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Diálogos no Conselho "Transexuais: direitos em debate"1

Roberto Chateaubriand Domingues2

Nossa sociedade opera, via de regra, por meio de códigos binários, em razão de
sua constituição positivista e cartesiana, que acolhe como normal e esperado
projetos de realidade que atendem esta limitação – Masculino/feminino;
positivo/negativo; bonito/feio; certo/errado.

Fenômeno historicamente recente, forjado a partir de forte


demanda/reivindicação de reconhecimento social, têm-se a presença de gays e
lésbicas sendo tolerados no espaço público, não obstante a imensa carga de
preconceitos e discriminações, tantas vezes consubstanciados em práticas
violentas e homofóbicas.

Todavia, gays e lésbicas, no imaginário coletivo, ainda se amoldam ao modelo


binário hegemônico, mesmo não o sendo. Em outras palavras, opera-se uma
transmutação de lugar na qual o homem gay passa a ocupar aquele supostamente
destinado ao feminino, enquanto a mulher lésbica passa a ocupar o lugar do
masculino. Nesta perspectiva, ainda que causando estranhamento, uma certa
ordem é mantida, por meio do reconhecimento da exceção que pode ser,
perfeitamente bem, apartada da sociedade normal para melhor explicá-la.

Deste modo, o gay não é exatamente homem, pois por desejar sexual e
afetivamente um igual só pode ser identificado como um ser feminino. O mesmo
ocorre com a lésbica, via de regra destituída do status de mulher e tratada como
“machona”, “caminhoneira”, enfim, qualquer signo que remeta ao masculino.

Reside aí a tradução mais do que perfeita do conceito de tolerância. Desde que


tudo e todos estejam em seus devidos lugares torna-se possível a “convivência”,
o que significa, em última instância, a clara delimitação de espaços nos quais a
dita “convivência” seja mínima ou até mesmo nenhuma. Tolera-se o outro tido
como desigual desde que ele reconheça o seu lugar e nele permaneça. Será nesta
e, ao que parece, somente nesta circunstância que se cogita a distribuição
regulada de direitos endereçada a este segmento social.

1
Atividade realizada pela Comissão de Direitos Humanos do XII Plenário do CRP-04 em 15 de dezembro de
2009.
2
Psicólogo, graduado pela UFMG em 1986 e Advogado, graduado pela Escola Superior Dom Helder Câmara,
em 2007, com especialização em Direito Público pelo IEC-PUCMG. Militante em Direitos Humanos com
atuação no Grupo de Apoio e Prevenção a Aids de Minas Gerais (GAPA-MG) e na Rede Brasileira de
Prostitutas. Atualmente está vinculado à Coordenadoria de Direitos Humanos da Secretaria Municipal Adjunta
de Direitos de Cidadania da Prefeitura de Belo Horizonte.
Millor Fernandes ao ironizar o mito da igualdade racial no Brasil afirma que por
aqui “não existe racismo, pois os negros sabem muito bem o seu lugar”.
Alternando os personagens a ironia permanece válida no que tange à questão da
homofobia, lesbofobia e transfobia.

Neste cenário, nota-se uma clara indistinção que impõe uma uniformidade no
campo das denominadas sexualidades periféricas. Todos e todas são
homossexuais, desconhecendo as múltiplas identidades ali presentes, garantindo,
deste modo, a manutenção dos efeitos da tolerância ofertada, bem como a
aplicação das sanções sociais no caso de desvio frente ao pacto implicitamente
firmado, ressaltando que tal pacto diz acerca da discrição que beira o
silenciamento e a invisibilidade.

Esta confusão é perpetuada pelos meios de comunicação de massa que insistem


em equivaler como sinônimos o gay, a lésbica, o bissexual, a travesti e as/os
transexuais, o que reflete nas representações sociais cotidianas e, por
conseguinte, na forma como a população geral lida com estes/as cidadãos/ãs.

De certo modo, não obstante os avanços significativos alcançados, em especial


nos últimos anos na luta pela afirmação das diversas identidades que conformam
o campo LGBT, o movimento social ainda se enreda nas armadilhas
historicamente criadas e acaba por reiterar a confusão posta, como é o caso
emblemático dos eventos para eleição da Miss Gay nos quais concorrem
majoritamente travestis.

No caso das travestis e das transexuais, mesmo com a identidade social que lhes
são imputadas desconsiderando a identidade subjetivamente reivindicada,
percebe-se a impossibilidade da observância do suposto pacto que impõe a
todas a invisibilidade como moeda de troca pela tolerância social, atraindo para
elas a sanção de se ter reduzido, ainda mais, o rol de direitos reservados àqueles
dissidentes da maioria.

A radicalidade do feminino ostentada pela travesti a faz sobressair de maneira


gritante na esfera pública cuja consequência primeira é a rejeição social imediata
tanto como a sua associação literal com a marginalidade e a periculosidade. Para
elas acaba sendo reservada a noite como modo de disfarçar/esconder a
exuberância que lhe é própria. Parece estar sugerido uma incompatibilidade
entre a luz solar e a figura da travesti que por temor aos achaques e chacotas, se
recolhe durante o dia evitando o contato com o outro que não seja os seus iguais.

