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ELISEU SAVERIO SPOSITO GEOGRAFIA E FILOSOFIA CONTRIBUICAO PARA O ENSINO DO PENSAMENTO GEOGRAFICO 1? reimpressao 3 CONCEITOS Introdugao Nossa proposta metodoldgica para se discutir o pensamento geo- grafico estrutura-se, apés oconhecimento do método e da teoria do conhecimento, na andlise de conceitos, temas ¢ teorias. Vamos veri- ficar como foram construidos, ao longo do tempo, trés conceitos e como eles foram sendo (re)elaborados por grandes pensadores ge6- grafos ou com outras formacées cientificas. Para isso vamos privile- giar, neste momento, os conceitos de espago (e tempo), regido e ter- ritério. Espago (e tempo) Embora nossa proposta seja discutir com profundidade alguns conceitos caros ao pensamento geografico, neste item propomos a relagao direta entre espago e tempo porque, pela nossa proposta metodolégica, eles precisam ser considerados em conjunto. Inicial- mente, vamos discutir algumas idéias sobre 0 espa¢o para, em segui- da, enfocarmos mais diretamente o tempo. No final, vamos ver como esses dois conceitos (que também podem ser enfocados em seu esta- 88 — ELISEU SAVERIO SPOSITO tuto de categoria) se relacionam e estado na base de todo 0 conheci- mento geografico. . Sena geografia chamada “tradicional” 0 espago nao é um concei- to-chave, ele comparece na obra de Ratzel encerrando “as condigdes de trabalho, quer naturais, quer aquelas socialmente produzidas”, (apud Corréa, 1995) consubstanciando 0 conceito de espago vital. Ele é enfocado por Hartshorne como espago absoluto (“um con- junto de pontos que tem existéncia em si, sendo independente de qualquer coisa”). Esse autor, a0 dissociar 0 espaco do tempo, produ- zira uma maxima, muito conhecida dos geégrafos, segundo a quala geografia “estudaria todos os fenémenos organizados espacialmen- te, enquanto a histéria, por outro lado, estudaria os fendmenos se- gundo a dimensao tempo” (apud Corréa, 1995). Na geografia neopositivista, 0 conceito de espaco tornar-se-4 uma importante referéncia. Segundo Corréa (1995, p.20), esse conceito aparece pela primei- ra vez na histéria do pensamento geografico como um conceito- chave da disciplina com 0s trabalhos de Schaefer (1953), de Ullman (1954) e Watson (1955), ganhando duas conotas6es: aquela que pode ser chamada de planicie isotrépica, e outra, como de represen- tag&o matricial. No primeiro caso, o ponto de partida para a compreensao do es- pago é a sua caracteristica de homogeneidade, enquanto o ponto de chegada éa sua conseqiiente diferenciagao espacial, enfocada como que expressando um equilibrio espacial. Nessa concepgao, a varia- vel mais importante é a distancia, fundamental nos esquemas cen- tro-periferia, associada as varidveis orientagao e conexao. No segundo caso, 0 espago seria representado por uma matriz e por sua expressio topoldgica, chamada grafo. Os temas mais signi- ficativos estudados por essa tendéncia foram movimento, redes, nds, hierarquias e superficies, de cujos nomes mais importantes foram Haggett e Chorley. Ainda continuando a nos apoiar em Corréa (1995), podemos di- zer que a visio légico-positivista privilegia a distancia como varia- vel independente, elemento que pode ser considerado um meio GEOGRAFIAE FILOSOFIA. = 889 operacional que pode permitir elaborar um conhecimento sobre lo- calizagdes e fluxos, hierarquias e especializacdes funcionais. Contribuigao mais polémica paraa transformagao do conceito de espaco foi trazida pela chamada geografia critica ou radical, de base marxista, por nomes como Milton Santos, Horacio Capel, Henri Lefebvre, Richard Peet, entre outros. O espago aparece efetivamente na andlise marxista a partir da obrade Henri Lefébvre, de 1976, intitulada Espacio y politica. Para esse autor, , do espaco nao se pode dizer que seja um produto come qualquer outro, um objeto ou uma soma de objetos, uma coisa ou uma colecdo de coi- sas, uma mercadoria ou um conjunto de mercadorias. Nao se pode di- zer que seja simplesmente um instrumento, o mais importante de todos os instrumentos, o pressuposto de toda produgio e de todo o intercam- bio. Estaria essencialmente vinculado com a reprodugao das relagdes (sociais) de produgao. (p.34) Para Santos (1985), cuja obra tem, em seu inicio, forte influéncia de Karl Marx e de Henri Lefébvre, a constituigao doconceito de for- maciio socioespacial, cuja base esta no conceito marxista de forma- co socioespacial, é importante porque modo de produgio, formagao socioecondmicae espaco sao categorias interdependentes, pois 0 espago tem que ser encarado como “fator social e naio um reflexo social”. Santos (1985) afirma que o espago deve ser estudado por meio de quatro categorias: forma éo “aspecto visivel de uma coisa”, “o arranjo ordenado de objetos”, um padrao, fungdo “sugere uma tarefa ou ati- vidade esperada de uma forma, pessoa, institui¢do ou coisa”; estru- tura “implica a inter-relacao de todas as partes de um todo, o modo de organizagao da construg’io”; e processo, que “pode ser definido como uma acio continua, desenvolvendo-se em direg&o a um resul- tado qualquer, implicando conceitos de tempo (continuidade) e mu- danga”. Paraele, forma, funcio, estrutura e proceso sio quatro termos disjuntivos, mas associados, a empregar segundo um contexto do mundo de todo dia. 90 ELISEU SAVERIO SPOSITO Tomados individualmente, representam apenas realidades parciais, li- mitadas, do mundo. Considerados em conjunto, porém, e relacionados entre si, eles constroem uma base tedrica e metodoldgica a partir da qual podemos discutir os fenémenos espaciais em totalidade. (ibidem, p.50-2) Quando discute algumas questées que persistem na construgio do pensamento geografico, Santos (1996, p.16) afirma que “o corpus de uma disciplina é subordinado ao objeto e nao o contrario” sendo “{ndispensavel uma preocupacao ontolégica, um esforgo interpreta- tivo de dentro, o que tanto contribui para idenuticar a natureza do espago, como para encontrar as categorias de estudo que permitam corretamente analisa-lo”. Santos foi pioneiro na insisténcia de que o espaco deve merecer atengao afinada dos gedgrafos, desde meados da década de 1970. Outros pensadores, posteriormente, também insistiram nessa dire- ¢4o. Além da proposta de apontar o espago como 0 objeto da Geo- grafia, Santos se preocupa também com a “unido espago-tempo” e com o papel do lugar nas preocupac6es dos gedgrafos. Ele afirma que para se discutir 0 espago é preciso, como ponto de partida, defini-lo como “um conjunto indissociavel de sistemas de objetos e de siste- mas de agées” (Santos, 1996, p.18). Isto permite buscar “uma carac- terizagao precisa e simples do espaco geografico, liberta do risco das analogias e das metéforas” (ibidem, p.19). A partir da nogao de espago, é possivel “reconhecer suas catego- rias analiticas internas”, como a “paisagem, a configuracao territo- rial, a divisao territorial do trabalho, o espaco produzido ou produ- tivo, as rugosidades e as formas-contetido”. Outras questées ligadas a essas categorias também precisam ser lembradas: os “recortes es- paciais, propondo debates de problemas como 0 da regido eo do lu- gar” além do “das redes e das escalas” e a “complementaridade en- tre uma tecnoesfera e uma psicoesfera” (ibidem, p.19). E introduzindoa técnica na epistemologia do espaco que Milton Santos avanga nas suas propostas de conceituagao do espago. Paraele, * a “légica da instalagao das coisas e da realizaciio das agdes se confunde com a légica da histéria, 4 qual o espago assegura a continuidade” e GEOGRAFIAEFILOSOFIA 9.1 que “uma primeira realidade a nao esquecer é a da propagacao desi- gual das técnicas” que se implantam seletivamente no espaco, lem- brando a nogio de rugosidade (ibidem, p.34-6). Num esforgo de conceitualizagao de espago, Santos (1978, p.120) afirma que “o espaco geografico é também 0 espago social”. Enca- rando 0 espago como categoria, afirma que este seria uma categoria permanente e universal, preenchida por relagdes permanentes entre elementos légicos encontrados através da pesquisa do que é imanente, isto é, do que atra- vessa 0 tempo e nao daquilo que pertence a um tempo dado ea um dado lugar, quer dizer, propriamente histérico, o transitério, fruto de uma combinacdo topograficamente