, mais que
respondeu com energia igual, fazendo com a chancelaria, atraía as iniciativas. Todos nos

_31
_especial

Depoimento

O Embaixador José Aparecido foi um homem público de ideias e de ação.


Secretário particular de Jânio Quadros, parlamentar de vibrante atuação,
governador do Distrito Federal, Ministro da Cultura do Governo Sarney,
mentor intelectual da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
o legado de José Aparecido ultrapassou os domínios da política e da cultura
nacionais e estendeu-se a todos os povos lusófonos.

Em várias ocasiões pude testemunhar a dimensão do seu prestígio e sua


capacidade de traduzir iniciativas em ação política. Cito aqui duas delas: o
pioneiro encontro entre os Ministros da Cultura dos países da América
Latina e Caribe, que teve lugar em Brasília, em 1989, que vejo como um
remoto, mas promissor, embrião da Cúpula da América Latina e do Caribe
(CALC), realizada em dezembro de 2008, na Costa do Sauípe, por iniciativa
do Presidente Lula; e a primeira cúpula de Chefes de Estado e de Governo
dos países lusófonos, também em 1989, e que teve lugar em São Luís do
Maranhão, a convite do Presidente José Sarney, da qual resultou o Instituto
Internacional de Língua Portuguesa. Como Embaixador do Brasil em
Portugal, José Aparecido batalhou tenazmente para viabilizar a criação de
uma comunidade de países lusófonos, o que viria a acontecer, finalmente, em
1996. A união dos povos de língua portuguesa deve-se, em grande medida, à
visão política deste mineiro de Conceição do Mato Dentro.

Minha própria indicação a Ministro das Relações Exteriores do Governo


Itamar Franco teve, de certa forma, a assinatura do Embaixador José
Aparecido, que, por motivo de doença, não pôde assumir o cargo. Foi uma
imensa satisfação profissional ter trabalhado com o Zé Aparecido e ter
contribuído para a realização de algumas de suas iniciativas. É também razão
de verdadeiro orgulho ter tido um relacionamento tão próximo com este
brasileiro patriótico e idealista, que será sempre lembrado como o “Zé de
todos os amigos”.

Celso Amorim
Ministro das Relações Exteriores

_32
“às vezes os fatos se recusam a acontecer”

tornamos cativos da acolhida carinhosa que Negócios Estrangeiros de Portugal. Nas vezes
nos fazia a Embaixatriz Leonor Aparecido em que estive presente em reuniões entre os
de Oliveira, que ali soube criar, em volta das dois, notei uma curiosa sensação de prazer
atividades do marido, um ambiente de bem que pareciam retirar do árduo trabalho que
estar, descontraído e alegre. Ali se reuniam os junto executavam. Não havia tensão entre
Embaixadores brasileiros nos países da futura eles, o que tornava o ambiente de trabalho
Comunidade, convocados para reuniões sempre descontraído e bem humorado.
periódicas em Lisboa. Foram muitas também Não sei se erro em dizer que havia uma
as ocasiões sociais organizada pelo casal, curiosidade de um pelo outro, uma simpatia;
com a presença de autoridades de governo, no fundo, dois personagens políticos com
personalidades, artistas e intelectuais dos biografias pouco convencionais, donos de
sete países. Nessas oportunidades, Aparecido inteligências políticas fortes e originais e que,
atuava como uma espécie de diretor de ademais, pareciam compartilhar a mesma
cena de quadros vivos, como se já estivesse consciência da natureza poderosa e singular
compondo o álbum de fotos e de memórias das relações que unem Brasil e Portugal.
da nascente irmandade. O entusiasmo do Lembro-me de uma reunião
Embaixador era contagiante. particularmente difícil: o Embaixador foi
à Chancelaria portuguesa para comunicar
h formalmente o intempestivo cancelamento
da visita oficial – há muito programada
Em 17 de julho de 1996 reuniu-se em – do Presidente Itamar Franco. Não
Lisboa a Cimeira de Chefes de Estado de era a primeira vez que isso acontecia e
que resultou a criação da Comunidade representava um desgaste político no
dos Países de Língua Portuguesa, integrada meticuloso processo de construção da
por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné- Comunidade. Naquele dia, como era
Bissau, São Tomé e Príncipe e Portugal. José natural, José Aparecido se sentia frustrado
Aparecido de Oliveira já tinha deixado de e não escondia seu abatimento. Creio que
ser nosso Embaixador em Portugal. Nem o Chanceler português viu nisso a sincera
por isso lhe faltou o reconhecimento pelo dedicação do homem público. Solidário com
legado extraordinário que deixara – a seu interlocutor, Durão Barroso reagiu com
CPLP plenamente constituída. Mas a obra perfeita elegância e tato diplomático.
ainda não estava completa. Em 2002, com a Depois do encontro, de volta à Embaixada,
independência de Timor-Leste, o novo Estado Aparecido adotou uma postura que dá bem
asiático tornou-se o oitavo membro da a medida de seu temperamento: não se
Comunidade de língua portuguesa. Esse era recolheu. Convocou todos os funcionários e
um desejo sempre acalentado por Aparecido, relatou a reunião na Chancelaria e a decisão
que trabalhou para tanto - com a clarividência do Presidente Itamar de não realizar a visita
que lhe era própria - antes mesmo da prevista. Ele concluiu suas palavras com um
independência daquele país. toque de humor, entre amargo e irônico: “É, às
Por seu sentido de missão, Aparecido vezes os fatos se recusam a acontecer”. Talvez
encantava a quem dele se aproximava. Que a frase não fosse de sua autoria, mas vinha
o diga Durão Barroso, então Ministro dos bem a propósito.

_33
_especial

O BRASIL E OS ESFORÇOS
PELA SUSTENTABILIDADE
DA PAZ emGuiné-
Bissau
Marina Moreira Costa
Melina Espeschit Maia
Fotos de Miguel Girão de Sousa

_34
O engajamento da comunidade internacional
em Guiné-Bissau, um dos países de menor
desenvolvimento relativo do mundo, não tem
impedido que sucessivas ondas de instabilidade
interna dificultem o desenvolvimento do país,
desestabilizem a região e impulsionem o tráfico
internacional de drogas. Desde 2007, a situação
em Guiné-Bissau está na agenda da recém-
criada Comissão para a Consolidação da
Paz (CCP), cuja configuração específica
para Guiné-Bissau encontra-se sob a
coordenação do Brasil.

_35
_especial

Guiné-Bissau: um país fadado exílio em Portugal. Dessa vez,


à instabilidade? o Conselho de Segurança
das Nações Unidas (CSNU)
O assassinato do Presidente João estabeleceu, por força da
Bernardo Nino Vieira, em março de 2009, é resolução 1233 (1999), o
só mais um capítulo da turbulenta história Escritório das Nações Unidas
de Guiné-Bissau, marcada por constante de Apoio à Consolidação
instabilidade política desde 1974, quando da Paz em Guiné-Bissau
o país conquistou a independência de (UNOGBIS), missão
Portugal. A ausência de um aparato estatal política responsável pela
estável afeta a capacidade do país de reagir coordenação dos esforços
a uma conjuntura interna caracterizada de reconstrução após os
pela estagnação econômica, altos índices conflitos civis.
de desemprego, pobreza extrema, falta A atuação da
de intra-estrutura adequada e avanço do Comunidade Econômica
tráfico de drogas. As disputas internas e dos Estados da África
a instabilidade política são influenciadas Ocidental (CEDEAO)
pelo contexto regional dos países da África e da Comunidade
Ocidental, caracterizado por conflitos dos Países de Língua
entre forças rebeldes e governamentais, e Portuguesa (CPLP) foi
pela existência no país de setor mailitar crucial para a cessação
de perfil intervencionista em número de hostilidades. A
desproporcional à população civil. CEDEAO enviou, a
A história recente do engajamento pedido do Presidente
da comunidade internacional em Guiné- Vieira, a Força de
Bissau tem início em 1998, com a guerra Interposição da
civil desencadeada pela demissão do então ECOMOG (Economic
Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Community of
General Assumane Mané. O afastamento West African States
do General foi resultado de acusações Monitoring Group).
de contrabando de armas para rebeldes A CPLP atuou de
senegaleses da região fronteiriça de modo ativo para o término
Casamança. Na ocasião, tropas do Senegal dos conflitos ao promover a assinatura
e de Guiné atuaram no conflito ao lado do Acordo de Abuja, entre o Governo e a
do Presidente Nino Vieira, como parte
de acordos bilaterais de cooperação em
matéria de segurança e defesa. Esse tipo O ex-Presidente Nino Viera chegou ao
de ingerência era recorrente nos conflitos poder pela primeira vez em 1980, por meio
da África Ocidental e denota a influência de golpe militar, contra Luís Cabral, herói da
dos países francófonos em Guiné-Bissau independência e fundador do principal partido
naquele momento. do país, o PAIGC - Partido Africano para a
Um novo revés no processo de Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. O
estabilização foi provocado pelo Golpe golpe de Estado provocou a separação do PAIGC
de Estado de 1999, liderado pelo General de Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Mané contra o Presidente Vieira, que buscou

_36
Local de votação:
eleições presidenciais
em julho de 2009

Auto-Proclamada Junta Militar. A atuação da golpe militar em 2003. Mais uma vez, a
CPLP na estabilização de Guiné-Bissau foi coordenação diplomática entre CPLP e
reconhecida como o primeiro grande feito CEDEAO foi responsável pela assinatura
da então recém-criada Organização. da Carta de Transição Política, que
Em 2000, o Partido da Renovação Social estabeleceu a organização do Estado até a
(PRS) conquistou as eleições presidenciais, realização de eleições.
mas o mandato do presidente Koumba Uma nova sublevação militar, em 2004,
Yalá não chegou ao fim devido a novo deu início à trajetória de assassinatos de

_37
_especial

dirigentes de alto nível, com o atentado preceitos constitucionais, com a morte


contra o Chefe do Estado-Maior das ou afastamento do Presidente da República,
Forças Armadas, General Veríssimo Correia o Presidente da Assembleia Nacional
Seabra, substituído pelo General Tagme Popular assume o cargo de Presidente
Na Waie (que também seria assassinado, interino, até a realização de eleições
em março de 2009). No ano seguinte, presidenciais antecipadas.
eleições presidenciais conferiram vitória Em julho de 2009, Malan Bacai, do PAIGC,
foi eleito no segundo turno
O Brasil conjuga o diferencial linguístico com 63,3% dos votos válidos,
regularizando o quadro jurídico-
com o aporte de um modelo de cooperação institucional. Contudo, a
debilidade institucional do país,
Sul-Sul que tem se mostrado efetivo em em particular no tocante ao
diversas partes do globo. papel das forças de segurança,
torna premente a necessidade
de envolvimento da comunidade
ao Presidente Nino Vieira, que já havia internacional para a superação dos problemas
presidido o país de 1980 a 1998. Seu estruturais de Guiné-Bissau.
governo foi caracterizado por sucessivas Como a instabilidade política é reflexo,
tentativas de golpes, uma tentativa de principalmente, do distanciamento
assassinato e eleições legislativas bem- crescente entre os anseios das forças
sucedidas, realizadas em novembro de armadas e as aspirações da população
2008. Essas eleições contaram com o apoio civil, a reforma do setor de segurança
de missões de observação eleitoral da afigura-se como peça-chave no processo
CPLP, da União Africana (UA), da CEDEAO, de consolidação da paz. Em abril de 2009,
da União Econômica e Monetária do Oeste o governo de Cabo Verde, juntamente com
Africano (UEMOA) e da União Europeia a CPLP, a CEDEAO e a UNOGBIS, sediou
(UE), o que demonstra a importância mesa redonda sobre o tema. A preferência
conferida às eleições para a consecução por realizar evento em outro país lusófono
de estabilidade no país. O Brasil também (o Senegal também havia proposto sediar
enviou auxílio técnico e financeiro para a conferência internacional sobre Guiné-
realização das eleições. Bissau), é sinal da importância crescente da
Os assassinatos, no primeiro semestre lusofonia como elemento de concertação
de 2009, do Presidente Nino Vieira, do política, capaz de influir nos processos de
Chefe de Estado-Maior, Tagme Na Waie, do consolidação da paz .
ex-Ministro da Defesa, Helder Proença e do
candidato às eleições presidenciais, Baciro
Dabó, lançam dúvidas sobre a eficácia dos A Comissão para a Consolidação
projetos de estabilização em curso no país. da Paz: solução pós-conflito?
Por não configurarem golpes de Estado, os
magnicídios não levam ao afastamento do À época da criação da Organização
país da União Africana (como nos casos de das Nações Unidas, certamente não era
Guiné e Madagascar, excluídos em 2008) previsível que o CSNU fosse envolver-se
ou a mudanças significativas nas ações cada vez mais em processos de manutenção
das Nações Unidas. De acordo com os da paz em países de todas as regiões do

_38
mundo. Principalmente, não se esperava
que casos de conflitos civis e internos, Composição do Comitê Organizacional da
com causas profundas muito mais CCP: total de 31 membros, dentre os quais 7
complexas que disputas territoriais entre membros do CSNU, incluídos os P-5, 7 membros
Estados soberanos, dominariam a agenda oriundos dos grupos regionais do ECOSOC, 5
do órgão responsável pela manutenção maiores contribuintes financeiros, 5 maiores
da paz e segurança internacionais. O contribuintes de tropas e 7 membros eleitos pela
CSNU teria agora que ocupar-se da árdua Assembleia Geral.
tarefa de manter a paz e garantir sua
sustentabilidade nos Estados emergentes
de conflitos. relatório “Uma Agenda para a Paz”, o
As próprias operações de manutenção conceito de “consolidação da paz pós-
da paz, que se tornaram o grande conflito”, conjugando os conceitos de
empreendimento da Organização após os operações de manutenção da paz e de
anos de 1960, foram criadas a partir de consolidação da paz. Surgiu daí um conceito
uma lacuna na Carta das Nações Unidas, emanado da necessidade de preencher a
ou o Capítulo “VI e 1/2”, como dizia o lacuna existente no sistema ONU entre
então Secretário-Geral da Organização, a manutenção da paz e a auto-suficiência
Dag Hammarskjöld (1953-1961). Uma vez de governos nacionais em manter a
estabilidade interna.
Em 2000, o entendimento de que era
O conceito de peacebuilding, traduzido necessário suprir prontamente essa lacuna
literalmente como “construção da paz”, seria ganhou impulso com o Relatório Brahimi,
mais bem traduzido para o português como que resultou das reuniões do Grupo de
“consolidação da paz”, porque assim consta em Alto Nível formado pelo então Secretário-
francês e em espanhol, e porque “construção” Geral Kofi Annan (1997-2007) para
pressupõe formar alguma coisa onde nada havia discutir questões na área de operações de
- ao passo que a ideia de peacebuilding é dar paz. O Relatório suscitou a proposta de
continuidade a algo que teve início em etapa estabelecimento de “capacidade institucional
anterior.Santos Neves, G. “O Brasil e a Criação permanente nas Nações Unidas para a
da Comissão para a Consolidação da Paz”. Em O consolidação pós-conflito”. Em 2004, um
Brasil e a ONU, Brasília: FUNAG, 2008, p. 85. novo relatório, o do “Painel de Alto Nível”,
também reunido por Kofi Annan, em 2003,
lançou a ideia de criação da Comissão para a
instauradas, prolongavam-se por muitos Consolidação da Paz (CCP).
anos (como ainda ocorre no Chipre, Saara O passo seguinte na criação da CCP
Ocidental e Líbano, entre outros), com os veio com a publicação do relatório “Por
países contribuintes de tropas forçando sua uma Liberdade Mais Ampla: Desenvolvimento,
retirada, e a ONU encontrando grandes Segurança e Direitos Humanos para Todos”,
dificuldades para deixar regiões em risco de em 2005, em que Kofi Annan expressou
conflito iminente. O que fazer a partir daí? diretamente a recomendação de criação
Já no processo de “repensar” ou de órgão para suprir a lacuna institucional
“reformar” as Nações Unidas, o então decorrente da falta de tratamento
Secretário-Geral Boutros-Ghali (1992- consistente das Nações Unidas aos países
1997) apresentou, em 1992, em seu recém-egressos de conflitos armados.

_39
_especial

Comemoração do
36º aniversário da
independência de
Guiné-Bissau

_40
As negociações para a efetiva A maior parte do trabalho da Comissão
criação da CCP foram impulsionadas é conduzida pelas Configurações Específicas
pela Reunião de Cúpula da AGNU de para cada país da agenda, composta por países
2005, ano em que se comemoraram da região engajados em consolidação da paz,
os 60 anos da ONU. A Cúpula de organizações regionais e sub-regionais relevantes,
2005, que serviria para analisar os principais contribuintes financeiros e de pessoal
resultados obtidos desde a Cúpula para a missão de paz, instituições financeiras e
do Milênio na implementação das representantes do governo em consideração.
Metas de Desenvolvimento do
Milênio, acabou tratando de ampla
agenda, inclusive da reforma das do novo órgão. No último momento, a
Nações Unidas. A criação da CCP e delegação britânica apresentou um harvest
do Conselho de Direitos Humanos text em que assuntos polêmicos foram
foram as decisões mais importantes deixados em aberto. As negociações se
adotadas pelos Chefes de Estado prolongaram nos três meses seguintes,
durante a Cúpula. até que, em 20 de dezembro de 2005, a
As negociações para definir os Resolução A/RES/60/180 da AGNU e a
parâmetros de implementação e Resolução 1645 do CSNU estabeleceram
funcionamento da CCP foram, formalmente a Comissão, com o objetivo
no entanto, contenciosas. Os premente de impedir que países retornem
desacordos se concentravam na ao estado de guerra após o término do
definição: i) das competências mandato de missões de manutenção da
da CCP para trabalhar com paz da ONU. Foi acordado que a CCP se
prevenção de conflitos; ii) reportaria tanto ao CSNU quanto à AGNU
da composição da CCP; e e foi estabelecido um complexo sistema
principalmente, iii) do órgão da de eleição de membros para o Comitê
ONU ao qual a CCP deveria Organizacional da CCP.
reportar-se - o CSNU, a AGNU, O Brasil sempre ressaltou a importância
o Conselho Econômico e Social do desenvolvimento nas negociações sobre
(ECOSOC) ou uma combinação operações de paz e defendeu a inclusão de
desses órgãos. Kofi Annan atividades voltadas à inclusão social e ao fim
defendia, como o Brasil, que a da pobreza nos mandatos das operações de
Comissão deveria reportar- paz. Esteve, assim, firmemente engajado na
se ao CSNU e ao ECOSOC, criação da CCP.
enquanto os membros Como os países latino-americanos
permanentes do Conselho inicialmente não se engajaram nas
de Segurança e a maioria dos negociações para a criação da CCP, o
países ocidentais defendiam Brasil viu-se muitas vezes compelido, como
arduamente a subordinação lembra a Conselheira Gilda Motta Santos
unicamente ao CSNU Neves (SANTOS NEVES, p. 92), a se juntar
(segundo eles, de acordo com a países de outras tradições diplomáticas,
o artigo 29 da Carta da ONU). como Irã, Egito, Paquistão, Argélia e Cuba.
O embate se prolongou a ponto de não Nas negociações, o Brasil concentrou-se
se conseguir acordar, a tempo da Plenária em garantir que a CCP tivesse suficiente
de Alto Nível, como seria o funcionamento autonomia e não fosse um órgão subsidiário

_41
_especial

do CSNU. Outra preocupação brasileira foi nações. O compromisso brasileiro é de


garantir que os países em desenvolvimento, trabalhar ativamente com os membros
principalmente da América Latina e Caribe, da Comissão com vistas a promover o
fossem representados de forma equilibrada desenvolvimento guineense, conforme as
no novo órgão. prioridades a serem estabelecidas pelo
O Brasil não logrou, no entanto, que o Governo daquele país.” O Representante
Fundo para a Consolidação da Paz fosse Permanente de Guiné-Bissau junto às
diretamente subordinado à Comissão. Seu Nações Unidas corroborou essa afirmação
estabelecimento foi negociado por grupo ao declarar que “o Brasil, em função de seus
restrito de doadores e resultou em uma laços históricos, culturais, linguísticos e de
modalidade anacrônica de atuação, em amizade, tem a sensibilidade necessária para
que a CCP não goza de autoridade prática compreender os problemas e aspirações do
sobre o Fundo. Não se resolveu, portanto, povo bissau-guineense.”
um dos maiores problemas para o avanço O CSNU requisitou à CCP a análise da
de uma agenda pró-desenvolvimento nas situação em Guiné-Bissau em três esferas:
Nações Unidas. A constituição do Fundo reforma na administração pública e no setor
de Consolidação da Paz é ilustrativa das de segurança, fortalecimento do Estado
contradições do sistema ONU, em que os de Direito e combate ao narcotráfico. Os
P-5 e países europeus resistem em ampliar no trabalhos da Configuração Específica tiveram
tempo as operações de paz. início em janeiro de 2008, com a realização
da primeira reunião e da visita de campo
a Bissau, chefiada pela Embaixadora Maria
O Brasil e a Configuração Luiza Viotti, coordenadora da Configuração.
Específica para Guiné-Bissau Fortaleceu-se o entendimento de que a
reforma do setor de segurança (security
A situação de Guiné-Bissau ingressou na sector reform - SSR) seria prioritário, devido
agenda do Conselho de Segurança no biênio à intrínseca relação com a instabilidade
1998-1999, quando o Brasil ocupava assento política que impedia a consolidação de um
não-permanente. Em julho de 2007, Guiné- Estado capaz de encaminhar efetivamente os
Bissau solicitou ao Conselho de Segurança a problemas do país.
inclusão do país na agenda da Comissão de Encontros formais da Configuração
Consolidação da Paz. Em 19 de dezembro vêm ocorrendo em bases quase mensais
de 2007, a CCP incluiu Guiné-Bissau em sua e, em fevereiro de 2008, a Comissão
agenda e elegeu o Brasil como coordenador recomendou ao SGNU a elegibilidade de
da Configuração Específica para a Guiné- Guiné-Bissau ao Fundo da CCP. Ao Grupo
Bissau (CCP-GB). Piloto, copresidido por representante do
Ao assumir a posição de coordenador SGNU no país e autoridade designada pelo
da CCP-GB, o Brasil ressaltou os estreitos governo, foi atribuída responsabilidade
vínculos culturais, sociais e políticos que pela análise e aprovação final dos projetos
unem os dois países, reforçando a política com orçamento do fundo. Os projetos
brasileira de fortalecimento do mundo aprovados abrangem áreas relativas à
lusófono. Como afirmou a Embaixadora realização de eleições, emprego para
Maria Luiza Viotti, coordernadora da jovens, reabilitação de prisões e de
Configuração Específica para Guiné-Bissau quartéis militares. A Estratégia Integrada
da CCP: “Fortes laços unem nossas duas para Consolidação da Paz foi adotada em

_42
outubro de 2008 para guiar os trabalhos principalmente em países desenvolvidos.
da Comissão e inclui como prioridades A fim de contornar esse impasse, o Brasil
o fortalecimento do Estado de Direito, a busca promover a CCP como agente
geração de riqueza, a modernização do facilitador para aumento da base de
sistema de administração pública e, mais doadores e mobilizador da comunidade
uma vez, a reforma do setor de segurança. internacional a favor do país.
Para fazer frente ao tema, o governo de Assim como sua atuação no Haiti, a
Guiné-Bissau elaborou um plano nacional estratégia brasileira na Comissão está
para reforma do setor. A União Europeia calcada em duas vias principais, combinando
atua na reforma do setor de segurança estratégias de médio e longo prazo com
por meio de uma missão civil-militar, com adoção de projetos de curto prazo que
fundos da Política Europeia de Segurança possam ter impacto imediato para a
e Defesa (PESD). O tema voltou a ganhar população. Ademais, o estabelecimento
visibilidade com a realização de mesa de prioridades está a cargo das próprias
redonda, em 20 de abril de 2009, em
Praia, Cabo Verde. A mesa redonda foi
organizada pela CPLP em conjunto com Cooperação Sul-Sul: segundo dados da Agência
a CEDEAO e o UNOGBIS, fazendo Brasileira de Cooperação (ABC), o Brasil presta
prova do envolvimento dos países cooperação técnica a Guiné-Bissau em diversos
lusófonos na consecução de estabilidade projetos, incluindo projetos nas áreas agrícolas
no país. A CCP, contudo, não foi incluída (centro de promoção de exportações de caju),
no documento de base da reunião, militar e educacional (formação técnica).
suscitando questionamento em relação
aos aportes concretos da configuração,
mais de um ano após seu estabelecimento. autoridades bissau-guineenses. A adequação
Cumpre ressaltar que, embora a CCP dos projetos de cooperação essas
tenha sido representada na reunião pela prioridades demonstra o compromisso
Coordenadora da Configuração, a sua do Brasil com o conceito de apropriação
desconsideração pela documento de base nacional por parte de Guiné-Bissau no seu
pode ser sintomático dos parcos ganhos processo de consolidação da paz. O Brasil
conquistados por Guiné- Bissau desde a também tem estimulado o envolvimento
inclusão do país na agenda da CCP. do país com instituições financeiras
Apesar de a própria Guiné-Bissau multilaterais, defendendo tratamento
apontar a reforma do setor de segurança diferenciado para Guiné-Bissau, devido às
como prioridade do país, a atenção suas características de país em processo de
da CCP ao tema reflete, em parte, as consolidação da paz.
preocupações de nações desenvolvidas, que O Brasil constituiu-se como agente
temem que a CCP se transforme em uma mobilizador de recursos da comunidade
agência de desenvolvimento, priorizando internacional, com o intuito de avançar
temas relacionados à estabilidade política abordagem equilibrada para dar mais
e reforma institucional. Além disso, sustentabilidade à paz, integrando as
Guiné-Bissau é considerada estratégica dimensões sociais e econômicas no processo
para a segurança na África Ocidenal de reconstrução, com efetiva integração das
e a estabilidade no país diminuiria os vertentes de segurança e desenvolvimento.
efeitos das redes de crime organizado, Esse último ponto relaciona-se ao

_43
_especial

favorecimento recente do Brasil da modalidade


de cooperação Sul-Sul, em que a própria
experiência como nação em desenvolvimento
pode gerar contribuições específicas para a
reconstrução de Guiné-Bissau.
Os trabalhos da CCP em Guiné-Bissau
são restringidos pela insuficiência de recursos
orçamentários dedicados a programas de
desmobilização, reabilitação e reintegração
social de combatentes, e ilustra uma das
maiores falhas do pacote institucional da CCP.
Ao não conferir à CCP autoridade prática
sobre o Fundo, não se resolveu um dos
maiores problemas para o avanço de uma
agenda pró-desenvolvimento nas Nações
Unidas: a existência de recursos financeiros
prontamente disponíveis para a execução de
projetos de construção pós-conflito.
A aprovação da Resolução 1876 (2009)
pelo Conselho de Segurança traz novo
alento ao tratamento de Guiné-Bissau pelas
Nações Unidas. Decidiu-se pela criação de
um Escritório Integrado para Consolidação
da Paz (UNIOGBIS), a partir de janeiro de
2010, com o objetivo de assegurar maior
coordenação entre as diversas instituições no
terreno. O mandato do UNIOGBIS refere-
se, ademais, ao seu papel de auxiliar a CCP
nos trabalhos relativos à consolidação da paz,
fortalecendo a atuação do novo órgão. Além
disso, a participação do Brasil como membro
não-permanente do CSNU no biênio 2010-
2011 permitirá incrementar o tratamento
dado à Guiné-Bissau no Conselho.

