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introducao ao pensamento flloSOfico irl Jaspers cultrix Este livro pode .ser considerado como ‘uma - espécie de convite que um dos mais impor- tantes. filésofos da atualidade faz ao leitor leigo (e aqueles que, nos cursos colegisis e nas. fa- culdades, comecam o estudo da filosofia) a que se inicie no pensamento filoséfico para melhor entender-se a si préprio ¢ ao mundo em que vive. Baseado numa série de programas de televisio, Inrropugio. Ao PENsAMENTO F1Lo- sOFIco esté vasado em linguagem simples, de torn coloquial, embora a maneira por que enfoca os diversos temas vé além da simples indaga- ¢aq empfrica ou racional para chegar a propria taiz das .coisas — ao verdadeiro significado e * ~finalidade da existéncia, Como ponto de paitida, Karl Jaspers con- sidera as experiéncias evidentes, as. realidades da natureza ¢ da vida, Os principais temas que aborda’ neste volume sio: o homem e€ o*uni- ‘verso; a histéria e o presente; a politica; a liber- dade; a sociologia e a psicologia; as cifras, do tito e da metafisica; © amor ¢ a morte; a filosofia no mundo. Com a clareza e 0 A-von- tade de um emérito conversador, o gtande filésofo existencialista ‘sumatiza aqui a esséncia’ do seu pensamento acerca das principais ques- t6es com que se defronta toda pessoa consciente no mundo de hoje. Karl Jaspers nasceu na Alemanha em 1883" e morreu na Sufga. em 1969.° Sua formicio intelectual foi simultaneamente cientffica e filo- séfica. Recebeu seu grau de doutor em 1909 e-jd em 1921 era professor pleno de filosofia em Heidelberg. , Perdeu sua cétedra em 1937, da qual foi expulso pelo regime nacional-socia- lista por tazdes politicas. A ela voltou em 1945, sendo que em 1949 aceifou um convite da Universidade de Basiléia pata ali lecionar. Jaspets, que € um dos mestres do existen- cialismo contemporfnéo, deixou numerosas obras publicadas, das quais esta InTRopUgKO Ao Prn- SAMENTO FiLos6rico que ora oferecemos ac leitor brasileiro em tradugio dos Profs. Leénidas Hegenberg ¢ Octanny Silveira da Mota, foi das Ultimas a ser publicada.. INTRODUGAO AO PENSAMENTO FILOSOFICO omnva oys XIYULINO VUOLIGa VLOJ VO VUIaAIG ANNVLOQ, a DUAENADSH SVAINOT'] ap ovsnpeay, OOMOSOT OUNAWVSNAd : “OV OVINGOULNI sugdasvil Tuva Titulo do original: KLEINE SCHULE DES PHILOSOPHISCHEN DENKENS @© R. Piper & Co. Verlag, Miinchen 1965 34 edigio MCMLXXVI Direitos de tradugdo pata a lingua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo, que se reserva a propriedade literéria desta traducio. Impresso no Brasil Printed in Brazil ON AVAWNE INDICE Prefécio I. © UNIVERSO E A VIDA Dois acontecimentos: 1919 ¢ 1945 Universo ¢ matéria A Terta no universo vazio A situagiio espiritual criada pelas ciéncias da natureza Teses a ptopésita do conhecimenta do mundo II. A HISTORIA E O PRESENTE Aspecto atual da Histéria O milagre da Histéria no plano césmico A Histéria nfo & prolonganiénto da natuteza A ciéncia histética e¢ seus limites A situagZo presente e seus problemas Consciéncia ¢ autodestruigio Histéria e responsabilidade Transcendendo a Histéria UW. O CONHECIMENTO FUNDAMENTAL Rettospecto € ptoblemas novos Ponte de partida: a dicotomia sujeito-objeto A. operacio filoséfica fundamental. O. mundo e sua ma- nifestagio Os modos do abrangente Modificagao da atitude interior, por férca do conhecimento fundamental Va procura: de uma realidade para além da dicotomia svu- jeito-abjeto Os miiltiplos caminhos do pensamento filoséfico 4 42 44 uw ee N ayer ree ane SYREN aAMAY NE Iv. O HOMEM © problema do homem O mutismo da natureza e a linguagem humana Nao nos compreendemos, nem a partir do mundo e da His- téria, nem a partir de nés mesmos ‘Tracos da natureza do homem - - A consciéncia, que o homem tem, de ser diferente de cada uma de suas manifestacdes A luta por uma imagem do homem Q homem nio se basta ~ Ultrapassar-se: progtesso do mundo Ultrapassar-se: a Transcendéncia Coragem e esperanca Dignidade do homem V. O DEBATE POLITICO Exemplo de debate politico Obsetvagao a propdsito de discussdes désse género © papel da reflexdo filosdfica no debate polftico VI. A POSICAO DO HOMEM NA POLITICA Os dois pédlos da polftica Comportamento do homem na politica Gtandeza do homem na politica © caminho: liberdade politica Historicidade da liberdade polftica Liberdade implica em corrupga0? Autodestruigao da liberdade ObjegSes ¥ liberdade A alternativa A decisio VIL. CONHECIMENTO E JUIZO DE VALOR © ato filoséfico de fazet a distingio © didlogo A tese de Max Weber Ciéncias naturais e ciéncias humanas 45 45 46 47 50 52 33 53 53 55 62 64 NAMAWNE ayn wer aw Mawne a Seen ay Em que. sentido existe liberdade? Jufzos opostos acérca de um mesmo significado Elaboragio dos “pontos de vista ultimos” Podéres € alternativas Resumo Imparcialidade, veracidade, liberdade VIII. PSICOLOGIA E SOCIOLOGIA Aspectos da psicologia e da sociologia: Mary e Freud Discussio com um marxista Discussfo com um psicanalista Andlise das discussées anteriores Ciéncias universais ¢ filosofia Conseqiiéncias do totalitarismo cientifico O filésofo vinculado a suas origens IX. OPINIAO PUBLICA Exemplos Desejo de verdade, desejo de poder O ambito da politica Conceito de opinio pablice, a partir da idéia de liberdade polftica O mundo dos escritores Idéia e tealidade O segrédo A censura O tisco da publicidade X. OS ENIGMAS Exemplo: o Sinai Outros exemplos Os enigmas tém origem na experiéncia de liberdade Nogao de enigma Transformagao da corporcidade da Transcendéncia em lin- guagem de enigmas Evolugao da religiio biblica Idéia de um desenvolvimento dos enigmas em seus con flitos 85 88 a1 92 93 95 95 95 98 101 101 102 103 106 106 110 N2 13 114 HS Sowmnausyune BA aAMAWNE 10. 