delimitada, especifica de cada lugar. {ibidem, p.120-1) A nogio de espago como categoria permanente estd de acordo com nossa concep¢ao de categoria apresentada no Capitulo 1 deste tex- to. No entanto, a nogao de espaco como objeto social, a nosso ver, coisifica-o conceitualmente. Essa agdo do pensamento contradiz a afirmagao anterior e poe em questo a prépria base ontoldgica do espago, porque ora ele é uma categoria ora € coisificado como objeto social, na sua constituig&o como conceito. Para Santos (1978, p.128), “o espago nao é nema soma nemasin- tese das percepgées individuais. Sendo um produto, isto é, um resul- tado da produgiio, o espaco é um objeto social” e, por conseguinte, “natureza socializada”, aquilo que os geégrafos denominam econhe- cem por espac¢o ou espaco geografico (ibidem, p.130). Aanilise de Milton Santos, que se propée elaborar uma estrutu- ra para a compreensio do espaco, vai para o campo ontolégico ao se considerar que “‘o espaco impée a cada coisa um conjunto de relacdes porque cada coisa ocupa um certo lugar no espago” (ibidem, p.137). Do ponto de vista da compreensio empirica do espago, pode-se falar dele “como condi¢ao eficaz e ativa da realizagao concreta dos modos de produgio e de seus momentos” porque os objetos geo- graficos “aparecem em localizagdes, correspondendo aos objetos da produgao em um dado momento e, em seguida, por sua propria pre- 92 ELISEU SAVERIO SPOSITO senga”, influenciando “os momentos subseqiientes da produgio” (ibidem, p.139). Ocarater do espago como elemento estrutural da sociedade pode ser confirmado, em outras palavras, pelo proprio Milton Santos (1978, p.149), que afirma: o papel especifico do espago como estrutura da sociedade vem, entre outras razdes, do fato de que as formas geograficas sao duraveis e, por isso mesmo, pelas técnicas que elas encarnam e¢ as quais dao corpo, isto é, pela sua propria existéncia, elas se vestem de uma finalidade que é originalmente ligada, em regra, ao modo de produgao precedente ou a um de seus momentos. A categorizagao marxista do espago social tem outros elementos ase considerar. A maioria dos autores marxistas aceita a “priorida- de do método como na afirmagao da viabilidade do materialismo como teoria geral da sociedade”’. Quando se trata especificamente do conhecimento geografico, “o discurso marxista supde em todos os casos aceitar a existéncia de re- lagdes mutuas e complexas entre sociedade e espago, entre proces- sos sociais e configuragées espaciais”. Para Peet (1978, p.22), “a geo- grafia marxista é a parte do conjunto da ciéncia que se ocupa das inter-relagdes entre processos sociais por um lado, e meio fisico e relagGes espaciais por outro”. . Harvey, em seu livro Urbanismo y desigualdad social (1973), afir- ma que oespaco nao pode ser “em si mesmo e ontologicamente” nem absoluto (algo em si, com existéncia independente, como encarado pela geografia tradicional), nem relativo (relacdo entre objetos, como encarado pela geografia analitica), nem relacional (espaco contido nos objetos). O espago pode “chegar a ser uma destas trés coisas — ou as trés — segundo as circunstancias da pratica humana” (ibidem, p.5- 6). Essa analise é por ele repetida, ao discutir a natureza do espago, no livro Justiga social e a cidade, publicado no Brasil em 1984, em sua segunda parte, quando se esboca uma teoria do uso do solo urbano (p.4-5). GEOGRAFIA E FILOSOFIA 93 As idéias de Harvey, que ao discutir 0 conceito de espago (abso- luto, relativo e relacional) propdem uma abordagem teérica do uso do solo urbano, demonstram a intensa relacdo que existe, episte- mologicamente, entre os conceitos e as teorias. Mendoza (1982, p.150), afirma que, se o “espaco éa projegao da sociedade, somente podera ser explicado ... decompondo em primei- ro lugar a estrutura e o funcionamento da sociedade ou formacgao social que o produziu”. Dessa forma, o “conceito de modo de pro- dugao aparece como conceito central”, pois “geneticamente os pro- cessos de criagao do espago e do modo de producao sao inseparaveis”. Assim, 0 entendimento do espago supée “aceita-lo como um dos resultados dos processos de producao historicamente atuantes no seio das estruturas sociais”. Segundo o autor citado, Peet (1979, p.166) afirma, por sua vez, que “um determinado modo de produgao expressa-se de forma di- ferente em diferentes condigées fisicas, ou em areas de transicao cul- tural diversa a partir de modos de produgao decadentes, dando lu- gar a diferengas entre e dentro das formagées sociais que gera”. Lucio Gambi, citado por Quaini no livro Marxismo e geografia (1979, p.51), com base nos aportes marxistas da geografia, sugere uma definigao dessa ciéncia: “a histéria da conquista consciente e da elabo- racdo regional da terra em fungao de como se organizoua sociedade”. Ao final dessa abordagem marxista do espago, é preciso lem- brar, como escreveu Lefébvre (1974), que enquanto produto, por interagdo ou reagao, o espago intervém na propria produgao: orga- nizagao do trabalho produtivo, transportes, fluxos de matérias-pri- mas e das energias, redes de reparticao dos produtos. A sua maneira produtivo e produtor, o espaco entra nas relagdes de produgaoe nas forgas produtivas (mal ou bem organizado). Seu conceito nao pode, portanto, se isolar e permanecer estatico. Ele se dialetiza: produti- vo-produtor, suporte das relagées econémicas e sociais. (p. IV-V, Préface). Soja, em sua obra Geografias pés-modernas (1993), cujo subtitu- lo é“a reafirmagao do espago na teoria social critica”, faz um resgate epistemoldgico desse conceito, mostrando como, ao longo do tem- 94 — ELISEU SAVERIO SPOSITO po e das doutrinas relativas, ele tem importancia diferenciada no pensamento geografico. Nos anos 1970, a insercao de uma geografia de base marxista vai transformar a concepcao de espago. Nomes como o de Lefébvreeo de Milton Santos vao ser fundamentais para esse fato, quando surge na geografia marxista um “acirrado debate acerca da diferenga que faz o espaco na interpretagao materialista da historia, na critica do desenvolvimento capitalista e na politica da reconstrugao socialista” (Soja, 1993, p.72). E Harvey quem vai afirmar que “a geografia historica do capita- lismo tem que ser objeto de nossa teorizagao, € o materialismo his- térico-geografico, ométodo de investigagao” (apud Soja, 1993, p.58). Essa afirmago provoca um sério confronto com aquilo que j4 defen- demos anteriormente, no que se refere ao conceito de método. Basea- do em nossa concepsao de método, o que Harvey chama de método, preferimos denominar doutrina. Voltando ao que afirmou Lefébvre, Soja (1993, p.65) afirma que “a propria sobrevivéncia do capitalismo estava baseada na criagao de uma espacialidade cada vez mais abrangente, instrumental, e tam- bém socialmente mistificada, escondida da visdéo critica sob véus espessos de ilusao e ideologia’”. Assim, a “espacialidade do urbano, a interaciio entre os processos sociais € as formas espaciais, e a possi- bilidade de uma dialética sécio-espacial urbana formadora foram questées fundamentais de debate desde 0 inicio, e continuam a ser importantes nos estudos urbanos marxistas contemporaneos” (ibidem, p.70). Essa afirmagao alerta para o empobrecimento epis- temolégico provocado pela forte influéncia do historicismo, como afirmou Léwy (1991). Em consonancia com 0 que este autor afirma, podemos lembrar o que Soja (1993, p.159) afirmou sobre o mesmo assunto: “o histo- ricismo bloqueia da viséo tanto a objetividade material do espago, como uma forga estruturadora da sociedade, quanto a subjetividade ideativa do espaco, como parte progressivamente ativada da cons- ciéncia coletiva”. Na década de 1970, GEOGRAFIA E FILOSOFIA 95 desenvolveu-se na geografia marxista e nos estudos urbanos e regionais um movimento crescente, que parecia estar concluindo que o espaco e a espacialidade sé poderiam encaixar-se como uma expressao reflexa, um produto das relagdes sociais mais fundamentais de produgao e das “leis de movimento” a-espaciais ... reforgado por uma “critica da criti- ca”, de base mais ampla, que se vinha espalhando pelo marxismo oci- dental mais ou menos na mesma época, denunciando as insuficiéncias tedricas, as interpretagdes exageradas e as abstragées despolitizantes