Desfile militar:
Conclusão 36º aniversário
da independência
“O princípio da não-intervenção nos
nacional
assuntos externos dos outros Estados
sempre orientou a política exterior
do Brasil. Mas este princípio deve
ser matizado pela ‘não-indiferença’;
isto é, a disposição de colaborar, por
meio de canais legítimos, com outros

_44
_45
_especial

países que se encontram em situações condições de vida dos militares, vislumbrada


particularmente difíceis.” em propostas como a criação de um fundo de
Embaixador Celso Amorim, Ministro pensão para militares desmobilizados, deve ser
das Relações Exteriores, em palestra conjugada à reintegração à vida civil de ex-
proferida na Conferência Anual dos combatentes. A estagnação econômica, por seu
Embaixadores Franceses (Agosto, 2009) turno, impede geração de renda e faz com que
o Estado continue sendo uma das únicas fontes
A liderança brasileira em Guiné-Bissau de subsistência no país.
associa-se a pelo menos duas diretrizes O papel desempenhado pelos laços
importantes da política externa brasileira: históricos e culturais comuns, consubstanciado
na ideia de lusofonia, é crucial
para a compreensão da atuação
Talvez este tenha sido o principal aporte brasileira na questão de Guiné-
concreto da Configuração da CCP: dar Bissau. A confirmação do
Brasil como Coordenador da
visibilidade aos problemas bissau- Configuração Específica da CCP
foi saudada por diferenciar-se do
guineenses e mobilizar a comunidade perfil tradicional de país doador
internacional nos esforços para com pouca experiência prática nos
desafios enfrentados por países
consolidação da paz. em desenvolvimento. O Brasil
conjuga, portanto, o diferencial
linguístico com o aporte de um
a aproximação com os países de língua modelo de cooperação Sul-Sul que tem se
portuguesa e a ideia da não-indiferença. mostrado efetivo em diversas partes do globo.
Faz parte da construção de um perfil Ainda é muito cedo para avaliar a
diplomático baseado no princípio da contribuição real da CCP e da liderança
solidariedade internacional ativa, que vem brasileira para a consolidação da paz em
se firmando por meio de uma extensa Guiné-Bissau. Não há dúvidas de que o país
agenda de cooperação Sul-Sul e da chamada se afigura como tema central na agenda
de atenção em foros multilaterais como brasileira e, talvez, este tenha sido o principal
o ECOSOC, a CPLP e o CSNU, para a aporte concreto da Configuração da CCP: dar
necessidade de se conjugarem estratégias visibilidade aos problemas bissau-guineenses
de promoção do desenvolvimento (combate e mobilizar a comunidade internacional nos
à pobreza e à exclusão social) com as esforços para consolidação da paz.
atividades tradicionais de manutenção da paz.
Nas discussões sobre a consolidação Marina Moreira Costa (turma 2008-2010 do
da paz em Guiné-Bissau, o Brasil considera IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela
de particular relevância a superação dos Universidade de Brasília e mestre em Development
obstáculos estruturais e das condições Studies pela Universidade Sophia (Japão).
econômicas precárias, fortemente ligadas Melina Espeschit Maia (turma 2006-2008
à situação de segurança. Defende, assim, do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
que somente uma política conjugada entre pela Universidade de Brasília e mestre em Direito
desenvolvimento e segurança será efetiva para Internacional Público pela Universidade de
superar as mazelas do país. A melhora nas Nottingham (Inglaterra).

_46
Depoimento

Viver na Guiné-Bissau
Sinto-me um verdadeiro privilegiado pela se encontram grupos ou parceiros para jogar
oportunidade de viver na Guiné-Bissau. As futebol, tênis, voleibol, ir ao ginásio, correr ou
sensações são únicas e difíceis de descrever. Ter nadar e por isso acaba por não ser difícil evitar
uma experiência de vida no estrangeiro sempre os tempos mortos. Às vezes o mal está mesmo
foi um dos meus desejos e logo tive a sorte em ter muito tempo sem nada para fazer e
de que isso fosse possível num país africano começar a pensar demais.
tão especial e com tantas ligações históricas A Guiné-Bissau, ao contrário de outros
a Portugal. Quando me convidaram só podia países em África, é muito pacífica, a população
aceitar o desafio. é amável e acolhedora, não implicam com os
Encontro-me aqui a trabalhar para a União estrangeiros e em geral somos sempre muito
Européia desde Abril de 2008 e são raros bem tratados. No que toca às mulheres, Bissau e
os dias em que não sinto ter aprendido um o país em geral são excelentes se compararmos
pouco mais com a gente deste país. Como com outras capitais africanas, pois aqui uma
não deve ser difícil de perceber, adaptei-me mulher pode andar livremente nas ruas sem
rapidamente, e é com enorme prazer que aqui ser incomodada e sempre sem preocupações
estou. O facto de já conhecer o país de viagens de segurança. Talvez uma das grandes lacunas,
anteriores, fruto do meu trabalho na cooperação para quem está habituado a outro estilo de vida,
portuguesa, contribuiu também para uma seja a falta de oferta cultural, pois raramente
melhor e rápida integração. se organizam eventos relevantes. Neste campo
O país é muito pobre, e atravessa dificuldades será de elogiar as Embaixadas de França e do
enormes a todos os níveis, sobretudo no que Brasil pelo seu constante esforço em dinamizar
respeita às condições de saúde e educação. É a área. Outros deveriam seguir o exemplo. Em
também conhecida a sua instabilidade política Bissau não existem salas de cinema ou
e militar e, se bem que aos poucos a situação de teatro e os concertos são esporádicos.
parece estar a melhorar, o caminho a percorrer é Também as lojas são muito raras e os centros
ainda muito longo. comerciais inexistentes, a solução pode ser uma
No entanto, quem aqui trabalha para uma ida ao mercado local… Existem, no entanto,
organização internacional ou representação inúmeras vantagens também e conhecer os
diplomática consegue facilmente ter uma vida Bijagós, arquipélago junto à costa, é uma delas.
agradável. No fundo tudo depende um pouco Descansar numa ilha deserta, aproveitar a sua
de cada pessoa. Há quem goste muito de viver beleza natural, visitar as tartarugas ou comer
aqui e que se adapte facilmente às dificuldades e o que acabamos de pescar, são realidades
outros que estão sempre a contar os dias para a possíveis aqui.
próxima ida a casa ou para as férias. Não há luxo, Apesar de todos os problemas e lacunas
mas com mais ou menos esforço conseguimos existentes no país, os guineenses são positivos
encontrar o essencial, bem como aquilo a que nos e têm esperança num futuro diferente. Sabem
fomos habituando nos nossos países de origem, sempre agradecer com gestos simpáticos e
nomeadamente ao nível de alimentos. sorrisos aquilo que recebem e, ao contrário do
A comunidade internacional não é grande que seria de pensar, não se queixam muito. Esta
mas suficiente para se fazerem amizades e se tão grande simplicidade do povo conquista-nos
organizarem programas comuns. Estar ocupado e demonstra bem o seu carácter. A Guiné-Bissau
e ter uma vida activa é fundamental.Tem não é o fim do mundo que muitos pintam.
muito a ver com nossa maneira de ser e com a Felizmente a realidade é bem diferente.
necessidade de manter a cabeça saudável. Para
além da ocupação normal resultante do trabalho, Miguel Girão de Sousa é português e
aqueles que gostam de fazer desporto tem a sua assessor político na Missão para Reforma do Setor
vida facilitada, pois a oferta é variada. Facilmente de Segurança da União Europeia em Guiné-Bissau.

_47
gilberto
_especial

freyre
e o Lusotropicalismo:
passado,
presente e
Futuro
Rafael Rodrigues Paulino

“Se me perguntarem quem sou, direi que não sei classificar-me. Não sei definir-me. Sei que
sou um eu muito consciente de si próprio. Mas esse eu não é um só. Esse eu é um conjunto de
eus. Uns que se harmonizam, outros que se contradizem. Por exemplo, eu sou, numas coisas,
muito conservador e, noutras, muito revolucionário. Eu sou um sensual e sou um místico. Eu sou
um indivíduo muito voltado para o passado, muito interessado no presente e muito preocupado
com o futuro. Não sei qual dessas preocupações é maior em mim. Mas todas elas como que
coexistem e até me levaram a conceber uma ideia de tempo, porventura nova: a do
tempo tríbio. A de que o tempo nunca é só passado nem só presente nem só futuro,
mas os três simultaneamente. Vivo nesses três tempos simultaneamente. Sou um brasileiro
de Pernambuco. Gosto muito da minha província. Sou sedentário e ao mesmo tempo nômade.
Gosto da rotina e gosto da aventura. Gosto dos meus chinelos e gosto de viajar. Meu nome é
Gilberto Freyre.”

em entrevista à TV Cultura de São Paulo.

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Introdução

P
Vila de Ipojuca, Frans Post, 1640

ara os que, em algum tempo, já se É tanto que o próprio autor sempre se


interessaram pelo estudo do Brasil, sua gente apresentou como escritor e ensaísta, e nunca
e sua cultura, o nome de Gilberto Freyre como antropólogo, sociólogo ou historiador.
dispensa qualquer tipo de apresentação As narrativas de Freyre, sempre cheias de
– tanto para o bem como para o mal. Dono digressões e caminhos sinuosos, quase nunca
de uma extensa obra, que abrange desde escapam ao tema, ao contrário, o enriquecem
a sociologia à historiografia, Freyre logrou com percepções dos cinco sentidos, como
abordar, por diversos ângulos, um mesmo sabores, cheiros, cores, texturas. Muitas vezes
objeto de estudo: seu próprio país. Um tanto notamos o apelo ao emocional nas descrições
narcisisticamente, Freyre parecia identificar-se de casos e situações, o que nos diz que
com seu tema, que de alguma forma, era sua Freyre era, de fato, um cientista social muito
musa. Fez dele a tradução de um estilo de diferente. Sem afastar-se do rigor das fontes,
vida, de um sistema valorativo, enfim, de um ele conseguiu estabelecer um diálogo entre
ideal, muitas vezes afastando-se da realidade situações passadas, presentes e futuras
em prol de um dever-ser normativo. Por esta em uma mesma narrativa, que
e outras razões, tornou-se polêmico. para seus admiradores durou
Nas primeiras linhas de “Gilberto Freyre todos os oitenta e sete anos
e a singularidade cultural brasileira”, Jessé de sua vida.
Souza qualifica o mestre de Apipucos O presente ensaio tem
como “talvez o mais complexo, difícil e a intenção de sublinhar
contraditório de nossos grandes pensadores”. alguns poucos excertos da
Essa afirmação pode ser ao mesmo tempo principal tese de Freyre –
puramente verdadeira ou terrivelmente o Lusotropicalismo – e sua
falsa, dependendo de como se entendam os interlocução com as três
adjetivos nela contidos. Freyre é complexo, dimensões do tempo. Essa,
mas não por excesso de erudição ou pelo aliás, é uma inovação única ao
uso corrente de conceitos só entendidos autor: a do tempo tridimensional,
pelos iniciados. Ao contrário, seu estilo é que se desdobra e se articula em
definitivamente coloquial, um tanto literário fatos históricos e cenas cotidianas.
e oral, e é, ao mesmo tempo, friamente Mais especificamente, pretendemos
factual e científico, e subjetivamente afetivo. trazê-lo para os domínios da política

_49
_especial

exterior e da diplomacia, assunto que de do que fosse universidade. Sempre


forma alguma foi ignorado em sua prolífica me perguntavam: ‘Formou-se em
carreira como ensaísta. direito?’ Eu dizia não. ‘Formou-se em
engenharia?’ Não. ‘Formou-se em
medicina?’ Não. ‘Mas, então, que diabo
Passado você fez com o dinheiro do seu pai
no estrangeiro?’ Eu não tinha a menor
Contextualizar o autor, no caso em vontade de explicar nada: ‘fiz umas
tela, é absolutamente necessário para bobagens, estudei umas coisas...’ No
compreendermos o conteúdo de sua obra – terreno da antropologia, só existia a
ainda que sua vida pessoal, por ser tão cheia antropologia física. Tudo isso concorreu
de ricos detalhes e passagens interessantes, para que eu vivesse uma fase de
mereçam um trabalho à parte. O essencial, ‘monstro’ rejeitado e ignorado”.
para nosso estudo, é saber que, nascido no Entrevista a Gilberto Velho (Museu
Recife em 15 de março de 1900 e morto Nacional e UFRJ), César Benjamin
na mesma cidade em 18 de julho de 1987 , e Cilene Vieira Areias, publicada em
Gilberto de Mello Freyre era filho do juiz Ciência Hoje, maio de 1985.
de direito Alfredo Freyre, de uma família
da tradicional aristocracia pernambucana. Após uma longa temporada no exterior,
A influência da academia norte-americana retornou ao Brasil após a defesa de sua
sempre foi muito significativa: fez o colegial tese, em 1923, escolhendo não estabelecer-
no Colégio Americano Batista do Recife, e a se nas metrópoles do sudeste, senão em
graduação na Universidade Baylor, no Texas. sua terra natal, o Recife. A cena intelectual
Fez mestrado e doutorado na prestigiada brasileira fervilhava naqueles dias de Semana
Universidade Columbia, onde foi orientado de Arte Moderna, mas Freyre não era um
por ninguém menos que Franz Boas, um modernista. Ao contrário, considerava aquele
dos pais da antropologia moderna. Sua tese “pseudo-cosmopolitismo” nocivo à cultura
Brazilian social life in the middle of the 19th brasileira. Articulou então, com intelectuais de
century, defendida em 1922, é o embrião de várias partes do país, o primeiro Congresso
sua primeira e mais importante obra, Casa Brasileiro de Regionalismo, do qual resultou a
Grande & Senzala (1933), em que o autor publicação do Manifesto Regionalista de 1926.
descreve a formação da família brasileira Remontam a essa época as primeiras
sob o regime de economia patriarcal de críticas ideológicas ao trabalho de Freyre,
1500 a 1900, e que segue sendo sua obra críticas essas que não deixavam de ter
mais publicada e traduzida no exterior, uma motivação partidária, uma vez que,
senão uma das mais importantes obras em 1927, tornou-se chefe de gabinete do
brasileiras de todos os tempos. então governador de Pernambuco, Estácio
“Ninguém aqui sabia o que era Coimbra, permanecendo até sua destituição
mestrado, coisa típica dos países anglo- pela Revolução de 1930. Embarcou então,
saxões. Não vingava nem na Europa com o governador, para um exílio de quatro
continental, embora lá o reconhecessem anos em Lisboa, retornando com a anistia
como equivalente ao doutorado em de 1934. Eleito Deputado Constituinte pela
ciências do homem ou em letras. Mas UDN em 1946, foi autor do projeto que criou
no Brasil de 1923, quando cheguei, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
não havia ainda nenhuma noção Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, um

_50
dos poucos órgãos federais de pesquisa em Presente
ciências sociais fora do centro-sul do país.
Sua colaboração com a imprensa também Mesmo falecido há 22 anos, faz-se
foi notória, dirigindo os maiores e mais apropriado dissertar sobre o pensamento de
tradicionais periódicos do Recife, o Diário de Gilberto Freyre nesta seção do ensaio. É uma
Pernambuco e A Província, sendo também um maneira singela de homenagear o tema deste
dos principais colaboradores da revista de trabalho e, mais uma vez, chamar a atenção
maior circulação nacional de seu tempo, o para a questão do tempo.
semanário O Cruzeiro, de cujos artigos vêm Um de seus principais pressupostos era a
boa parte das referências desse trabalho. tese, revolucionária no início do século XX, de
Teve uma vida editorial excepcionalmente que não há raças biologicamente inferiores, e
prolífica, sendo autor de quase setenta que não há relação necessária entre a pobreza
obras, descontadas as coletâneas – o que e a raça – na verdade, o autor contestava
alcança, em média, um livro novo por ano a própria existência da categoria “raça” no
de produção. Boa parte delas tornaram-se sentido de então, utilizando-a, na maioria de
sucessos de vendas, bem como referências seus artigos, apositivamente. Desnecessário é
acadêmicas e científicas. A trilogia Casa frisar a importância desse tipo de reflexão em
Grande & Senzala (1933), Sobrados e um Brasil às voltas com o debate sobre cotas
Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959) raciais nas universidades, em uma das muitas
é, segundo muitos comentadores, o que possíveis articulações de seu pensamento
há de mais essencial em sua obra, sendo com o tempo presente. Freyre, como seu
em grande medida complementares em mestre Franz Boas, nega o determinismo racial
termos de períodos históricos abordados. e geográfico, conferindo ênfase à cultura e
À parte os inúmeros prêmios literários desprezando a leitura pseudo-evolucionista de
e dos título de Doutor Honoris Causa de conceitos como raça. De seu mestre, ele diz:
diversas universidades, recebeu também, da
Rainha Elizabeth II, o título de Cavaleiro do “Foi o estudo de antropologia sob
Império Britânico, sendo portanto um Sir. a orientação do professor Boas que
Foi reconhecido também como referência primeiro me revelou o negro e o mulato
mundial nas ciências sociais por acadêmicos no seu justo valor – separados dos
do calibre de Roland Barthes e Fernand traços de raça os efeitos do ambiente
Braudel, dentre muitos outros scholars de ou da experiência cultural. Aprendi a
renome. Sobre a grafia de seu nome, o considerar fundamental a diferença entre
respeito ao desejo do autor: raça e cultura; a discriminar entre os
efeitos de relações puramente genéticas
“Não falta, porém (...) a cortesia de e os de influências sociais, de herança
grafar o nome do modesto autor como cultural e de meio. Neste critério de
deve ser grafado. O que já é muito em diferenciação fundamental entre raça
jornal do Rio com relação ao pobre e cultura assenta todo o plano deste
do provinciano que insiste no y do ensaio”. (Freyre, 2005, p.31)
seu nome com o mesmo direito que o
eminente Chanceler San Thiago Dantas É do contato com Boas que advém as
no San (e não São) do seu San Thiago.”1 empatias com a escola idealista alemã,
1 FREYRE, Gilberto. “A propósito da ‘tese lusotropical’”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 nov. 1962.

_51
_especial

herdeira de Kant e Hegel. Vale notar que, histórico da conquista da América. No


bastante dialeticamente, o título de boa entanto, as semelhanças e convergências
parte dos livros de Freyre é a sucessão de com Varnhagen param aí, uma vez que os
dois substantivos-conceitos, aparentemente dois têm opiniões, premissas e metodologias
inconciliáveis, ligados pelo símbolo “&”, opostas para quase tudo. Em primeiro lugar,
que, segundo o autor, era um símbolo Varnhagen não via valor na raça negra, e
de interpenetração e conectividade. O preconizava que o brasileiro deveria ter sido
primado da cultura sobre o determinismo uma raça branca pura, pela imigração maciça
das primeiras leituras evolucionistas proto- de europeus. A miscigenação, para Varnhagen,
darwinianas, bem como outras premissas, era um desprestígio, e a escravidão teria
o aproximam de Weber, bem como o uso sido mais tolerável se fosse a do índio, que
de tipos ideais para descrever o homem, segundo ele, a pseudo-filantropia do jesuíta
o espaço e o tempo em suas obras. impediu. Freyre, por outro lado, valoriza
Cientificamente, a opção é clara a favor de enormemente a presença do negro, a riqueza
um método qualitativo, adjetivo, o que se de sua cultura, sua companhia alegre e terna,
afasta em muito da tradição norte-americana e por sua sensualidade.
de quantitativistas das escolas em que
estudou, como Columbia. “E que vergonha há na condição
O método utilizado por Freyre, de negróide? Que vergonha há na
mesmo em obras predominantemente condição de negróide diante da
antropológicas, é quase sempre antropologia moderna que não
historiográfico. Mas é importante frisar reconhece ‘superioridades’ ou
sua natureza não-evolucionista e também ‘inferioridades’ de raça? Por que
não-evolucionária: para ele, não há o pretender-se com ‘documentos’
pressuposto de que o passar do tempo destruir uma verdade que só é
trará avanços. Um hábito comum a seu vergonhosa hoje aos olhos dos
estilo é a transposição de si mesmo para retardados em ciência?”2
o passado, estabelecendo uma espécie de
canal direto de comunicação deste com o Outra divergência ocorre em relação
presente. Esta, e outras, são influências da ao sistema econômico e de trabalho na
École des Annales francesa, e de seu gosto colônia. Varnhagen, apesar de defender
pela história cotidiana e das mentalidades a colonização portuguesa, lamenta
coletivas. São valorizadas como fontes profundamente que ela tenha sido
de relevância histórica livros de receitas, latifundiária e escravista, justamente pela
fotografias, festas, expressões religiosas, motivação racista exposta acima. Já para
relatos de viajantes, cantigas de roda, Freyre, é injusto acusar os portugueses de
diários íntimos. Isso confere um caráter terem manchado com a escravidão a sua
multi-facetado, poliédrico, à obra de Freyre. obra grandiosa de colonização tropical.
Como aponta o professor José Carlos O meio e as circunstâncias, segundo ele,
Reis, a obra de Freyre é neo-varnhageniana, exigiram o escravo. Principalmente, parecia-
no sentido em que elogia as virtudes lhe inapropriada tal espécie de julgamento
da colonização portuguesa, mesmo histórico, em que o delito era tipificado a
considerando o traumático processo posteriori.
2 FREYRE, Gilberto. “Português, branquidade e documento”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 04 nov. 1950.

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“tenhamos a honestidade de Para ele, no Brasil foi forjada uma sociedade
reconhecer que só a colonização multirracial, por obra do gênio português,
latifundiária e escravocrata teria fertilizada pela presença africana e
sido capaz de resistir aos obstáculos indígena, e que encontrou nos trópicos
enormes que se levantaram à sul-americanos o cenário topográfico ideal
colonização do Brasil pelo europeu - só para sua realização. A principal premissa da
a casa grande e a senzala. O senhor tese é considerar que esse amálgama só
de engenho rico e o escravo capaz do poderia ter sido feito, em seu tempo, pelo
esforço agrícola” povo português, por vários motivos, entre
os quais destacamos dois: o fato de que o
“No Brasil, as relações entre os português, diferentemente de outros povos
brancos e as raças de cor foram europeus de semelhante expertise técnica,
desde a primeira metade do século 1) gostava dos climas quentes, e 2) já era
XVI condicionadas, de um lado pelo ele próprio mestiço de romanos, visigodos,
sistema de produção econômica celtas e mouros.
– a monocultura latifundiária; do
outro, pela escassez de mulheres (...) “ the Portuguese never to have
brancas, entre os conquistadores. O displayed great enthusiasm for settling in
açúcar não só abafou as indústrias foggy regions or for adapting themselves
democráticas de pau-brasil e de to climates colder than that of Portugal.
peles, como esterilizou a terra, em Their ideal or messianic climate seems
uma grande extensão em volta aos always to have been a hotter one than
engenhos de cana, para os esforços that of Portugal - Portuguese emigration to
de policultura e de pecuária. E exigiu colder countries such as the United State
uma enorme massa de escravos. A has been principally from the Azores. It
criação de gado, com possibilidade de may be noted that popular folklore has
vida democrática, deslocou-se para os long since shown hostility to the cold winds
sertões. Na zona agrária desenvolveu- that blow from Spain and linked them to
se, com a monocultura absorvente, Spanish brides supposedly less affectionate
uma sociedade semi-feudal – uma than Portuguese or tropical women. “From
minoria de brancos e brancarões Spain neither a good wind nor a good wife”
dominando, patriarcais e polígamos, says the proverb. Spain here seems to be
do alto das casas-grandes de pedra symbolic of an Europe colder, in its climate
e cal, não só os escravos criados or ‘winds’, than Portugal.”
aos magotes nas senzalas como os
lavradores de partido, os agregados, “Among other traits worthy of being re-
moradores de casas de taipa e de established was the readiness of the well-
palhas, vassalos das casas-grandes em born Portuguese to go and pit his vigour
todo o rigor da expressão.”3 and strength against the tropics such as
Freyre vai além. E é nisso que consiste the African bush or the Brazilian jungles;
sua principal tese, a do Lusotropicalismo. contacts which were better calculated to
3 FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 50.ed. revista. São
Paulo: Global, 2005. P. 32-35
4 FREYRE, Gilberto. Impact of the Portuguese on the American tropics. Neuchatel: La Baconniére, 1958.

_53
_especial

regenerate European energies than those porque, mestiço, o Brasil é um pouco de


with the civilized East.”4 ambos. Nesse aspecto, o lusotropicalismo
torna-se não uma explicação do passado, mas
Dos excertos citados, pode-se inferir um uma fundação, uma base para uma atuação
fato importante: para Freyre, o elogio do externa futura.
passado é uma exaltação, uma idealização, o
que dá um caráter quase onírico à sua obra. “Em livro recente e ricamente
É importante notar também a importância sugestivo, (...) um sociólogo francês,
e o poder dessas ideias no início do século. que todos os estudiosos brasileiros
Freyre foi, provavelmente, o primeiro a de assuntos sociológicos estimam e
ter defendido, com bases científicas, o admiram - o Professor Roger Bastide
valor da mestiçagem na formação do país, - reconhece ter o Brasil se tornado
o que teve um papel central em revelar potência demasiado grande para
uma das características mais estudadas limitar seu destino à América do
por brasilianistas de todas as escolas: a Sul. É uma nação que tem, a seu ver,
síndrome de vira-latas. papel internacional a desempenhar
no Mundo de hoje. E refere-se, a êsse
propósito, à ideia de uma federação
Futuro de países de língua portuguêsa,
infelizmente sem considerar, como
Um equívoco comum na leitura da obra devia ter considerado, a base
de Freyre é o de considerá-la, inteiramente, sociológica para uma tal federação de
como a expressão da realidade passada. Isso evidente importância política, oferecida
não quer dizer que a obra de Freyre seja, por aquêles seus colegas brasileiros
de alguma maneira, fictícia. Do contrário, é que vêm sugerindo a especificidade
o lembrete de que a perspectiva de Freyre de uma civilização dinâmicamente
é, muitas vezes, a do dever-ser, e não do ser. luso-tropical: civilização em
É parte do esforço do autor de estabelecer desenvolvimento e não estabilizada. (...)
a conexão tridimensional do tempo, e fazer E o grande mediador entre a Europa
conexões entre passado e futuro. O caráter e o Trópico tem sido, não um vago
normativo da obra de Freyre é revelado, latino, mas o hispano. Principalmente
em muito, nas opiniões externadas por ele o português, a ser continuado num
sobre o papel do Brasil no mundo e sobre a futuro já presente, pelo brasileiro.”5
natureza da política externa, em sua coluna
no semanário O Cruzeiro. Nesse ponto, suas Essa noção é especialmente preciosa nos
revelações chegam a ser mais que visionárias. dias de hoje, em que se busca, talvez pela
Para seus admiradores, são semi-proféticas. primeira vez em nossa história, um papel de
Freyre acreditava que o Brasil era o prioridade nas relações internacionais do
interlocutor ideal entre o norte desenvolvido Brasil para os países da África Lusófona e da
e o sul em desenvolvimento, entre o branco e América Hispânica e, de forma mais ampla,
o preto, entre o rico e o pobre, simplesmente para o mundo em desenvolvimento. No
5 FREYRE, Gilberto. “O Brasil, mediador entre a Europa e o trópico”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 22 jul. 1961
6 FREYRE, Gilberto. “A propósito da ‘tese lusotropical’”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 nov. 1962.
7 FREYRE, Gilberto. “O Brasil, lider da civilização tropical”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 1 jul. 1961.