12. 12. PON AURwWHE XI, A-AMOR Lembranga do apéstolo Paulo O amot sexual © antagonismo original O esquema sexualidade — erotismo — casamento O amor metafisico - O paradoxo do amor metaffsico no mundo O amor metaffsico pode participar da ordem do mundo? Os elementos do amor entram em choque O amor no mais largo sentido da palavra Amor e consciéncia XI. A MORTE “$6 0 homem tem consciéncia da morte Por que a morte? Médo de morrer e médo da morte Maneiras de conceber a morte Séde de imortalidade Tempo cfclico e tempo linear Temporalidade, intemporalidade, eternidade Lembranga da reviravolta filoséfica a respeito da cons- ciéncia do ser A experiéncia existencial da eternidade Sentido das afirmagdes especulativas ¢ existenciais A sinceridade Os enigmas face A morte XIII.. A FILOSOFIA NO MUNDO Atitude da filosofia frente ao mundo Atitude do mundo frente a filosofia A filosofia deseja a verdade A sinceridade é a aventura do homem A aristocracia filosdfica ¢ a massa — A indepenndéncia do homem filésofo A consciéncia humana de impoténcia . A situagdo de nosso’ tempo. std préximo o fim? Qual o papel atual da filosofia? uy 17 118 9 119 120 121 122 123 124 126 127 127 127 128 128 129 130 131 132 133 133 134 135 138 138 138 140 140 142 143 144 145 147 PREFAGIO Quando a Rédio Baviera me ditigiu convite para pro- nunciar, através da televisio, wma série de conferéncias semanais a propésito de filosofia, fui tomado de surprésa. we auddcia por parte da radio e que desafio para o con- Prenatal Go hesitei. A filosofia se destina ao homem e a todos diz respeito. Como titulo para.as exposigbes propus “Introducdo ao Pensamento Filoséfico”. Iniciagao — isso nao significava que eu fésse falar acérca dé trivialidades filosdficas, nem que fésse fornecer_ informa- ces simples, a fim de preparar o ouvinte para atividade no campo filosdfico. Nao existem aquelas trivialidades ou estas informagées simples. Téo logo se filosofa, entra-se em contacte com os grandes temas da filosofia. E se isso nao acontece é porque da filosofia se esté longe. A palavra iniciacao alude apenas a brevidade do texto: a atengao giraré em térno de idéias verdadeiramente filosdficas. . : Pensamento — nao se tratava de ensinar algo que, depois, estaria conhecido, Ndo se tratava de transmitir conheci- mentos elementares. Tratava-se, antes, de percorrer certas trajetérias do pensamento, na esperanca de produzir no ouvinte (ainda que de experiéncias filosdficas, até entéo, apenas inconscientes) o sobressalto que nos dé sibita com- preensio daquilo a que a filosofia se refere. Filoséfico, enfim. Quer isso dizer que importa conduzir 0 pensamento empirico e racional até seus limites extre- mos, até o ponto em que revela suas origens. No caso, método niéio significa aprendizado de operagées de légica formal ou de andlise de linguagem, que séo titeis mas néo i de natureza filosdfice. O objetivo do ‘pensar filosdfico é levar a uma forma dé pensamento capaz de iluminar-nos interiormente e de iluminat 0 caminho diante de néds, permi- tindo-nos apreender o fundamento onde encontremos sig- nificado e orientagao. A meia hora de programagdo semanal reclamava que, de cada vez, fésse feita exposigao completa de uma questao. Escolhi (dentre ‘muitos outros posstveis) treze temas: Pontos de Partida I. O Universo e a Vida Il. A Histdéria e o -Presente Yl. O Conhecimento Fundamental IV. O Homem . Em Térno da Politica Vv. O Debate Politico VI. A Posigéo do Homem na Politica’ . VII. Conhecimento Empirico ¢ Juizo de Valor VIII. Psicologia e Sociologia IX. Opiniéo Ptiblica , Ancoras na Eternidade X. Os Enigmas XI... O Amor XH. A Morte Conclusio g XIII A Filosofia no Mundo Nas exposigées, parto de experiéncias sensiveis, de rea- lidades da natureza ou da vida, de tradicdes, caminhando, em cada caso, até as fronteiras que marcam o surgimento de questées a que a ciéncia nio responde. Ai, dtante do ser, vemo-nos présa do espanto; ¢ indagamos de nés préprios acérca do sentido ¢ misséo de nossa existéncia. 12 As conferéncias nfo mantém entre si liame tal que se ponha cada uma delas como seqiiéncia da anterior. Cada qual, & sua-maneira, comeca do comégo. Todos se diri- gem para um centro comum que nao poderiamos consi- derar exatamente como tema. Essa orientagdo geral lhes confere unidade. - A filosofia € universal. Nada existe que a ela nao diga respeito. Quem se dedica 4 filosofia interessa-se por tudo. Mas néo hé homem que possa tudo conhecer. fie distingue a va pretensdo de tudo saber do propésiio filo- séfico de apreender o todo? O saber é infinito e difuso; déle se valendo, procura a filosofia aquéle centro a que faziamos referéncia. O simples saber &€ uma acumulacéo, a filosofia é uma unidade. O saber é racional e igualmente acessivel a qualquer inteligéncia. A filosofia é 0 modo de pensamento que termina por constituir ‘a, esséncia mesma de um ser humano. a Em térno désse modo de pensamento é que éstas con- feréncias pretendem girar. Abertas para o real, seja o real o que fér, tentam essas exposigées descobrir 0 caminho_ que leva do real ao fundo das coisas, buscam, a partir désse fundo, lancar