do estruturalismo althusseriano e de seus adeptos neomarxistas e “tercei- ro-mundistas”. (p.73) A contribuigao desse avango foi necessaria para “recombinar a construcao da histéria com a construgao da geografia”, mesmo que tenha sido um “‘exercicio necessariamente eclético” (ibidem, p.76-7). Assim, estava colocada, finalmente, na produgao do pensamen- to geografico, a figura definitiva do espaco como elemento estrutu- rador da sua inter-relag4o com a filosofia. Ao propor uma “dialética sdcio-espacial”, Soja (1993, p.99) afir- ma que ela “representa ... um componente dialeticamente definido das relagées de produsio gerais, relagdes estas que sdo simultanea- mente sociais e espaciais ... captaveis com maior precisao no concei- to de desenvolvimento geograficamente desigual”. Importante é lembrar que a implantagao do calendario gregoriano (século XVI, mais precisamente 1582) possibilitou o dominio do tem- po dos outros porque o uso do relégio tornou-se disseminado. “Des- colado” o tempo da produgiio do tempo césmico, quando as pessoas passaram a produzir dentro das edificagdes e ndo dependiam mais nem da luz natural nem das estagées do ano, ele foi capturado pelas relagdes capitalistas de produgao e teve, posteriormente, papel deci- sivo na compreensao do espago. Harvey (1992, p.220) apresenta um esquema que procura de- monstrar a compressio do espago pelo tempo, ao mostrar que a ve- locidade dos deslocamentos e da informagio amplia-se com o desen- volvimento tecnoldgico. . Uma proposta bastante concreta paraa conceituacao do espago é feita por Milton Santos (1996, p.50), que o define como “um con- 96 ELISEU SAVERIO SPOSITO junto de fixos (que servem para definir 0 lugar) e fluxos (as ages que atravessam ou se instalam nos fixos), que ao interagir expressam a realidade geografica”. Essa proposta € considerada, por esse autor, superada. Recente- mente, ele propés compreender 0 espago como constituido por sis- temas de objetos e sistemas de acGes. . Bourdieu (1996, p.18) analisa 0 espaco, adjetivando-o como so- cial, através da relacdo entre as posigées sociais (para ele, conceito relacional), as disposigdes (o que ele chama de habitus) e as tomadas de posigdo (definidas escolhas realizadas pelos diferentes atores sociais). Pela éptica das posigées sociais, ““o espaco social é construido de tal modo que os agentes ou os grupos sao af distribuidos em fungao de sua posigao nas distribuigées estatisticas de ccordo com os dois ptincipios de diferenciagao que, em sociedades mais desenvolvidas ... S40, sem dtivida, os mais eficientes — 0 capital econdmico e 0 ca- pital cultural” (ibidem, p.19). Para Bourdieu (1996, p.20-1), “o espago de posigées sociais se retraduz em um espago de tomada de posi¢6es” e “a cada classe de posicées corresponde uma classe de habitus — principio gerador de produzidos pelos condicionamen- praticas distintas e distintivas — tos sociais associados 4 condicao correspondente...”’. Piettre (1997, p.21) analisa o tempo e 0 espago afirmando que “o inicio do século XX assistiu a uma unificagdo do espago com o tem- po na teoria especial da relatividade de Einstein”, na tentativa de criagdo de uma “nova geometria do espaco-tempo”. O tempo nao pode ser compreendido sem sua relagao com 0 espago e vice-versa. Vamos voltar um pouco para tentar discutir essa afirmagao. Para Aristoteles, o tempo seria o mesmo para todas as pessoas, indepen- dentemente do lugar onde elas estivessem, porque ele, sendo “me- dida do movimento astronémico”, seria obviamente a “medida de movimento, medida uniforme de movimentos multiformes: da gran- deza variavel quanto ao aumento, alteragées, deslocamentos...”. Com Santo Agostinho (?-605), a Filosofia concebe a esséncia subjetiva do tempo porque ele nao teria existéncia fora do espirito nem teria nenhuma materialidade. O tempo real seria o da alma: GEOGRAFIAE FILOSOFIA «97 “para que seja experimentado pela alma, é preciso que esta seja afe- tada pela existéncia de mudangas que nao aconteceriam se nao fos- sem efeito de mudangas que se produzem fora dela, no mundo” (Piettre, 1997, p.35). Esse mesmo autor afirma, analisando a Filoso- fia medieval, que “nossa experiéncia do tempo nos revela precisamente que o modo de ser do tempo é de nao ser: 0 futuro niio é ainda, o pas- sado nao é mais, o instante presente acabou de ser” (ibidem, p.31). A ciéncia moderna (que vai ter duas concepgées basicas do tem- po, uma delas sendo ele uma simples representagao — como para Espinosa e Leibniz, e a outra que considerava o tempo uma realida- de —como para Descartes e Newton) vai abolir o tempo: ela considerava que, essencialmente, tudo permanecia no universo imutavelmente idéntico a ele mesmo: os astros girando uns em torno dos outros, segundo uma mecanica impecavel, mundo concebido por um Ser eterno e feito para durar eternamente, cujo comeco ou fim, se existem, sdo o efeito contingente da unica vontade divina. (ibidem, p.83) Continuando a nos apoiar em Piettre, ele afirma que Kant vai mudar essa concepgao. Para ele, “podemos abstrair, na experiéncia, todo dado material sensivel, mas nunca 0 espaco eo tempo ... O es- pago eo tempo sao, antes, formas que contetidos de representagao, e formas necessarias para toda representacao” (apud Piettre, 1997, p.97). Assim, “a representagao do tempo e do espago nio seria entio derivada da experiéncia ... mas constitui antes sua condi¢ao”, sendo as formas necessarias da experiéncia; tanto externa quanto interna, da pessoa (ibidem, p.98). E Kant que vai conceber o tempo eo espa- go como categorias filosoficas fundamentais para a compreensao da realidade. Sem estas, a existéncia nao seria possivel porque nao se pode conceber nada antes, depois ou mesmo sem tempo e espaco. No século XIX, a concepgao de tempo vai mudar com Hegel e Nietzsche. Para Hegel, que tenta “reconciliar a raziio com 0 devir” da natureza e da historia, este seria “o teatro da realizacio progressi- va do Espirito”. Para Piettre, nessa perspectiva racional, “‘o fim esta no comeco, exatamente como na teodicéia crist4 a histéria da natu- reza e da humanidade esta presente, desde o comego para 0 Espirito. 98 — ELISEU SAVERIO SPOSITO O que é negar a contingéncia do futuro e, nesse sentido, o tempo”. Ja Nietzsche procurou “demonstrar que a Filosofia e, com ela, a ciéncia sempre foram incapazes de pensar o devir como tal, tanto a finalidade de sua iniciativa racional é de nos proteger por meio de categorias de seguranga (de necessidade, de ordem, de finalidade) da terrivel visio de um devir universal, sem razdo e sem finalidade” (p.40). Bergson (1859-1941), segundo Piettre (1993, p.46) “sublinha com insisténcia a necessidade de perceber toda a diferenga que existe entre o tempo abstrato que nao é senao um nimero—o tempo do relégio, o tempo medido em fisica...~e 0 tempo concreto que passa, chamado entao ‘duragao’, duragao experimentada, vivida pela consciéncia. As- sim, 0 que se mede, fisicamente, diferentemente do que era para San- to Agostinho, “é ainda e sempre 0 espaco, € nao ... uma grandeza exis- tente no e pelo espirito, uma durag0 memorizada relativa” (ibidem, p.48). Essa visdo era semelhante a da fisica mecanicista no século XIX. Segundo Piettre (1997, p.57), Einstein, no século XX, vai afirmar que, para os “fisicos convictos” (ou na fisica moderna), “a distingdo entre o passado, o presente e o futuro, apesar de sua persisténcia nao é mais que uma ilusdo”, o que nao é absurdo porque nas “equagées da relatividade, o tempo permanece uma grandeza reversivel” (ibidem, p.61). Para ele, o espaco é uma realidade e que “existe tem- po na medida em que existe movimento” (ibidem, p.69), ou seja, o principio basico na relagdo entre tempo e espaco seria a possibilida- de de o tempo ser a referéncia das “velocidades relativas do movi- mento” (ibidem, p.80). A relagao entre tempo e espago é consolidada para a fisica de Einstein porque, para ele, “o espago n&o é nenhum vazio real (Newton) ou formal (Kant), mas uma realidade material de um cam- po gravitacional; sua estrutura geométrica (sua curvatura) é funcao da intensidade do campo gravitacional” (Piettre, 1997, p.115) e sao “constitutivos da realidade do universo” (ibidem, p.116). Assim, “olhar longe no espaco é olhar longe no tempo, pois