_54
Negra vendendo caju, Jean Baptiste Debret, 1827

“Ao Brasil de hoje, abrem-se


oportunidades de povo condutor
de povos tropicais, acompanhadas
de responsabilidades que se não
forem assumidas pelos brasileiros
terão de ser assumidas - e assumidas
exclusivamente - pelos indianos
ou pelos árabes unificados, pela
entanto, o próprio Freyre já reconhecia as Venezuela ou pelo México, ficando os
dificuldades de implementação de uma visão brasileiros reduzidos a uma situação
desse tipo: politicamente inerme entre êsses
povos quando, sob outros aspectos,
“Pois de modo algum pretende a sua civilização simbiòticamente
‘tese freyreana’ subordinar a condição luso-tropical ou hispano-tropical
lusotropical de uma cultura ou talvez seja a mais criadora e a mais
de uma população ao seu simples dinâmica das modernas civilizações
status político. Ou aos altos e baixos que se desenvolvem nos trópicos (...)
da política exterior do Brasil que, Não será sem êsse ânimo um tanto
ultimamente, parece vir sofrendo, romântico que o Brasil assumirá o
com relação a certos problemas, o seu comportamento político o papel
impacto de interêsses eleitoralistas ou de líder de uma articulação de forças
de impulsos demagógicos de políticos que comece a reunir as populações
nacionais demasiadamente ‘domésticos’ de formação lusitana, em particular, e
no seu modo de lidar com aspectos as de formação hispânicas, em geral,
internacionais”.6 situadas em espaços tropicais, sob uma
unificadora “consciência de espécie”,
Por fim, é preciso fechar o último vértice que se traduza em atitudes e até em
do triângulo. Os últimos oito anos de nossa atos de solidariedade característicos
política exterior foram caracterizados por um de uma vasta comunidade com vários e
novo olhar sobre as relações internacionais. fortes interêsses em comum; é capaz, à
Um olhar por muitos definido como mais base dessa solidariedade, de afirma-se
protagônico e altivo, de um país que sabe como tipo de civilização moderna do
quem é e o que deseja do mundo. Ao nos qual outras civilizações modernas têm
debruçarmos sobre a obra de Gilberto evidentemente o que aproveitar, em
Freyre, podemos facilmente perceber que tais proveito de relações mais saudáveis
caracterizações e mudanças, como muitas entre europeus e não-europeus, e
outras em nossa história, são bem maiores entre o homem civilizado - à europeia
do que as pessoas que as implementam , e e o trópico - a terra, o solo, o clima,
decorrem não dos caprichos de indivíduos, nativo dos trópicos.”7
senão de um cálculo de um desígnio de
Estado, com fundações datadas de algumas Rafael Rodrigues Paulino (turma
décadas. O mestre de Apipucos, mesmo 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações
escrevendo há mais de quarenta anos, parece Internacionais e mestre em Teoria da
nos sussurrar, no dia de hoje: Comunicação pela Universidade de Brasília.

_55
_especial

Juan Guerra e Denise Andrade


Novo Acordo
Ortográfico:
Língua e Poder
Marcela Magalhães Braga

As fronteiras da minha linguagem


são as fronteiras do meu universo.

Wittgenstein

_56
1. Linha do tempo
O Novo Acordo Ortográfico da Língua adequar-se ciclicamente às ondas de inovação
Portuguesa foi assinado em 1990, por dialética entre língua falada e língua escrita.
Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, O primeiro acordo ortográfico celebrado
Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. entre a Academia Brasileira de Letras e a
Tais Estados comprometeram-se a elaborar Academia de Ciências de Lisboa ocorreu
um vocabulário comum, almejando conferir em 1931. A Constituição brasileira de 1934
completude e uniformidade ortográfica revogou esse acordo, marcando o início de
ao idioma português. O Acordo dará mais um longo período de distanciamento entre
dinamismo ao idioma e contribuirá para evitar os dois sistemas. O projeto da Nomenclatura
eventual dispersão linguística entre os países Gramatical Brasileira – NGB, iniciado em 1958,
lusófonos. contribuiu para ampliar o hiato já existente
A adoção de um vocabulário ortográfico entre as ortografias. A publicação de obras
comum afetará diretamente todos os países que adotaram a NGB, tais como gramáticas e
cuja língua oficial é o Português. Há, nos dias dicionários, fixaram a utilização de uma norma
de hoje, duas ortografias oficiais da língua ortográfica própria da língua vernácula.
portuguesa: a adotada no Brasil e aquela É importante ressaltar que a manutenção
utilizada em Portugal e nos demais integrantes da divergência, no que concerne à língua
da Comunidade de Países de Língua Portuguesa escrita, não interessava nem à Academia de
(CPLP). A unificação gráfica evitará que as Ciências de Lisboa nem à Academia Brasileira
grafias brasileira e portuguesa se distanciem de Letras, o que levou à elaboração de novo
ainda mais, evitando o desenvolvimento de dois acordo. Após vários entendimentos, foram
dialetos estanques. Esse processo é essencial redigidas as chamadas Bases Analíticas da
para superar os obstáculos que envolvem as Ortografia Simplificada de 1945, renegociadas
relações políticas, econômicas, comerciais e em 1975 e consolidadas em 1986.
culturais entre esses países. Finalmente, em 1990, surgiu uma nova
Na história da língua, a grafia nem sempre versão do documento, o Acordo de Ortografia
foi objeto de controle. Durante o período Simplificada entre Brasil e Portugal para a
do Português arcaico, por exemplo, cada Lusofonia, que passou a ser reconhecido
um escrevia como lhe aprouvesse, e foi como Acordo Ortográfico de 1995, por ter
só no século XVI que se passou a buscar sido aprovado oficialmente em 1995 pelo
uma grafia comum, movimento que levou, Governo dos dois principais países envolvidos.
posteriormente, à regulamentação legislativa Os principais pontos foram, por um lado, o
do tema. O histórico de acordos ortográficos fato de usar-se, pela primeira vez, a expressão
no Brasil e em Portugal demonstra que tal “ortografia simplificada”, e, por outro lado, a
prática é corriqueira e obedece ao próprio tentativa de se estabelecer um acordo válido
dinamismo da linguagem, devendo os países para todo o mundo lusófono.

_57
_especial

2. Praça da língua:
nuances ortográficas
Uma língua é identificada por suas
características fonéticas, sintáticas,
morfológicas e lexicais. O código gráfico é
ente no reino
tão-somente uma convenção, que pode ser Penetra surdam
adotada sem que haja qualquer ameaça à
identidade linguística de um determinado
país. De acordo com Garcia1, um sistema
das palavras.
-
emas que espe
ortográfico pode ser elaborado de três Lá estão os po
maneiras:
s.
a) sob uma perspectiva fonética,
atribuindo-se um símbolo para cada
ram ser escrito
os, mas não há
som; Estão paralisad
b) sob uma perspectiva etimológica,
em que se procurará seguir fielmente
a grafia de um determinado período
desespero,
ura na superfí-
da história da língua (no caso da língua há calma e fresc
portuguesa, o latim);
c) sob uma perspectiva mista, em
que se procurará combinar as virtudes
cie intata.
dos, em estado
da ortografia fonética, com seu caráter Ei-los sós e mu
de exatidão, e da ortografia etimológica,
com seu caráter de permanência.
A língua é um construir diário, um
de dicionário.
la
rto e contemp
organismo vivo e, por isso mesmo, está sujeita Chega mais pe
à evolução. Quanto mais perspectivas tiver
a língua em sua formação, mais perspectivas as palavras.
terá em sua expressão. Isso significa maior
poder de persuasão, e se de palavras faz-se a Cada uma
diplomacia, tanto maior será a influência do
cretas sob a
idioma quanto mais seus falantes dominarem o tem mil faces se
reino das palavras, como pediu Drummond:
face neutra
sem interesse
e te pergunta,
pela resposta,
s:
b re o u te rr ível que lhe dere
po
ave?
Trouxeste a ch

1 www.filologia.org.br/revista/artigo/3(9)5-14.html

_58
José Saramago lembrou que as línguas se Mariano Fernández, no Instituto Rio Branco:
cercam umas às outras, e a língua que não os dez alunos formados no último ano da
se defende morre. Defender-se, no caso, é academia diplomática chilena Andres Bello
preparar o fundamento gráfico para que o optaram pelo português como segunda língua
discurso científico, a expressão cultural e a estrangeira. Isso demonstra que o Português
manifestação artística mantenham-se firmes pode exercer função importante na relação
para ancorar as relações econômicas e do Brasil com o entorno sul-americano, e que
políticas no mundo lusófono. ainda há espaço a ser aproveitado.
O Português é uma língua com grande Sérgio Vieira de Mello afirmava, quando
base de falantes. Tal base estende-se por questionado sobre a insistência com que
várias culturas e continentes, exigindo um importunava seus colegas a conhecerem
código comum para manter os canais de o idioma de cada país, que “primeiro você
comunicação diante da contínua simbiose precisa aprender a língua. A língua é a chave
entre língua falada e língua escrita. É para a cultura de um povo, e a cultura é a
instrumento de comunicação fundamental no chave para o coração de um povo. Se você
contexto atual, em que as informações são forçá-lo a falar a sua língua, nunca conquistará
fundamentais para a distribuição de poder sua simpatia”. O homem se constitui
no mundo. sujeito pela linguagem. É por meio dela
Para seus falantes, a manutenção da que ele ingressa na organização social para
identidade cultural passa pela defesa e reforço compartilhar uma cultura comum.
da língua portuguesa, para que siga utilizando Assim, o Português deve ser fortalecido
referenciais linguísticos próprios na evolução pois possui base de falantes proporcional ao
do conhecimento. Na era da informação, é Espanhol e ao Francês, mas sua influência é
essencial que o idioma busque espaço para desproporcional no sistema internacional.
manter-se como primeira língua ou, mesmo, Em tempos de multilateralismo cultural, cada
segunda, em regiões de maior projeção dos idioma deverá manter sua projeção se quiser
países da CPLP, como a América do Sul e o evitar futura extinção ou irrelevância. Afinal,
Sul da África. em tempos de importância do soft power, não
É emblemático o fato contado pelo se deve esquecer a beleza e plasticidade da
Embaixador do Brasil no Chile, Mário língua portuguesa, nossa forma de expressar
Vilalva, em palestra do Chanceler chileno sonhos e projetos para o novo século.

_59
_especial

3. Soft power ou poder


brando: nuances linguísticas
A língua está diretamente envolvida com o
papel do Estado no plano internacional, tanto
em sua criação como em seus usos sociais e
sua manutenção. O linguista Saussure afirmava
que não era o espaço que definia a língua,
mas a língua que definia seu espaço. O idioma
sempre foi considerado um dos principais
atributos na definição do Estado-nação, como
assinalado por Juliana Dias:

elo de
as en fre nt ad os no cu rso de adoção do mod
Dentre os problem lin gu íst ica. A homogeneidade lin
guística
st aq ue a qu es tã o
Estado-nação ganha de na cio na is, um a característica natural
as id eo lo gia s
não é, como fazem crer or iai s. A un id ade sob uma só língua
a tempo s im em
das nações que remete pr oc esso. E assim como as pr
óprias
de um co m pl ex o
é construída através m pa ss ar por esse processo de cr
iação
en ta l pr ec isa ra
nações da Europa Ocid gu íst ica , ta m bém os países que impo
rtam
ogen ei da de lin
e naturalização da hom di le m as lin gu íst ico s internos. Que língua
resolver se us
esse modelo precisam o? Como criar, por meio da
língua, a
e na ad m in ist ra çã
utilizar na educação íve l? (M an a, vol.8 no .1, Rio de Jan
eiro,
ún ico e in di vis
imagem de um Estado cional)
nscrevendo a questão na
2002. Língua e poder: tra

2 A economia das trocas linguísticas. 1982. EDUSP. São Paulo

_60
Econômica ou comercialmente,
possibilitará a criação de um mercado
editorial que proporcionará ganhos
de escala em muito superiores ao que
existe no comércio atual. Social ou
ideologicamente, trará aumento da auto-
Segundo Bourdieu2, é no processo de estima nacional ao manter, ou recuperar, a
constituição do Estado que se criam as força do idioma, que funciona como eficaz
condições da constituição de um mercado instrumento de projeção de poder cultural
linguístico unificado e dominado pela língua no mundo, como bem o demonstram o
oficial. Para que esse modo de expressão se Inglês e o Francês.
imponha como legítimo perante os demais, Cada pessoa, cada região, cada
é preciso que o mercado linguístico seja país possui sua identidade cultural.
unificado e que os diferentes dialetos estejam Não é possível, nem desejável, criar
subordinados à língua oficial. uniformidades estéreis, pois é por meio
No processo que conduz à elaboração, da linguagem que o ser humano realiza
legitimação e imposição de uma língua oficial, plenamente seus ideais e desenvolve suas
o sistema escolar tem papel determinante no aptidões. Aplicando-se tal raciocínio às
ensino do código que rege a língua escrita, macroestruturas, tem-se que os países
identificada à língua correta, por oposição somente podem manter sua identidade
à língua falada. É preciso ressaltar que “essa e levar adiante seus projetos de
língua legítima não tem o poder de garantir desenvolvimento se puderem comunicar-
sua própria perpetuação no tempo nem se com facilidade. É nesse espaço de
o de definir sua extensão no espaço. Os racionalidade que se coloca o Novo Acordo.
escritores, gramáticos e pedagogos exercem
um poder simbólico sobre a cultura,
impondo uma língua distinta e distintiva”
(Bordieu, op. cit., pg. 45).
É com base nesse contexto teórico-
político que deve ser interpretado o Novo
Acordo Ortográfico, que tem diversos
objetivos. Politicamente, servirá para dar
suporte linguístico à projeção dos países
4. Beco das palavras
lusófonos no mundo, especialmente no novo
crescente processo de cooperação Sul-Sul, O Novo Acordo passará por uma fase
facilitando afinar posições em questões de transição até 2012, e traz alterações
simples, mas instrumentais, como a redação principalmente quanto à acentuação e hifenização.
de acordos internacionais ou documentos Serão eliminadas sete regras de acentuação,
das Nações Unidas. Afinal, o Português é a dando-se prioridade às regras de amplo alcance,
terceira língua ocidental mais falada e, ao cuja generalidade facilitará seu uso e ensino. O
contrário do Inglês e do Espanhol, ainda mesmo objetivo de generalidade norteou as
apresenta grandes diferenças em sua grafia. mudanças quanto à hifenização.
Sem considerar as alterações quanto ao
hífen e ao trema, estima-se que apenas 2%
do vocabulário será alterado pelo Novo
Acordo, equivalendo a 2.000 palavras num
total de aproximadamente 110.000, que são

_61
_especial

diariamente relidas e renovadas por mais de na Língua Portuguesa alguns fatores


200 milhões de falantes do Português em de mudança, coloração, que tornam
todo o mundo. o Português hoje realmente uma
Uma das dificuldades de implementação língua que aceita muito, que é capaz
do Acordo anterior foi a dependência de de introduzir tonalidades, variações,
legislação posterior, a ser editada por cada que enriquecem muito a Língua
Estado signatário, que causou atrasos e Portuguesa, não só do ponto de vista
progressivo desinteresse em sua aplicação. linguístico, mas o quanto ela pode
Essa lição deve servir ao Novo Acordo traduzir culturas. O que foi notável foi
Ortográfico, sendo fundamental esclarecer depois, num processo histórico, que
seus objetivos, a fim de que haja permanente está para além da língua, como é que
conscientização da importância de sua estas culturas se mestiçaram e, a certa
implementação. altura, o Português perdeu o dono,
A unificação gráfica facilitará o ensino quer dizer, ficou sem dono. Felizmente.
de português para estrangeiros, a difusão (Depoimento no documentário
cultural, a divulgação de informações, “Língua: vidas em português”, de Victor
as relações privadas e interestatais, e as Lopes, 2001).
relações comerciais. A língua transforma-
se diuturnamente, exigindo rapidez nos As línguas dividem a humanidade em
movimentos constantes de uniformização a grupos. É por meio de uma língua comum que
serem feitos pelos signatários do novo acordo. um grupo de pessoas age em concertação,
É preciso lembrar que a comunidade possuindo, portanto, uma história e uma
linguística é uma unidade natural da história estratégia geopolítica comum. Falar uma
humana. Segundo Ostler, há, hoje, no língua é compartilhar percepções, anseios e
mundo, entre seis e sete mil comunidades inspirações. Quando uma língua toma o lugar
identificadas pela língua que falam. Nem todas da outra, a visão de mundo de uma pessoa ou
têm o mesmo peso. Mais da metade das um povo mudam radicalmente.
línguas, por exemplo, é utilizada por menos Migrações, crescimento populacional
de 5 mil falantes. Outras têm mais projeção, e mudanças nas técnicas de educação e
como o Chinês Mandarim, que é falado por, comunicação podem alterar o equilíbrio
aproximadamente, 900 milhões de pessoas. das identidades linguísticas ao redor do
Mia Couto, nesse contexto, trata do lugar mundo. A existência de uma miríade de
da língua portuguesa no mundo: idiomas, contudo, protege e alimenta culturas
diferentes, oferecendo caminhos diversos para
Eu acho que a língua portuguesa é o conhecimento humano. Os países lusófonos,
hoje, talvez, uma das línguas europeias por meio do Novo Acordo Ortográfico,
com maior vivacidade, com maior continuarão a defender sua cultura como
dinamismo. Não por causa de nenhuma forma de manterem-se ativos – e altivos
essência especial do português, mas – no sistema internacional. Parafraseando
por causa de uma razão histórica Wittgenstein, as fronteiras da nossa língua
que aconteceu no Brasil, em que serão as fronteiras do nosso universo.
Portugal deu origem a um filho maior
que o próprio pai. A língua passou a Marcela Magalhães Braga (turma 2008-
ser gerida por outros mecanismos 2010 do IRBr) é bacharel em Letras, português-
de cultura. Depois aconteceram os inglês, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
países africanos que introduziram mestre em Linguística pela mesma instituição.

_62
DIÁSPORA
PORTUGUESA:
ODISSeIA DE
UMA NAÇÃO
DESTERRITORIALIZADA
Rafael Soares

_63
_especial

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Fernando Pessoa

D enomina-se diáspora o fenômeno


de dispersão de um povo, anteriormente
concentrado em um território, para
pelo mundo desde o século XV até os dias
atuais, com destaque para a evolução das
políticas do Estado português vis-à-vis suas
diferentes destinos, por motivos diversos. comunidades expatriadas, bem como para
Historicamente, vários povos submetidos a o condicionamento daquelas à transição do
perseguições abandonaram suas terras em antigo país colonial e pluricontinental para o
movimentos de diáspora. Judeus vagaram pelo novo Portugal europeu e moderno.
Oriente Médio devido a um castigo divino,
armênios abandonaram seu país sob a ameaça HISPÂNIA, LUSITÂNIA, GALÉCIA,
genocida otomana e milhões de negros GHARB AL-ANDALUS, PORTUCALE,
deixaram a África para ser escravizados em PORTUGAL
outros continentes. O mundo moderno A história de Portugal ancestral,
conheceu, entretanto, inéditos movimentos região conhecida como Lusitânia à época
migratórios em massa, animados fortemente dos romanos, inscreve-se na realidade
por razões econômicas e sociais, e facilitados compartilhada da Península Ibérica, até 1143,
pelos avançados meios de comunicação e de quando o Condado Portucalense adquire
transporte. Destaca-se a diáspora portuguesa, sua independência.
um dos maiores e mais antigos movimentos A despeito de o imaginário popular
de repulsão de nacionais de um país, em alicerçar o espírito da nação em torno
termos proporcionais. do povo Lusitano, este foi apenas um dos
Portugal é tradicionalmente reconhecida componentes formadores da população
como uma terra de emigração. Prova disto é a portuguesa moderna. Na verdade, esta é
presença de comunidades lusitanas em todos resultado da mescla entre galaicos, lusitanos,
os continentes. O processo de assentamento celtas e cinetes, que, mais tarde, receberiam
de portugueses no além-mar e no próprio influxos de povos viajantes e afeitos ao
Continente Europeu tem-se dado desde comércio, como fenícios e cartagineses. O
os tempos do Império e perdura até as melting pot português completar-se-ia com
décadas mais recentes, devendo-se a razões as contribuições demográficas advindas do
socioculturais, demográficas e, principalmente, domínio romano, seguido pelas invasões
econômicas. O espírito desbravador germânicas, e, posteriormente, pela ocupação
português e a exiguidade territorial de árabe-berbere da península. A esse mosaico
Portugal continental fomentaram a difusão da de povos somam-se ainda as levas de escravos
lusitanidade por todo o mundo e constituíram africanos importados para a região até
pilar essencial da consolidação do atual meados do século XVII.
universo lusófono. A composição diversificada de sua
O presente artigo pretende apresentar população não impediu a nação portuguesa
um panorama da diáspora de portugueses de se consolidar prematuramente no

_64
território que conformaria um dos econômica, concentração fundiária
primeiros países do mundo. A posição e expulsão de campesinos em toda
geográfica peculiar – projetando-se para a Europa. A perda do Brasil e o
o oceano –, associada à exiguidade profundo endividamento de Portugal
territorial e ao caráter migratório somaram-se àqueles fatores para
inerente à sua população, animou desencadear a saída de centenas
o folclórico espírito desgarrado e de milhares de portugueses, que
aventureiro dos portugueses, levando- foram atraídos pela economia
os a abandonar os limites ibéricos para industrializada norte-americana,
transpor oceanos e Pirineus. pelas promessas de terras no Brasil
e por facilidades oferecidas para
“DA MINHA LÍNGUA quem se estabelecesse nas posses
VÊ-SE O MAR” ultramarinas do Reino.
Inicialmente organizado em Segundo a Secretaria de Estado
função da empresa colonial do das Comunidades Portuguesas2,
Reino, o fluxo emigratório de durante todo o século XIX e
portugueses articulou-se com vistas na primeira metade do século
à exploração econômica das ilhas atlânticas XX, um milhão e meio de portugueses
e, posteriormente, dos continentes africano, abandonaram o país, quase sempre por
asiático e americano. Enquanto estes motivos econômicos. Compreende-
territórios não se tornaram independentes da se melhor o vulto alcançado por esta
metrópole, não se pôde falar em emigração diáspora quando se vislumbra o contingente
ou imigração de portugueses, mas em demográfico português total à época.
colonização. Segundo Joel Serrão3, Portugal contabilizava
A primeira grande leva de portugueses 5.446.760 habitantes em 1900, incluídos
cruzou o Atlântico no século XVIII, por Continente e domínios de ultramar. Para o
ocasião da descoberta de ouro e diamante autor, o fenômeno emigratório português
no interior da América do Sul. Segundo condicionou-se à realidade de país atrasado,
Boris Fausto1 ao longo das seis primeiras direta ou indiretamente dependente dos
décadas daquele século, aproximadamente polos de desenvolvimento socioeconômico,
seiscentos mil portugueses, provenientes do tecnológico e cultural.
Continente e das ilhas atlânticas, aportaram
nas Colônias Americanas, movimento que PORTUGAL MALTHUSIANO
seria secundado pelo estabelecimento de Para alguns estudiosos, a emigração em
colonos também nos domínios africanos e massa dos portugueses obedece a uma lógica
asiáticos da Coroa. malthusiana, segundo a qual o crescimento
As vagas emigratórias lusitanas ganharam exponencial da população seria a causa dos
impulso a partir do século XIX, quando males da sociedade. O controle populacional
se assistiu a processos de modernização por meio da emigração de nacionais haveria
1 FAUSTO, Boris. História
do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2006.
2 PRESIDÊNCIA DA UNIÃO EUROPEIA. “Comunidades Portuguesas”. Disponível em <http://www.eu2007.pt/UE/vPT/Bem_
Vindo_Portugal/Mundo/Comunidades+Portuguesas.htm>. Acesso em 9 mai 2009.
3 SERRÃO, Joel (1985). “Notas sobre emigração e mudança social no Portugal contemporâneo” in Análise social, vol. XXI (87-

88-89), 995-1004.

_65
_especial

E, se mais mundo
houvera, lá chegara.

Camões

sido o modo encontrado pela sociedade


portuguesa de manter a estrutura social
prevalecente. A mesma tática serviu como
estratégia de arrecadação de divisas, advindas
das remessas dos emigrados.
As dimensões desse movimento
migratório já eram compreendidas à época
de sua ocorrência. Nas palavras do estudioso
Basílio Teles,

(...) esta sangria operada nas mais


activas e robustas das populações
portuguesas, não obstante representar
um prejuízo nacional incalculável,
tem sido, contudo o único e estúpido
processo de proporcionar aos se ausentassem do país. Muitos portugueses
trabalhadores que não emigram uma aproveitavam as janelas de migrações sazonais
situação tolerável.4 para a Espanha e solicitavam às autoridades
consulares brasileiras no país passaportes
EMIGRAÇÃO CONTROLADA E brasileiros, os quais não lhes outorgavam a
CLANDESTINA nacionalidade, mas serviam de documento
No início do século XX, o fenômeno válido para a viagem ao Rio de Janeiro.
emigratório alcançou níveis alarmantes,
principalmente no tocante às saídas EUROPA À VISTA
clandestinas do país. Para Miriam Halpern A crise de 1929, aliada à saturação da
Pereira5, o rigor com que se aplicou a economia brasileira e aos reveses do pós-
legislação emigratória portuguesa variou Segunda Guerra Mundial, redirecionou os fluxos
consideravelmente ao longo do tempo. As migratórios lusitanos para além dos Pirineus,
políticas migratórias, entretanto, assumiram rumo à então Comunidade Econômica Europeia
um viés dissuasivo junto aos emigrantes em (CEE), especificamente para a França.
potencial na viragem do século. À medida que se esvaia o regime
De fato, a opção dos migrantes lusitanos salazarista, a economia portuguesa entrava
pela clandestinidade, principalmente aqueles em bancarrota devido aos enormes custos
que seguiam para o Brasil, os Estados Unidos das guerras coloniais e da manutenção de um
e a Venezuela, deveu-se fundamentalmente combalido e retrógrado império ultramarino.
à série de óbices que se lhe impunham para A escalada emigratória prosseguiu a todo
deixar o país. Em Portugal inexistia política vapor e as décadas de 1960 e 1970 assistiram
de subvenção à emigração, dificuldade que se à debandada de mais um milhão e meio de
somava à exigência de emissão de passaporte patrícios, segundo Rogério Roque Amaro. O
especial para emigrantes e à cobrança de mesmo estudioso constata que, só no ano
fiança para os indivíduos em idade militar que de 1970, 180.000 portugueses partiram para
4 TELES, 1904 apud SERRÃO, 1985, p. 996.
5 PEREIRA, Miriam (1990). “Algumas observações complementares sobre a política de emigração portuguesa” in Análise social,
vol. XXV (108-109), 735-739.