luz sébre as realidades. Tal a razéo por que o problema reside em dar o salio em diregao desta outra maneira de pensar. . Conquanto de objetivo elevado, devem ser simples as conferéncias. Do oceano de conhecimentos, utilizaremos tio-sdmente pequenas gétas.. E nao inalaremos sendo umas poucas porgdes do ar da imensa atmosfera filosdfica. Essas metdforas pretendem significar 0 seguinte: para *~que a seiva do conhecimento se transforme em alimento espiritual, importa que. esteja presente ndo apenas a inte- ligéncia, mas, em sua plenitude, 0 homem que, pensando, apresa aquéle conhecimento. E, para fazer-se revigoranie, o ar puro das regides filosdficas hé de constituir-se na rea- lidade que se vive e se respira. A idéia pode suscitar no ouvinte o desejo de assim proceder. O simples desejo, entretanto, nada significa. A cada individuo cabe dar 0 passo que leva do simples ouvir 13 @ participagao direta. Ao longo das presentes conferéncias, enfrentaremos, repetidamente, problemas que se colocam no limite do légico ¢ do empirico, Comegaremos por aco- ther as respostas dadas. Nenhuma serd a tiltima. Cada qual conduziré a novas indagagdes, até que a indagagao final tenha o siléncio como resposta — e néo por ser uma indagagéo vazia. Surge o siléncio que nio é o abrigo do nada, mas onde a prépria esséncia do homem encontra metos de falar-lhe através de seu eu mais intimb, através de suas necessidades, da razio, do amor. Kart Jaspers Basiléia, outubro de 1964. I, O UNIVERSO E A VIDA 1. Somos testemunhas de um tempo em que 0. co- nhecimento do universo e da vida conseguiu surpreendente progresso; somos testemunhas também de acontecimentos que impedem o homem de ignorar as conquistas alcanga- das. Lembrarei dois désses acontecimentos. . Em 1919, imediatamente apds a Primeita Guerra Mun- dial, em meio ds chagas produzidas pelas hostilidades, ma- nifestou-se um evento que dizia respeito ao .homem como ‘homem. Quando de um eclipse do sol, ocorrido no hemis- fério sul, uma expedigio organizada pelos ingléses conse- guiu realizar observagSes técnicamente diffceis. As medidas feitas comprovaram o acérto de afirmagdes até entdo apa- rentemente fantdsticas, devido a um sdbio alemdo, Einstein; a partir do mesmo evento se péde inferir a exatidio parcial de uma teoria que sustentava, entre outros pontos, nfo ser 0 universo um espago de trés dimensdes, mas espaco curvo, “sem limites, embora finito. Os especialistas conheciam a teoria -da relatividade; as pessoas instruidas dela haviam, por vézes, ouvido falar e a consideravam como um jeu desprit. E, de um momento para outro, nao mais se tra- tava de especulacio, mas de algo experimentalmente pro- vado. Espanto: insdlito apoderou-se de todos. A natureza do universo é, com efeito, problema que nos interessa na liberdade gloriosa de nossa vontade de conhecer. Sentiu-se que’ evidéncias longamente admitidas perdiam significado. A humanidade orgulhava-se da ciéncia e dai retirava uma alegria geral, despida de* egofsmo. Em 1945, bombas tombaram sdbre Hiroxima e Naga- séqui. De hd muito se haviam comentado as idéias de - 15 a Einstein: a matéria dos atomos encerrava uma energia dian- te da qual pareceriam ridiculas tédas as enenrgias que a técni- ca pudera produzir. Desconhecia-se, entretanto, a maneira de - libertar a energia’ do dtomo. Em _ conseqiiéncia, aquelas idéias eram aparentemente vazias de interésse pratico. Di- zia-se: “estamos sentados sébre um vulc4o que jamais en- trara em atividade”. Ainda no decurso da Segunda Guerra Mundial, um célebre fisico alem&o conclufa, por meio de calculos, ser impossfvel a fabricagio de bombas atémicas; nesse mesmo instante, europeus emigrados para os Estados Unidos da América estavam fabricando as mesmas bombas. Repentinamente, caindo sébre Hiroxima, a bomba atémica tornou-se uma realidade. De inicio os cientistas alemaes recusaram-se a acreditar nas informacdes. Em seguida, todos os capazes de compreender viram;se tomados de horror. O orgulho pelo poderio cientifico deu lugar ao temor diante do que surgia. 2. Apds ésses dois acontecimentos, as novas concepcdes a respeito do universo e da matéria impuseram-se irresist!- velmente, O universo revela-se a nossos olhos, gragas a telescépios cada vez mais poderosos e apresenta-se-nos da forma seguinte: a Via Ldctea esta povoada de bilhdes de sdis; hd milhares de outras vias lcteas, as nebulosas; e sabemos que a mais préxima de nds, a que podemos divisar com a vista desar- mada, a Nebulosa da Andrémeda, nado passa de uma dentre os milhares de nebulosas invisiveis a élho nu. Sob éste ponto, entretanto, tudo se mantém conforme as idéias que tinhamos acérca do mundo: a diferenca, em- bora enorme, € apenas quantitativa. O qué ha, porém, de inusitado e fora de proporgéo a qualquer precedente, é o fato de ésse universo sensivel corresponder tao-ssmente ao primeiro plano do universo real, que sd pode ser pensado. Mas nao representado. Que sé é acess{ivel através de“fér- mulas matematicas e, ainda assim, de cardter provisdrio. De inicio, Einstein concebeu o. universo como um espago curvo, finito mas ilimitado, de dimensdes suscet{fveis de cél- culo. Posteriormente, ésse universo tornou-se um mundo em 16 perpétua éxpansZ0, um mundo cuja origem no tempo era impossivel determinar. Essas hipéteses matematicas enchem- -se de sentido quando possivel corrobordé-las pela observa- cio e pelas medidas, mas tornam-se