o nico meio de informagao que nés temos sobre o que acontece no espago ¢ no tempo é a luz: uma estrela afastada no espaco, por exem- plo, esta igualmente afastada no tempo, visto que a luz, para chegar GEOGRAFIAE FILOSOFIA 99. até nds, levaré um tempo proporcional a distancia por ela percorri- da” (ibidem, p.117). Para se verificar empiricamente essa afirmacio, “constitui-se um sistema de interpretagdo (uma teoria) que considera o tempo € 0 espago segundo nao apenas as trés coordenadas classi- cas do cartesianismo (x, y ez), mas uma quarta coordenada, queéa coordenada t, que varia quando a anilise se baseia na velocidade da luz". Por essa razao, nao ha “um tempo universal comum, mas tem- pos diferentes, ou relégios diferentes, conforme o sisterna de coor- denadas” (ibidern, p.119). Um outro elemento, portanto, entra em cena para a compreen- sio do espaco e do tempo: a luz. Ela relativiza as suas dimensdes porque, teoricamente, pode chegar em momentos diferentes a dife- rentes observadores. No entanto, é preciso também, segundo essa teorizagaéo, compreender que a luz traz informagées do passado. E esse passado é irreversivel. Se, por um lado, ha relatividade na per- cepgao do tempo dependende da posigao da pessoa no espaco, e exa- tamente por isso é possivel conceber a reversibilidade do tempo, por outro, quando se considera a luz como o elemento que traz as infor- magées passadas ai o tempo se torna irreversivel. Com essa perspectiva € possivel afirmar que 0 universo possui urn “tempo” eum “espaco”, “ele tem um presente: 0 estado atua! de sua expansdo” e “tem um futuro: aquilo que se situa além de sua expan- sao e, portanto, um espago do universo ainda nio existente. E tem um passado: esse passado nao é mais 0 que o espago do mundo cons- tituido e do qual nés temos a ilusdo de eternidade presente pela luz que dele ainda recebemos” (Piettre, 1997, p.132). Para Santos (1978, p.207), € preciso considerar as seguintes pre- missas: 1) —“o tempo nao é um conceito absoluto, mas relativo, ele nao é 0 resultado da percepgao individual, trata-se de um tempo con- creto; ele nao é indiferenciado, mas dividido em secgdes, dotada de caracteristicas particulares”; 2) — “as relagdes entre os periodos his- toricos ea organizagao espacial também devem ser analisadas”, numa clara alusao a periodizago habitual que se faz na produgad do conhe- cimento geograficoe que tem sido objeto de muitas controvérsias na historia da Geografia. 100 — ELiseu savErio sposito Embora seja possivel continuar a exposicdo de idéias e teorias sobre a rela¢ao espago-tempo na filosofia contemporanea, achamos melhor parar por aqui. E uma pergunta pode passar, neste momen- to, pela mente do leitor: por que tanta discussio sobre o tempo e o espago na perspectiva da fisica? A resposta que podemos dar éa se- guinte: ndo se pode compreender essa categoria, nem mesmo nocam- po restrito dos estudos geograficos, sem compreendé-la, minima- mente, em suas diversas dimensées e interpretagdes elaboradas por diferentes pensadores em diferentes areas do conhecimento. O cotejo das diferentes idéias, especialmente aquelas derivadas dos estudos mais avangados, realizados a partir das observagées do universo feitas pelos fisicos, sem davida vai condicionando a idéia de espaco e de tempo e vai influenciando, mesmo que de maneira nao palpavel, os seus enfoques eas diferentes determinagdes que podem afetar diretamente a sua concepgao. As categorias tempo e espago (ou espago ¢ tempo, a ordem nao interessa nesse caso) condicionam a compreensao da realidade, sobretudo no momento atual, quando o avango cientifico que permite grande velocidade na circulagaio das comunicagGes deflagra novos paradigmas para a compreensio das escalas que afetam 0 espaso eo tempo e, conseqtientemente, a vida cotidiana das pessoas nos mais distantes territérios do planeta. Harvey marcou importante momento de discussio na produgao do pensamento geografico quando propés a abordagem do espaco em trés categorias: absoluto, relativo e relacional, como ja foi discutido anteriormente. Por fim, para completar a abordagem do conceito de espaco nas diversas tendéncias da geografia, vamos apresentar, de uma manei- ra bem superficial, como ele é encarado pela chamada geografia humanista ou cultural. Baseada nas filosofias do significado, espa- cialmente a fenomenologia ¢ o existencialismo, segundo Corréa (1995), essa “geografia” surge como uma critica aquela de “cunho légico-positivista”, recuperando a “matriz historicista que caracte- rizava as correntes possibilista e cultural da geografia tradicional”. A geografia humanista esta assentada na “subjetividade, na in- tuigdo, nos sentimentos, na experiéncia, no simbolismoe nacontin- GEOGRAFIA E FILOSOFIA 101 géncia, privilegiando o singular e nao o particular ou o universal, e ao invés da explicagiio, tem na compreensio a base de inteligibilidade do mundo real”. Revaloriza-se a paisagem como conceito. Um nome que se destaca na génese dessa corrente éYi Fu Tuan, para quem “os sentimentos espaciais e as idéias de um grupo ou povo sobre o espa- Goa partir da experiéncia” sao importantes. Para ele, ha varios tipos de espagos: “um espaco pessoal, outro grupal, onde é vivida a experién- cia do outro, eo espago mitico-conceitual que, ainda que ligado a ex- periéncia, ‘extrapola para além da evidéncia sensorial e das necessi- dades imediatas e em diregio a estruturas mais abstratas’” (p.77). Aelaboracao, por exemplo, de mapa mental (como aquele apresen- tado por nés, em 1984, no artigo “Percepgao do espago e formagao do horizonte geografico”) a paztir de causas de natureza estrutural do sistema capitalista (circuitos da economia urbana, nivel de ativida- de da ocupagao profissional, fator distancia, etc.) e de motivos de na- tureza individual (mobilidade das pessoas, relagao da pessoa com os grupos sociais mais proximos, o lazer etc.), por um lado, e, por outro, oestudo sobre 0 espago sagrado da vila de Porto das Caixas, na Baixa- da Fluminense, onde se define, no espaco sagrado, 0 ponto fixo, lu gar da hierofania, e 0 entorno, e, envolvendo o espaco sagrado, os espa- gos profanos direta e indiretamente vinculados (Rosendhal, 1994) so apenas dois exemplos que podemos citar dessa tendéncia, em momentos diferentes, com propostas e com conclusées diferentes. Embora essa corrente nao deva ser minimizada, a disseminagao dos estudos ligados a ela, que remontam a década de 1970, tem sido muito limitada, especialmente no Brasil. Varios estudos ja surgiram segundo suas metodologias, mas essa corrente se mantém restrita a poucos pesquisadores localizados nos diferentes centros de produ- go cientifica. Regiao Esse é um outro tema que pode servir de base para o entendi- mento do pensamento geografico, Podemos, partindo dele, discutir 102 — ELISEU SAVERIO SPOSITO idéias, autores e obras. Como exercicio, neste momento, vejamos 0 que nos alerta Gomes (1995, p.49), ao dizer que reconhecer a exis- téncia do termo regiao é “mais do que simplesmente assinalar a exis- téncia, significa aceitar seu uso ... [e] conceber nesta multiplicidade a riqueza e 0 objeto propriamente de uma investigagio cientifica”. Asconseqiiéncias dessa concep¢ao seriam, para Gomes (1995, p.49- 50: a) “o conhecimento cientifico perde o carater de matéria norma- tiva, de tinica representagao ‘verdadeira’ da realidade”; b) a geogra- fia deve procurar “nos diferentes usos correntes do conceito de regiao suas diferentes operacionalidades; ec) pode-se seguir sem se trans- formar num ator a mais que promova apenas as controvérsias sobre o conceito de regiao”. Para Gomes, “a palavra regido deriva do latim regere, palavra composta pelo radical reg, que deu origem a outras palavras como regente, regéncia, regra etc.”