_66
a Europa rica e desenvolvida. O número desenvolvido e bem inserido no espaço
exato nunca será conhecido, uma vez que europeu, realidade que o transformou num
a maioria dos viajantes deslocava-se de ímã migratório na última década. Hoje,
forma clandestina, cruzando a Espanha como mais de 5% da população do país compõe-
verdadeiros retirantes, para assentar-se se de imigrantes, com destaque para as
nas periferias pobres dos grandes centros comunidades lusófonas – especialmente a
urbanos franceses, em suas “bidonvilles”, ou, brasileira –, e para aquelas provenientes do
em bom português, bairros de lata. Leste Europeu.
Não obstante esta nova tendência, as
PORTUGAL DOS CRAVOS: correntes emigratórias portuguesas não
MODERNO E EUROPEU cessaram de todo. Transformaram-se, mas
A tendência à emigração em massa continuam a influenciar nas dinâmicas sociais
arrefeceu no final dos anos 1970, após os e econômicas do país. Para o estudioso João
desdobramentos da Revolução dos Cravos, Peixoto7, Portugal é, na atualidade, um país
de 1974. O período coincide com o colapso tanto de imigração como de emigração.
do império luso e com a chegada a Portugal As atuais correntes emigratórias que
de 500.000 a 700.000 egressos das recém- deixam Portugal continuam a fazê-lo
independentes províncias ultramarinas. por razões econômicas e compõem-se
Ao final dos anos 1970, não só havia fundamentalmente por jovens do sexo
estancado a saída de portugueses do país, masculino, majoritariamente solteiros. Os
como se passou a registrar o retorno novos migrantes, entretanto, executam
progressivo dos emigrados. Segundo Serrão trabalhos temporários, em diferentes
(1985), no quinquênio 1976-1980, meio milhão paragens europeias e por curtos períodos, de
de portugueses retornaram e, entre 1981 e modo a maximizar o retorno auferido com
1985, mais 700.000. Para o autor, até 1990, o trabalho no exterior. Segundo Peixoto, os
metade dos portugueses residentes em outros migrantes são previamente arregimentados
países europeus já haveriam retornado ao país. por empresas e dedicam-se basicamente
Ao final dos anos 1980, especulou-se à construção civil, agricultura e indústria
estar praticamente finda a hemorragia metalomecânica e naval.
de emigrantes portugueses para a CEE,
fato que se coaduna com a adesão de IGNOTOS PORTUGUESES
Portugal ao bloco e com o recebimento das Após cinco séculos de políticas colonialistas
preciosas subvenções do Fundo Europeu de e de parco desenvolvimento interno, Portugal
Desenvolvimento Regional. Os investimentos enviara milhões dos seus filhos para os mais
e subsídios da CEE, aliados ao crescimento diversos rincões do mundo.
econômico mundial vivenciado na última Recentemente, a imprensa portuguesa
década do século XX, transformariam, em divulgou que, não fosse a emigração, o
médio prazo, o antigo Portugal exportador de país atualmente teria uma população
braços em um país de imigração. aproximada de quarenta milhões de
Atualmente Portugal é um país habitantes, quatro vezes maior que o atual
6 AMARO, Rogério (1985). “Reestruturações demográficas, econômicas e socioculturais em curso na sociedade portuguesa: o
caso dos emigrantes regressados” in Análise social, vol. XXI (87-88-89), 605-677.
7 PEIXOTO, João. “País de emigração ou país de imigração? Mudança e continuidade no regime migratório em Portugal”.

Disponível em <http://www.museu-emigrantes.org/JO%C3%83O%20PEIXOTO.pdf>. Acesso em 18 abr 2009.

_67
_especial

contingente demográfico. Os restantes 30 enquanto oficialmente se contabilizam mais


milhões de lusitanos não desapareceram, cinco milhões de cidadãos no exterior, faz-se
são facilmente encontrados em rostos indispensável transcender o trinômio povo-
franceses, luxemburgueses, suíços, território-governo para que se alcance a real
angolanos, norte-americanos, venezuelanos, dimensão da nação portuguesa. Após a queda
canadenses, australianos, sul-africanos e, do salazarismo e a derrocada do império
fundamentalmente, em 80% de todas as colonial, o senso comum das lideranças
faces brasileiras. políticas nacionais passou a compreender a
Segundo cálculos do Instituto Brasileiro necessidade de os emigrantes serem incluídos
de Geografia e Estatística8, entre 1500 no projeto de nação portuguesa, que não se
e 1990, aproximadamente dois milhões concentraria na Península Ibérica e nas ilhas
e meio de portugueses aportaram e atlânticas, mas que se estenderia por todo o
estabeleceram-se no Brasil. Para estudioso globo.
da área, o coeficiente multiplicador de Segundo Eduardo Caetano da Silva9,
colonos e de imigrantes portugueses no para as novas forças políticas portuguesas
país é nove, o que resultaria em mais de pós-Revolução dos Cravos, o país teria de
vinte milhões de brasileiros descendentes perceber-se sob um novo enfoque, o de nação
diretos de portugueses ao longo dos desterritorializada. A ideia é repensar a nação
séculos, afora os demais luso-brasileiros portuguesa para que nela seja incluía a diáspora
que se seguiram à quarta ou quinta geração lusa mundo afora. A noção de território deve
a contar dos primeiros colonos-imigrantes ser relativizada, presumindo-se que onde
portugueses. Em quinhentos anos, Portugal houver um português aí estará Portugal.
aparentemente transferiu mais da metade A nova postura do governo lusitano junto
de sua gente para o Brasil, e mais um a seus emigrados deveu-se à percepção da
quarto desta para o resto do mundo. importância que seu enorme contingente
demográfico espalhado pelo mundo pode
ONDE HOUVER UM PORTUGUÊS representar para suas relações internacionais.
AÍ ESTÁ PORTUGAL Considerou-se também o dever de se reparar
minimamente o moral daqueles que se viram
(...) só poderemos sobreviver, só (...) compelidos a abandonar a pátria-mãe por
poderemos acreditar em Portugal, e no razões materiais, o que se fez ao incluí-los
seu futuro, se nos concebermos como no novo projeto nacional. Finalmente, a
nação que abrange os residentes e os valorização do português no estrangeiro
não residentes. Todos tratados em pé de incentivou a continuidade do envio de divisas
igualdade. para a combalida economia lusitana das
décadas de 1970 e 1980.
Francisco de Sá Carneiro, 1980
PORTUGAL NO SANGUE
Para um país cujas fronteiras englobam A evolução da legislação portuguesa
atualmente dez milhões de nacionais, concernente à nacionalidade é retrato fiel
8 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes. Disponível em
<http://www.ibge.gov.br/brasil500/index2.html>. Acesso em 10 mai 2009.
9 SILVA, Eduardo. Visões da diáspora portuguesa: dinâmicas identitárias e dilemas políticos entre portugueses e luso-descendentes de

São Paulo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2003. Dissertação de mestrado.

_68
das mudanças pelos quais passaram os para relançar o projeto de portugalidade
paradigmas regentes das relações entre intercontinental. O intento ganha corpo
Portugal e seus cidadãos no exterior, incluída com a consolidação das despretensiosas
aí a descendência destes. Transitou-se Comunidades dos Países de Língua
paulatinamente de uma legislação alicerçada Portuguesa (CPLP), com o estreitamento dos
no princípio de jus solis para o coroamento do vínculos – sobretudo econômicos –, com o
jus sanguinis. Brasil, bem como com as mediações políticas
A opção inicial pela atribuição da junto às ex-colônias em crise.
nacionalidade pelo critério territorial A afirmação de Portugal no mundo
justificava-se pela necessidade de incorporação seguramente passará pelo fortalecimento
das populações dos domínios ultramarinos de seus laços históricos, culturais e
à nação portuguesa, que se dizia multirracial econômicos com suas comunidades
e pluricontinental. Após a independência dos expatriadas. Os instrumentos necessários a
domínios de ultramar, tentou-se conter os uma política desta envergadura certamente
fluxos de retorno à metrópole, por meio incluirão a promoção da língua e dos
de restrições ao acesso à nacionalidade valores históricos, o reforço da participação
portuguesa. Consolidada a democracia, cívica e política dos portugueses da
Portugal reconheceu-se europeu e aderiu Diáspora nos rumos do Portugal moderno
à CEE, fazendo coro com as políticas e o aperfeiçoamento dos vínculos de cunho
comunitárias de fechamento de fronteiras e de político e administrativo entre a pátria-mãe
restrições à imigração. Estes fatores se somam e seus contingentes emigrados.
ao desejo de a nação estreitar laços com De fato, a presença de Portugal nos cinco
suas comunidades emigradas e deságuam na continentes e o legado deixado por esta
consolidação do atrelamento da nacionalidade odisseia são memoráveis e indeléveis. Há
portuguesa ao sangue e não ao solo. muito a diáspora portuguesa deixou de
ressentir o país pelos braços perdidos
CONSIDERAÇÕES FINAIS e passou a ser compreendida como
estratégia de inserção global do
Brade a Europa à terra inteira: Portugal ibérico e europeu no atual
Portugal não pereceu mundo multipolar em processo de
A Portuguesa reequilíbrio de vetores de força.
(hino nacional) Ao longo de quinhentos anos,
Portugal lamentou a diáspora
Após cinco séculos desbravando o de seus filhos mundo afora sem
mundo, Portugal constata, melancólico, saber que, em vez de render seus
seu retorno à exiguidade territorial melhores frutos ao estrangeiro,
de sua porção europeia. Os brios de plantava eternas sementes
grandiosidade lusitana certamente não de lusitanidade, que, mesmo
foram suplantados pela adesão do país ao recônditas, perpetuarão a nação
projeto europeu de união supranacional. portuguesa.
Assim, Portugal projeta seu conceito de
nação sobre seus nacionais espalhados Rafael Soares (turma 2008-2010
pelo mundo, como forma de alívio do IRBr) é bacharel em Direito pela
para seu sufocamento ibérico, e vai Universidade Federal do Rio Grande
além ao lançar mão da lusofonia do Norte.

_69
ARTIGOS E ENSAIOS

101 anos de nascimento


Quantos mais de
esquecimento?
Marcelo Almeida Cunha Costa
Pedro Vinícius do Valle Tayar

_70
e, nem em
“Não foi na Sorbonn
rsidade sábia
qualquer outra unive

E femérides são sempre


oportunidades para relembrarmos fatos
que travei conhecim
fenômeno da fome.
ento com o
A fome se
ente aos meus
revelou espontaneam
e personalidades. No entanto, a tarefa de

do Capibaribe,
resgatar a memória de grandes brasileiros
olhos nos mangues
não deve se restringir a ocasiões em que
eis do Recife
efemérides se fazem presentes. Josué de
Castro é um exemplo de vulto nacional que nos bairros miseráv
anto Amaro, Ilha
– Afogados, Pina, S
não recebe a atenção merecida, como se
percebe depois de passadas as comemorações
inha Sorbonne.”
do Leite. Essa foi m
de seu centenário de nascimento em 2008.
Devem ser recordados, também, os 101, 102,
103 anos, numa demonstração de que seu
pensamento permanece vivo e atual.
Josué de Castro foi um dos maiores “Minha pobreza tal é que coisa alguma
pensadores brasileiros do século XX. Nascido posso ofertar: somente o leite que tenho
no Recife, em 5 de setembro de 1908, foi para meu filho amamentar, aqui todos são
médico, geógrafo, cientista social, parlamentar, irmãos, de leite, de lama, de ar. Minha pobreza
Embaixador do Brasil junto às Nações Unidas, tal é que não trago presente grande: trago
em Genebra, e presidente do Conselho para a mãe, caranguejos pescados por esses
Executivo da Organização para Alimentação e mangues, mamando leite de lama conservará
Agricultura (FAO). nosso sangue”.
Seu principal objeto de estudo foi A infância traz-lhe, como reminiscência,
o problema da fome, tanto em escala a, muitas vezes invisível, geografia da
nacional, quanto mundial. Segundo o autor, desigualdade: a aproximação física dos
a problemática tratava-se de tema proibido, homens não necessariamente se reflete em
delicado e perigoso, de forma a constituir “um igualdade de condições.
dos tabus da nossa civilização”. “Não foi na Sorbonne, nem em qualquer
Durante a sua infância, no Recife, Josué outra universidade sábia que travei
travou contato com a pobreza: brincava nos conhecimento com o fenômeno da fome. A
mangues da cidade, onde sujava os pés na fome se revelou espontaneamente aos meus
mesma lama que servia de fonte alimentar olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros
a numerosa população de miseráveis. Os miseráveis do Recife – Afogados, Pina, Santo
versos de seu conterrâneo, João Cabral Amaro, Ilha do Leite. Essa foi minha Sorbonne.”
de Mello Neto, em Morte e Vida Severina, Ao mesmo tempo em que vivencia os
ilustram, com realismo, o cenário que díspares meios sociais, Josué procede à
sensibilizou o jovem Josué: densa e precoce formação humanística que

_71
_artigos e ensaios

r o problema
“Resolvemos encara
ctiva, de um plano
sob uma nova perspe
se possa obter
mais distante, donde
a de conjunto,
uma visão panorâmic
pequenos detalhes
visão em que alguns
ão, mas na qual se
certamente se apagar
ra compreensiva as
antecipava o engajamento político e sua
destacarão de manei
ci as e as conexões
luta por justiça social. Ainda jovem, optou
pelo curso médico, realizado na tradicional lig aç õe s, as in fl u ên
res que interferem
dos múltiplos fato
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de

do fenômeno. Para
onde retornaria aos vinte e um anos, para
nas manifestações
exercer a profissão em sua cidade natal.

lançar mão do
Iniciava, então, sua contribuição para que os
homens dos mangues recifenses se tornassem
tal fim, pretendemos
no estudo do
menos caranguejos e mais homens.
Em paralelo à sua formação científica e método geográfico,
fenômeno da fome”.
universitária, Josué de Castro valorizava o
papel das artes e dos artistas como elemento
de transformação da sociedade. Em especial,
sempre nutriu grande admiração pelos
romancistas nordestinos, que expunham sociológicos. Seu pensamento enquadrou
as mazelas sociais da região e abordavam tanto o problema quanto a solução nos
frontalmente o tema da fome. meios sociais. O autor chegou a chamar a
O paraibano José Américo de Almeida foi fome de flagelado fabricado pelos homens
pioneiro neste gênero com A Bagaceira: contra outros homens.
“Fariscavam o cheiro enjoativo do melado O cientista desenvolveu, ademais, tipologia
que lhes exacerbava os estômagos jejunos. da fome. A fome epidêmica (ou quantitativa)
E, em vez de comerem, eram comidos pela seria a ocasião em que há privação aguda
própria fome numa autofagia erosiva”. de calorias, provocando o definhamento
O Quinze, obra-prima da cearense acelerado do indivíduo. Há, também, a fome
Rachel de Queiroz, demonstra a endêmica (ou qualitativa), ocasião em que
preocupação dos autores em retratar as ocorre suprimento de calorias, porém não
amarguras do homem comum: há ingestão adequada de micronutrientes
“Lá se tinha ficado o Josias, na (vitaminas, gorduras, proteínas) essenciais ao
sua cova à beira da estrada, com uma cruz pleno desenvolvimento do ser humano.
de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou A publicação de Geografia da Fome,
em paz. Não tinha mais que chorar de fome, em 1946, projetou-o à esfera mundial.
estrada afora. Não tinha mais alguns anos de Desse ponto em diante, foi crescente o
miséria à frente da vida, para cair depois no reconhecimento internacional, do que são
mesmo buraco, à sombra da mesma cruz”. exemplos as indicações ao Nobel de Medicina,
Na qualidade de acadêmico, Josué de em 1954 e ao da Paz, em 1963 e 1970,
Castro provocou rupturas. O médico justamente por oferecer uma leitura inédita
colocou em evidência a fome como desta temática e desmascarar o recurso do
realidade, como instinto primitivo de eufemismo, recorrente, quando se tratava
todos os seres. Em seguida, demonstrou de escrever sobre a fome. Nota-se esse
claramente seu contexto social. Josué procedimento no prefácio à primeira edição:
conceitua o fenômeno da seguinte maneira: “Resolvemos encarar o problema
fome é a expressão biológica dos males sob uma nova perspectiva, de um plano

_72
mais distante, donde se possa obter a necessidade de a fome ser incorporada
uma visão panorâmica de conjunto, na qualidade de política de Estado; visto o
visão em que alguns pequenos detalhes surgimento de uma classe ascendente de
certamente se apagarão, mas na qual se trabalhadores que sofriam de fome tanto
destacarão de maneira compreensiva em forma epidêmica, quanto endêmica.
as ligações, as influências e as conexões Demandava, igualmente, maior justiça no
dos múltiplos fatores que interferem acesso à terra, adotando a reforma agrária
nas manifestações do fenômeno. Para como uma de suas bandeiras.
tal fim, pretendemos lançar mão do A biografia de Josué de Castro é
método geográfico, no estudo do permeada de militância e atuação política.
fenômeno da fome”. Marcou sua atuação parlamentar, em um
Tratava-se de uma resposta científica dos períodos de maior turbulência de nossa
ao determinismo biológico, muito popular historiografia política, pela defesa de ideais
no Brasil do final do século XIX ao início democráticos e populares. Elegeu-se duas
do século XX. Sua fundamentação teórica vezes Deputado Federal pelo Estado de
provinha de autores internacionais, como Pernambuco (1955 e 1959), ao concorrer na
Arthur de Gobineau (Essai sur l’inégalité mesma chapa de Francisco Julião, então líder
des races humaines) e de autores nacionais, das Ligas Camponesas.
como Sílvio Romero (Etnografia brasileira). Progressivamente, Josué passou a atuar no
Essa teoria sustentava que a mestiçagem e plano internacional. Em suas palavras.
o clima, fatores naturais, eram a causa do “E quando cresci e saí pelo mundo
malogro social brasileiro. No Brasil, tratava-se afora, vendo outras paisagens, me
de explicação natural e racial para o círculo apercebi com nova surpresa que o que
vicioso da pobreza, como demonstra o estigma eu pensava ser um fenômeno local,
do Jeca Tatu: um camponês fadado ao fracasso, um drama do meu bairro, era drama
acometido por vermes intestinais; faminto, universal. Aquela lama humana do Recife,
mas culpado, em face de suas pretensas que eu conheci na infância, continua
preguiça e vagabundagem. Por isso Josué de sujando até hoje toda a paisagem do
Castro foi inovador: rompia-se ali com a falsa nosso planeta como negros borrões de
explicação naturalista predominante à época, miséria: as negras manchas demográficas
ao considerar a fome como resultado de da geografia da fome.”
forças sociais e não de intempéries naturais, Em 1951, o autor lançou Geopolítica
necessitando, portanto de ações políticas que da Fome, ao mesmo tempo em que
promovessem mais equidade na produção, desempenhou altos cargos na Organização
distribuição e consumo de alimentos. para Alimentação e Agricultura.
Josué de Castro ousou levantar temas Josué considerava que sua atuação na
sensíveis e fundamentais da política brasileira, política internacional não deveria estar acima
que até então permaneciam intocáveis. Ele das preocupações locais: era apenas um
denunciou que, muitas vezes, a elite, na chefia instrumento para obtenção das mudanças
do Estado, não atua de modo a atender ao socioeconômicas desejadas. Assim, em setembro
interesse público. Durante a Presidência de 1955, com o patrocínio da FAO, realizou-
Constitucional de Vargas, Josué apontou se o Primeiro Congresso de Camponeses de

_73
_artigos e ensaios

saí pelo mundo


“E quando cresci e
paisagens, me
afora, vendo outras
rpresa que o que
apercebi com nova su
pe ns av a se r u m fenômeno local,
eu
irro, era drama
um drama do meu ba
ma humana do
universal. Aquela la
eci na infância,
Pernambuco – durante o período em
Recife, que eu conh
é hoje toda a
que se acirravam os ânimos internos no
tocante à reforma agrária. continua sujando at
No que concerne o sistema
ag em do no ss o pl aneta como negros
pais
as negras manchas
internacional, Josué advertia os riscos de
borrões de miséria:
uma política de alinhamento irrestrito

rafia da fome.”
aos Estados Unidos, sugeria a progressiva
reaproximação diplomática com a
União Soviética, condenou interferências
demográficas da geog
externas em Cuba. Do mesmo modo,
antecipava gerações ao propor que das Relações Exteriores – por meio da
desenvolvimento econômico e preservação Coordenação-Geral de Ações Internacionais de
ambiental não eram excludentes e que havia Combate à Fome – seguem, em grande parte,
necessidade de uma política de desarmamento a estrutura do pensamento de Castro. No
global, em especial de armas nucleares. plano mundial, os pactos, acordos e ações que
Após a emergência do regime de exceção, visam combater a fome e erradicar a pobreza,
em 1964, Josué de Castro foi destituído do cujo exemplo principal são os Objetivos de
cargo de Embaixador junto às Nações Unidas, Desenvolvimento do Milênio, foram sucessivas
em Genebra. A partir de então, impedido de vezes sonhados por Josué de Castro.
retornar ao Brasil, radicou-se definitivamente Por fim, deve-se recordar que Josué não
em Paris. Nos últimos anos de sua vida, Josué deve ser objeto de definições simplificadoras,
de Castro sentia o peso do afastamento de pois defini-lo seria limitá-lo. Ele pautou
suas origens, do Brasil e de sua querida cidade sua existência na transposição dos limites
do Recife, em suas palavras “o fundo essencial - na crença de que a fome e a miséria são
do quadro de minha infância e juventude”. desnecessárias e de que todos os homens
Josué de Castro foi pioneiro no combate à nasceram para a felicidade e o pleno
fome, tanto em escala nacional, quanto global.A desenvolvimento de suas capacidades. Para as
grandeza de Josué, todavia, não se revela somente futuras gerações, fica a mensagem do saudoso
naquilo que ele realizou, mas também no que Chico Science:
ele apontou que há por se fazer. No mundo, a “Tem que saber pra onde corre o rio,
fome aumentou nos últimos dez anos.A crise tem que saber seguir o leito, tem que
dos alimentos, no ano de 2008 e a corrente crise estar informado, tem que saber quem é
financeira global elevaram para 900 milhões o Josué de Castro... rapaz!”.
número de pessoas em insegurança alimentar,
segundo os dados mais recentes da Organização Marcelo Almeida Cunha Costa (turma
para Alimentação e Agricultura. 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Medicina pela
A discussão sobre o problema da fome Universidade Federal da Paraíba.
não foi carente de resultados. Em tempos Pedro Vinícius do Valle Tayar (turma
recentes, veem-se as ideias de Josué de Castro 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências
crescentemente em prática. No Brasil, a Farmacêuticas pela Universidade de Brasília e
Política Nacional de Segurança Alimentar, o especialista em Saúde Pública pela Universidade
Programa Fome Zero, e a atuação do Ministério Castelo Branco (Rio de Janeiro).

_74
ORDEM
INTERNACIONAL
E POTÊNCIAS
MÉDIAS:
UMA IMPORTANTE LACUNA
DA TEORIA DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Paulo Thiago Pires Soares

U ma das maiores lacunas apresentadas pelas duas tradições de


pensamento das relações internacionais, a realista e a idealista, bem como
das mais recentes teorias explicativas da realidade internacional, consiste na
omissão do papel das potências médias. A disciplina Relações Internacionais
foi estruturada em torno das preocupações de seus criadores, as nações
anglo-saxãs. Em decorrência, assumiu um caráter elitista, restrita tão
somente ao papel das grandes potências no sistema internacional.

_75
_artigos e ensaios

A hierarquia entre os Estados foi teoricamente seja, extensão territorial, população, recursos
delineada, então, de maneira simplista e naturais, capacidade industrial, capacidade
dicotômica: as grandes potências e o restante. militar etc. A segunda categoria abarca os
Essa perspectiva refletia relativamente elementos de poder intangíveis, tais como a
bem a realidade internacional do período cultura, os valores, a ideologia, a tecnologia etc.
entre guerras, quando surge a disciplina. Os Estados possuem esses recursos
Nesse momento da história, grosso modo, nos mais variados tipos de combinação. Os
o sistema internacional era composto por Estados Unidos, por exemplo, representam
colônias e metrópoles. Evidentemente, cada a única experiência de domínio da
uma dessas categorias era perpassada por maior parte desses recursos; por isso,
inúmeras diferenciações, o que não impedia apresentam-se como a maior potência
a compreensão das relações internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
em termos de potências e não-potências. Representa, portanto, o que podemos
Entretanto, as quase oito décadas que definir como grande potência. No polo
separam o marco de criação dos primeiros oposto, encontramos o Estado de Serra
cursos de Relações Internacionais da atual Leoa, a nação mais pobre do planeta. Entre
conjuntura foram palco de profundas esses dois extremos, encontramos mais
transformações e reviravoltas nas de duas centenas de países com diferentes
relações internacionais. Os processos de arranjos de recursos de poder. Todavia,
descolonização e de industrialização de não seria demasiado simplificado afirmar
uma parcela dos países pobres inserem- que todas essas nações se dividem em três
se nessas amplas transformações como o níveis hierárquicos: aquelas que estão mais
ponto de inflexão que alavanca a emergência próximas da realidade dos Estados Unidos
de Estados não tão poderosos quanto as (Alemanha, França, Inglaterra, Japão etc.); as
tradicionais potências e nem tão fracos que se aproximam do patamar de Serra Leoa
quanto as antigas colônias. (Haiti, Somália, Sudão, Etiópia etc.); e as que se
A multiplicação do número de Estados encontram em um nível intermediário (Brasil,
ao longo da segunda metade do século XX China, Índia, África do Sul, Rússia etc.).
contribuiu para tornar muito mais complexa Embora essa tipologia seja de difícil
a hierarquia das relações internacionais. As refutação, a teoria das relações internacionais
potências da primeira metade do século, não produzida pelas grandes potências ainda não
obstante algumas alterações, preservaram se adaptou a essa nova realidade. Isso está
seus status. A inovação resultou do processo explícito, por exemplo, na obra de um dos
de crescimento econômico e da importância maiores expoentes da tradição de pensamento
política e estratégica de parte do antigo realista. Raymond Aron afirma que:
conjunto de países sem voz. Portanto, emergiu
uma terceira categoria de países, nem tão ricos Qualquer que seja a configuração
nem tão pobres, nem tão poderosos nem tão existente, as unidades políticas formam
fracos, que não foi incorporada às análises uma hierarquia, mais ou menos oficial,
teóricas advindas dos países dominantes. determinada essencialmente pelas forças
Objetivamente, o que define uma potência que cada uma é capaz de mobilizar. Numa
são os recursos de poder de que ela dispõe, extremidade estão as grandes potências,
tornando-a capaz de influir no comportamento na outra os pequenos países; umas
dos demais Estados. Esses recursos de poder reivindicam o direito de intervir em todos
podem ser classificados em duas categorias: o os assuntos, mesmo naqueles que não lhes
hard power e o soft power1. A primeira categoria dizem respeito diretamente; outros têm
engloba os recursos de poder tradicionais, ou como única ambição intervir, fora da sua
limitada esfera de ação, nos assuntos que
lhes concernem de modo direto (e às vezes
1 A respeito dessa diferenciação, ver NYE 2002. se resignam mesmo a respeitar as decisões

_76
que foram tomadas sem sua participação). sistema. A atuação brasileira na América do
A ambição dos grandes Estados é modelar Sul e a atuação chinesa no Extremo Oriente,
a conjuntura; a dos pequenos, adaptarem- por exemplo, constituem empecilhos
se a uma conjuntura que essencialmente significativos para a implementação das
não depende deles (ARON, 2002, p. 124). ambições da grande potência atual. Além
disso, o protagonismo regional também
Aron apresenta, em linhas gerais, um tende a criar condições que permitam a
sistema internacional formado por dois ampliação da área de atuação das potências
tipos de Estados, os que moldam tal sistema médias, como já se verifica, embora em
e os que se adaptam a ele. Não há dúvidas escala relativamente limitada, no caso chinês.
quanto a isso caso nos atenhamos somente Samuel Pinheiro Guimarães aproxima-
aos extremos da hierarquia. Os Estados se muito da compreensão de potências
Unidos moldam o sistema, e Serra Leoa médias defendida aqui. Utilizando o termo
se adapta. Contudo, há uma miríade de “grandes Estados periféricos”, Guimarães
países que não possuem recursos de poder caracteriza as potências intermediárias
suficientes para moldar o sistema, mas que, como países não-desenvolvidos, detentores
por outro lado, não são tão fracos a ponto de dimensões territoriais e populacionais
de simplesmente se adaptarem ao status quo. substancialmente expressivas, com grandes
De fato, esses Estados constituem a principal potencialidades econômicas e estruturas
força de desestabilização do sistema, pois industriais e mercados internos significativos.
a eles interessa a alteração da hierarquia. Na perspectiva desse autor, assim como
As grandes potências são responsáveis pela deste artigo, o desenvolvimento das
preservação, pela imobilidade; as potências potencialidades apresentadas por esses
intermediárias, pela tentativa de mudança, pela países geraria desdobramentos notáveis
dinâmica; e os Estados fracos não possuem em suas capacidade econômica e em seu
responsabilidades sistêmicas. poderio militar. Consequentemente, a
As potências médias desempenham capacidade de exercer influência regional e
um papel fundamentalmente regional. O mundialmente ampliar-se-ia profundamente
exercício do papel de protagonistas mundiais (GUIMARÃES 1999, p. 18-23).
cabe às grandes potências. Não obstante
essa limitação, a projeção de poder em Paulo Thiago Pires Soares (turma 2008-2010
escala regional interfere sobremaneira na do IRBr) é bacharel em História pela Universidade
capacidade de atuação das grandes potências Federal Fluminense e mestre em Relações
nas diversas regiões que compõem o Internacionais pela mesma instituição.