indiferentes quando impossivel comprovd-las por meio de novas observacées. Todo aquéle que promove o avango de uma‘ ciéncia vé-se a bragos com dificuldadés intransponiveis. Nao hé como fazer prova cientifica e definitiva de qualquer dessas mate- maticas e abstratas concepgdes do universo como um todo. O caminho gue leva ao conhecimento do universo ' perde-se, por assim dizer; no infinito. Como a do universo, também a visio que tinhamos da matéria_modificou-se por férca de descobertas irrefutdveis. A descoberta da radioatividade, no ultimo decénio do século XIX, e a andlise do dtomo jA representaram, para os espe- cialistas, uma revolucio intelectual. Os atomos cuja existéncia se comprova com evidéncia maior que a conseguida anterior- mente — continuam a existir, mas, longe de se constituirem nas particulas elementares fltimas, compéem-se de elementos ainda menores: prétons, néutrons, elétrons etc. E impés-se rever inteiramente a concep¢o que se fazia da matéria. Antes de tudo, deixaram de existir particulas elemen- tares ‘iltimas. Quando empregamos térmos concretos, como onda e corpisculo, térmos contraditérios no plano de repre- sentacdo, estamos, em verdade, pensando em térmos com- . plementares e ndo contraditérios, sé apreensiveis no plano da matematica. Em segundo lugar, continua-se a efetuar o descobrimento de novas particulas “elementares” (mésons, etc.}; sem atingir as Ultimas e menores ‘partes da matéria. Ha alguns anos, experiéncias realizadas na Universidade de Stanford conduziram aos seguintes resultados: os prdétons nao so particulas elementares, mas, diversamente, estrutu- ras onde estd presente um ntcleo de alta densidade, rodeado por uma nuvem de mésons. Em conseqiiéncia, alguns fisi- cos*imaginam que talvez jamais se atinja o fundo intimo da matéria, sendo sempre descobertas novas subdivisées das particulas elementares. Em outras palavras, isso corresponde ao colapso da idéia de que a matéria constitui o fundamento obscuro de tudo quanto existe. Ao contrario, a matéria se I? abre para a pesquisa ad infinitum; nfo mais é concebida como substancia priméria. Todos os corpos sao aparéncias e nao realidades fundamentais. A esséncia da matéria perma- nece indefinida. 8. O universo e a matéria projetam nosso conhecimento do mundo para os infinitos; o primeiro, para o infinitamente grande, sempre em expansao; o segundo para o infinitamente pequeno, sempre em contragdo. Mas, com isso, o mundo nao se esgota: o universo inclui a Terra, grao de ‘poeira perdido na imensidade, diminuta por¢ao de matéria sébre a qual vivemos. Esse é 0 nosso mundo, onde vivem plantas e animais, onde se desenvolvem as paisagens, ocorrem fend- menos meteoroldgicos e existe a abdbada celeste; e onde aparecemos também nés, os homens. Enorme — tanto que, a éle comparado, tudo quanto se descreveu é nada — o universo, segundo sabemos, nao passa de um deserto onde se: move, vazia de sentido, a massa da matéria sem vida. Contudo, se nosso mundo, éste mundo espléndido e cruel, estd ligado & matéria, é infinitamente mais do que ela e nao pode ser compreendido a partir dela. Désse mundo a ciéncia construiu uma visio radical- mente nova. Exemplifiquemos: desde a antiguidade, acre-. ditava-se numa grande unidade, brotada de uma hierarquia dentro da qual um estégio decorria ldgicamente do anterior: matéria inerte, vida vegetal e animal, psiquismo, consciéncia psicolégica, pensamento. Desde que se concebeu a idéia de evolugao no tempo, essa bela unidade de conjunto permitiu que ‘se visse a histéria terrestre e universal como um pano- rama apaixonante, onde o homem ocupava a posic&éo mais alta. Hoje em dia, nfo mais se cré nessa unidade. O que sucede nao é decorrente do que precede: déle estd separado por um salto. Os niveis da hierarquia nao se explicam um pelo outro, ¢ nenhum déles se explica por si mesmo. Falta um principio unificador de tédas as coisas. . - Entretanto, apés haver destruido essas vagas concep- ges de unidade, a ciéncia féz ressurgir a unidade sob névo aspecto: através do conhecimento das relacdes que ligam os diversos niveis, conhecimento que, em nossos -dias, tern 18 progredido, constantemente. Aqui, falarei apenas de rélagées entre a matéria inerté e a vida. No século XIX, provou-se que, na natureza, téda vida provém da vida — omne vivum ex ovo. A geracio da-vida a partir da matéria, a transigio do ndo-vivo ao vivo, ‘até ent&éo admitidas, revelaram-se iluséo. Mas, ao mesmo tempo, descobria-se meio névo de transpor o abismo. A partir do nao-organico, puderam os. quimicos fazer surgir, em labora- tério,’ sintéticamente, corpos orgAnicos, até entdo. somente produzidos pela vida — e, dentre éstes, o primeiro a ser obtido foi a uréia, em 1828. Daf brotou a quimica organica moderna. Foram descobertos numerosos corpos orgfnicos, inclusive as complexissimas moléculas de albumina’— mas todos ésses corpos sem vida. N&o obstante, s4o0 muitos os que nao deixam de acreditar surja o dia em que ser4 poss{vel criar-a substAncia viva, criar a vida mesma, a partir da matéria. Isso, porém, é impossivel. A vida nao 6 apenas substancia altamente com- plexa, mas também corpo vivo. Tem éste uma estrutura morfoldgica suscetivel de andlise ao infinito; néo é maquina fisico-quimico que, se possivel de ser construfda, seria neces- sariamente_finita. E a vida nao é apenas corpo vivo, mas existéncia, que implica’ uma intimidade (o ser considerads) e uma exterioridade (o meio, o mundo) e existéncia sobre a qual a vida age.. Os aparelhos org4nicos, seu quimismo finalista, os. drgaos dos sentidos sao produzidos pela vida, mas ainda nfo sdo a vida mesma. Os cientistas descobrirao é produzirio formas biolégicas nao sonhadas, - porém serao © sempre incapazes de criar a vida. O préprio saber torna modestos os grandes cientistas. Mesmo quando avangado no caminho dos conhecimentos do universo e do dtomo, Einstein jamais se tornou imune ao - mistério da vida.’ Em 1947, refletindo acérea de seu corpo doente, escreveu: “Espanta-me que éste mecanismo incrivel- mente complexo seja capaz de funcionar”. Sentia éle “quao lamentavelmente primitiva é téda a ciéncia de que dispomos”. . Em 1952, registrou: “Quando vejo um minisculo inseto - pousar no papel em que faco calculos, tenho desejo de 19 exclamar: “Ald é grande, e com téda a gloria de nossa, cién- cia nao passamos de micrdébios miseraveis”. Mas éle nio d& voz ao mais profundo dessa atitude. Mesmo Einstein permanece filosdficamente prisioneiro do principio segundo o qual tudo quanto existe mantém cor- respondéncia com uma ordem matematica e é basicamente suscetivel de ser apreendido, de maneira total, por meio da matematica. Mesmo Einstein sustenta que, em poténcia a vida. ja reside no dtomo, que “o mistério do todo esté implicito no nivel mais baixo”, Por que nao o atingimos? - Porque a matematica deixa de ser titil quando nosso. pensa- mento penetra em profundezas mais obscuras. Com efeito, © estado-.atual da matemética néo permite “chegar pelo calculo, ao ‘que. est implicito nas equagdes fundamentais”. Para Einstein portanto, o mistério néio esta na realidade mesma, porém, naquilo que a matematica nfo permite re- - solver. Nés, entretanto, repetimos com Kant: se existe a uni- dade da vida (que permitiria compreender como a vida, brota do inerte), essa unidade permanece inatingivel, no infinito. Realizando surpreendentes descobertas in partibus, a cién- cia de nossos tempos nao faz sénio adensar o mistério in toto. 4, As pesquisas cientificas, embora n@o sendo em si mesmas filosofia, criam para a filosofia determinada situa- cao. Provinda de outra origem, a filosofia toma forma na “situacdo cientifica do momento, que ela apreende e faz pro-— gredir. Na situagdo de nosso tempo, a novidade esta em que a pureza da pesquisa cientifica se faz téo possivel e neces- sitia_como a clara compreenséo da propria origem da filosofia. Contentar-me-ei com langar os olhas As conseqiién- cias da inexisténcia de uma. transparente concepgio da na- tureza. Primeiro: Até agora, pura e simplesmente se aceitava a totalidade do existente: era o mundo. Hoje, estamos. afas- tados da idéia de uma imagem do mundo universalmente valida. O mundo se fragmentou, 20 Se afirmamos: o mundo é matéria, da qual procede tudo quanto.nela estd implicito (vida, intimidade, consciéncia. & pensamento), essa afirmagao, em virtude dos novos conceitos de transigio e evolugdo; assume os matizes de um discurso vazio pretendendo mascarar os saltos. E coisa diferente nao acontece quando se pretende explicar o mundo a partir da vida, do espirito e do pensamento. Aspectos do universo ndo captam a totalidide do mundo; cada qual déles diz respeito a um pormenor néo ao todo. Diante do problema do mundo como totalidade a ciéncia se detém. Pelo conhe- cimento cientifico, o mundo é visto como um conjunto de fragmentos e quanto mais numerosos ésses fragmentos, mais acurado aquéle conhecimento. Sem embargo, liberagfo de obsoletas visées do mundo conduz a ciéncia para uma visio nova, supostamente cien- tifica e que sacrifica nossa liberdade muito mais do que qualquer das precedentes. Segundo: O mundo se desmitizou. Ciéncia e técnica nos libertaram da magia e tornaram infinitamente mais facil a vida material no seio da‘ natureza. Recorrer a processos magicos é nao sé desarrazoado na pratica, mas falta de lealdade: o homem trai a propria razio. A desmitizacgio do mundo gerou, entretanto, uma_per- vertida atitude de espirito estimulada pela tecnologia. Quan- do ligamos a luz ou o rddio, quando dirigimos um auto- mével, nao conhecemos com profundidade os processos que colocamos em operagao. Aprendemos o manejo do objeto, sabendo apenas que os processos ndo se desenvolvem por magica, mas gracas a conhecimentos cientificas. Entendemos, a partir daf, que o mesmo esquema se aplica a tédas as coisas existentes.¢ dizemos: se ainda resta muito por compreender, tudo é, no fundo, integralmente inteligivel. & certo, digamos, que a ciéncia ainda nao pode criar séres vivos — homens, por exemplo —, mas um dia os criara. Que se passou? O velho pensamento, pré-cientifico cedeu o passo a uma forma de pensar despida de idéias, quase magica. A liberacio da magia no domfnio da ciéncia 21 e da téénica destruiu as realidades do mundo ‘cotidiano devido a sua indiscriminada aplicagéo a tudo quanto existe. Nas impress6es suscitadas pela paisagem ou por lugares a * que nos ligou o destino, no apreender a infinita riqueza dos fendmenos, no adquirir consciéncia de uma natureza multi- facetada, experimentamos algo que esta longe de ser irreal e€ que nao podemos desprezar como simples impressio subjetiva. / Vivemos na realidade como em um mundo de enigmas que se conflitam. Desmiitificando os fendmenos, 0 conheci- mento cientifico sé consegue, por contraste, tornar mais clara e mais rica.a