. Em seguida, afirma que “regione nos tempos do Império Romano era a denominagao utilizada para desig- nar reas que, ainda que dispusessem de uma administragao local, estavam subordinadas as regras gerais e hegeménicas das magistra- turas sediadas em Roma” (ibidem, p.50). Essa afirmagao permite identificar a origem do termo regio com um territério e seu carater administrativo. Essa idéia vai se consolidar quando se busca a ori- gem dos termos spatium (visto como continuo ou como intervalo) e provincere (provincia), areas controladas pelos responsdveis pela con- tinuagdo da submissao romana (ibidem, p-51). A partir dessas rapidas afirmagées, podemos fazer eco as palavras de Gomes, quando ele diz que: a) “o conceito de regido tem impli- cages fundadoras no campo da discusséo politica, da dinamica do Estado, da organizagao da cultura e do estatuto da diversidade espa- cial”; b) o debate sobre a regio “possui um inequivoco componen- te espacial”, ou seja, as “projegdes no espago das noges de autono- mia, soberania, direitos etc., ede suas representagdes”; c) “a geografia foi o campo privilegiado dessas discussées” (ibidem, p.52). Quando a abordagem do conceito ganha conotagées historicas, a primeira nogiio que surge é a de regiao natural, considerada como um elemento da geografia fisica, da natureza, pois a leitura que Vidal de GEOGRAFIAEFILOSOFIA = 103 La Blache fazia, no inicio do século, estava alicercada na geologia. O conceito de regiao natural nasce, portanto, da “idéia de que o meio ambiente tem um certo dominio sobre as orientag6es dos diferentes aspectos do desenvolvimento da sociedade”. Para La Blache, afirma Gomes (1995), a regiao “era a denomina- Go dada a uma unidade de anilise geografica, que exprimiria a pré- pria forma de os homens organizarem o espago terrestre”’, sendo, cientificamente, ndo apenas um “instrumento teérico de pesquisa, mas também um dado da propria realidade”; enfim, uma “escala de analise, uma unidade espacial, dotada de uma individualidade, em relacdo a suas areas limitrofes” (Moraes, 1981, p.75). A “solidariedade das atividades, pela unidade cultural, a certas porcées do territério” dard origem a “nogao de regido geografica, ou regiao-paisagem ... unidade superior que sintetiza a agdo trans- formadora do homem sobre um determinado ambiente”, quando tern, em sua abordagem mais geral, os diferentes componentes que irdo gerar as monografias regionais que tanto marcaram a produgao geografica na primeira metade do século XX, cujo “método” éa des- cricdo e os trabalhos de campo eram de enorme importancia (Gomes, 1995, p.56). A nogio corologica que Hettner impinge 4 geografia, ao basear- se na divisio das ciéncias em idiogrdficas (aquelas que se preocupam com as anilises singulares e descritivas de um sé lugar ou tema) e nomotéticas (aquelas que se preocupam em, a partir das generaliza- goes, estabelecer leis ou regras comuns que possam ajudar na expli- cagiio de fenémenos universais), retomada posteriormente por Richard Hartshorne, em sua obra The nature of Geography, estabe- lece 0 método regional como fundamento para, ao estudar a regido, preocupa-se com “a distribuigaoea localizag3o espacial”, sendo “este ponto de vista”, o “elemento-chave na definigao de um campo epis- temoldgico préprio 4 geografia” (p.59). Para Hartshorne, a regido “nao éuma realidade evidente”, mas “um produto mental, uma for- ma de ver o espago que coloca em evidéncia fundamentos da orga- nizacdo diferenciada do espaco”, ou seja, “sintese” de relagdes com- plexas (p.59-60). 104 — ELISEU SAVERIO SPOSITO Como reacdo a essa concepgao, 0 advento da geografia neo- positivista, que buscava a unidade metodoldgica e discursiva da geo- grafia, passa a encarar a regiao como “‘tarefa de dividir 0 espaco se- gundo diferentes critérios”, tornando a regio “um meio e nao mais um produto”, criando os conceitos de regides homogéneas e de regides funcionais (p.63), cuja visibilidade seria dada pelos modelos e pelos sistemas. Essa reagao, segundo Moraes (1981, p.107-9), tem como conse- qiéncia, dadas as condigées da época de seu desenvolvimento, uma pratica de intervengao na realidade, ao instaurar mecanismos para “a maximizacao dos lucros, a ampliagao da acumulago do capital, a manutengio da exploragio do trabalho”, pois como um aparato do Estado torna-se um instrumento da dominagio burguesa. Mais tarde, acorrente denominada de critica, na geografia, argu- mentava que a diferenciacao do espago se deve, principalmente, a divisio territorial do trabalho e ao processo de acumulacao capitalista que produz e distingue espacialmente possuidores e despossuidos, rechacando qualquer outra nogio ou conceito cientifico como pro- duto ideolégico, enfatizando a controvérsia relativa ao conteido da regido e, a nosso ver, invertendo a questao metodolégica, buscando superar a infindavel discussio sobre 0 que € 0 objeto da geografia. Por essa razao, o processo histérico ganha visibilidade a partir do conceito de formagio socioeconémica, sendo a regio a “sintese con- creta e histérica desta instancia espacial ontolégica dos processos sociais, produto e meio da produgao e reprodugao de toda a vida so- cial”, como afirmou Milton Santos (1978). Outra corrente, ora inserida no que foi a geografia “critica” ora no que foi a geografia “pragmiatica”, principalmente em virtude de sua particularidade metodolégica (fenomenologia e hermenéutica) e pela forte insergio do pesquisador na sua relagao com o objeto de andlise — aquela chamada humanista — vai conceber a regido a partir da “consciéncia regional, sentimento de pertencimento, mentalida- des regionais”, do “espaco vivido”, existindo como “um quadro de referéncia na consciéncia das sociedades” (Gomes, 1995, p.67). GEOGRAFIAEFILOSOFIA. =. 105 Para esse autor, 0 conceito de regido esteve presente em diversos debates pretéritos e ainda hoje animam as discussées epistemolégicas da geografia. Um primeiro grupo desses debates pode ser delineado “pelas nogdes de regido natural e de regido geografica”. Outro grupo seria aquele derivado das repercuss6es entre “os modelos de uma ciéncia do geral ede uma ciéncia do singular”. Por fim, 0 terceiro grupo pode ser definido como “aquele que pretende saber se ¢ possivel identifi- car critérios gerais e uniformes que estruturam 0 espa¢o ou se estes critérios sdo mutaveis e se definem pela direcdo da explicacio ou das coordenadas as quais o pesquisador faz variar de acordo com suas conveniéncias explicativas” (ibidem, p.67-70). Para concluir este item, podemos dizer que no século XX as trans- formacées na produg’o geografica podem ser assim sintetizadas, segundo Oliveira (1996, p.2): na historia recente da disciplina observou-se a passagem da Geografia do como para a Geografia do porqué; da Geografia da descrigao do vi- sivel e dos seus processos para a Geografia da explicagao do nao-aparente e dos processos no visiveis na paisagem; da Geografia da regio e de lugares sem homens para a Geografia do espaco como totalidade, pro- duzido por sujeitos (homens/classes) historicamente definidos; da Geo- grafia da aparéncia para a Geografia que buscava a apreensao da essén- cia ea sua relacao dialética com a aparéncia Lencioni (1999, p.28) parte do pressuposto de que “o conceito de regido est4 vinculado a idéia de parte de um todo”, considerando a nocao de totalidade baseando-se em Lefébvre, que a compreende “como totalidade fechada, um sistema, ou como totalidade aberta”’. Outro elemento importante para a compreensao da regido é a esca- la, nao como relacao aritmética entre medidas da representagao cartografica eo territério representado, mas como “indutora de con- tetidos para a anilise” (ibidem, p.29). Relacionando a nocio de regitio a reflexées de Kant, Lencioni (1999, p.78) afirma que, para ele, “o fundamento da Geografia é 0 espago” porque ha uma “relagao fundamental” entre “‘as condig6es 106 — ELISEU SAVERIO SPOSITO naturais ea historia dos homens” pois “nao se pode conhecer 0 ho-_ mem se se ignorar o meio”, e pelo fato de ser 0 espago “condigao de toda experiéncia dos objetos”. Neste ponto, chamamos a atengao do leitor para a relacao entre os conceitos de espaco (e tempo) e regiao. Essa relagao é basica para a epistemologia do conhecimento geografico. Outro aspecto que deve ser lembrado é a separacao, baseada na doutrina positivista, entre o conhecimento da natureza e 0 conheci- mento dos homens. A “tentativa” de solucdo pelos estudos regionais procurava superar essa divergéncia ao combinar as duas perspecti- vas. A partir daf, “‘o objeto essencial de estudo da Geografia passou a sera regiao, um espago com caracteristicas fisicas e socioculturais homogéneas, fruto de uma histéria que teceu relagdes que enraiza- ram os homens ao territério e que