Bibliografia:

ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: UNB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

CABRAL, Severino. Brasil Megaestado: Nova Ordem Mundial Multipolar. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos Anos de Periferia: Uma Contribuição ao Estudo da Política Internacional. Porto Alegre /
Rio de Janeiro: Editora da UFRGS / Contraponto: 1999.

NYE, Joseph S. O Paradoxo do Poder Americano. São Paulo: Unesp, 2002.

VILANOVA, Pere. El Estado y el sistema internacional: una aproximación al estudio de la política exterior. Barcelona: EUB, 1995.

_77
_artigos e ensaios

“Então me diz qual é a graça/


De já saber o fim da estrada/
Quando se parte rumo ao nada?”

A seta e o alvo
– Paulinho Moska e Nilo Romero

“Mire veja: o mais importante e


bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas - mas
que elas vão sempre mudando.”

Grande Sertão:Veredas
– Guimarães Rosa

Sfumato:
a dimensão
ambígua da
linguagem
Diego Kullmman

_78
A terceira margem do rio
Poucos admitiriam passividade diante
da “Mona Lisa”. A dama florentina parece
verdadeiramente observar-nos, aparentando La vida secreta de las palavras
não mera vivacidade, mas um espírito próprio. Constitui tarefa pendente na crítica
Demais, a impressão que se tem da obra literária, em que pese o empenho de
sugere contínuas reinterpretações: um ar estudiosos formalistas e estruturalistas,
misterioso, indefinido, turvo, preenche as revelar o índice de literariedade de um
curvas faciais da “Gioconda”, instigando a texto. Essa limitação, porém, não exclui
imaginação do observador. a possibilidade de pormenorizar alguns
As grandes obras dos mestres italianos aspectos típicos do discurso literário,
do Quattrocento que seguiram a proposta de sobretudo se o contrapomos à linguagem
Mosaccio1 comportam elemento comum: por utilitária do cotidiano.
mais habilidosos que tenham sido os artistas Domício Proença Filho verifica seis
no uso do delineamento e da perspectiva, caracteres distintivos3, dos quais três
as figuras se mostram algo duras, rijas, com reclamam análise particular: a complexidade, a
pouca expressividade. multissignificação e a liberdade criativa.
É Leonardo Da Vinci quem vence A linguagem literária configura-se
esse desafio, por meio do sfumato, um complexa, em virtude de sua evidente
“delineamento esbatido e cores adoçadas opacidade. Inexiste, pois, transparência,
que permitem a uma forma fundir-se com precisão informativa, fluidez lógica, um
outras”2. Essa técnica empresta à imaginação relacionamento imediato com o referente,
indescritível deleite; sempre algo a alimentar, motivo que constrange a significação
a fustigar, como se a proposta artística não pedestre dos signos. Assim é que o vínculo
aceitasse fruições unívocas. entre escritor e leitor se estabelece em
O sfumato consagra a genialidade de diferente campo semântico, no plano da
Leonardo na pintura, mas o efeito do sugestão, da ambiguidade; recurso caro à
sombreamento da Mona Lisa não se limita fruição estética, dado que o texto literário
à maneira pictórica de expressão artística. não apenas avança pela mera reprodução,
De forma análoga, é intuitivo reconhecer mas também “abre-se a um tipo específico
que o sfumato configura uma das principais de decodificação ligado à capacidade e ao
características do texto literário. universo cultural do receptor”4. A mensagem
literária possui, nesse sentido, uma “intenção
estética”, diferentemente da linguagem
cotidiana, cujo objetivo situa-se nos limites
da comunicabilidade, porque pretende ser
útil, clara, precisa. O texto literário “não
estabelece uma relação ordinária, mas uma
comunicação que se situa em outro nível: o
nível artístico”5.

Ah, todo o cais é uma saudade de


pedra! (...)6

_79
_artigos e ensaios

É consenso admitir também que o texto


literário é plurissignificativo, visto que os
signos linguísticos admitem significados
plúrimos. Não se busca a plena clareza da
comunicação, tampouco a obediência às
balizes gramaticais; antes, o escritor, no intuito
de alcançar a perfeita expressividade artística,
remodela os significantes e os significados
estanques da língua.

Quem és tu, perguntou o homem,


Não te lembras de mim, Não tenho
ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual
limpeza, A do palácio do rei, A que abria
a porta das petições, Não havia outra, século XV, ele revolucionou as ferramentas
E por que não estás tu no palácio do usuais da técnica pictórica, ao inventar a
rei a limpar e a abrir portas, Porque as pintura à óleo. Por que o bafejo artístico
portas que eu realmente queria já foram deveria atender a prescrições normativas?
abertas e porque de hoje em diante só
limparei barcos, Então estás decidida a ir Desfecho doloroso apre bisbórria
comigo para a ilha desconhecida, Saí do aqui desalumiado rezingando pelos
palácio pela porta das decisões (...)7 cantos oxe vida toda luz viva huifa
tempo fosforejando preluzindo
Conjugadas, a complexidade e a resplandecendo huum ser iluminado
multissignificação conduz-nos à própria literalmente pirilâmpico aie desfecho
liberdade artística. Permite-se, portanto, deprimente velho feito eu terminar
subverter o léxico, porque o arcabouço com todos eles órgãos luminescentes
existente de signos não raro se mostra desativados apre.8
insuficiente para representar no papel a
inspiração mental do escritor. A esse respeito, Não se pretende aqui afirmar, todavia, que
embora em outra seara artística, o pintor a vocação sugestiva reclame, necessariamente,
holandês Jan van Eyck é caso basilar: no novo instrumental expressivo. De fato, é

1 Pintor florentino (1401-28) que, além de criar estratagema técnico da pintura em perspectiva, buscou também simplicidade e
grandeza nas suas figuras: constituíam maciças e sólidas formas angulares, mas com incrível sinceridade e comoção.
2 GOMBRICH, E. H, História da Arte, Editora LTC; Rio de Janeiro, 16ª edição, pg. 302.

agenda da Assembleia Geral sob o item intitulado “Question of Equitable Representation on and Increase in the Membership of the
Security Council”.
3 São eles: complexidade, multissignificação, liberdade de criação, variabilidade, ênfase no significante, predomínio da conotação.

PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária, 7ª edição, Editora: Ática, São Paulo, Série Princípios, pgs. 37 a 44.
4 PROENÇA FILHO, Domício, idem, pg. 8.

5 VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita. Editora Martins Fontes, 2003, São Paulo, 12ª

edição, pg. 179.


6 Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, em Ode Marítima.

_80
igualmente possível que a inspiração do autor, Uno, nessuno, centomila
bem como a ambiguidade natural de sua Ao publicar, em 1962, o livro “Obra
arte, apóie-se na “experiência coletiva” e se aberta”, Umberto Eco busca aclarar o
utilize de “meios comunicativos acessíveis”9. papel ativo do intérprete na leitura de
É o que Antonio Candido denominou textos com intenção estética. Delineando
“arte de agregação”, em oposição à “arte nova dialética entre autor e leitor, Eco
de segregação”. De todo modo, o destino assevera que a linguagem literária não é
estético permanece em ambas. algo acabado ou definido, que autoriza um
Cumpre salientar que o discurso literário percurso univocamente organizado, mas uma
pertence à esfera da Estilística, espaço miríade de sugestões conferidas ao deleite
dedicado à originalidade, ao engenho, à do intérprete. Nesse caso, as obras não se
criação. Em suma, a liberdade permite mostram concluídas; em verdade, podem ser
desmerecer as fronteiras da comunicabilidade, reinterpretadas a todo instante.
óbices do texto utilitário, pois o objetivo
estético deve atender unicamente às A poética da obra “aberta” tende,
intuições, às transpirações do autor. O como diz Pouseur, a promover
escritor transforma-se, portanto, em um no intérprete “atos de liberdade
“designer” da linguagem.10 consciente”, pô-lo como centro ativo
de uma rede de relações inesgotáveis,
Uma das coisas que mais entre as quais ele instaura sua própria
profundamente distinguem a Gramática forma, sem ser determinado por uma
da Estilística é o conceito de erro: ao necessidade que lhe prescreva os modos
contrário do que sucede na Gramática, de organização da obra fruída (...)15
em Estilística não há propriamente
erros, porque para os maiores desvios Há de ressaltar, no entanto, que a palavra
é achada uma determinante psicológica, “abertura” não implica infinitas possibilidades
natural.11

Uma atitude de independência em


face de regras gramaticais cabe de
direito aos literatos, antes que aos que 7 José Saramago, em O conto da ilha desconhecida.
usam a língua com objetivo prático. Do 8 Evando Affonso Ferreira, em Barbalhoste, mini-conto
literato espera-se uma visão pessoal em do livro Zaratempô!.
questões de forma estilística, já que a 9 MELLO e SOUZA, Antonio Candido. Literatura e

língua é a sua preocupação primária e a Sociedade, 8ª edição, São Paulo:T. A Queiroz, 2000; Publifolha,
matéria-prima de sua arte.12 2000 – Grandes nomes do pensamento brasileiro -, pg. 21.
10 PIGNATARI, Décio. Informação, linguagem,

Os três aspectos revelam a dimensão comunicação, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, 25ª edição.
ambígua da linguagem literária, o sfumato pg. 19.
de Leonardo Da Vinci. Evidenciam também 11 LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua

um problema: qual o limite, a fronteira do portuguesa, 4ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1998,
direito dos intérpretes? Será o texto literário pg. 197.
um “piquenique onde o autor entra com as 12 CÂMARA JR., J. Matoso, pg. 13…

palavras e os leitores com o sentido”13? É ainda 13 TUDOROV, T. “Viaggio nella critica americana”,

permitido “desbastar o texto até chegar a uma Lettera, 4 (1987), pg. 12.
forma que sirva a seu propósito”14? Enfim: até 14 RORTY, Richard. Consequences of Pragmatism,

onde pode levar-nos o sfumato de Leonardo? Minneapolis, University of Minnesota Press, 1982, pg. 151.

_81
_artigos e ensaios

de fruição e de interpretação da forma.


Isso porque, não se pode evitar a direção
sugerida pelo autor. Assim, “há somente um
feixe de resultados rigidamente prefixados
e condicionados, de maneira que a reação
interpretativa do leitor não escape jamais ao
controle do autor”16. Aliás, cumpre frisar que,
no desenrolar da Era Moderna, a função do
autor no seio do texto literário reforça-se de
forma gradual e significativa, tendência que não
se arrefeceu nos séculos seguintes. Segundo Assim sendo, o leitor-modelo acaba por
Foucault, “o autor é aquele que dá à inquietante estabelecer relação confidente com o autor,
linguagem da ficção suas unidades, seus nós de o que favorece a descoberta da “intenção
coerência, sua inserção no real”17. Isto é: o autor do texto”:
estabelece uma atmosfera de interpretações, a
fim de evitar que o leitor se perca em um vácuo Como a intenção do texto é
fruitivo. basicamente a de produzir um leitor-
Além dos limites implícitos estabelecidos modelo capaz de fazer conjecturas
pelo autor, deve-se mencionar que um texto sobre ele, a iniciativa do leitor-modelo
literário vislumbra também um destinatário consiste em imaginar um autor-modelo
final, um leitor-modelo. Esse intérprete que não é o empírico e que, no fim,
qualificado não apenas reúne as ferramentas coincide com a intenção do texto.19
necessárias para respeitar o substrato sócio-
cultural, histórico e linguístico do período Do ponto de vista sociológico, promove-se
em que se situa a obra, como também pode um arranjo inextrincável entre o autor, a obra
inferir as minúcias sugestivas do autor, tendo e o público:
em vista que costuma conhecer o repertório
estilístico do próprio texto. Embora a Na medida em que a arte é (...) um
linguagem se projete, funcione, atue no tempo, sistema simbólico de comunicação
ela pertence ao espaço. inter-humana, ela pressupõe o jogo
permanente de relações entre os três,
(...) a função da linguagem não é o que formam uma tríade indissolúvel.20
seu ser: se sua função é tempo, seu ser
é espaço. Espaço porque cada elemento Ressalte-se que a “intenção do texto”
da linguagem só tem sentido em uma não objetiva revelar um rumo, uma verdade
rede sincrônica. Espaço porque o valor narrativa, mas um leque de possibilidades
semântico de cada palavra ou de cada viáveis, que jamais deve ser confundido com
expressão é definido por referência a um arbitrariedade.
quadro, a um paradigma.18 Há limites, portanto, para os misteriosos
contornos da Mona Lisa. Como se percebe,
a liberdade plena é tão-só criativa, não
interpretativa.

15 ECO, Umberto. Obra aberta. Editora Perspectiva, “debates”, São Paulo, 2003, 9ª edição, pg. 41.
16 ECO, Umberto, idem, pg. 43.
17 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France, em dezembro de 1970 -, Edições Loyola,

São Paulo, 8ª edição, julho de 2002, pg. 28.


18 MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, pg. 168.

19 ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, 3ª tiragem, “Coleção tópicos”, pg. 75.

20 MELLO e Souza, Antonio Candido, idem, pg. 33.

_82
A arte, em sua aparição dominadora,
sob as máscaras por meio das quais se
manifesta, é como a lâmpada de Aladim,
repleta de prodígios se friccionada pela
magia do artista contra as sombras do
real palpável e visível mas, infelizmente,
transitório.22

Catarse: individuum est ineffabile Os traços de Leonardo, a poesia de


Guimarães Rosa, a música de Chico Buarque,
A esse tempo, é permissível concluir que a os filmes de David Lynch estabelecem
arte não apresenta qualquer utilidade. Oscar um intercâmbio sinérgico com o Homem:
Wilde, no prefácio de Retrato de Dorian defronte ao espelho, ele se reconhece, e se
Gray (1923), ressaltara que toda arte é inútil. contenta com isso. Sua imperfeição é agora
Essa irrelevância prática, esse desapego júbilo; sua mortalidade, regozijo. E nesse
a necessidades imediatas esconde, no fúlgido momento, nesse instante raso, a nossa
entanto, um objetivo metafísico de essencial espécie eleva-se sobranceira e majestosa a
importância para a humanidade. 21 mais alta esfera do espírito.
Parodiando José Saramago, que atestou
serem os olhos a nossa janela da alma, pode- Diego Kullmann (turma 2008-2010 do IRBr) é
se inferir que o sentido de uma obra reside bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá
nessa capacidade de tornar-se um reflexo e mestre em Governo e Gestão Pública na América
da intimidade humana – terreno incógnito, Latina pela Universidade Pompeu Fabra (Barcelona).
impronunciável, insondável, labiríntico,
privativo. E por universalizar o singular, a
manifestação artística conquista status perene,
atemporal, eterno, capaz de atravessar imune
a torrente dos tempos.
Uma obra aberta e imperfeita parece
revolver, assim, o âmago da nossa espécie.
“Conhece-te a ti mesmo”, diria Sócrates,
evidenciando-nos de um lado a inexorável
fatalidade da existência e, de outro, a
inferioridade humana ante a vida em si.
Ao revelar o íntimo do ser humano, a arte
soleva-se, portanto, como transfiguradora
da realidade. Como afirmou Eça de Queiroz,
trata-se de “cobrir a nudez crua da verdade
com o manto diáfano da fantasia”. Assim
é que a “luta contra a morte parece se
constituir na vocação essencial da arte”.

21 Segundo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “a arte é a tarefa suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida”.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pg. 26.
22 MONTEIRO, Ângelo. Escolha e sobrevivência: ensaios de educação estética. São Paulo: É Realizações, 2004, pgs. 193 a195.

_83
_artigos e ensaios

Deus
Gustavo Henrique Maultasch de Oliveira

E O Charlatão

Nas fronteiras do país semântico, os exércitos


do Charlatão preparavam-se para a invasão.

_84
Enquanto isso, o nosso herói...
...acordou inquieto, com náuseas; os Forçado a viver com a realidade, haveria de
pensamentos granulados. Ainda deitado, buscar, dentro de si, solução que o apaziguasse
olhava para os riscos de luz que venciam as em sua submissão. Passou a sonhar todas as
dezenas de paletas horizontais que formavam noites com o real e com o que poderia fazer
a cortina, e via, nas frestas, imagens que seu dele; em posições trocadas, em linguagem
quarto buscava esconder. Algumas palavras, cifrada, comunicava-se com a realidade, ia-na
um ou outro logotipo, figuras geométricas. compreendendo. Perseguia imagens que lhe
Não chegou a ler as letras que vira, pois informassem do mundo, testava projetos
as frestas parecerem formas identificáveis políticos, vivia vidas inteiras de amores,
já lhe era tradução suficiente do real; mutuamente excludentes, simultaneamente. O
qualquer outra ação seria exagerar na já que seu corpo retinha, sua alma dava forma,
sobreinterpretação daquele mundo que o caprichava, permitindo-lhe voltar a sofrer a
despertou. Tornava a fechar os olhos, e era realidade em sensibilidade renovada. Tinha
o mundo interior, seus raciocínios, que se esperança também, é evidente, mas isso não
consubstanciava em figuras: sequências de o afastava dos sonhos; ao contrário, trazia-se
imagens multiformes, em múltiplas cores a esperança para dentro deles, pois sabia que,
cambiantes, revezavam-se, configurando humanamente, todo ser é dever-ser.
novas formas, em infinitos fade in’s; um Era, portanto, através de sonhos que
agitato eletrônico acompanhava o tempo do se relacionavam; a experiência corpórea e
caleidoscópio mental. direta entesava-lhe, nada mais. E pôde, cada
Abriu os olhos, a realidade se impôs, vez mais, pôr os sonhos para trabalhar para
precisou ir ao banheiro. Levantou-se e, a si; pôde interpretar a realidade no limite de
meados do caminho, ouvia batuque forte, sua utilidade, sem deixar-se levar por uma
polifônico tambor de crioula – até o respiro nova realidade, fantasiada, mas igualmente
do encanamento mantinha ambições de dominadora. Não seria, definitivamente,
representação. No banheiro, os raios de sol mulher de malandro; decidiu que sonhar
que perfuravam o cobogó traziam à vida as com uma banana significaria, às vezes, apenas
poeiras que se provocavam; brincavam de sonhar com uma banana.
se pegarem e o convidavam à coreografia Era-lhe providencial que o dia se dividisse
do milagre – o da cabala de se ver, em tudo, em dia e noite; era-lhe útil que ele mesmo
significado e razão. Provocado, aprendeu, se dividisse em corpo e alma; era-lhe vital,
com o fino pó da luz, a provocar a realidade; portanto, que mantivesse sua capacidade
haveria de ver imagens não apenas nas de sonhar e que erigisse, dentro de si, o
brincadeiras com as grandes nuvens no céu palco em que se dariam os atos da realidade
em finais de semana; de pôr ordem em todo que lhe permitiriam ser humano e moldar
o caos.Ver além é alucinar, ver aquém não é o real em nome de seus projetos para a
para heróis; decidiu-se pela loucura. Às vezes, humanidade. Suas sessões libidinais com a
só o proceder com extrema irreflexão revela realidade tornavam-se, à noite, inspirações
o verdadeiro prudente que se é. para seus sonhos e, com o passar dos anos,
Teve fé no que lhe disseram, acreditou intensificava-se seu apetite, sua busca por
no que viu, aceitou o que lhe era provado: sensações de qualidade, por prazeres ainda
viveu; e, ainda assim, restava-lhe pouco para não experimentados.
dizer sobre a realidade que lhe amaldiçoou Não encenava cópias repetidas do real,
a igualdade da relação entre ele e o mundo. mas complexas representações dirigidas, onde
Com as pupilas da alma dilatadas, não introduzia a carga humana de sua arte. Não
demoraria muito para que as inconfidências se distanciou do real de nenhuma maneira,
do real também se lhe tornassem visíveis. nem se vendo estanque, nem se vendo como

_85
_artigos e ensaios

incapaz de apreendê-lo e, portanto, obrigado


a contentar-se com esperanças. Enobrecia o
que sentia, abrilhantava o resultado e obtinha,
por fim, a representação do que a realidade é
e do que deveria ser.
O lisérgico, que antes inebriava sua mente,
passou a perfumar a realidade esconjurada.

A realidade exorcizada
e o livre-arbítrio
Mérito, mérito dele; mas só podia, mesmo, A máquina de sonhos
ter sido assim. A realidade contém seus
elementos futuros, e ele era apenas uma das Toda a vida de nosso herói, e a
peças biológicas da progressão real. Chegou- preparação para o combate – que já se
se àquilo, mas o tempo não existe; se somente aproximava –, ele devia à máquina de sonhos,
há o devir, e o devir é o pré-devir do devir que o usava a seu serviço. Seu corpo todo
seguinte, somente há a soma total dos devires, eram terminais a alimentar a prospecção
o encadeamento infinito de todos os tempos. da máquina por material imaginatório; dia e
O tempo não passa, ele já passou inteiro; toda noite, o equipamento sugava-lhe por novas
a história do mundo já se realizou – embora a sensações, novas impressões, os quais eram
falta de script dispense a constatação. Seja essa ruminados, devolvidos à realidade, para
a realidade, pouco importa, em seus sonhos novos processamentos consecutivos. A
ele representa o que crê ser melhor para a máquina não descansava nunca; por mais que
humanidade; é ser humano, e ansioso com porventura se tentasse fechar, a inquietude
sua insignificância diante do tempo, injeta-se entrava-lhe pelas narinas.
dever-ser para dormir. Ao final de cada sonho, enxergava a
Teve, uma ou outra vez, sonhos mais realidade com uma nova realidade em mente.
poderosos, mais verdadeiros. Quando se Não conseguia mais vê-la como antes;
ocorria, seu sonho não mais se limitava aos quanto melhor o dia da máquina, maior a
contornos do que havia sentido; tornou-se propositividade de sua presença no mundo.
impressionista, personagens borravam-se com Viver era orquestrar o material de sonho
o tempo, os cenários fundiam-se aos ânimos, com o sonho, compondo-lhes o ritmo,
os dizeres coloriam os olores das ideias. afinando seus instrumentos.
Todo o espaço-tempo de todos os tempos Gradualmente tornou-se capaz de delinear
somou-se, sinestesiou-se a realidade, Deus seus sonhos, ainda que sem poder dirimir
surgiu. Obrigou a Deus a criar o céu e a terra; sua necessidade; sonhar era involuntário, mas
em seguida ele mesmo os criou, enquanto com gerência possível, assim como sua ação
Deus observava. Deus, como qualquer objeto no mundo, necessariamente ética, mas aberta
do real, estava à sua disposição, e sentiu-se a suas cores. Eventualmente, porém, quando
autorizado para retalhá-lo em signos e pôr precisava libertar-se em busca de sonhos mais
ordem ao caos. Deus existindo, há liberdade puros – assim como se deu quando sonhou
para tudo. com Deus – precisava borrar a realidade;
queria escutar música sem ver notas, o prazer
do som pelo prazer do som; era o contato
com a realidade pura, aliviada de seus fetiches.
E, após a fruição desses sonhos puros, podia
voltar, revigorado, a trabalhar as partituras
regentes da vida.

_86
A invasão da gripe
Era precisamente na manipulação
dessas partituras que se configurava o
poder do Charlatão; os músicos que as
interpretassem tornariam silenciosos seus
instrumentos enquanto as seguissem. A
música do Charlatão era pura semiótica de
guerra – somente exércitos surdos-mudos
as entendiam. A luz não demandava mais o
iluminar; o semeador prescindia do semear; a se ao confronto com o Charlatão. Não se
tradição, de seu arrazoado. Fazer a convicção deixaria ludibriar; ordenou que o amarrassem
mais forte do que a verdade; era esse o vírus ao mastro de Deus, para que não o atraíssem
do charlatanismo. A invasão do Charlatão as seduções das facilidades. Protegido das
iniciou-se, assim, em guerra psicobiológica, palavras falsas, nosso herói precisava defender
perfurando a membrana das terras do país a política de seu país, repelir a incursão
semântico, aproveitando-se das fraquezas charlatã e suas falcatruas para re-significar
constitutivas dos paisanos de nosso herói. a realidade paisana em nome de projetos
Em pouco tempo, a virose grassou. A forma pouco úteis à convivência. Acendeu o abajur
da representação brilhava independentemente de sua tenda, e a epifania; não pela luz, mas
do representado. Os significantes viraram pelo próprio abajur – o abajur somente seria
estrelas, caras de atenção, beneficiosas da um abajur no dia em que acender sozinho; o
economia do tempo. O que serviria para real somente seria a si próprio no dia em que
chancelar a realidade, passou a confundir- se significar sozinho. Jurou-o para si. Até lá,
se com ela; o nome vira o real, o título dependente de seu trabalho de retalhamento,
vira a qualidade; o que deveria atalhar a será o que nosso herói quiser que seja, no
complexidade da realidade passou a defini-la limite da utilidade para seu país.
aos olhos de quem pouco a compreende. É o Havendo encontrado a Deus, e imune
efeito da gripe charlatã. ao Charlatão – graças ao abajur epífano –,
Delirando de febre no mundo simbólico, nosso herói deveria preparar-se para curar os
circulando por representações sem voltar à afetados. Muitas máquinas em conjunto seriam
realidade para checagens, as vítimas cometem, necessárias, com a humildade dos que crêem
inevitavelmente, soluções ruins, enunciados no trabalho em grupo, e vêem a vitória de um
toscos. Descompassam-se o enunciado e a como o caminho para a vitória de todos – já
realidade; a lei e as bases sociais que a tornam que um está contido em todos. A convicção
necessária. Inevitavelmente, o vírus atingiria a do Charlatão havia, porém, contaminado os
representação; significantes sem significados, paisanos, que obedeciam às regras erradas;
representantes sem representados. Por fim, infectados com a virose charlatã, restavam
ninguém saberia mais o que é importante; a incapazes de dar valor a seus símbolos – as
política fadar-se-ia ao fracasso. No limite, a formas se corromperam, os objetivos de
gripe borraria o país, tornando o mundo uma amesquinharam, a incompreensão dotou-se de
alegoria impressionista do que poderia ser uma jactância, o nada tornou-se capaz de vaidade.
convivência útil; Deus tornar-se-ia impossível.
Nosso herói também dispunha dessas O herói estava sozinho.
mesmas ferramentas de manipulação, mas Fixou-se a trégua. O Charlatão comemora
o Charlatão não mantinha respeito aos a vitória com os paisanos, enquanto nosso
absolutos em referência; se a realidade herói lamenta a derrota e põe a máquina no
se impusesse restringindo-lhe o campo trabalho de recriar a Deus.
semântico, ele simplesmente esquivava-se;
impostor, impostava a entonação e iludia os Gustavo Henrique Maulstach de Oliveira
outros; desonesto, ignorava a realidade. (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito
Expedido às fronteiras, nosso herói dirigiu- pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro

_87
_artigos e ensaios

Augusto
Ruschi:
O Homem que falava
com Beija-Flores

Ricardo dos Santos Poletto

_88
Ando dentro desta floresta
melhor do que você na rua,
sou um habitante dela

O facho vermelho da lanterna


cintila em meio ao emaranhado de galhos
e ramos que se adensam na mata fechada.
Margeando o rio Timbuí, uma figura de
estatura privilegiada caminha com notável
desenvoltura. Com efeito, os passos ágeis
e silenciosos entre as pedras do terreno
Infância: iniciação científica
irregular revelam grande intimidade com o
ambiente. O som de queda d’água se torna Enquanto não se formar a criançada
mais forte à medida em que se avança. Ouve- na direção certa, o futuro da natureza do
se, enfim, a força das águas da cascata Santa Brasil continuará ameaçado
Lúcia. O luar vence a resistência das frondes
mais altas e penetra suave, pousando sobre
trechos da trilha; e o personagem, absorto na
escuridão serena da Mata Atlântica, recosta- A inclinação da família Ruschi para a
se em um de seus jacarandás favoritos, de ciência deu seus frutos no Brasil quando os
onde observa animais e plantas que somente imigrantes Giuseppe Ruschi e Maria Roatti
olhos treinados podem reconhecer. Desliga desembarcaram no Espírito Santo para
a lanterna. Augusto Ruschi se mistura, por prestar auxílio técnico aos colonos italianos.
completo, à natureza. O pequeno Gutti nasceria, então, na cidade
Foi assim durante mais de cinquenta anos de Santa Teresa em 12 de dezembro de
em que vocação, trabalho e filosofia de vida 1915. Desde cedo, o pequeno teresense se
se provam indissociáveis. A história de Ruschi embrenhava nas matas e esquecia do mundo
é a história de um dos homens e do progresso urbano-industrial
homem que respeitava que, veloz, fagocitou o verde. Absorto em
a floresta, entendia os seu mundo natural de coleções, registros e
morcegos, namorava experiências, Ruschi já vivia seu mundo lúdico
orquídeas e falava com de infância naquilo que seria a razão de sua
beija-flores. Os vinte e vocação profissional e humana.
três anos que nos separam O Museu Nacional e Jardim Botânico
da morte de Augusto Ruschi são já recebia desde então contribuições
também anos de transformações importantes do precoce cientista, como quando, por
político-institucionais, de mentalidade, de intermédio do Professor Mello Leitão,
resposta sistêmica do meio-ambiente à ação participou de maneira decisiva das pesquisas
humana. Assim, o momento de resgatar a do entomologista Felippo Silvestre no
memória de Augusto Ruschi é também o combate internacional à praga dos laranjais.
momento de discutir o Brasil e suas raízes, As atividades de campo, portanto, já eram
sua vocação territorial, seus desafios, suas empenhadas desde insetos sobre a carteira da
responsabilidades, enfim, seu projeto de nação sala de aula às suas ilustrações dos espécimes
e de desenvolvimento. Afinal, nunca é tarde para florais do jardim cultivado pelo pai na
rememorar exemplos do melhor da brasilidade. Chácara Anita.