agao désses enigmas. A ciéncia nao pode erid-los, nem destrui-los. Demos um exemplo de luta no mundo désses enigmas. Tomemos.o enigma “Deus”. Ele criou o mundo. Uma das formas de apresentar o enigma consiste em dizer que Deus é um matemético e criou o mundo por pesos e medidas, Consegiientemente (camo talvez dissesse Einstein) podemos pelo pensamento, recriar o mundo. Eis, porém, um mais profundo enigma que se opde ao primeiro: Deus criou o mundo, em seu conjunto, de maneira ,incompreensfvel para nds; nesse mundo pés a matematica e- féz do homem um matematico. A matematica nao esgota o mundo, sendo ape- nas um elemento da natureza e uma das formas de conheci- mento do homem (como pensava Nicolau de Cusa). Um segundo exemplo: as concepgdes do mundo com que os homens jd viveram sao sem valor para a ciéncia, mas, como conjuntos de enigmas, essas concepgées conservam significagio permanente. Alturas: e profundezas, sentido de ascenséo e de queda, céu e terra,-.éter luminoso e abismos escuros, deuses olimpicos e abissais. — sempre os vemos diversamente, mesmo nos dias dé hoje. Mas a falsa desmi- tificagdo trouxe ao homem cegueira de alma. Terceiro: Os fendmenos do mundo sio inteligiveis. Onde quer que a ciéncia penetre, novos inteligiveis se manifestam, brotados do espanto e geradores de um névo espahto. A ciéncia auténtica se contenta com apreender o possivel, avan¢a rumo ao infinitof sem entretanto, perder nocio das prdprias limitagées. . 22 Comega a infelicidade do género humano quando se identifica o cientificamente conhecido ao préprio ser e se considera n4o-existente tudo quanto foge a essa forma de conhecimento. A ciéncia dé entéo lugar & superstigéo da eiéncia, e esta, sob a mdscara de pseudociéncia, -lembra um amontoado de extravagfncias onde nao esta presente ciéncia nein filosofia nem fé.. - Jamais foi t4o urgente distinguir entre ciéncia e filosofia, jamais essa tarefa se apresentou como t&o urgentemente necessdria no interésse da verdade quanto se apresenta em nossos dias, quando a superstigio da ciéncia parece atingir © apogeu, e a filosofia ver-se ameagada de destruigio. As aberragdes que afastam da éiéncia pura e das pri- meiras fontes de filosofia comprometem nossa consciéncia do ser. Esta se torna fungio vazia de uma existéncia que tem de si mesma concepedo e experiéncia abstratas. Ela se falsifica engendrando uma viséo do mundo, que se reduz a percepedo de superficie; ela se falsifica na desmitificagao, e traz a desolagéo como atitude fundamental diante da vida; ela se falsifica, enfim, transformada em superstigao cienti- fica e toma a forma de um comércio com as coisas que torna invisivel a natureza mesma dessas coisas. Esses desvios. fecham-nos o caminho da filosofia. A missio da filosofia é romper essas barreiras e trazer o homem de volta a si mesmo. : 5. Recapitulando: Estamos no mundo, mas nunca temos, como objeto, a totalidade do mundo. Os fendmenos devem ser explorados ao infinito. Aos olhos de nosso conhecimento, 0 mundo nao aparece como unidade inteiriga, mas fragmentada: rompeu-se. A ciéncia é orientada por idéias de unidade, vdlidas em pro- vincias particulares do mundo, mas, até o momento, nao ha um conceito de unidade global do mundo que se tenha mostrado cientificamente fecundo. Impée-se compreender 0 mundo a partir déle mesmo e nao da matéria, da vida, ou do espirito. Uma realidade 23 incognosefvel precede a possibilidade de ‘conhecer e nao é alcangada pelo conhecimento. . Para o tipo: de conheci- mento de que dispomos, o mundo é insondavel. Tudo isso poe fronteiras As cogitagdes cientificas, mas nao ao.tipo de pensamento que tem sua origem filosdtica em nossa existéncia. Por exemplo: a unidadé; da natureza universal, do Um-Total que repousa em si mesmo é expe- riéncia possivel para uma percepcao religiosa do mundo. Considerando ao mesmo tempo, tddas as coisas e tudo o que -é particular ou individual, essa percepcao, religiosa descobre no mundo uma linguagem cifrada. Os caracteres enigmaticos dessa linguagem nada so para a ciéncia, que nfo .os pode provar nem refutar. 24 Il. A HISTORIA E O PRESENTE 1. Tal como o do universo, 0 conhecimento da Histé- tia conseguiu, recentemente, progresso gigantesco. Escava- gées descortinaram a nossos olhos mundos ignorados. Daf nos falam textos e linguas desconhecidos. Pinturas em ca- vernas, esculturas e utensilios nos esclarecem a respeito de eras que ignoraram a escrita. Esqueletos humanos, vélhos de centenas de milhares de anos, provaram que o homem ja existia em épocas t4o recuadas que, face a elas, parece breve a Histéria por nds conhetida, Eis 6 panorama empirico da Histéria: por dezenas de milhares de anos, talvez muito mais, estendeu-se a Pré-His- téria e viveu a humanidade sem dominio da escrita. A Pré-Histéria seguiu-se um periodo de aproximadamente seis mil anos de Histéria documentada. As primeiras grandes civilizagées — as da Mesopotamia, India, Egito e China — desenvolveram-se em pequena porcdo do globo que se es- tende, cortada por desertos, do Atlantico. ao Pacifico. $6- mente entre os anos 800 e 200 a.C. foi que se produziram, quase sem ligagoes entre si, na China, Ira, India, Palestina. _€ Grécia (mas ndo na Mesopotamia ou no gto) os eventos de ordem espiritual ‘Tesponsaveis pela criacgio da atmosfera: ainda por nds respirada. Foi, ent&o, que se colocaram as grandes questdes religiosas e filoséficas e foi entdo que se