particularizou este espaco, fazen- do-o distinto dos espagos contiguos” (p.100). Com essa definicao de regio, também se deve considerar que esta pode ser “distinguida pela paisagem’” e que “os homens tomam cons- ciéncia dela, a medida que constroem identidades regionais. Portanto a regiao, nesta perspectiva, possui uma realidade objetiva e cabe ao pesquisador distinguir as homogeneidades existentes na superficie terrestre e reconhecer as individualidades regionais” pelas possibi- lidades de “integracao e sintese” (p.100). Lencioni (1999, p.107) afirma que “Paul Claval sintetizou o sen- tido que a regiao toma no pensamento” de Vidal de La Blache. A primeira consideragao éa de que as regides se evidenciam na su- perficie terrestre; a segunda, éa de que as regides se traduzem na paisa- gem enas realidades fisicas e culturais; e, a terceira, a de que os agrupa- mentos humanos tomam consciéncia da divisio, anomeiam ea utilizam na criag¢ao dos quadros administrativos. Para Lencioni (1999, p.127), mais tarde, Hartshorne vai afirmar que “as regides nao sao auto-evidentes. Elas se definem a partir de uma construgao mental do pesquisador. A regiao, portanto, nao se constitui um objeto em si mesma, elaé umaconstrugao intelectual”. GEOGRAFIAEFILOSOFIA. = 107 Quando porém, se levamem consideracao as delimitagées das divisées entre areas, ele “‘chama a atenco para o fato de que o raciocinio nao deve estar limitado a idéia de contiguidade regional” (ibidem, p.1 29). Na perspectiva da Geografia Ativa, que partia do pressuposto de que o espago poderia ser organizado pelo homem por vias institucio- nais, a “regido foi discutida pela perspectiva do desenvolvimento desigual e se colocou como objeto de intervengio da acgao do ho- mem”, traduzindo-se a “idéia de espago como um campo de acao de fluxos”, definindo-se a regiao “pela dinamica dos fluxos espaciais” (ibidem, p.141). Pela optica da fenomenologia, a regio passa a ser concebida como um espago vivido e como uma construgao tanto mental quanto sub- metida a “subjetividade coletiva de um grupo social ... inscrita na consciéncia coletiva” (ibidem, p.155). Concebendo-se 0 “espago como um produto social”, aregiao, ci- tando Damette, “representa urn espago que tem uma certa coerén- cia interna, que se dissolve por meio do que ele denomina de processo de regionalizacao-desregionalizagao” — este ultimo termo como si- nonimo de globalizagao (ibidem, p. 164). Baseando-se na doutrina do materialismo histérico, a regiao se submete a nogao de formagao eco- némicae social, aparecendo como “derivagdes de processos gerais” (ibidem, p.168). _ Aindaé Lencioni (1999) que, analisando a obra Elegia para uma re(li)gidio, de Francisco de Oliveira, que traz a seguinte citagao: “a regido se constitui um espago em que a reprodugao do capital se pro- cessa de uma forma particular, gerando uma luta de classe especifi- ca. A regido se coloca, portanto, como uma dimensio particular do processo de valorizagdo do capital” (p.171). Como ultima contribuigao para nossa discussdo do conceito de regido, vamos nos basear em Thrift (1996), que enfoca a Geografia Regional, analisando o “inconsciente politico” de Vidal de La Blache, Karl Marx e Fredric Jameson. Thrift (1996, p.216) toma esses trés autores como referéncia porque La Blache viveu uma “época em que aantiga ordem esta em seus estertores e que os principais contornos 108 — ELISEU SAVERIO SPOSITO de uma nova ordem esto justamente comegando a aflorar”; Marx “viveu uma época de transigdo” e seus escritos “exerceram influén- cia maior sobre a geografia humana dos ultimos vinte anos”, e Jameson “representa uma tentativa de tracar as mudangas em nossa era” e “esta decididoa estabelecer um papel-chave para o espago nessas mu- dangas”, tentando, ainda, “levar avante a obra de Marx”. Procurando tragar distingdes entre os pensamentos desses trés autores, Thrift elaborou um quadro, no qual mostra as suas princi- pais caracteristicas. Para ele, La Blache “preocupa-se com a neces- sidade de dedicar-se nao apenas a singularidade da regiao mas tam- bém a sua crescente independéncia” (ibidem, p.221), numa época em que a industrializagao vai ganhando nova importancia na Franga, se comparada a ruralidade dos paysans. Para La Blache, a Geografia era uma ciéncia social (a ciéncia da paisagem) baseada nas ciéncias na- turais (ibidem, p.221). A regiao mudou “a sua natureza no curso da historia”, ao mudar “de uma espacialidade rural baseada no local para uma regido cujo motor é 0 urbanizado capitalismo industrial” (ibider, p.225). A concepgao de regiao de Vidal de La Blache foi fundamental para as bases da Geografia Regional porque, a partir dela, estabeleceu-se um modelo de monografia que, partindo da descri¢ao dos aspectos fisicos da 4rea estudada, chegava-se aos “‘aspectos humanos” pela descrig&o da populagao, inicialmente, e das relagdes econémicas, no final. Esse modelo, que inspirou intimeras teses e dissertagdes nos ” principais centros de pés-graduagio do Brasil tardiamente, nas dé- cadas de 1960 e 1970, esgotou-se com a influéncia do marxismo. Tentando buscar o conceito de regiéo em Marx, Thrift (1996, p.227) afirma que, para ele, “o capital era essencialmente uma in- fluéncia homogeneizante e centralizante", mesmo que alguns proble- mas, que lhe dificultaram a incorporacao da variedade local a dina- mica do capitalismo, devam ser lembrados. Um deles € a nogao de desenvolvimento desigual, que poderia embasar uma pratica de Geografia Regional marxista. Para ele, “a reestruturagado industrial leva a reestruturacao regional” e isso leva a um outro problema, que é 0 seguinte: “questdes mais amplas ... precisam ser reformuladas GEOGRAFIAE FILOSOFIA. = 109 acerca da natureza de regides capitalistas modernas e qual a melhor maneira de se apresentar esta natureza”, porque a “regido esta sen- do redefinida” (ibidem, p.233) desde os tempos de Marx e de La Blache (ver Quadro 4). Quadro 4 —Trés autoridades: Vidal, Marx e Jameson Vidal Marx Jameson . inati Industrial, Imaginirio Camponés, Franga DOU Suburbano, EUA principal Inglaterra Mado de produgéo Feudalismo Capitalismo Capitalismo recente dominante industrial ou multinacional Principais classes Camponeses / Proletarios / Cheace medi donos de terras capitalistas Experiéncia Vivendo Produzindo Consumindo dominante Modo dominante Falado Escrito Imagens de representagio social Meios principais Contar histérias / Metanarrativa / Narrativas locais / de interpretagao metaforas naturais _ ciéncia/geral hermenéutica / cultural diferenga Espacialidade Retorno / Explosio / Implosao / principalidade restabelecimento / — colonizagio / colonizagao / homogeneiza¢ao heterogeneidade mobilidade Sitios principais Aldeia / campo Lar / fabrica Lar / lojas Fonte: Thrift (1996, p.217). A anilise sobre o Nordeste brasileiro pela 6ptica marxista reali- zada por Oliveira (1977) vai além das duvidas expostas por Thrift. Aquele autor, economista, conseguiu esbogar, a partir da abordagem das classes sociais e, principalmente, de suas relagdes de poder, o conceito de regido para essa area do Brasil. Seabra & Goldenstein (1982) compararam as idéias de Oliveira (Elegia para uma re(li)gido, 1975) com as de Lipietz (O capital e seu espago, 1988). Se Oliveira parte das determinagoes regionais estabelecidas pelas condigdes his- téricas do Nordeste brasileiro e chega a uma exposi¢ao clara das re- 110 — ELISEU SAVERIO SPOSITO lagdes de poder, e, portanto, de definir as determinagées territoriais da formacao econémico-social brasileira, a partir de suas evidéncias empiricas nessa area, Lipietz baseia-se no conceito de modo de pro- ducdo para estudar a Franca e permanece preso a logica do préprio discurso para explicar esse pais. Voltemos a Thrift (1996). Ao analisar o seu pensamento, ele afir- ma que a paisagem do capitalismo de Jameson ... baseia-se “sobre o absoluto poder econdmico das corporagées multinacionais apoiado por ‘estonteantes estruturas de crédito e poder’”. Esse crédito e po- der é “transmitido por meios eletrénicos” ¢ ha a “predominancia ab- soluta da forma de mercadoria” e de sua légica que se tornou factivel “pelo desenvolvimento da midia, especialmente a televisdo”, impon- do-se, dessa maneira, uma “nova ordem espacial”, que € exemplifi- cada