Já as transexuais trazem à cena um elemento novo que as diferencia ao mesmo


tempo que a atribui inequívoca marca da igualdade frente a todos/as e, por isto
mesmo, nos desconcerta. Ainda que se possa insistir em sua classificação no
campo do homoerotismo como mais uma das espécies de um mesmo gênero, a
partir do substrato biológico que faz do sujeito homem ou mulher, associado ao
desejo afetivo-sexual direcionado a um outro supostamente igual, tal tentativa
não prospera, não encontra eco possível.

O gay, a lésbica ou a travesti, para além de suas especificidades e identidades, ao


serem analisados pelo prismada relação sexual em si, se amoldam a um mesmo
gênero do qual se fazem espécies. Por mais que a travesti, por exemplo, ostente
uma identidade própria e única ela pode, caso queira, transitar entre o que se
conhece como homem ou mulher, se fixando em um lugar ou em outro, de
acordo com o seu desejo ou conveniência.

O mesmo pode ocorrer com o gay e a lésbica, ainda que em outro registro, como
o é na questão do ativo e do passivo, sobretudo em nossa sociedade binária.

Na perspectiva fenomenológica nota-se que se trata de uma condição do ser,


mesmo que este esteja em constante e dinâmica mutação. O sujeito é gay, é
lésbica, é travesti. Somos tentados a compreender, assim, a jocosa afirmação
popular na qual se diz que “nunca se viu um ex gay”. Em tese, tal condição
passa a ser trabalhada pelo sujeito que a porta na perspectiva de uma
harmonização entre o que se é e o que o mundo anseia que o sujeito seja,
aventura que se segue pela vida afora na qual cada um conquista resultados
diversos de acordo com as possibilidades psico-emocionais e fáticas
apresentadas por cada sujeito em questão.

No caso das transexuais não se trata de uma condição, mas de um estado a ser
superado, seja física ou psiquicamente. A harmonização desejada é de outra
ordem, pois demanda uma adequação entre o que sempre se foi e o corpo
biológico que se apresenta como uma afronta, daí a ideia de que se trata de uma
vivência passível de ser ultrapassada, tendo em vista o reencontro do sujeito
consigo mesmo.

A mulher que vivencia a transexualidade não permanece transexual após um


exitoso processo de readequação genital. Ela retorna ao que sempre foi, a saber,
uma mulher, como todas as outras e é este o seu desejo enfim realizado.

Todavia, ao que parece, este desejo se configura como expressão máxima da


transgressão, da ousadia de um ser antes compreendido como não apenas
diferente, mas, sobretudo, desigual e que se arvora a se transfigurar como um ser
“normal”. O insustentável é justamente a inexistência de pontos de apoio que
contradigam o que está posto pela vida real.

Frente à impossibilidade de se negar tal realidade, dada que é posta, resta apelar
para a interdição sistemática de direitos, a começar pelo básico, ou seja, pelo
direito ao reconhecimento da identidade reivindicada. Afasta-se, de pronto, a
possibilidade da pessoa que vivencia a transexualidade de se conhecer como tal,
pois o olhar constituinte do outro a aponta como sendo um homossexual, um
desviante cujo o sentimento de inadequação se deve a esta característica. O
sofrimento que daí advêm é o alto tributo a ser pago desde sempre pela “opção
sexual” sustentada.

Aquelas que rompem com este primeiro círculo de interdição, suspeitando do


caráter inexorável e imobilizador apresentado, se deparam com inúmeros outros
obstáculos, comuns a todos aqueles que ousam enfrentar a vida a partir de
posições pouco convencionais. De novo apresenta-se o risco do desaparecimento
do sujeito, o mergulho na viscosa invisibilidade, iniciado pela interdição ao
direito a educação formal e seguido, em maior ou menor garu, pela restrição ao
mercado de trabalho, pela limitação do círculo de convivência social desenhado
pela formação de guetos ou ainda pela imaginária impossibilidade de inventar
ou reinventar uma família aos moldes de seu desejo.

Por fim, seja por persistência ou rebeldia, as que conseguem vencer estes
obstáculos se deparam com restrições legais, muitas vezes amparadas por falsos
dilemas éticos, que lhes negam o direito de concluir o seu projeto de vida. Não
são poucas as mulheres que vivenciam a transexualidade e que precisam acionar
a justiça para fruir do direito garantido à cirurgia de redesignação genital, para
depois, terem que ainda lutar pelo direito ao nome compatível com o seu sexo.
Todavia, muitas vem conseguindo e mostrando ao mundo sua outra face
possível, diversa e plural.

O que até muito pouco tempo atrás era impensável começa a se delinear como
realidade tangível e isto graças à organização e ao esforço daquelas que ousaram
e ousam a perseguir seus direitos e sonhar com novas possibilidades de vida em
detrimento dos obstáculos ou comandos hegemônicos. Estas constituem a prova
viva de que direitos são conquistas cotidianas e não benesses de almas generosas
ou bem intencionadas, da mesma forma que a sua manutenção requer vigilância.

Os primeiros passos já foram dados, em um processo difícil e doloroso para


muitos e muitas, mas por si só vitorioso em sua missão de colocar a roda da vida
para girar. O restante ainda está para ser escrito e realizado. Cabe a cada um de
nós assumirmos nosso papel, seja este qual for, independente da orientação
sexual ou identidade de gênero, para possamos garantir a perenidade das
conquistas e o avanço de novos direitos, hoje talvez impensáveis, porém, desde
já, prontos a serem descobertos e fruídos.

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