Propuseram respostas que, ainda hoje, a nds se impdem. Hé razSo para dizer qué essa época foi o fulcro da Histéria do mundo. Dela partiram trés ramificagdes que se desen- volveram, paralelas, na India, na China e no Ocidente. Até 1440, muito, sé assemelharam os géneros de vida, os meios 95- técnicos e os métodos de trabalho dessas trés civilizagdes. Sdmente depois, somente entre nés e sdmente na Europa teve inicio a idade da técnica: racionalizagfo de tudo: ciéncia emplrica pura, que naio se deixou perturbar por nada que lhe fésse estranho; tecnologia metddicamente in- ventlva, em progresso incessante. Revolugéo desconhecida de téda a Histéria anterior, acelerou o dominio sdbre a natureza e a produgao de bens tornando possfvel, através do navio, do aviado e do radio, a comunicagéo em plano mundial. Os europeus se fizeram exploradores e descobri- dores; todos os demais’ homens foram. descdbertos. Assim, a idade da técnica envolveu téda a humanidade e féz surgir a Histéria propriamente universal, que anteriormente inexistiu. Surprésa se apossa de nds: apds a lenta aparicao da vida sdbre a Terra, apés o breve periodo durante o qual o homem existe, 0 minuto de seis mil anos que é a Histéria e, agora, éstes segundos de unidade da Histéria introduzidos pela idade da técnica. Talvez que em nenhuma época anterior o homem tenha experimentado t&o urgente necessidade de tomar consciéncia da singularidade de sua posigéo no quadro da Historia Uni- versal: de onde viemos? para onde vamos? e por qué? No instante que vivemos.tudo se encerra, ou é éle o comégo de algo em condigdes radicalmente novas? 2. Vista de Sirius, nossa Histéria é um milagre. O j4 acorride e o que esté ocorrendo em nosso planéta, num canto remoto de uma galaxia entre bilhédes de outras, num momento fugaz — haverd ocorrido em qualquer outro ponto? Ou seremos os tnicos: séres inteligentes? ‘ Nao -dispomos do menor indicio da presenga de outros séres racionais no universo. Essa presenca, que -teriamos por natural, pode ser questionada com base em boas razdes. Antes de tudo: as condigGes fisicas e quimicas apresentadas pela Terra — condigGes indispensdveis 4 vida — correspon- dem a combinagio incrivelmente complexa de possiveis esta-- dos da matéria, oferecendo margem estreitissima de tolerdn- cia, que a vida nao poderia transpor sob pena de imediata- 26 mente cessar. Ignoro se é possivel calcular o grau de proba- bilidade de ocorréncia do conjunto dessas condigdes. Seria possivel mais de uma vez 0 acidente chamado vida? Por. outro lado, ainda que a vida fésse fendmeno repetido, le-_ varia sempre ao surgimento de séres pensantes? Por qui- nhentos milhdes de anos houve vida na Tetra e sé entre meio e um milh&o de anos atrds é que apareceu o homem ou apareceram seus ancestrais. Teriam os séres pensantes — nés homens — surgido apenas uma vez no universo?’ Nao o sabemos. Trata-se de- uma questfo de fato que, em prinefpio, é possivel equacionar, mas’ que sé a experiéncia podera res- ponder. Livres para opinido, hesitamos entre as duas ‘res- postas possiveis, Até agora, a experiéncia a que aludimos nao teve lugar.. Visdes edsmicas em que se pintam séres pensantes presentes por téda parte e relacionando-se entre si podem ser impressionantes, mas nao passam de ficciio. Estamos sés em um universo de matéria inerte, com suas metamorfoses, movimentos, explosdes e variedades. O universo nao necessita de nds. Imenso como é, 0 universo permaneceria o mesmo, ainda que viesse a desaparecer éste grao de poeira que éa Terra é, com a Terra, os homens. “O universo nfo existe para nds. Platdo, Nicolau de Cusa, Kant ensinaram a contemplar o universo como tal, e nao como algo eriado para.os homens.. Longe de ser nosso dominio, é éle, talvez, o objeto de nosso temor sagrado, Como do universo n&éo conhecemos sendo a exteriori- dade e a natureza material, balougamos entre o espanto e a indiferenga. Podemos, contudo, alterar a escala de proporgao entre o universo imenso e éste planéta mimisculo, dizendo que nosso mundo se faz grandioso’em razio da substAncia de nossa Histéria, na qual o conhecimento do Cosmos (co- nhecimento cambiante) figura para sempre como elemento de nosso espfrito. 3. Nossa Histéria nao 6 uma histéria da natureza. Nao podemos entendé-la como continuagio do evolver do universo e da Terra ao longo do. tempo ou como prolonga- mento da aparigio de séres vivos sébre o planéta. -Nossa 27 Histéria é de natureza fundamentalmente diversa. Despida de consciéncia ou repetig¢ao invaridvel ao longo dos tempos, a histéria natural se estende por milhées e milhdes de anos. - Cotejada com ela, nossa Histéria é de duragado brevissima. Sem que o substrato bioldgico seja alterado, a Histéria se _ altera de geragdo para gera¢iéo. Compie-se de agées, tra- dicdes e memérias conscientes. O contacto com o universo e com a natureza nos lanca a Terra estranha, pée-nos face a alguma coisa que é alheia e indiferente a nds. Quando passamos 4 Histéria, estamos “em casa”. & como se nossos ancestrais nos chamassem e nds lhes respondéssemos. A partir da natureza permanente do homem, produzem-se os fenédmenos histéricos que nunca se repetem de forma idéntica. 