pelo “capitalismo do shopping center” (ibidem, p.234-5). Para Jameson, entao, “a mercadoria é sua propria ideologia”, e “esta cultura pos-moderna é a ‘dominante cultural’ do capitalismo recente” (ibidem, p.235). Por essas raz6es, pode-se concluir que “a regiao esta se fragmentando, tornando-se nao tio desorganizada ... quanto deslocada nos termos em que costumamos considerar regides como areas continuas e demarcadas”, formando-se mais e mais 0 que Harvey (1992) chamou de “lugares de mercado”, havendo ai também a “espacializagao da cultura” (p.239-40). Thrift (1996, p.242) conclui que é preciso “encontrar novas ma- neiras de representar as regides” afiando os “instrumentos de escri- tae de leitura” porque “geografia regional é essencial 4 pratica de produzir geografia humana”. : A exposigao das idéias de Thrift permite-nos também chegar a algumas conclusées. Em primeiro lugar, 0 quadro que ele organizou pode ser considerado um excelente resumo das idéias dos trés pen- sadores que ele analisa. Em segundo, podemos afirmar que ele, em seu texto, tentou comparar autores que tiveram bases tedricas dife- rentes (La Blache e Marx), o que levou a uma segmentacao de sua narrativa. Em terceiro, se podemos afirmar que sua anilise das idéias de Jameson foi bem realizada, ele ultrapassou a busca do conceito de regido para se situar na conceituagao de globalizagao. Melhor exer- GEOGRAFIAE FILOSOFIA. 111 cicio realizou,' como j4 afirmamos, Oliveira (1977), partindo das evidéncias empiricas, quando estabeleceu seu conceito de regiao, ao estudar o Nordeste brasileiro. Comoas relagdes de poder estao presentes na obra de Oliveira, o conceito de territério se impde, neste momento, como a proximo a ser analisado. Territério O conceito de territério é constantemente confundido com o de espago por aqueles que ainda nio se debrugaram em leituras mais profundas. Neste ensaio, devemos alertar que a distingdo e a confu- sio entre diferentes termos como espago, regido, Estado, em relagao ao territorio, correm por limites muito ténues. Além do mais, nao se pode pensar 0 territério a-historicamente, pois sempre que ele ées- tudado, a categoria tempo comparece de imediato como uma refe- réncia necessaria. Mas isso nao impede uma discusséo inicial do con- ceito de territério. ~ Comecemos com o recurso do dicionario. Johnston, no seu The Dictionay of Human Geography (1994, p.620), afirma que terri- tério éum termo geral utilizado para descrever uma porgao do espago ocupado pela pessoa, grupo ou Estado. Quando associado com o Estado o termo tem duas conotagdes especificas. A primeira é aquela da soberania ter- ritorial, através da qual um Estado reivindica controle de legitimidade exclusivo sobre uma dada area definida por fronteiras claras. A segun- da conotagio refere-se ao fato de que uma area nao esta interiamente incorporada na vida politica de um Estado, como acontece com 0 terri- 1 Anossa opinido é de que a comparagao entre os autores € necessaria como exer- cicio epistemolégico para a construgéo de uma metodologia para a discussao ¢0 ensino do pensamento geografico. A leitura hermenéutica dos textos (mesmo que no momento nao nos propomos a detalhar nossa andlise) é fundamental para © aprofundamente das diferentes contribuigdes & Geogeafia. 112 — ELISEU SAVERIO SPOSITO tério “colonial” do Nordeste da Australia, ou os territorios do norte do Canada. Em muitas formas de uso em Geografia Social, 0 territério re- fere-se a um espago social definido ocupado e utilizado por diferentes grupos sociais como uma consequéncia de sua pratica de territorialidade ou o campo de forga exercitado sobre o espago pelas instituigées domi- nantes. Deste ponto de vista, 0 territério pode ser utilizado como 0 equi- valente a cada conceito espacial como lugar e regiao. Juridicamente, podemos dizer que 0 territério se refere & base geografica de um Estado, sobre o qual ele exercea sua soberania e que abrange o cenjunto dos fenédmenos fisicos (rios, mares, solos) e dos fendmenos decorrentes das agdes da sociedade (cidade, portos, estra- das...). Como se pode notar, essa referéncia mantém paralelo com a primeira conotagio citada anteriormente. Podemos ver, ao longo da histéria da humanidade, povos sem territério, povos némades, ou como diz Bertrand Badie, na introdu- cao de seu livro La fin des territoires (1995, p.8), “identidades multi- plas e geograficamente confinadas, concepgées diversas e freqien- temente contraditorias das relagdes do homem com a terra”, em comparacio com as “normas territoriais ocidentais precocemente construidas”. Assim, temos mais um aspecto a considerar: um territério torna- se concreto quando associado a sociedade em termos juridicos, po- liticos ou econémicos. Ele compreende recursos minerais, que po- dem ser clasificados por sua quantidade ou sua qualidade, é suporte da infra-estrutura de um pais, € por sua superficie que os individuos de uma nagio se deslocam. Ele tem sua verticalidade dependendo da necessidade de se chegar a certas profundidades para a extragao de ouro, diamantes etc. Ele vai além da superficie com terra, estenden- do-se ao mar, quando este é compreendido nas Aguas territoriais de um pais. Enfim, 0 territério € fonte de recursos e s6 assim pode ser com- preendido quando enfocado em sua relagao com a sociedade e suas relac6es de produgao, o que pode ser identificado pela industria, pela agricultura, pela mineragao, pela circulagao de mercadorias etc., ou GEOGRAFIA E FILOSOFIA 113 seja, pelas diferentes maneiras que a sociedade se utiliza para se apro- priar e transformar a natureza. Para a compreensao de um conceito que a primeira vista parece muito simples, acreditamos ser importante lembrar algumas concep- Ges de territério muito presentes em Geografia. Ha, largamente difundida, uma concepsao naturalista do terri- torio, que tem mobilizado nagées e exércitos para sua conquista. Quando se encara o territério em sua concepgio classica do impera- tivo funcional, ele termina por se transformar em um elemento da * natureza, pelo qual se deve lutar para conquistar ou proteger. Uma segunda abordagem, mais voltada para o individuo, diz res- peito a territorialidade e sua apreensao, mesmo que sua considera- cao carregue forte conotagio politica. Ai temos 0 territério do indi- viduo, seu “espago” de relacées, seu horizonte geografico, seus limites de deslocamento e de apreensao da realidade. A territoriali- dade, nesse caso, pertence ao mundo dos sentidos, e portanto da cul- tura, das interagdes cuja referéncia basica é a pessoa e a sua capaci- dade de se localizar e se deslocar. Assim, o territério apresenta-se diferenciado para as comunidades islamicas, para os curdos (subdi- vididos na Turquia, na Russia e no Afeganistao), para os indigenas do Brasil ou para aquelas pessoas que nascem e vivem toda a sua vida sem se deslocar das metrépoles, cuja vivéncia limita-se 4 transforma- Gio da cidade em seu habitat. Uma outra abordagem pode ser identificada quando se confun- dem os conceitos de territério e de espago. Nesse caso, 0 primeiro vai além de sua condigdo de suporte das relagdes de produgio, incorpo- rando-as verticalmente. Isso pode ser abstraido a partir do momen- to que se considera uma quarta dimensio, aquela definida pelas transformagées que a sociedade impée a natureza. Essa abordagem esta presente na obra Les apories du térritoive, numero especial da revista EspacesTemps, em edicao especial que procura discutir 0 con- ceito de territério, mas o faz privilegiando o espago. Por fim, é preciso dizer que o territério também tem histéria. Bertrand Badie (1995) busca essa discussdo analisando a paz Vestfalia, no sul da atual Alemanha, que no século XVII “inaugurou 114 ELISEU SAVERIO SPOSITO uma ordem territorial rigorosa que nao sofreu em seguida nem ques- tionamento nem reversao”’. Assim, durante mais de trés séculos, “a concepgao vestfaliana de territério foi dominante e, pode-se dizer, geradora de uma ordem internacional que viria 4 tona” ... como su- porte exclusivo das comunidades politicas, marca essencial da com- peténcia do Estado. O Estado, nessa abordagem, deve ser enfocado como instrumento eficaz e reconhecido de controle social e politico, base incontornavel da obediéncia civil. Nessa