_89
_artigos e ensaios

velozes e delicados polinizadores. Justificava:


A paixão de uma vida: os colibris “essa importância pessoal e biológica que eles
realmente têm para mim se estende também
A alegria do barulho desses beija-flores para a biologia como ciência”.
ninguém vai silenciar enquanto eu existir. Ruschi data o início de seu interesse
pelos beija-flores em 15 de dezembro
de 1934, quando descobre a polinização
da orquídea Stankopea graveolens pelo
Ruschi inclina levemente o pescoço, balança-rabo-da-mata (Glaucis hirsuta
enquanto o colibri, congelado no ar, aguarda hirsuta). Com justiça, os beija-flores se
o momento de se aproximar. Em um átimo, a tornaram a epítome da luta de Augusto
máquina fotográfica paralisa as lépidas asas no Ruschi. Os estudos pioneiros sobre os
momento em que o bico comprido toca os pequenos colibris deram origem a obras
lábios do professor. Uma cena de intimidade completas sobre Beija-flores do Espírito
única entre o homem e a natureza recebeu Santo e do Brasil em vários volumes; foi o
o fortuito título de “beijo que o tempo não primeiro a ter sucesso em reproduzi-los em
esquecerá”, em edição da Revista Manchete cativeiros e a domesticá-los, o que lhe valeu
no final dos anos 70. justo reconhecimento internacional.
O reconhecimento internacional da
contribuição científica de Ruschi teria eco
maior anos antes. “The man who talks to
hummingbirds” foi o título da matéria da
National Geographic Magazine, que correu
o mundo em janeiro de 1963. O jornalista
O mestre: o amigo e exemplo
Louis Marden se confessou impressionado de disciplina
com as cenas testemunhadas em Santa Lúcia;
ficara convencido de que o cientista capixaba ’Eu não posso estudar entre quatro
era capaz de se comunicar com os beija- paredes. Eu quero voltar para minhas
flores que visitavam constantemente a casa florestas’ (…) Percebendo minha
centenária incrustada na mata virgem. Narra determinação, os diretores do museu
também a transformação do “verdureiro” (Nacional) concordaram em fazer uma
- como Ruschi era chamado pelos teresenses estação de campo em minha casa em
por passar dias na floresta em busca de Santa Teresa. Meu mentor morreria em
bromélias e orquídeas - em “Dr. Augusto 1948, e, em 1949, eu fundaria o museu
Ruschi, cientista, o homem dos beija-flores”. cujo nome lhe é homenagem.
O menor vertebrado do reino animal,
beija-flor, colibri ou guainumbi na língua
dos caraíbas, deriva seu nome indígena dos
tons metálicos de sua plumagem: pássaros Fundamental a figura do professor Cândido
cintilantes. A Ruschi não faltou inspiração Firmino de Mello Leitão, que tomou o
para nomeá-los a cada novo registro de um jovem Ruschi por seu discípulo nas ciências.
árduo trabalho de identificação de espécies Admirado pela observação sistemática do
e subespécies; para cada novo beija-flor, uma ciclo de vida da praga dos laranjais, Mello
marca singular de topetes, caudas, bicos, cores, Leitão percebeu no jovem Ruschi o perfil de
tons, chilreios e acrobacias. um promissor naturalista. Logo, o adolescente
Os beija-flores representavam uma grande Ruschi passaria a trabalhar no Museu Nacional
lacuna nos estudos ornitológicos e ambientais e Jardim Botânico, onde pôde contribuir
da época e Augusto Ruschi abraçou a missão para a catalogação da flora e fauna da Mata
de preencher esse vazio, a ponto de se tornar, Atlântica. Embora a Universidade Federal do
em poucos anos, precursor e inigualável Brasil e a prática docente, no Rio de Janeiro,
especialista. De seu interesse pelas orquídeas, tenham se provado uma grande escola do
Ruschi acaba por se apaixonar por seus rigor científico sob a supervisão do mestre

_90
Mello Leitão, Ruschi almejava retornar logo A alguns metros dali, assessores e
para sua terra natal, para execução de suas secretários andavam com livros e códigos
pesquisas de campo. Ao contrário dos livros, debaixo do braço a fim de justificar
a natureza nunca se esgotava diante de sua a legalidade da autorização dada pelo
curiosidade penetrante. E, de fato, ao sinal do governador do estado à extração do
primeiro pretexto, retornou para Santa Teresa, palmito para uma indústria de enlatados.
de onde julgava mais apropriado disseminar Ruschi, ele mesmo advogado de formação,
sua mensagem. Ruschi passou a produzir levantou-se contra a lei dos homens para
artigos e trabalhos, além de auxiliar organismos fazer valer o código da floresta. Não podia
governamentais na formulação de políticas aceitar definições de órgãos ambientais
públicas tangentes à temática ambiental. contaminados por interesses econômicos.
Vinha à memória a derrubada de florestas
no norte do estado, o reflorestamento
indiscriminado de eucaliptos, o
comprometimento da reserva de Comboios,
a desertificação, o desaparecimento dos
As lutas: o Dom Quixote das matas tamanduás e bem-te-vis...
Inevitável mesmo resgatar o episódio
E indignação era o que mais lhe do decreto do governador Élcio Álvares,
detonava o temperamento irascível. O tom quando a mensagem de Ruschi teve maior
de voz crescia de volume assustadoramente, eco, atraiu a imprensa e sensibilizou a opinião
o rosto ficava rubro, e mesmo que estivesse pública para sua causa tantas vezes antes
narrando um fato já ocorrido, qualquer silenciosa. No fim, após a repercussão da
interlocutor sem intimidade com o mestre, caravana ecológica que se alinhou à causa do
temeria que tal exaltação transbordasse naturalista, o governador foi sensato diante de
em atos ali mesmo. Nada. Só a miopia e a um gigante adversário: desistiu da execução
iniquidade humana eram capazes de lhe do decreto. No episódio de 1977, os jornais
detonar tal furor. estampavam o rosto do naturalista com a
pergunta evidente: “Você trocaria este homem
Diógenes Rebouças Filho, Jornal A por uma lata de palmito?”. Triunfo semelhante
Tarde, Salvador, junho de 1996 ele obteve na Floresta da Acesita, Sooretama,
na Fazenda Klabin e outros santuários
naturais de terrenos particulares, cujos
proprietários eram muitas vezes demovidos
À febre do jacarandá, então a madeira de do intuito de desmatar pela intervenção de
lei mais cobiçada pelos serralheiros, seguiu- Ruschi, disposto a arcar com a compensação
se a febre do palmito. A corrida do palmito pecuniária, enquanto o Estado permanecia
teve como alvo o santuário natural que cego às suas responsabilidades. Salvar o
consumira a Ruschi quarenta anos de trabalho jequitibá-rosa de seis séculos foi mais uma
e conservação. entre tantas. Não raro, estampavam os jornais
Espingarda em punho, com o chapéu de Vitória: “Augusto Ruschi está metido em
de feltro preto a escurecer seu semblante outra confusão ecológica no Espírito Santo”.
de cenho franzido, aguardava quem quer As lutas contra os poderosos das grandes
que fosse na soleira do casarão. Os oficiais corporações e da política local lhe valeram
e topógrafos enviados pelo governo do a alcunha de “Dom Quixote das Matas”. Se
estado receavam em se aproximar, ao se não é de todo despropositada a comparação
defrontarem com a irredutibilidade do com o personagem de Cervantes, ela guarda
naturalista sentinela. As duras palavras de também uma abordagem ambígua da imprensa
Ruschi, ao prometer reagir a bala a um sobre um protagonista de noticiários. Fontes
ataque à sua floresta, foram respaldadas da imprensa local, sob a guarda de interesses
pelo frenético bater de asas de dezenas de particulares, empreenderam política de
colibris que congestionavam a varanda. difamação contra as ações inusitadas

_91
_artigos e ensaios

do desafeto. As publicações nacionais e maneira, desenvolveu a tese da agricultura


internacionais, contudo, enalteciam a bandeira auto-sustentável em florestas tropicais, sendo
do cientista, cujo reconhecimento científico e pioneiro em pesquisas de agroecologia. Além
moral ultrapassava fronteiras. disso, elucidou a ocorrência das “doenças
ecológicas”, causadas pelos desequilíbrios
ambientais decorrentes da ação humana.
Mas as diversas lições de Ruschi só foram
se tornando mais claras com o tempo.
Chamado de “o profeta da desertificação”,
O Legado: defensor de maravilhas Ruschi prenunciara os efeitos da destruição
da Amazônia após as atrocidades cometidas
O segredo de uma vida não está em na Mata Atlântica. Dizia: “acabaram com o
descobrir maravilhas, mas em encontrá-las. estado do Espírito Santo. O Espírito Santo é
pequeno demais, contudo serve de exemplo
para ainda se evitar o maior de todos os
crimes do mundo, que é a destruição da
Encontrar maravilhas era mesmo uma Amazônia”. A mudança climática, hoje no
de suas motivações. No final dos anos 50, topo das preocupações globais, já era tópico
em visitas aos Museus Britânico e de Nova na agenda do ecologista. O afinco de Ruschi
Iorque, Ruschi se deparou com registros em todas suas expedições, estudos e lutas dá
do desaparecido beija-flor-de-gravata- provas de que não basta descobrir maravilhas,
vermelha. O espécime parecia para sempre nem tampouco encontrá-las; deve-se também,
perdido entre vidros de coleção de peles de a seu exemplo, defendê-las.
ornitólogos europeus e norte-americanos.
O Augastes lumachellus seria encontrado em
1961 em uma expedição de busca. Seguindo
pistas da presença do pássaro na região do
Morro do Chapéu, na Bahia, Ruschi confessa
ter vivido um momento único ao reconhecer
O Desfecho: saudades
o beija-flor presumivelmente extinto próximo dos beija-flores
à Cachoeira do Ferro Doido.
Outro momento de fascinante descoberta Que os beija-flores me levem ao reino
na vida de Ruschi se deu na Serra do Navio, de Deus...
quando o naturalista se deparou com um
beija-flor até então desconhecido, o beija-
flor-brilho-de-fogo (Topaza pella), aquele que
consideraria o mais bonito que seus olhos O negro reluzente dos pequenos anfíbios
veriam em anos catalogando centenas de escondidos entre as folhagens amazônicas
espécies e subespécies. Diz-se que foi ainda chamou a atenção de Ruschi, que logo pensou
hipnotizado pela beleza do pássaro-topázio em presentear o herpetólogo alemão Peter
que o cientista se deixou envenenar pelos Wevergold. Naquela expedição ao Amapá,
pequenos sapos preto-amarelos, cujos efeitos em 1975, tivera a fortuna de encontrar um
do toque se fariam sentir alguns anos depois. beija-flor único, mas cometera a imprudência
O legado de Ruschi, entretanto, não se de se deixar tocar pela peçonha dos sapos
resume a práticas isoladas. O naturalista dendrobatas. Dez anos depois, o País
formulou políticas de preservação com acompanhava o drama do naturalista. A
base em estudos sobre a criação de bancos mobilização de médicos e cientistas em busca
genéticos, que embasariam a proliferação de um antídoto foi intensa, porém inútil.
de reservas ecológicas em todo o mundo. Quatorze quilos mais magro, sofrendo das
O Congresso Florestal das Nações Unidas dores, das hemorragias e da insônia, Augusto
em Roma, 1951, notabilizou e disseminou o Ruschi se encontrava agora, dez anos depois,
trabalho de Ruschi sobre o tema. Da mesma no Parque da Cidade do Rio de Janeiro para a

_92
pajelança do pajé Sapaim e cacique Raoni, que
foram ao encontro do naturalista a pedido
do Presidente Sarney. Os sinais de melhora
foram um alento após o ritual que extraíra
do pescoço de Ruschi uma massa densa e
verde. Incansável, dizia que se a doença lhe
permitisse, concluiria algumas obras em curso:
“Macacos do Espírito Santo”, “Orquídeas
do Espírito Santo” e “Beija-flores do Brasil”.
Resistia também naquele que chamava de sua
floresta: o filho mais novo, Pietro.
“Morro de saudades, fico daqui recordando
a vida dentro dela. Por isso o meu desejo
de ser enterrado na Reserva Biológica de
Santa Lúcia.” Às 13h10 de uma quarta-feira,
dia 4 de junho de 1986, no Hospital São José
em Vitória, padecia Augusto Ruschi, aos 72
anos, após setenta dias de internação. Seu
enterro se daria no dia 5, dia Mundial do Meio
Ambiente. À margem direita da cachoeira
encontra-se o túmulo do naturalista Augusto
Ruschi, que recebe todas as manhãs a visita
dos beija-flores, em homenagem. O patrono
da ecologia no Brasil inspirou e continua a
inspirar muitos, prova de que, definitivamente,
sua luta e suas ideias continuarão a ser
polinizadas por todos nós, beija-flores.

Ricardo dos Santos Poletto (turma 2008-2010


do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília e mestre em Política
Internacional e Comparada pela mesma instituição.

_93
RESENHA

A Viagem
de Saramago
Caio Flávio de Noronha e Raimundo

V oltemos a meados do século XVI, quando, nos aposentos


do rei de Portugal, tomou-se a decisão de oferecer ao arquiduque
austríaco um elefante indiano. Presente de casamento de D. João III
e da rainha Catarina de Áustria ao primo Maximiliano, o elefante
Salomão é preparado para ir a pé, ou melhor, à pata de Lisboa a
Viena, invejado pela rainha por “ir gozar a vida na cidade mais bela
do mundo”, enquanto ela ficava em Lisboa, “entalada entre hoje e o
futuro, sem esperança em nenhum dos dois”.

_94
Como explica o autor em breve nota na sabe para onde vai e se sustenta pela figura
primeira página do livro, a ideia de escrever o impositiva, mas na verdade é lento e indefeso
conto surgiu em um restaurante em Salzburg, como a burocracia do reino.
chamado O Elefante. Saramago reparou Aspecto importante de A Viagem do
por acaso em uma escultura de elefante, Elefante é o trabalho sempre genial de
onde havia um friso de outras pequenas narração feito pelo autor. Em seu tradicional,
esculturas que, entre a Torre de Belém, que ou pouco tradicional estilo, prescinde de
era a primeira, e outra de um monumento nomes próprios com iniciais maiúsculas e
que representaria Viena, marcavam o deixa de lado pontos finais e travessões,
itinerário da viagem de um elefante. Com optando pela vírgula, que oferece grande
efeito, o elefante fora um presente oferecido fluidez ao texto. Prima na obra a interação
pelo rei português à corte austríaca e a leitor-autor, evidenciada pela utilização
viagem da comitiva entre Lisboa e Viena de frequente da primeira pessoa do plural,
fato ocorrera por volta de 1550. O autor, engendrando conto que tem em seu narrador
inspirado por uma história simples e inusitada, um elo constante entre o leitor do presente
estabelece, com muita imaginação, relações e a história do passado. Nesse sentido, a
interessantíssimas que revelam, acima de tudo, linguagem do livro é oportuna, mistura de
a grandeza e a miséria da existência humana. português contemporâneo e arcaísmos da
Entre Salomão, os reis e o leitor existe época de João III que torna a leitura mais
Subhro, o conarca (tratador do elefante), prazerosa e interessante.
personagem central na trama. As críticas mais Em alguns momentos do livro, o autor,
afiadas ao sistema são feitas por meio da assumindo posição de narrador-filósofo,
voz do indiano, intelectualizado e crítico, eu analisa aspectos da vida humana, como
- lírico de Saramago no conto. Montado sobre quando afirma que “o passado é um imenso
Salomão, ele observa as armações religiosas e pedregal que muitos gostariam de percorrer
políticas que se estabelecem no decorrer da como se de uma auto-estrada se tratasse,
viagem, sem compreender o ego e a estupidez enquanto outros, pacientemente, vão de
das autoridades. pedra em pedra, e as levantam, porque
Igreja e burocracia estatal são os temas precisam de saber o que há por baixo delas”,
preferidos de Saramago para realizar, com ou quando diz que “a vida ri-se das previsões
humor, crítica contundente e profusa. Em e põe palavras onde imaginamos silêncios, e
um trecho do livro, por exemplo, Salomão súbitos regressos quando pensamos que não
é forçado a ajoelhar-se diante de uma igreja, voltaríamos a encontrar-nos”. Nesse ponto,
de modo a protagonizar falso milagre que é possível fazer referência à própria história
impressionasse a população local. Nas palavras de vida do autor que, logo às 40 páginas de
do sacerdote idealizador do espetáculo, sua empreitada literária, deparou-se com
“necessitamos mesmo esse milagre, esse sérios problemas de saúde que o fizeram
ou qualquer outro, porque lutero, apesar de interromper o processo de escrita da obra.
morto, anda a causar grande prejuízo à nossa A Viagem do Elefante, por lugares
santa religião, tudo quanto possa ajudar-nos a inóspitos, caminhos difíceis e céus
reduzir os efeitos da predicação protestante estrelados é a longa marcha dos homens,
será bem-vindo”. a Viagem de qualquer um de nós, que,
A crítica à Pátria, por sua vez, pode ser como afirma a epígrafe do livro, “sempre
percebida por meio de inúmeros trechos do chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Vale
livro: “nunca a viste, perguntou o comandante a pena viajar pelas palavras fluidas de José
lançando-se num rapto lírico, vês aquelas Saramago nesse conto que é, sobretudo,
nuvens que não sabem aonde vão, elas são a metáfora da vida humana.
pátria, vês o sol que umas vezes está, outras
não, ele é a pátria, vês aquele renque de Caio Flávio de Noronha e Raimundo
árvores donde, com as calças na mão, avistei (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em
a aldeia nesta madrugada, elas são a pátria”. Administração de Empresas pela Fundação Getúlio
O próprio elefante pode ser a pátria, que não Vargas (São Paulo).

_95
_pelo mundo
_resenha

ADAM
SMITH
EM

PEQUIM Eduardo Brigidi de Mello

PARTE:
PRIMEIRA
ith e a
Adam Sm
va é p o c a asiática
no
Giovanni Arrighi tem o mérito de arriscar a concretização da ideia de Adam Smith
e ousar em suas análises, contribuindo para de uma sociedade mundial de mercado
o debate científico. Já no prefácio de Adam baseada em uma maior igualdade entre
Smith em Pequim (lançado pela Boitempo as civilizações. A teoria dos mercados de
Editorial, em 2008, em seguida ao lançamento Smith é particularmente relevante para a
nos Estados Unidos, em 2007), afirma que compreensão das economias de mercado
a tese do livro é que “quando a história da não-capitalistas, como era a China antes
segunda metade do século XXI for escrita de sua incorporação secundária no
desse ponto de vista mais distante, é possível sistema globalizante de Estados europeus
que nenhum tema seja mais importante do e como poderá voltar a ser no século
que o renascimento econômico da Ásia XXI, sob condições históricas nacionais e
Oriental. A revolta contra o Ocidente criou as internacionais totalmente distintas.
condições políticas para a passagem do poder O autor recupera o conceito de
social e econômico para os povos do mundo “revolução industriosa”, que seria a
não-ocidental. O renascimento econômico da corresponde oriental da Revolução
Ásia Oriental é o primeiro sinal claro de que Industrial. Lá, a revolução ocorreu como
essa transferência de poder já começou”. desenvolvimento baseado no mercado,
Para Arrighi, o fracasso do Projeto para sem tendência de uso intensivo de capital
o Novo Século Americano e o sucesso do e energia, desenvolvendo entre os séculos
desenvolvimento econômico chinês, tomados XVI e XVIII um modo de produção que
em conjunto, tornaram mais provável do fazia uso intensivo de mão-de-obra como
que nunca, nos quase dois séculos e meio reação à restrição de recursos naturais.
desde a publicação de A Riqueza das Nações, A grande diferença entre esse modelo de

_96
desenvolvimento e o do Ocidente era a
priorização da mobilização de recursos
humanos, ao invés de não-humanos.
Arrighi utiliza a perspectiva smithiana
para acompanhar a turbulência global e a
ascensão econômica da China. A origem
da turbulência é atribuída à acumulação
excessiva de capital em um contexto global
marcado pela revolta contra o Ocidente. O G U N D A PARTE:
resultado foi a primeira crise profunda da S E
ento da
hegemonia dos Estados Unidos, entre o fim Rastream
da década de 1960 e início da década de 1970.
r bu lê n c ia global
Os Estados Unidos reagiram a essa crise tu
competindo agressivamente pelo capital no Arrighi recorda que Smith via a China
mercado financeiro global e intensificando a como modelo de desenvolvimento
corrida armamentista com a União Soviética, econômico a ser promovido pelos governos,
na década de 80, reação que teve sua por seguir um caminho “natural” baseado
manifestação mais forte no Projeto para um no comércio interno. Não via superioridade
Novo Século Americano, implementado pela no modelo europeu, pois não acreditava
administração de George Bush Pai. em crescimento ilimitado do capitalismo,
Analisando o fracasso desse projeto, o como Marx acreditava. Smith era enfático ao
autor afirma que a Guerra do Iraque foi forte afirmar que a acumulação interminável de
indicativo de que a força ocidental atingiu capital (poder capitalista), em um contexto de
seu limite. Assim como a derrota no Vietnã liberdade do mercado, deveria ser atenuada
levou os Estados Unidos a trazer a China de com ação do governo.
volta à política mundial para conter os danos O antigo modelo chinês estaria
políticos do fracasso militar, o resultado da mais próximo desse ideal, pois buscava
debâcle iraquiana pode significar o surgimento desenvolvimento não-capitalista com base
da China como a verdadeira vencedora da no mercado, priorizando o comércio interno
guerra dos Estados Unidos contra o terror. e a agricultura como lastro para a indústria
Nesse cenário, o autor ressalta que é falha a manufatureira. Posteriormente, eventuais
tentativa de prever o comportamento futuro excedentes seriam comercializados no
da China com base na experiência do sistema mercado externo, ao contrário do modelo
de Estados ocidental. europeu, que priorizou a conquista de
mercados externos.
O que caracterizou o modelo europeu
como capitalista, diferenciando-o do chinês,
foi a sinergia entre capitalismo, industrialismo
e militarismo, impulsionada pela competição
entre Estados. Essa simbiose, que gerou círculo

“quando a história da
virtuoso de enriquecimento e de aumento
de poder dos povos de origem europeia,

segunda metade do século


teve por contrapartida um círculo vicioso
correspondente de empobrecimento e perda

XXI for escrita desse ponto


de poder para a maioria dos outros povos.
Após séculos de fricção entre tais

de vista mais distante, é


círculos, o sistema começou a entrar em
crise profunda a partir da aceleração da

possível que nenhum tema


desigualdade, que até o início da década
de 1960 foi um jogo de soma positiva, uma

seja mais importante do qu


simbiose entre centro e periferia. Na década
de 1970, a queda das taxas de lucro e o

o renascimento econômic
da Ásia oriental. _97
_pelo mundo
_resenha

aumento da competição econômica geraram


excesso de capacidade produtiva mundial
e, por consequência, mais pressão sobre o
lucro. Repetiu-se, assim, a tendência dos ciclos
hegemônicos anteriores: boom econômico
A PARTE:
– intensificação da concorrência – redução TERCEIR
da lucratividade – estagnação comparativa onia
– aumento da lucratividade com base na A hegem
da
expansão financeira da principal economia. desvenda
Como resultado desse processo, a
mudança fundamental nas relações Norte- O fracasso da aventura no Iraque reforçou
Sul tem em seus bastidores a tentativa dos a tendência de recentralização da economia
Estados Unidos de conter o desafio do global na Ásia oriental e, dentro desta, na
nacionalismo e do comunismo no antigo China, trazendo questionamentos importantes
Terceiro Mundo. Assim como a Inglaterra em sobre a diferença entre os modelos primitivos
seu período de crise de hegemonia, uma das de desenvolvimento europeu (capitalista) e
táticas norte-americanas foi a financeirização, asiático (não-capitalista).
que acelerou o desenvolvimento desigual e O processo de desenvolvimento
desestabilizou sua própria hegemonia. capitalista, ou modelo europeu, seguiu
política de Estado e de império, bem
como processos de acumulação de capital
no espaço e no tempo. Esses processos
foram impelidos por uma lógica territorial,

“Por que os Estados


limitadora da lógica capitalista de acumulação
interminável de capital. A saída para o