4. A Histéria é a acdo de nossos antepassados, que nos trouxeram até o ponto de onde prosseguimos incansavel- mente. Desde tempos imemoriais, os homens se informavam a respeito da Histéria recorrendo & lenda e ao mito; desde a invengao da escrita, a informagao, brota do’ registro de experiéncias e ac6es,. registro que as livra do olvido. A Histéria; como ciéneia, tem propdsito diferente. Desejamos saber o que efetivamente se passou. Em conseqiiéncia, ape- gamo-nos as realidades ainda presentes ou a suas fontes: documentos, relatos de testemunhas, monumentos, realiza- ges técnicas, produgées artfsticas e literdrias. Percebemo- -las através dos sentidos, mas isso hé de fazer-se de forma que patenteie o sentido intencional nelascontido. A ciéncia estende-se até o ponto em que sejamos capazes de correta- mente compreender os tangiveis registros do passado e até © ponto em que possamos verificar a corregio dos tes- temunhos que nos oferece. Pela pureza de seu coritetido, a ciéncia se distingue dos mitos -e da histéria sagrada. Os documentos da histéria sagrada nao atestam fatos, mas convicgdes do estilo “acre- ditamos que...” Se féssemos incréus nfo teriamos consta- tado, mesmo testemunhando os acontecimentos, aquilo que os crentes atestam. . Como téda ciéncia, a ciéncia histérica ‘tem seus limites.. A enorme expansio do saber humano em diregio ao passado e a regides até agora desconhecidas levou-nos a extrapolar 28 e a afirmar que atingiriamos as origens da Histéria. Ora, a ciéncia nos ensina a modéstia diante do mistério. Por certo, néo caberia dizer hoje que jamais penetraremos em perfodos. ainda virgens, dos quais sé conhecemos raros indi- ° cios esmaecidos. Mas todo comég¢o, inclusive o de-um novum na Histéria, pde-nos em confronto com a obscuri- dade em cujo seio a origem permanece inacessivel ao espirito. Hé um outro limite da Histéria: nfo percebemos o conjunto da Histéria como um todo ldgico. A ciéncia emp{- rica da Histéria sempre se pode frente ao azar.: Tal 6 a caracteristica essencial de seu objeto. 5. Tornemos a situacao histérica atual. Dos pontos de vista polftico, social, cientifico, técnico e espiritual, vimos assistindo mutagdes tao radicais que Alfred Weber péde falar do fim da Histéria tal como a conhecemos até ‘agora. O que vier adiante continuard a ser Histéria no sentido a que estavamos habituados? Continuard a criatividade a manifestar-se no dominio espiritual ou se restringira ao setor da tecnologia? A fé dard sentido & vida humana ou a supersticao vird obscurecé-laP-O homem sofrera modifica- gdes a ponto de nao mais nos reconhecermos néle? Cessarao de ser compreendidas as espiritualidades do Ocidente, da China e da India? Terminaré tudo pelo suicidio atémico? Ou, pelo contrario, sé agora se estéo abrindo para o Homem as grandes oportunidades? Caminhamos para a paz mundial? Serd esta conseguida, em térmos de ‘iiberdade, por meio de aliangas entre Estados soberanos ou decorrera da dominagao do. mundo pelo poder do terror? Ocorreré como ocorreu até agora, que o inesperado, o criativo, o miraculoso - conduzam a uma nova humanidade que encerre em seu béjo o passado milenar? Nova fé passardva sustentar o homem? Nenhuma dessas indagagdes pode ser respondida. 6. Examinarei apenas: uma das questées levantadas: a consciéncia, hoje comum, da possibilidade da autodestrui- gio humana. Tudo parece apontar, em sinistra evidéncia, para o desaparecimento do homem. -A transformagio da existéncia humana em um processo de produgdo e consumo resulfa em uma aceleracdo crescente 29 da troca de bens. ‘Tédas as coisas — habitagaio, vestuario, mobilidrio, economias — assumem carter efémero. Vemo- -nos compelidos a viver o instante que passa. Poupar é encarado como estupidez. Referindo-se a medidas, talvez imiteis, para combater a inflagdo que se insinua por todos os flaneos, um economista sentiu-se autorizado a dizer: “Que se paisa, afinal? Jamais o povo viveu tio bem. Nao vejo razdo para interferir nesse estado de coisas”. Na esfera de liberdade politica, os atos concretos dos homens tendem a abolicio dessa mesma liberdade. Conti- nua-se, entretanto, a proclamar: A liberdade 6 nosso bem mais precioso! Jamais nos sentimos tio bem. Podemos ‘viver como melhor nos parega. : Esse. geral estado de coisas é escondido por mistifica- Ses, que nao deixam de ter consegiténcias. O colapso do sentido de duragéo do mundo material solapa a circunstan- cia humana e ameaga o préprio, homem. Coloca-se em dtivi-. da o valor da lealdade no casamento, na amizade, na vida profissional. “Em todos os setores, 0 mesmo se afirma: a permanéncia deixa de existir, em nada mais é possfvel confiar. A substAncia tradicional da Histéria vai sendo destriida pela forma tecnoldgica de viver, que se expande pelo mundo todo. O meio ambiente se degrada e se torna’ mé- quina. A idade da tecnologia faz surgirem condi¢gées sob as quais nada do passado pode subsistir. A fé que se aninha no coragéo nao mais encontra lin- guagem eticaz para expressar-se. ‘Tornam-se vazias as dimen- sdes da alma e o mundo se faz um deserto ou um triste - teatro de prazeres. : Ouvimos dizer que “Deus ‘estA morto”. Sem embargo, as igrejas florescem. Nao duvidam de si mesmas. Tran- qiiilizados por elas, os homéns se sentem seguros em meio a essas estruturas grandiosas que talvez ndo passem de enor- mes cendrios apodrecidos. 0 Irritamo-nos mtttuamente. A psicologia profunda surge como reftigio que tudo obscurece. A superstigaéo cientffica Jeva a recorrer, para busca de salvacdo, 4s pseudociéncias. E.nds dizem: quando tiverem desaparecido tédas as fic- 30

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