perspectiva, o territé- rio aparece “como fundador da ordem politica moderna, enquanto que sua aventura se confunde largamente com aquela do poder” (ibidem, p.13). Atualmente, podemos, com as mudangas que ocorrem mundial- mente, procurar dois caminhos para a compreensao do territério. O primeiro refere-se ao estabelecimento de redes de informacao que, com o rapido desenvolvimento tecnolégico, permitem a dissemina- 40 de informacées em fragdes de tempo, tornando-se significativas por romperem com a barreira da distancia — elemento fundamental para a apreensao do territério em sua escala individual. Dessa ma- neira, os territérios perdem fronteiras, mudam de tamanho depen- dendo do dominio tecnolégico de um grupo ou de uma nagao, e mudam, conseqientemente, sua configuracao geografica. Ao consultar o atual mapa do mundo, vemos que, mesmo como desenvolvimento tecnolégico que supera distancias, as fronteiras sao mais numerosas e tem aumentado o numero de nagdes que tomam consciéncia de suas necessidades territoriais. Com a tendéncia a homogeneizagio capitalista, a reagado das minorias tem se feito ouvir de forma contundente. Como diz Badie (1995, p.253), a mundializacao nao apaga os lu- gares nem “a sacralizacao da terra e de sua histéria”, pois a busca identitaria retoma todo o seu vigor. A ruptura pode ser apontada dentro de uma ordem “que se inscreve dentro de uma histéria que foi construida no ritmo da invengao territorial”, pois desde os limi- tes iniciados pela sociedade feudal, a concepgio politica do territé- rio nao para de se reorganizar constantemente e de se tornar um dos elementos codificantes da cena mundial. GEOGRAFIA E FILOSOFIA 115 O segundo caminho pode ser aquele do questionamento da vol- ta ao individuo e sua escala do cotidiano, como formas de apreensao das dimensées territoriais e da capacidade de projetar a liberdade como meio de satisfagdo das necessidades individuais. A casa, a rua, o ambiente de trabalho, os grupos de pessoas circundantes e tudo aquilo que faz parte do cotidiano torna-se elemento referencial para estudos dessa natureza. Nessa dimensao, 0 individuo pode ganhar em termos de inventividade e de solidariedades novas, tornando-a revolucionaria porque é nesse nivel que a liberdade se projeta, que a desregulamentag&o passa pela decisao da pessoa. E nessa escala que, conclui Badie (1995, p.257-8), o fim das mediagées territoriais pode anunciar também o surgimento de uma mundializacio frustrada e nado conduzida diretamente nem 4 eman- cipagido do individuo nem a construgado de uma sociedade mundial. A espera desses dois objetivos supde que a dimensio universalista, que era outrora portadora do principio da territorialidade, seja reinvestida em outra diregdo: que o respeito do outro se torne um valor transnacional, num momento em que nenhuma instituigao possui os meios de impé- lo pelo constrangimento. Para esse autor, o mesmo que se queira o fim dos territérios, isso nao consagraria “a abolicao dos espacos: ao contrario, estes nao pa- ram, com a mundializacdo, de ser reavaliados em sua diversidade e em sua flexibilidade” (ibidem, p.253). De um ponto de vista estruturalista, Milton Santos (1978, p.189) afirma que “um Estado-nagao é essencialmente formado de trés ele- mentos: 1. O territério; 2. Um povo; 3. A soberania. A utilizagdo do territério pelo povo cria o espago. As relagGes entre 0 povo e seu espa- oe as relagdes entre os diversos territorios nacionais sio reguladas pela fungio da soberania”. Para esse autor, “o territério é imutavel em seus limites ... nado tem forgosamente a mesma extensio através da historia ... em um dado momento representa um dado fixo ...” € haa componente poder que, por sua vez, “determina os tipos de re- lagdes ente as classes sociais e as formas de ocupagio do territério” (ibidem, p.189). 116 — ELISEU SAVERIO SPOSITO Estio claras, essas afirmagoes, as rélagdes conceitual e diferencial entre espaco e territdrio e a relacdo direta, historicamente conside- rada, entre territorio e poder. Oterritorio, enfim, condi¢ao basica e referéncia histérica para a consolidacao e expansio do sistema capitalista, permanece com sua importancia como suporte e como materializacao das relagées sociais de produsio, exprimindo com muita forga ainda seu carater politico. Para continuar nosso raciocinio, é necessario acrescentar maisum conceito ao presente debate: o conceito de descontinuidade. Para isso, vejamos como dois autores franceses 0 discutem.” Afirmando que “a descontinuidade compreende-se dentro da continuidade das unidades espaciais das quais cada tipo possui sua forma de limites” (p.18), Gay (1995, p.1 8) define trés diferentes momentos na sua analise desse conceito: o primeiro deles, chamado “fisiostenia” ou “vigor da natureza”, mostra que até a Idade Média, “a forca da natureza nao provinha apenas da auséncia de meios su- ficientemente eficazes para subjuga-la. Ela decorria também do te- mor de transforma-la”, o que dificultava o questionamento da ordem “providencial estabelecida uma vez por todas” (ibidem, p.9). Baseando-se ainda na antinomia natureza versus descontinuidade, o autor lembra o segundo momento, que ele chama de fisiotomia ou “delimitagao que se apdia em elementos naturais”, que vai da Idade Média ao século XVII, quando “os homens comegam a dominar efi- cazmente a natureza” ao “impé-la como elemento de demarcagio po- litica” (ibidem, p.10). Por fim, ele explica sua “tomogenia ou origem das delimitagdes”, para “mostrar toda a complexidade das relagdes que existem entre 0 trabalho e os pensamentos dos homens sobre seu redor”, pois “os modos de territorializagio, como a criagao de redes de comunicacio ou de apropriagio do solo, dependem princi- palmente de idéias e de projetos sociais”. Assim, “as descontinuida- des sio um bom exemplo, mesmo aquelas que tem uma aparéncia 2 A anilise das idéias de Gay (1995) e de Hubert (1993) foi feita a partir de seus textos originais, em francés. A tradugao dealguns excertos dessas obras é de nossa inteira responsabilidade. GEOGRAFIA E FILOSOFIA 117 natural”, como uma linha de separacio entre dois Estados, conside- radacomo descontinuidade, mesmo que nao aparente demarcada pela natureza. Para resumir as idéias de Gay, podemos dizer que a forma eo papel da natureza estdo presentes como fortes elementos constituti- vos da organizagao de sua analise, mesmo que ele lembre alguns outros elementos, como a comunicagio e a apropriagao do solo. A partir dessa constatagdo € que deveremos analisar o autor seguinte. Partindo da releitura da tese de Roger Brunet (“a descontinuidade éamanifestacdo primordial da organizacao do espaco geografico ea compreensio da génese das descontinuidades, como também a manei- racomo elas se combinam, éachave dacientificidade da geografia”’), Hubert (1993) diz que o carater dinamico endégeno 4 organizagio geografica esta presente no fato de “‘a forma eas descontinuidades dos organismo geograficos emergirem de seu dinamismo”. Indo mais além, o autor discute o limite, a escala e a carta como a constatagao de uma antinomia’ (conceito sobre 0 qual vai insistir sempre), cuja resolucao se fara a partir dos estudos de Kant, ao dizer que “os flu- xos contribuem a diferenciar a extensdo ¢ a reconstituir a desconti- nuidade” que “deve diferenciar os tipos de fluxos que intervém no mecanismo (de fluxos de seres humanos ou de matérias) e este deve reorientar aquele, cada um diferentemente na extensao, e conforme- mente a categorizagao inicial” (ibidem, p.60-1). Tentando organizar sua proposigao mais claramente, Hubert (1993, p.67) considera a determinagio da antinomia um quadro for- mal a priori e expde sua tese: contrariamente ao desenvolvimento sistémico que toma a existéncia do objeto geografico como um dado e encontra um problema para 3 Antinomia significa “contradigao entre leis”: “conflito da razéo consigo mesma diante de duas proposigdes contraditérias, cada uma podendo ser demonstrada separadamente”’. Na filosofia kantiana, “a antinomia designa o fendmeno de os- cilagdo da tese a antitese, a razio se encontrando diante do enunciado de duas Gemonstragdes contrarias, mas cada uma sendo cocrente consigo mesma” (Japiassu & Marcondes, 1990).

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