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Nossa sociedade opera, via de regra, por meio de códigos binários, em razão de
sua constituição positivista e cartesiana, que acolhe como normal e esperado
projetos de realidade que atendem esta limitação – Masculino/feminino;
positivo/negativo; bonito/feio; certo/errado.
Deste modo, o gay não é exatamente homem, pois por desejar sexual e
afetivamente um igual só pode ser identificado como um ser feminino. O mesmo
ocorre com a lésbica, via de regra destituída do status de mulher e tratada como
“machona”, “caminhoneira”, enfim, qualquer signo que remeta ao masculino.
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Atividade realizada pela Comissão de Direitos Humanos do XII Plenário do CRP-04 em 15 de dezembro de
2009.
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Psicólogo, graduado pela UFMG em 1986 e Advogado, graduado pela Escola Superior Dom Helder Câmara,
em 2007, com especialização em Direito Público pelo IEC-PUCMG. Militante em Direitos Humanos com
atuação no Grupo de Apoio e Prevenção a Aids de Minas Gerais (GAPA-MG) e na Rede Brasileira de
Prostitutas. Atualmente está vinculado à Coordenadoria de Direitos Humanos da Secretaria Municipal Adjunta
de Direitos de Cidadania da Prefeitura de Belo Horizonte.
Millor Fernandes ao ironizar o mito da igualdade racial no Brasil afirma que por
aqui “não existe racismo, pois os negros sabem muito bem o seu lugar”.
Alternando os personagens a ironia permanece válida no que tange à questão da
homofobia, lesbofobia e transfobia.
Neste cenário, nota-se uma clara indistinção que impõe uma uniformidade no
campo das denominadas sexualidades periféricas. Todos e todas são
homossexuais, desconhecendo as múltiplas identidades ali presentes, garantindo,
deste modo, a manutenção dos efeitos da tolerância ofertada, bem como a
aplicação das sanções sociais no caso de desvio frente ao pacto implicitamente
firmado, ressaltando que tal pacto diz acerca da discrição que beira o
silenciamento e a invisibilidade.
No caso das travestis e das transexuais, mesmo com a identidade social que lhes
são imputadas desconsiderando a identidade subjetivamente reivindicada,
percebe-se a impossibilidade da observância do suposto pacto que impõe a
todas a invisibilidade como moeda de troca pela tolerância social, atraindo para
elas a sanção de se ter reduzido, ainda mais, o rol de direitos reservados àqueles
dissidentes da maioria.
O mesmo pode ocorrer com o gay e a lésbica, ainda que em outro registro, como
o é na questão do ativo e do passivo, sobretudo em nossa sociedade binária.
No caso das transexuais não se trata de uma condição, mas de um estado a ser
superado, seja física ou psiquicamente. A harmonização desejada é de outra
ordem, pois demanda uma adequação entre o que sempre se foi e o corpo
biológico que se apresenta como uma afronta, daí a ideia de que se trata de uma
vivência passível de ser ultrapassada, tendo em vista o reencontro do sujeito
consigo mesmo.
Frente à impossibilidade de se negar tal realidade, dada que é posta, resta apelar
para a interdição sistemática de direitos, a começar pelo básico, ou seja, pelo
direito ao reconhecimento da identidade reivindicada. Afasta-se, de pronto, a
possibilidade da pessoa que vivencia a transexualidade de se conhecer como tal,
pois o olhar constituinte do outro a aponta como sendo um homossexual, um
desviante cujo o sentimento de inadequação se deve a esta característica. O
sofrimento que daí advêm é o alto tributo a ser pago desde sempre pela “opção
sexual” sustentada.
Por fim, seja por persistência ou rebeldia, as que conseguem vencer estes
obstáculos se deparam com restrições legais, muitas vezes amparadas por falsos
dilemas éticos, que lhes negam o direito de concluir o seu projeto de vida. Não
são poucas as mulheres que vivenciam a transexualidade e que precisam acionar
a justiça para fruir do direito garantido à cirurgia de redesignação genital, para
depois, terem que ainda lutar pelo direito ao nome compatível com o seu sexo.
Todavia, muitas vem conseguindo e mostrando ao mundo sua outra face
possível, diversa e plural.
O que até muito pouco tempo atrás era impensável começa a se delinear como
realidade tangível e isto graças à organização e ao esforço daquelas que ousaram
e ousam a perseguir seus direitos e sonhar com novas possibilidades de vida em
detrimento dos obstáculos ou comandos hegemônicos. Estas constituem a prova
viva de que direitos são conquistas cotidianas e não benesses de almas generosas
ou bem intencionadas, da mesma forma que a sua manutenção requer vigilância.