Unidos, em vez de
impasse da limitação territorial, em todas
as fases de reorganização e/ou transição

emprestar, toma
econômica, foi a financeirização.
Outro traço do modelo de

emprestados enormes
desenvolvimento capitalista, típico de sua
extroversão, é que ele tem origem no

volumes de capital, como


surgimento dos Estados territoriais como
principais agentes da expansão capitalista.
Esse processo, como visto, baseou-se na

já foi constatado, ao fusão entre capitalismo, militarismo e


imperialismo. Tal estratégia foi reforçada

ritmo de mais de 2 bilhões por elementos como a comercialização da


guerra, a expansão externa sistemática, o uso

de dólares por dia? E por intensivo de máquinas e a empresa privada


de grande escala.

que é que parte cada vez Como a tendência natural é que a


potência hegemônica irradie capital para os

maior desse capital vem


demais pólos, o que não ocorre atualmente,
Arrighi questiona:

de centros emergentes, Por que os Estados Unidos, em

principalmente da China?”
vez de emprestar, toma emprestados
enormes volumes de capital, como já
foi constatado, ao ritmo de mais de
2 bilhões de dólares por dia? E por
que é que parte cada vez maior desse
capital vem de centros emergentes,

_98
principalmente da China? Essa anomalia
assinala um bloqueio dos mecanismos
que no passado facilitaram a absorção
de capital excedente em ajustes
espaciais de tamanho e alcance cada vez
maiores. (...) Outra razão poderia ser
que a acumulação por desapropriação
chegou ao seu limite, seja porque QUARTA
o principal centro emergente está PARTE
acumulando capital por outros meios,
seja porque os meios coercitivos não As linhagens da nova era asiática
podem mais criar um ajuste espacial Teóricos como Kissinger e Brzezinski
de tamanho e alcance suficientes para questionam o pressuposto de que é
absorver de modo lucrativo a massa de inevitável o confronto estratégico com
capital excedente nunca antes vista que a China, pois ambos tem interesse
se está acumulando no mundo todo. em cooperar na busca de um sistema
internacional estável, que vai ao encontro
Nesse contexto, ressalta que as fases da doutrina chinesa de Heping Jueqi. Tal
de expansão financeira foram momentos doutrina afirma que a China evitará o
de “outono” da potência dominante. caminho da agressão e da expansão seguido
As expansões materiais ocorrem até pelas potências anteriores no momento de
o momento-limite em que os agentes sua ascensão, pois visa crescer e avançar
capitalistas decidem manter líquida uma sem perturbar a ordem, de um modo
proporção cada vez maior do seu fluxo de que também beneficie os vizinhos e a
caixa. Ingressa-se, então, na fase financeira. estabilidade sistêmica.
E em todas as expansões financeiras de O autor ressalta que a dinâmica da região,
importância sistêmica, a acumulação de capital não só da China, é diversa da do Ocidente,
excedente em forma líquida teve como por não ter um histórico de impérios
principal efeito a reorganização geopolítica comerciais e territoriais ultramarinos. Com
do sistema, sendo essa a grande interrogação base no dizer de Hobbes de que a riqueza
intelectual no século que se inicia. acumulada com liberalidade é poder, porque
traz amigos e criados, a sustentabilidade da
prática na China dos séculos XVI a XVIII
dependia de não exaurir recursos naturais
e, diferenciando-se da acumulação por
desapropriação do modelo ocidental, de
não abalar a estabilidade sócio-política dos
Estados vassalos.
Arrighi, citando Stiglitz, atribui o sucesso
da abertura econômica chinesa a diversos
fatores, como abertura gradual, atenção
à estabilidade social, desregulamentação
e privatização seletivas, expansão e
modernização da educação superior, e forte
papel indutor do Estado na condução da
economia. Com esse processo complexo,
e provavelmente por incorporar traços
híbridos, surgem contradições tipicamente
capitalistas, como desigualdade social e
crescente descontentamento popular.
O epílogo resume as razões pelas quais
a tentativa norte-americana de reverter a

_99
_pelo mundo
_resenha

Essas características
do Consenso de Pequim
podem levar o mundo em
direções radicalmente
diferentes. Podem levar
à formação de um novo
Bandung, ou seja, uma
nova versão da aliança
do Terceiro Mundo nas
décadas de 1950 e 1960,
visando, como o antigo,
transferência de poder para o Sul global origem ao chamado Consenso de Pequim:

contrabalançar a
não vem sendo bem-sucedida. Ela criou
condições nunca antes tão favoráveis para
um caminho para os outros países do mundo
não só se desenvolverem, mas também

subordinação econômica
o surgimento do tipo de comunidade
de civilizações que Smith vislumbrou. A
dominação ocidental pode se repetir de
maneiras mais sutis que no passado e, acima
se encaixarem na ordem internacional de
modo a permitir que sejam verdadeiramente
independentes, protejam seu modo de vida e
suas opções políticas.
de tudo, ainda há a possibilidade de um longo A cooperação Sul-Sul encontra no
período de violência crescente e caos mundial Consenso de Pequim dois aspectos
interminável. A ordem ou a desordem mundial extremamente favoráveis: localização
dependerão da capacidade dos Estados mais e multilateralismo. A primeira reflete o
populosos do Sul de abrir para si e para o reconhecimento de ajustar as políticas de
mundo um caminho de desenvolvimento desenvolvimento às necessidades locais,
mais igualitário em termos sociais e mais contrariamente ao superado Consenso
sustentável em termos ecológicos do que o de Washington. A segunda, especialmente
caminho que enriqueceu o Ocidente. prezada pela diplomacia brasileira, baseia-
O que haveria mudado desde os anos de se no reconhecimento da importância da
1960, quando os países outrora chamados cooperação e de uma ordem fundamentada
“periféricos” organizaram-se pela primeira na interdependência econômica, mas ciosa da
vez, para o momento atual, em que diversidade cultural de cada país:
novamente buscam tornar mais democrático
o sistema internacional? Parte da resposta Essas características do Consenso
localiza-se na atual transição por que passa de Pequim podem levar o mundo
o sistema internacional, principalmente pela em direções radicalmente diferentes.
ascensão chinesa. Para Arrighi, tal ascensão Podem levar à formação de um novo
pode ser considerada produto de uma Bandung, ou seja, uma nova versão da
filosofia sócio-econômica com base em maior aliança do Terceiro Mundo nas décadas
igualdade e respeito mútuo entre os povos. de 1950 e 1960, visando, como o
O ganho de poder relativo da China, ante a antigo, contrabalançar a subordinação
atenção dos Estados Unidos ao terrorismo, econômica e política, mas adequado a
levou a uma inversão de papéis, dando uma época de integração econômica

_100
global sem precedentes. Ou podem que, para parafrasearmos Sugihara, o
levar à cooptação dos Estados do Sul caminho ocidental de desenvolvimento
em alianças Norte-Sul que visem conter convirja para o caminho da Ásia
a subversão, liderada pela China, da oriental, e não o contrário. Essa
hierarquia global de riqueza. descoberta não é nova. Há quase
oitenta anos, em dezembro de 1928,
Arrighi identifica a possibilidade de Mohandas Gandhi escreveu: “Que Deus
um “novo Bandung”, dessa vez com base impeça à Índia adotar a industrialização
econômica razoável, pois poderia ser feito à maneira do Ocidente. Hoje, o
o que o anterior não conseguiu: mobilizar imperialismo econômico de um reino
o mercado global como instrumento de insular minúsculo mantém o mundo
equalização das relações de poder entre acorrentado. Se toda uma nação de 300
Norte e Sul. A viabilidade reside no fato milhões de pessoas adotasse exploração
de que as bases do “antigo Bandung” eram econômica semelhante, devastaria o
estritamente político-ideológicas, facilmente mundo como uma nuvem de gafanhotos.
vulneráveis à contra-revolução monetarista.
Agora, são basicamente econômicas e, como Em resumo, Adam Smith em Pequim, última
tais, mais sólidas. obra de Giovanni Arrighi antes de sua morte,
A predição do autor parece confirmar- aponta a tendência de que o século XXI trará
se, pois na nova crise financeira os países um modelo híbrido de desenvolvimento,
do Sul poderão ter papel fundamental, já mesclando a tradição não-capitalista da Ásia
que a resistência do Norte à “subversão” da oriental e a tradição capitalista do Ocidente.
hierarquia global de riqueza e poder só pode A configuração geopolítica daí derivada
ter sucesso com a colaboração organizada pode ter como resultado a consolidação
dos países em desenvolvimento. A condição do multilateralismo político, econômico e
para tanto seria que os grupos dominantes cultural. Nesse cenário, o Brasil deverá assumir
do Hemisfério Sul buscassem emancipar sua posição de interlocutor ativo, altivo e
não só seus países, como o mundo todo, da global, por dispor de um excedente de poder
devastação social e ecológica provocada pelo fundamental em tempos de multipolaridade: a
desenvolvimento capitalista ocidental clássico: capacidade de dialogar com os mais diversos
atores do sistema internacional.
Uma inovação de tamanha
importância histórica mundial exige Eduardo Brigidi de Mello (turma 2008-2010
certa consciência da impossibilidade de do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e
levar os benefícios da modernização à mestre em Ciência Política, pela Universidade
maioria da população mundial, a não ser Federal do Rio Grande Sul.

_101
POESIA E PROSA

Tatajuba
Eduardo Freitas de Oliveira

O vento continua a soprar a areia


fina por sobre os telhados da nova Tatajuba.
Homens, mulheres, crianças, velhos – todas as
mãos afundadas nos montículos brancos que
se formavam em cada canto da vila, tentando
nos resgatar da boca infinita das dunas.
Aqui da janela vejo a praça através
da areia que sopra... A igrejinha, toda
branca, continua parada ali no centro de
tudo, impassível. As portas já estão quase
vedadas, o teto range sob o peso areia que
se acumula incessante. A igreja: a igreja é
o signo do destino que se aproxima. De
início, a comunidade acudia em mutirão
para retirar a areia que cercava o portão
de entrada, se espalhava pelos bancos e
castigava os joelhos dos que rezavam; o uivo
do vento do lado de fora era abafado pelo
canto que erguiam as gargantas ásperas.
Mas as dunas continuaram a avançar sobre
o vilarejo, mais e mais rápido, e logo todos

_102
Pedro Kuo Passos

tiveram que abandonar os cuidados da igreja nas asas dos anjos, na cruz. A areia invade
na tentativa de salvarem suas próprias casas. a nave da igreja como invadiria uma
Olhar pela janela agora é ver a vida correr ampulheta, e escorre pelo altar como
em dois tempos distintos: nas casas em escorre o próprio tempo.
volta, prevalece o tempo circular de quem Essa igreja é uma cópia fiel daquela que,
luta contra a natureza. Assim que se acorda, décadas antes, foi devorada pelas dunas
trata-se de desconstituir o que a tempestade com o restante da velha Tatajuba. Agora
da madrugada criou. Montanhas de areia me lembro; a igreja aonde ia à missa todos
são empurradas para fora, e tudo volta a os domingos da minha primeira infância. A
ser como foi certa vez. No dia seguinte, o igreja velha.
processo se repete – vento sopra, o homem Olhando aqui da janela na direção do sol
ressopra. Giram os ponteiros do relógio para nascente, ainda é possível ver uma elevação,
voltarem ao mesmo lugar; as engrenagens um pequeno promontório que se destaca
são as mãos calejadas, os peitos cravados de em meio à duna. É a torre da igreja velha,
grãos, o rosto arranhado de areia. que até hoje marca, para não esquecermos,
A igreja, contudo, é diferente. Em meio a localização – e o destino – da velha
às casas que retornam todo dia ao mesmo Tatajuba. A vila que jaz embaixo das dunas
momento passado, a igreja avança, sem de areia fina.
relutar, rumo ao seu destino inexorável. Sim, me lembro; lembro de acordar
Nela a areia se acumula selvagem, obstrui cedo e ajudar a família a retirar a areia
a passagem, pega no manto dos santos, que, acumulada sobre o telhado, ameaçava

_103
_poesia e prosa

a estrutura da casa, que se curvava sob o lembrava dessas velharias, do suor dos
peso imprevisto. Lembro de tentar agarrar tempos mais difíceis. O pai chegou por aqui,
um monte de areia para expulsá-lo e vê-lo levantou a nova casa sozinho, tijolo por
escorrer, rapidamente, entre as fendas da tijolo – e depois morreu. Os irmãos então
minha mão, pelos espaços entre os meus passaram a sair no barco pelas madrugadas,
dedos. Contra aquela areia nada podiam trazer o peixe, e a vida entrou nos eixos.
as mãos e a vontade dos homens. Ela A mente apagou a memória das coisas que
burlava todos os esforços e, como mágica, passaram. Acho que se, naqueles tempos,
permanecia exatamente onde estava. O pai eu desse de pensar na velha Tatajuba sendo
desesperava – buscava abraçar uma carga tragada pelo estômago das dunas, eu mesmo
maior de areia contra o peito e jogá-la par não podia acreditar.
fora da casa que era dele; mas a areia não Mas era verdade, pura verdade. Podia
cabia naqueles braços pequenos de homem, se tratar de mero delírio de velha, anciã
e se diluía ante os nossos olhos como uma senil perdida nesse canto do Ceará que
nuvem – ou um sonho. tem tempo demais para delirar, imaginar
Depois, passávamos ao interior da casa. as coisas mais fantásticas. Mas eu tenho
E o trabalho era ainda mais duro; a areia se uma memória da infância que, de tão viva,
espalhava por todo o chão, invadia o cano se mistura com o presente de um jeito
da torneira e as gavetas de roupa, polvilhava engraçado e um pouco torto: e a lembrança
os lençóis. Havia dias em que, para acordar, de, no final da tarde, ficar em pé no meio
tínhamos que fazer força para empurrar da praça – paradinha, os olhos fechados,
a pequena duna que se formara sobre os a respiração tranquila – sentindo a areia
nossos troncos durante a noite. esvoaçante se roçar nas minhas pernas,
Com o passar do tempo, era impossível se prender nos meus cabelos, entrar pela
ficar sequer um segundo sem contato minha boca, pelo meu ouvido, pelas minhas
com a areia. O vento a soprava sobre nós narinas. Um pequeno monte de areia se
mesmo quando debaixo da água, a ducha formava rapidamente sobre os meus pés e
do chuveiro contra a rajada que entrava eu me pegava imaginando que ia me fundir
pelas frestas da janela. A mãe botava a mesa na duna, me esfarelar em mil grãozinhos de
e os grãozinhos se imiscuíam na comida, areia, voar com o sopro do vento.
tomavam parte no arroz. E comíamos E esses olhos pesados, agora... Esse vento
calados, a areia estalando dentro da boca carregado brincando nos cabelos... Quando
com o triturar das dentadas. Nada além era pequena, ouvia os antigos comentarem
disso: nós comíamos areia. que as dunas caminhavam. Olhava para o
Engraçado pensar nisso agora... Desde horizonte e era exatamente isso – as dunas
que saímos da velha Tatajuba que não me vinham na nossa direção, devagar mas sem

_104
Muitos já se limitam a juntar o que podem salvar
e preparar a partida; cansados de lutar contra as
dunas, preparam-se para fugir dela. Para mim, no
entanto, não faz mais sentido fugir. Fugir de quê, se
há algo inescapável que me espera?

pausas, sem concessões. É exatamente isso: Cá estou, onde meus passos


basta fechar os olhos e esperar que elas inconscientemente me levaram: o centro
cheguem, que venham ao meu encontro. da praça. A igreja é a mesma, o vento é o
Os antigos... A antiga agora sou eu, esse mesmo, as dunas continuam sua caminhada
monte de pele jogado sobre um ranger incessante. Se fecho os olhos e respiro
de ossos velhos, essa vida decrépita nesse fundo, eu também ainda sou a mesma.
corpo decrépito. A igreja condenada me Ainda sou capaz de curtir os grãos de areia
lembra, da forma mais inclemente, do rolando pelas maçãs do rosto, de ouvir o
destino que me espera. Me lembra de que, canto da natureza, de sonhar.
apesar dos meus melhores esforços, da Se abrisse os olhos agora, creio que veria
minha disposição em acordar e tentar, a cada um horizonte cortado por filas de homens
dia, começar do zero – encher o estômago cruzando a amplidão das dunas em busca de
que se tinha esvaziado, limpar os dentes uma nova vida, de um novo começo em uma
mais uma vez sujos, recostar na rede o novíssima vila de Tatajuba. Mas não: sigo de
corpo cansado de trabalho – meu destino se olhos fechados. Já não me interessa aonde vão,
aproxima a cada dia. É impossível enganar o aonde vamos. Nesse momento, já vivo numa
tempo, tergiversar, esconder-se. vila toda própria – uma vila que, oblíqua, não
E, apesar disso tudo... Saio de casa, os cabe em nenhum recorte de tempo e espaço.
passos lentos. O cenário é apocalíptico: casas Uma vila onírica, única, que é todas as vilas do
semi-soterradas, crianças chorando, homens mundo fundidas em uma. A minha Tatajuba.
desesperados. Muitos já se limitam a juntar Nem nova, nem velha; simplesmente minha.
o que podem salvar e preparar a partida; Os ventos da destruição ainda sopram,
cansados de lutar contra as dunas, preparam- mas sinto-os passando ao largo.
se para fugir dela. Para mim, no entanto, não
faz mais sentido fugir. Fugir de quê, se há algo Eduardo Freitas de Oliveira (turma
inescapável que me espera? Não se pode IRBr 2008-2010) é bacharel em Direito pela
enganar o tempo com a distância... Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

_105
_poesia e prosa

Dedos
Bailarinos
Eduardo Brigidi de Mello

Lição política internacional: França.


Embevecido pela intemperança,
meu espírito ia longe, sem peias:
vagava no mundo das ideias - que ideias!

Mas, onde vamos?


Em que classe estamos?
Juraria que de Ciência se tratava, mas... desatinos!?
Agora, sou espectador: teus dedos, bailarinos.

Leveza/transe: tudo isso porque esculpiste uma trança!


que em meu olhar evocou uma terna dança:
cadenciado balé de dedos habilidosos
para olhos felizes, gratos, sequiosos...

Eduardo Brigidi de Mello (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestre em
Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio Grande Sul.

_106
delfos
Janaina Lourençato

Faz-te como uma revelação Quem transporta a exatidão desperto?


na fímbria luz desta aura baça À manhã surpreende os sonhos
e se te encontro em águas a matéria certa
não mas o ar que inspira retém tantos e diversos
ora a linha emerge das memórias vãs, epifania crédula.
e se trança em marés calmas. Levianamente séria.
Fiz-te um ramalhete
na abnegação III
e de que basta...
silencia-me a terra um dia Quando destes teus versos
e te envolvo no seu sopro o meu
então. desta vastidão
a minha vista
II do mais puro ser
esta imagem restrita.
Perdido o dom de te predizer E se
eu te contradigo uma estrela fixa traz a certeza, a dor, a ilusão
e perpasso estas horas de desalinho quem sou esta luz indistinta
que a cada valsa me entorpece. e num momento
Ao timoneiro eu perscruto quem segue estou.
e a surpresa, um rodopio.

Janaina Lourençato (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

_107
_poesia e prosa

O
que
não
existe
mais
Krishna Mendes Monteiro
ILUSTRAÇÃO DE Pedro Vinícius do Valle Tayar

_108
N a primeira vez em que te vi depois
de tua morte, tu estavas na sala, de pé em
Pensei em escalar a socos o teu dorso, mas,
antes de fazê-lo, lembrei-me daquele dia, do dia
frente à minha estante e aos meus livros. O de tua morte, lembrei-me da caixa de pinho
imaculado paletó bege de sempre, a cadência forrada de cetim em que dormias. Depositada
firme dos sapatos a esmagar a superfície do sobre o tapete que teus pés novamente pisam,
tapete, tu alteravas a ordem dos volumes, lá estava ela, suas seis argolas de bronze a
retiravas compêndios, violavas páginas, pender no espaço, solitárias, subjugadas.
maculavas segredos e silêncios. Arrancavas das Lembrei-me das coroas, das flores, dos círios.
prateleiras autores há muito ali abrigados, Lembrei-me do aliviado adeus que te dei.
personagens e sonhos por tanto tempo Adeus. Não, o que me agradava em ti não era a
esquecidos. Sem dar-me conta da distância, dos forma como tu chegavas de surpresa na
mundos a nos separar, sem ponderar que véspera dos dias santos de fim de ano, o
talvez o conhaque ou os cigarros ou os carneiro nos ombros, a faca do sacrifício nas
vapores da noite aos quais me submetia mãos. Não me agradava a família inteira
fossem os responsáveis por teu regresso, desci reunida no círculo em torno de tua presença, o
os degraus que davam para a sala do sobrado cortejo em que nós, crianças, nos espremíamos
da Rua da Várzea, onde tu, eu e ela (lembras até o terreiro, onde tu, pressionando todo o
dela?) por tanto tempo moramos. Corri peso de teus joelhos sobre a garganta do
possesso pelos degraus, lancei-me à tua frente animal, cortava centímetro a centímetro por
e interpelei-te com uma bravura que em mim entre a lã branca, vertendo o jorro de sangue
nunca pulsou durante todo o tempo em que na vasilha que todos nós dividiríamos, boca a
estiveste entre os vivos. Sim, interpelei-te, boca, ombro a ombro, mão a mão. Todos nós,
olhos nos olhos, o meu bafo áspero a arranhar tua prole, beberíamos juntos noite adentro,
teu semblante, e disse-lhe com ares de bêbado bendito seja Ele. Não, não era isso o que mais
soberano: “Que direito tens tu de mexer em me agradava em ti. Gostava da maneira como
meus livros?”. E então tu me olhaste de cima a nossos olhares se fixavam quando tu, distraído
baixo, me deste as costas e prosseguiste em e indefeso a barbear-te, mirava-me pelo
teu lento e indiferente trabalho de violação. espelho nas manhãs, da mesma forma que me

_109
_poesia e prosa

olhas agora, na primeira vez em que te vejo moldura. E então caminho até a estante, rumo
depois de tua morte. Tu me olhas pelo espelho a eles, aos meus livros, e então farejo teu
da sala, entre um e outro volume que retiras, rastro ainda fresco, sinto tua respiração ainda
que folheias, e mirando-me, emoldurado pelo viva. Fora de lugar, de ordem, modificados,
marfim a envolver o vidro, tu investigas com o aviltados, meus livros nesta estante são
verde dos olhos este aposento, como a testemunho de que ainda não poderei terminar
perguntar, a questionar: “Onde estão todos?” este relato, dizendo: “Encerrado, ponto final, tu
Não estão, eu vos respondo. Não mais existem, não existes mais”. Não, os livros carregam
eu vos proclamo. Deles, restam apenas pinturas consigo um veredicto: tu e eu estamos
na parede. Sim, agrada-me em ti a forma encerrados aqui, nesta história, e o curso
perdida com que teu semblante percorre os destas linhas deve prosseguir. Continuemos,
quadros, o vestido de renda da irmã então. O que eu queria, o que eu mais queria
reproduzido a óleo, as gravatas do tio e do avô em ti era que aquelas tardes em que eu te
finamente pinceladas, a cesta de flores que ela perseguia pelos corredores durassem por toda
(lembras dela?) costumava carregar às tardes, a eternidade. Tu partias escada acima, passo
tão bem retratada em reflexos de verde, rosa e rápido, olhando para trás e sorrindo, escalavas
carmim. E eu olho para ti por entre este desenvolto os degraus com pernas
espelho, e eu a mim mesmo digo que estes infinitamente mais longas que as minhas.Virava
teus olhos não mais existem, que este teu à direita. Desaparecia. E quando eu finalmente
paletó bege não mais existe, que este teu lá chegava, no cume da escadaria, um túnel
cabelo branco e nas pontas engordurado não interminável estendia-se defronte a mim,
existe, não existe, e que a mim basta virar-lhe iluminado por lustres circunspectos. Em qual
as costas e retornar à cama para, de manhã, das múltiplas portas do corredor estarias tu?
dar com meus livros queridos na estante, Os lustres oscilavam como pêndulos. Onde
perfeitamente ordenados, como sempre os estarias tu? E então o fascínio de nossa
deixei. Adeus. Acordo. Um feixe de luz irrompe brincadeira infantil tinha início. Uma a uma, eu
pela cortina, atravessa meu cobertor e pousa abria as passagens, e mundos se descortinavam.
em minha cabeceira. Levanto-me, colho em Uma mulher enchendo um jarro. Um homem
minhas mãos essa luz e, pé ante pé, descendo na cama com duas amantes, uma jovem, outra
os degraus, convenço-me de que tu e tua velha. Um andarilho e seu cachorro. Uma biga.
presença não passaram de um sonho ruim, A morte. Uma roda gigante. Eu, refletido no
alimentado pelo peso frio que me corrói por espelho. E esta porta tão conhecida, há anos
dentro. Ao fim da escada, parado defronte ao trancada, que tento inutilmente agora abrir. Ela,
espelho, certifico-me de que tu, de que teu sempre ela, com sua fechadura resistente a
olhar, não mais habita os limites daquela qualquer investida. Faço, assim, o que sempre

_110
fiz. Bato. Bato. Bato. E a passagem se abre, mim, marco com trapos minha trajetória no
revelando todo o esplendor de teu gabinete, túnel em que tanto te busquei. Acima, lustres
de montanhosas estantes de mogno oscilam, circunspectos. Ladeando-me, uma
preenchidas de alto a baixo com infinidade de passagens aguarda. Mas o homem
encadernações. Ao ver-te sentado soberano na nu sabe que há tempos todos estes quartos
poltrona, fumando um cigarro e com um estão vazios. Chave nas mãos, ele abre a porta
volume nas mãos, penso que até mesmo a de teu gabinete. Puxa a arca escondida atrás de
morte não foi capaz de te privar de tua beleza. estantes em cacos, senta em tua poltrona e,
Sim, continuas belo. Dou dois passos e entro, abrindo o baú, certifica-se de que, roto e puído,
em silêncio. Sento-me a teus pés como sempre teu terno lá está, de que, partida ao meio, tua
fiz. Sabendo-me ali, tu me miras de relance, por bengala lá está, de que, foscos e sem brilho, teus
cima das páginas que lê. Nossos olhares fixam- sapatos lá estão, de que, morto eternamente às
se um ao outro, cheios de subentendidos. E ao sete horas, teu relógio de bolso está lá, lá está.
contemplar o caimento de seu terno bege, o Bato a porta, fecho o gabinete.Tomo um longo
brilho espelhado de seus sapatos de verniz, a banho, lavo-me da sujeira. E, antes de apagar a
leveza e o equilíbrio da bengala que manténs à luz e dormir, lanço um último olhar ao homem
tua direita, junto de ti, penso que talvez seja eu nu no espelho, a ele digo num sorriso que
o morto e seja tu o vivo, que eu não mais sossegue, pois nada, nada existe mais. Boa noite.
exista e tu sim, e que, nesse caso, o sobrado da Adeus. Sonho. São sete horas, manhã de inverno.
Rua da Várzea ainda é tua legítima propriedade, Reviro-me nu debaixo das cobertas, tento de
e que, sendo assim, daqui devo retirar-me, e todas as maneiras encontrar desculpas para
que, como morto que sou, devo cobrir-me de fugir ao ônibus, ao comboio de crianças que
terra, adormecer, para finalmente estar longe dentro em pouco por aqui passará. Manhã de
de ti. Deixo o gabinete. Bato a porta. Adeus. inverno, ruas e calçadas vestem-se de gelo, nem
Acordo no terreiro, a lama cobre todo meu mesmo este cheiro de café que inunda meu
corpo. É fim da tarde, uma chuva fina, quarto é suficiente para me despertar. E uma
melancólica, está a cair. Levanto-me. Pé ante pé, porta se abre, és tu, e uma mão pousa em meus
subindo os degraus, busco em meu bolso a cabelos, és tu, e uma boca em meu ouvido
chave que trago comigo desde que partiste. sussurra coisas a sorrir, és tu, e uma voz ameaça
Passo a passo, degrau a degrau, arranco de meu puxar minhas cobertas, és tu, e diz que sábado
corpo roupas envoltas em barro, livro-me de não tardará a chegar, és tu, e por fim abre a
meu paletó, gravata, de minha camisa, calça, de cortina, a janela, a luz irrompe, faz-se a luz, és tu.
minhas meias, roupas de baixo, e atinjo, mais Acordo trinta e seis anos depois, nesta cama, a
uma vez, o cume da escadaria.Viro à direita. proteger minha vista da cegueira momentânea, e
Livrando-me de tudo de impuro que resta em quando consigo divisar as fronteiras do

_111
_poesia e prosa

aposento, dou contigo na janela, cobertor nas fora, volta a chover. Finda a ceia, levanto-me,
mãos, a lançar-me um último e irônico sorriso tomo da taça de vinho, e, de pé, a ti oferto um
antes de sair, de bater a porta, de dizer adeus. brinde, olhos nos olhos, minhas palavras ásperas
Decido-me. Desço correndo as escadas, lanço- a arranhar teu semblante: “Pai, tu és aquele que
me ao mundo, abandono o sobrado, as pernas eras.Tudo acabou, pai, tu morreste, pai, tu não
voam sobre paralelepípedos da Rua da Várzea, e, existes, pai, tu não existes mais.” Tímidos,
chegando à cidade dos mortos, ao terminar de constrangidos, o tio, a irmã e o avô retiram-se
percorrer seus labirintos, caem de joelhos sob da mesa, desaparecem nas cores de seus
um último cipreste, atingem o solo como se quadros. E então tu te levantas da cabeceira
batessem num obstáculo duro, invisível. E os lentamente, caminhas até mim, e com um vazio
olhos leem dizeres esculpidos na pedra - eras tu a vincar teu rosto, traz os lábios aos meus
–, e os dedos perfuram e apalpam a terra ouvidos e diz palavras que nunca decifrarei,
molhada – eras tu –, e as narinas aspiram teu abafadas pela chuva a cair.Tu te viras,
cheiro, teu calor, sete palmos abaixo de mim – desapareces pelo corredor, apagas com vagar
eras tu, eras tu. Isso é o que penso e repito à cada um dos lustres, prepara-se para dormir.
sombra dos ipês de nossa rua, enquanto vejo, ao Dou-te as costas. Caminho em direção à escada,
longe, a fachada do sobrado surgir. Abro o ao meu quarto. Passo em frente ao espelho, nele
portão. Piso a grama molhada. Passo pelos sinto meu reflexo preso, encerrado na moldura
canteiros, pelo chafariz. Noto uma cesta de de marfim. E ao contemplar meu terno bege, o
flores na soleira da porta, seus tons de verde, verde de meus olhos, ao mirar o branco e a
rosa e carmim. Entro. Na sala, acomodados ao gordura de meus cabelos, o perfeito caimento
redor da mesa, tu, o tio, o avô e a irmã pousam da bengala a me apoiar, percebo que nunca,
em uníssono seus olhos sobre os meus. Sim, tu nunca poderei dizer: “Encerrado, ponto final, tu
ficas bem como estás na cabeceira, neste não existes mais”. Não, o espelho traz consigo
assento de alto espaldar. Acomodo-me no outro um veredicto: tu, pai, estás encerrado em mim.
extremo, sinto a textura macia da toalha de Olho para o corredor. O último lustre se apaga.
renda, o brilho agudo dos talheres, os retratos E ao deitar em minha cama, na última, derradeira
vazios nas paredes. Noto um lugar vago à tua vez em que te vi depois de tua morte, dou-me
direita, penso nela e em sua cesta de flores, conta, pai, concluo, pai, que tu sempre haverás
lembro-me dela, descanse em paz. E então de existir. Boa noite. E Adeus.
comemos. Juntos. Os cinco, com a mais plena
certeza de que tudo, tudo começava a acabar. Krishna Mendes Monteiro (turma 2008-
Boca a boca, ombro a ombro, mão a mão, as 2010 do IRBr) é bacharel em economia e mestre
mesmas vasilhas dividimos. Silenciosos, em Ciências Políticas pela Universidade Estadual
compenetrados, olhos baixos. Comemos. Lá de Campinas.

_112
O viajante
Irineu Pacheco Paes Barreto
À memória de João César Paes Barreto

A palavra de um cego, o som do seu violão,


Um cantor astronauta,
Um dia tocará um coração pequeno
Fazendo vibrar aquele sentimento obscuro
Com uma nota só e abundante de conhecimento.

Mas as minhas palavras


Enchem teus ouvidos de ferro velho retorcido
Quebrando os espelhos do teu quarto de vidro.

Entre os teus olhos e os meus


Há cinco segundos-luz
De detergente denso e negro
Com o qual lavo as minhas mãos
E tento me convencer
De que foi no teu coração velho, fraco e remendado
Que todas as tuas vozes se perderam
do grito à sugestão mais íntima –
Todas as tuas vozes se afogaram
Nos teus pulmões encharcados.

E me resta de ti a tua metade.


Um relógio rude que não mostra as horas passadas no teu pulso,
Uma fotografia muito antiga de quando eras muito moço,
Esfinges que se levantam como leoas famintas à caça de teus despojos,
Agora que todos os teus desejos migraram para o nada.

E me pergunto, sem sabedoria, como fazer o bem


Com esses elementos:
A tua nudez, teus pés descalços, um deles sem dedos, as tuas mãos frias,
Teu corpo inerme e inerte no interior da terra...

Haverá chegado o momento


De lançar o fim ao fogo
E forjar outro nascimento?

Irineu Pacheco Paes Barreto (turma 2008-


2010 do IRBr) é bacharel em Engenharia Elétrica pela
Universidade Federal do Pará, mestre em História da
Ciência pela Universidade de São Paulo e autor de
Páginas Poluídas (poemas, Ed. Scortecci, 2004).

_113
DEPOIMENTO
Eduardo Brigidi de Mello

Crônicas do Sauípe

Ricardo Stuckert

Aos colegas da Turma 2008-2010 do Instituto Rio Branco,


companheiros de uma experiência incomum

La vida no es la que uno vivió,


sino la que uno recuerda
y como la recuerda para contarla.

(Gabriel García Márquez, Vivir para contarla)

_114
“A Procura da Poesia” participação em uma Cúpula de alto nível,
Uma das dificuldades de buscar a linha como poderíamos conter o entusiasmo?
perfeita é a inevitável insatisfação que ocorre Nesse primeiro dia tivemos a primeira
quando a ideia é traduzida em parágrafo. Melhor reunião no Centro de Convenções, que ainda
dito: as ideias podem ser transmitidas pela estava sendo preparado para a montagem
escrita, pois é possível estruturar tese, antítese, das inúmeras salas de conferências. Fomos
síntese. Com sentimentos e percepções tudo recebidos afavelmente pelo Embaixador Ruy
é mais difícil, não há conclusão, somente um Pereira com “tenho grande alegria de ter
labirinto de sons, cheiros, risos, lágrimas e vocês aqui, vocês são ‘carne de canhão’, sem
cabelos ao vento. Como relatar o indescritível? vocês ele não dispara, sem vocês nada disso
Relatado, como convencer os céticos? seria possível”. Disse que não seria apenas “a”
Tudo começou na manhã do dia 8 de Cúpula, mas “as” Cúpulas, cada uma com um
dezembro de 2008, uma segunda-feira nublada. propósito especial: Mercosul, União das Nações
Foi um voo diferente, pois o embarque Sul-Americanas (Unasul), Grupo do Rio e a
ocorreria na Estação de Autoridades da Base inédita Cúpula da América Latina e do Caribe
Aérea de Brasília. A sala de espera, sóbria em de Integração e Desenvolvimento (Calc).
seus confortáveis sofás, mescla-se na memória Essa última seria especial: pela primeira vez,
com jovens semblantes de expectativa, em aproximadamente dois séculos de história,
semblantes de diplomatas ainda em formação. os países da América Latina reunir-se-iam
Finalmente conheceríamos o famoso “Sucatão”, por iniciativa própria, para iniciar a definição
apelido dos velhos Boeing 707, da Força Aérea de uma visão latino-americana frente aos
Brasileira (FAB). novos desafios do sistema internacional.
O avião não era dos mais modernos Como disse o Embaixador Ruy Pereira,
e a sensação era de ansiedade dúbia “vocês poderão dizer, quando forem embora
– misto de medo e brincadeira –, apesar da e daqui a cinquenta anos, ‘eu estive lá’. Sejam
tranquilidade dos colegas da Aeronáutica bem-vindos, olhem a paisagem com calma,
que nos recebiam na entrada da aeronave. enquanto passam por ela a toda velocidade”...
O nervosismo durou pouco: partimos para Logo após, falou o Ministro Eduardo
Salvador com um fartíssimo café da manhã, Carvalho, com mais detalhes da nossa
num voo que só não foi mais tranquilo por participação. “Qualquer movimento de Chefe
conta da aterrissagem-mergulho na chegada, de Estado deve ser indicado para o diplomata
menos de duas horas depois. da etapa seguinte”, “armas envolvem questão
Desembarcados, fomos divididos: de segurança nacional, se algo der errado...”,
Hospedagem e Cerimonial foram para “o pessoal da hospedagem vai ter trabalho,
a Costa do Sauípe, enquanto Apoio às são quase mil e cem quartos reservados para
Delegações, Credenciamento, Transportes as delegações”, “Não pensem em horário de
e “Dipligs” conheceriam o aeroporto. trabalho, em conferências internacionais as
Recebemos as primeiras instruções do conversas seguem noite adentro, às vezes é
Ministro Eduardo Carvalho, na Sala Vip, onde na madrugada que se decidem as coisas mais
posteriormente seriam recebidas autoridades. importantes”.
Fomos para o Sauípe por volta de quatro Os grupos reuniram-se com seus respectivos
horas da tarde: o calor, acariciado pela brisa, coordenadores, encerrando o longo dia de
evocava um clima de serenidade. Em um trabalho por volta de onze horas da noite. Essa
lugar assim, onde se somariam, para muitos, a era a rotina, mas em alguns dias o trabalho era
primeira experiência profissional e a sonhada menos desgastante, e, quando possível, nos

_115
_poesia e prosa

reuníamos na piscina, sob a luz das estrelas e o seleto e amizades sendo construídas à base
arrebatamento do luar, para relaxar um pouco de muita risada. Risadas, aliás, que enchiam
ao som dos violões de alguns colegas. o GT sempre que surgia alguma brincadeira
A semana foi de muita pressa para que para descontrair e manter o companheirismo
tudo saísse perfeito nos dois dias em que se em momentos de tensão, pois sempre é bom
acumulariam as reuniões, 16 e 17 de dezembro, saber, na SERE, quem é o seu colega.
e pareceu interminável, pois o trabalho iniciava Na noite do dia 12, a base do trabalho estava
cedo na sala “Grupo de Trabalho CALC” (o pronta. Depois de um jantar na Vila, voltamos
“GT Calc”). O “GT” era bem agradável, já que para o hotel e ficamos conversando na varanda,
o ar condicionado aliviava o calor úmido e com vista para uma grande área verde, para
pesado do Sauípe. O ambiente não poderia ser a piscina, para o mar. Quando apareceram os
melhor, pois o trabalho era mesclado com as colegas do credenciamento, que até então
brincadeiras e a vista: se o “GT Calc” estivesse estavam em Salvador, foram ovacionados ao
muito cheio, bastava sair para contemplar o chegar de ternos em meio às camisas, já que
mar, ou trabalhar nas mesas do lado de fora. o traje no Sauípe era mais informal. Como um
O GT Calc, por vezes, entrava em ebulição. batalhão que retorna do “front”, ouvimos muitos
Montagem de manuais, de programas, o pessoal causos, confirmando o que havia pensado quando
do credenciamento com caixas e caixas de chegaram:“a noite vai ser longa...”
credenciais, “Embaixada da Colômbia, atende!”, Os preparativos finais para as Cúpulas
o barulho constante da impressora, que se começariam na manhã seguinte.
somava à irritação por ver a miragem da piscina
logo ali, “Quem quer programa!?”, “Fecha a
pooorta”, reuniões de emergência, “Diplig, diplig,
“Vengo del Sur”
alguém?!”, “E a cachaça para o brinde, já foi No dia 15 de dezembro, além de a
providenciada?”, a disputa pelos computadores, mesa do meu quarto ter sido requisitada
“Afinal, o Presidente Uribe vem ou não para o café da manhã do Presidente da
vem?”, “Alguém de transporte? Carro para República, iniciou-se a chegada dos Chefes
presidência da República’... ‘eu gelo quando ouço de Estado e de Governo. Antes disso, já havia
‘Presidência da República’”, sugestões de colegas testemunhado a chegada do Ministro de
da coordenação de “não caiam na ansiedade Estado das Relações Exteriores, Embaixador
dos jovens, acalmem-se, as respostas virão na Celso Amorim, e do Secretário-Geral das
hora certa”, “o presidente fulano não gosta de Relações Exteriores, Embaixador Samuel
ar-condicionado, o beltrano só toma café de tal Pinheiro Guimarães, ao Hotel Conventions.
lugar”, e assim o dia inteiro. Nesse mesmo local, vários colegas
Dos cinco hotéis que formam a Costa aguardavam o novo Presidente de Cuba, Raúl
do Sauípe, quatro deles foram fechados Castro, principal atração do evento, em sua
para as Cúpulas. Ficam todos perto do mar, primeira viagem internacional.
divididos pela Vila Nova da Praia, centro Sua chegada foi tranquila, aceitando a
com lojas e restaurantes. Hospedados no fita do Senhor do Bonfim oferecida pelas
Hotel Conventions, o mesmo das delegações baianas, antes de rápida entrevista à agência
de Brasil e Cuba, costumávamos jantar no espanhola EFE: “Señor Presidente, para sair
restaurante do Hotel Suítes, onde ficava o do isolamento Cuba fará concessões?”,
“GT Calc”. O restaurante tinha como atração, “Concessões a quem?”, respondeu Raúl,
nas mesas ao ar livre, uma combinação para surpresa da jornalista, ao que ele seguiu
especial: calor-brisa, música ao vivo, cardápio sorridente, dizendo que Cuba estava disposta

_116
a conversar, desde que em igualdade de café, acarajé, vatapá e salgados. O mais saboroso,
condições1. O Presidente Lula, mais tarde, porém, eram as impressões: o Presidente
disse que “Cuba não tem que fazer nenhum do Paraguai, Fernando Lugo, vestindo uma
gesto. Quem tem que fazer um gesto são os serenidade de bispo, acidentalmente pisou o
EUA, que fizeram o gesto de bloquear”2. pé de um colega, “perdón, perdón, como estás,
Nessa mesma noite, fui ao Hotel Golf&Spa, chico”. Ao lado, no almoço na Tenda Presidencial,
de arquitetura mais tradicional e um lobby os Presidentes Lula, Evo e Cristina conversavam
sempre agradável, assistir à chegada do e riam, enquanto os Presidentes Lugo e
Presidente da Bolívia. Evo Morales chegou sem Correa trocavam ideias ao lado. A Presidente
alarde, saudando a todos, vestindo calça jeans e Bachelet procurava a sala dos presidentes, eu
a tradicional jaqueta com bordados indígenas, e mais três colegas ouvíamos o Presidente
acompanhado de seus filhos adolescentes. Chávez conversar com um grande grupo, o
Mantinha fisionomia serena em momento Presidente Evo perguntava pelo toalete, “por
delicado na Bolívia, que enfrentava conflitos por allá, Señor Presidente”, o Presidente Lula
autonomia em algumas regiões. Nesse mesmo elogiava o cardápio para um assessor, “estava
hotel estavam, entre outros, os Presidentes de boa a comida”...
Argentina, Paraguai,Venezuela, Equador. A XXXVI Reunião dos Chefes de Estado
O dia seguinte, 16 de dezembro de 2008, do Mercosul não conseguiu atingir seu
seria o mais importante. Acordando um pouco objetivo principal (o fim da dupla cobrança
mais cedo que de costume, às seis da manhã, da Tarifa Externa Comum – TEC), mas
começamos a preparação da Cúpula do avançou em diversos pontos, a começar pelos
Mercosul, a primeira das Cúpulas de Salvador, inúmeros encontros entre representantes
cada um na respectiva função: preparar os de governos estaduais e da sociedade
cortejos dos Chefes de Estado e de Governo civil, realizados paralelamente aos eventos
até o Centro de Convenções, para serem presidenciais. Ponto importante foi o item
recebidos pelo Presidente da República, Luiz 13 do Comunicado Conjunto dos Estados-
Inácio Lula da Silva; coordenar a imprensa; Partes do Mercosul e Estados Associados,
preparar as salas de reuniões com todos os em que se registrou a satisfação pela
detalhes do cerimonial; atender à multidão que realização, em 10 de agosto, do Referendo
congestionava o posto de credenciamento. Revogatório na Bolívia, com participação da
Os celulares não paravam de tocar, e cada Missão Observadora Eleitoral Ad Hoc do
um de nós recebia ligações de quase todos os Mercosul. No item 12 do mesmo comunicado
colegas, uma após a outra. Pode-se dizer que foi reiterada a Declaração de 25.06.1996,
todos falaram com todos em poucas horas: reafirmando-se o respaldo aos “legítimos
nada mais simbólico para expressar os laços direitos” da Argentina na disputa de soberania
de companheirismo que formamos desde o relativa à questão das Ilhas Malvinas.
primeiro dia. O Mercosul também celebrou a
Fora da Sala Plenária havia, além de telões, implementação do Sistema de Pagamentos
comes e bebes: água, suco de acerola e laranja, em Moedas Locais entre os Bancos Centrais
1 15/12/08 - 23h28 - Atualizado em 15/12/08 - 23h30 “Raúl Castro é o primeiro governante a chegar à Costa do Sauípe”
(http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL924047-5602,00-RAUL+CASTRO+E+O+PRIMEIRO+GOVERNANTE+A+CHEGA
R+A+COSTA+DO+SAUIPE.html
2 Entrevista coletiva concedida pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, após almoço oferecido ao Presidente da

República de Cuba, Raúl Castro, http://www.info.planalto.gov.br/download/Entrevistas/pr1018-2@.doc

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da Argentina e do Brasil, permitindo que o partir de uma perspectiva própria latino-
comércio bilateral seja efetuado em moedas americana e caribenha, a ser marcada pelos
nacionais. Além disso, foi reforçado o valores da cooperação e solidariedade, em
compromisso com o multilateralismo e com a uma visão renovada para o século XXI.
reforma integral das Nações Unidas. Os Presidentes Lula e Chávez ditavam o
Já a Reunião de Cúpula Extraordinária da ritmo de descontração das Cúpulas. Após
União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi a uma saída para uma reunião bilateral com a
criação do Conselho de Defesa Sul-Americano, Presidente da Argentina, Cristina Kirchner,
com o objetivo de construir uma identidade o Presidente da República dirigiu-se ao
sul-americana em matéria de defesa que mandatário venezuelano dizendo “acho que
contribua para o fortalecimento da unidade está na hora de chamar o companheiro
região. Aprovado apenas 7 meses após sua Chávez, pois ele já está tirando os sapatos...”,
proposição pelo Brasil, tem como propósito “Compañero Lula, o problema é se meu
aperfeiçoar a confiança mútua e aumentar a chanceler, que calça 48, atirar os dele”...
cooperação em matéria de defesa. Um dos temas mais discutidos, e que
Logo depois, a manifestação do Presidente mais ganharam espaço na imprensa, foi
da Venezuela provocou risos ao divulgar o canal o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba.
de televisão Telesur. Disse que a Presidente A Bolívia chegou a pedir um boicote dos
Bachelet assistia a tal canal todos os dias, ao que latino-americanos enquanto tal bloqueio
ela respondeu brincando “só para poder te ver, persistisse, mas o Presidente Lula afirmou
Presidente”... No fim da reunião, o Presidente esperar melhoras na política externa norte-
Lula, lembrando que o tempo era curto, brincou americana em relação à América Latina
ao dizer “companheiros e companheiras, temos e ao Caribe, na entrevista coletiva dos
um problemita”, confirmando o clima de mandatários, feita no Hotel Golf&Spa.
descontração. Por fim, na Declaração de Salvador, que
Ainda no dia 16, ocorreu a reunião resume a Calc, assumiu-se o compromisso
extraordinária do Grupo do Rio, conduzida com o desenvolvimento regional integrado,
pelo Presidente do México, Rafael Calderón, não-excludente e equitativo. Celebrou-se
que aprovou a entrada de Cuba no bloco o resgate da memória dos processos de
de discussões políticas regionais, criticando- independência, bem como as demais ações
se o embargo dos Estados Unidos à ilha, para gerar consciência sobre o passado
qualificado pelos participantes como compartilhado como povos das Américas,
incompatível com o novo momento mundial, projetando um futuro que os encontre
de reforço do multilateralismo e do diálogo integrados em sua diversidade.
político aberto, relembrando-se das 17
resoluções consecutivas da Assembleia Geral
das Nações Unidas contra o bloqueio.
“Farewell”
No dia seguinte, era a vez da reunião mais Apesar de algumas divergências específicas,
esperada: a I Cúpula da América Latina e do perfeitamente naturais, o que prevaleceu foi o
Caribe de Integração e Desenvolvimento clima propício ao diálogo, a fim de construir
(Calc), resumida pelo Ministério das Relações uma visão integrada e autônoma para os
Exteriores do Brasil na nota 695, de 14 problemas da região, principalmente quanto à
de dezembro de 2008. Para o Itamaraty, integração regional e energética. Em tempos
representou uma oportunidade inédita de de consolidação do multilateralismo, permitiu
avançar uma agenda comum, construída a iniciar uma abordagem que uniformiza a

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...“Embaixada da Colômbia, atende!”, o barulho constante da impressora,
que se somava à irritação por ver a miragem da piscina logo ali, “Quem
quer programa!?”, “Fecha a pooorta”, reuniões de emergência, “Diplig,
diplig, alguém?!”, “E a cachaça para o brinde, já foi providenciada?”, a
disputa pelos computadores, “Afinal, o Presidente Uribe vem ou não vem?”,
“Alguém de transporte? Carro para presidência da República’... ‘eu gelo
quando ouço ‘Presidência da República’”...

Eduardo Brigidi de Melo

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relação da região com o sistema internacional, mão. Nesse momento, fomos interrompidos
de forma altiva e previsível, características por um chamado do Embaixador Ruy
fundamentais para o desenvolvimento. Pereira: todos no saguão do Golf&Spa,
O novo momento permite recordar o oito horas, sem atraso. O penúltimo ato
estado das relações da região há 50 anos, seria o agradecimento do Embaixador Ruy
quando Pablo Neruda satirizou a América Pereira, do Ministro Eduardo Carvalho e dos
Latina no poema “Reunión de la OEA”, em Coordenadores de cada setor.
que os países da América Latina oferecem Nessa hora ouvi uma colega confessar
suas tradições e produtos para agradar ao que “quando o Embaixador começou a falar,
representante norte-americano, que dita me deu vontade de chorar”. A vida, que
acordos sem tomar conhecimento da região. aos poucos vai nos dando uma face séria e
Neruda ironiza tal época nas últimas linhas respeitável em lugar do sorriso infantil, desta
do poema: “Señores, la OEA tiene defectos / vez terá que redobrar o esforço. A noite foi
pero es deliciosamente unánime”. longa, ventosa, musicada, e a nostalgia, nada
O que diria, agora, das Cúpulas de mais que uma saudade resignada, já tomava
Salvador? Certamente o poeta ficaria minhas impressões quando fomos todos
inspirado pela inédita iniciativa brasileira de jantar no restaurante do Hotel Golf&Spa, em
reforçar os laços da região, pois, como disse meio a fotos de despedida da brisa de praia
o Ministro Celso Amorim, é importante do Sauípe, que ainda sinto, suave, na memória.
“que nós sejamos capazes de tratar dos Despertávamos para a realidade sabendo
nossos problemas – nós, que somos países de mais um compromisso no dia seguinte:
em desenvolvimento dessa parte do mundo” o Ministro Celso Amorim convocou-nos
(“América Latina: Cúpula sem tutela”, Correio a comparecer a seu gabinete, no Palácio
Braziliense, 16.12.2008). Itamaraty. A reunião foi gratificante e
Na memória, as recordações multiplicam- encerrou nossa participação de forma única.
se e condensam-se, sem cronologia certa, e Após cumprimentar-nos, disse que havia
por isso as notícias começaram a se misturar percebido a alegria dos colegas mais jovens
com os momentos em que o tempo parecia que trabalharam no evento ao andar pelo
parar. Política, amizade, céu estrelado, violão Centro de Convenções. Falou que as Cúpulas
na piscina, correria por urgências, trabalho, marcarão o Governo Lula, pois foram uma
família, mundo novo: “Chávez nega hegemonia”, grande oportunidade de os países da América
“Lugo apóia equatorianos”, “O mergulho de Latina e Caribe reunirem-se sozinhos, a fim
Bachelet”, “Endividados demonstram união”, de discutirem seus próprios problemas.
“Líderes sonham alto”, “ Criação de fundos Posteriormente, questionado em
para a integração”, “casamento, tu também!?”, entrevista sobre qual foi seu momento
“Transferência de tecnologia sobre produção de mais difícil e qual o de maior gratificação
biocombustíveis - Integração energética”, “que nos últimos sete anos como Chanceler, o
bom que não passei no concurso de 2007”, Ministro Celso Amorim afirmou:
“Programas de redução da mortalidade infantil”. - Olha, é difícil escolher um só.
As Cúpulas chegaram ao fim, como todo Por exemplo, quando assinamos
sonho, e no Sauípe reapareceu o menino que aqui o tratado da Unasul, tínhamos a
fui, lamentando mais uma vez a passagem do consciência que estávamos fazendo uma
tempo. A melhor maneira de festejar seria ir coisa histórica. (...) Agora, houve outros
para a piscina do hotel All Inclusive, aquecida, momentos. A Cúpula do Sauípe no final
com risos fáceis e estrelas ao alcance da do ano, reunindo pela primeira vez em

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200 anos de vida independente todos sorrindo –, os retratos em três por
os países da América Latina e do Caribe. quatro de suas atuais identidades sejam
Uma coisa extraordinária!” (Caros capazes de confrontar as figuras solenes
Amigos, ed. 143, março de 2009). que ostentamos todos mais ao final de
nossas vidas, sem que o espanto e a
Política, amizade e acaso marcaram as tristeza prevaleçam.
Cúpulas, e o espírito do Sauípe perpassará Os desafios profissionais irão tornar a vida
as carreiras dos jovens diplomatas que lá mais difícil e a poesia da Calc será desafiada
estiveram. Recordo de personagem do pela prosa do Ministério, prosa muitas vezes
romance “Um Livro em Fuga”, de Edgard pesada e estressante. Que não percamos
Telles Ribeiro, em palestra para alunos do o sinuoso encantamento dos versos que
Instituto Rio Branco: atiramos ao vento do Sauípe, um lugar que
Permito-me recomendar que, em só nós conhecemos, só nós sabemos o quão
suas carreiras, não busquem receitas especial foi, uma praia em que todos os
fáceis ou previsíveis, não sigam pistas minutos foram breves, mas vastos.
já trilhadas, nem briguem contra o
destino. E que, nesse processo lento e Eduardo Brigidi de Mello (turma 2008-2010
sinuoso, permaneçam fiéis a seus ideais do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e
de juventude. Para que, um dia – e a Mestre em Ciência Política, pela Universidade
ousadia do comentário me leva a falar Federal do Rio Grande Sul.

Ricardo Stuckert

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