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O OUTONO DA IDADE MEDIA ESTUDO SOBRE AS FORMAS DE VIDA E DE PENSAMENTO DOS SECULOS XIV E XV NA FRANCA E NOS PAISES BAIXOS JOHAN HUIZINGA ENSAIOS Peter Burke e Anton van der Lem ENTREVISTA Jacques Le Goff ICONOGRAFIA Anton van der Lem TRADUGAO Francis Petra Janssen REVISAO TECNICA Tereza Aline Pereira de Queiroz COSACNAIFY Preficio A primeira edicaio A origem do novo é 0 que geralmente nosso espirito procura no passado. Deseja-se saber como os novos pensamentos e as novas formas de vida, que mais tarde brilhardo em toda a sua plenitu- de, foram despertados; observa-se esse periodo sobretudo quanto as crengas que continuam no tempo seguinte. Com quanto zelo pro- curowse na civilizagao da Idade Média pelos embrides da cultura moderna; com tanto empenho, que as vezes era como se a histéria cultural da Idade Média no passasse de um advento da Renascenca. Apesar disso, em todo lugar naquela época, uma vez considerada morta e enterrada, ja se via o novo germinar, e tudo parecia apontar para uma futura perfeicdo. No entanto, na busca pela nova vida que surgia, era facil esquecer que no passado, assim como na natureza, a morte e a vida andam sempre lado a lado. Antigas formas de civili- zaco morrem enquanto, ao mesmo tempo € no mesmo solo, o novo encontra alimento para florescer. Isso prova que se deve considerar os séculos x1Vv e xv no como o antincio da Renascenga, mas como 0 final da Idade Média, 0 iltimo sopro da civilizag’o medieval, como uma drvore com frutos mui- to maduros, completamente desenvolvida. O fervilhar de formas de pensamento antigas e coercivas em lugar do germe vivo do periodo histérico seguinte, o fenecimento e o enrijecimento de uma civiliza- io rica esse é o contetido principal destas paginas. Ao escrever este livro, era como se meu olhar estivesse voltado para as profundezas de um céu noturno, mas de um céu tomado de vermelho-sangue, pesado e desértico, de um cinza-chumbo ameacador, revestido de um falso britho cuprico, Ao rever o escrito, surge a pergunta: se o meu olhar tivesse repousa- do por mais tempo nesse céu noturno, talvez as cores turvas tivessem se dissolvido em pura clareza. Mas parece que o quadro, agora que 0 delineei e colori, tornou-se mais sombrio e menos sereno do que pensei vislumbrar quando iniciei o trabalho. Com a atencdo sempre voltada para o declinio, o esgotamento e o fenecimento, é muito facil deixar que os matizes da sombra da morte tomem todo o trabalho. ponto de partida dessa obra foi a necessidade de entender melhor a arte dos Van Eyck e de seus sucessores, compreendé-los em seu relacionamento com toda a vida da época. O modo de vida dos borguinhdes era a unidade que eu queria aprender: parecia possivel vé-la como um circulo de civilizagao que acabava de ser fechado, como 0 Quattrocento italiano; o titulo do livro foi inicial- mente imaginado como 0 século da Borgorha. No entanto, & medida que as consideragées foram se tornando mais gerais, foi necessario abrir mao dessa delimitagéo; somente num sentido muito restrito era possivel postular uma unidade de cultura borguinha; a Franca ‘nao borguinha exigia, no minimo, o mesmo tanto de atencdo. E foi assim que, no lugar do reino borguinhao, surgiram os dois nticleos: a Franga € os Pafses Baixos, e isso em proporcées bastante distintas. Pois numa anilise da cultura medieval que estava em vias de desa- parecimento, em geral o elemento holandés ficou muito diminuido em relacao ao francés; com excegdo dos campos em que apresen- ta um significado proprio: o da vida religiosa e das artes, citados mais detalhadamente. Nao precisa ser justificado 0 fato de, no 16? capitulo, as fronteiras geograficas terem sido ligeiramente trans- postas, pois evoquei como testemunhas em favor disso Ruysbroeck € Dionisio Cartuxo, Eckhart, Suso e Tauler. Quio pouco me parece tudo o que li sobre os séculos xrv e xv em relacdo ao que ainda gostaria de ter lido. Como gostaria, além da rela- ‘So dos personagens principais das varias orientagSes espirituais nas quais muitas vezes se baseia a representacdo, de ter incluido mais outros tantos. 0 mesmo desejo em relacdo aos historiadores, além de Froissard e Chastellain, os mais citados; entre os poetas, além de Eus- tache Deschamps; entre os teélogos, além de Jean Gerson e Dionisio Cartuxo; entre os pintores, além de Jan van Eyck — nao somente pela delimitacdo de meu material, mas sobretudo pelo fato de que tais homens, devido a sua riqueza e a particularidade marcante de suas declaracées, espelham, mais que tudo, o espirito daquela época. As formas de vida e de pensamento foram as evidéncias usadas aqui. Captar 0 contetido essencial que repousa na forma: nao serd sempre essa a tarefa da pesquisa hist6rica? Leiden, 31 de janeiro de 1919 A veeméncia da vida Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo 0 que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nitidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, o infortiinio e a felicidade, a distancia parecia maior do que para nés; tudo que o homem vivia ainda possufa aque- Ie teor imediato e absoluto que no mundo de hoje s6 se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor. Cada momento da vida, cada feito era cercado de formas enféticas e expressivas, realgado pela sole- nidade de um estilo de vida rigido e perene. Os grandes fatos da vida — © nascimento, 0 matriménio, a morte - eram envoltos, por obra dos sacramentos, no esplendor do mistério divin. Mas também os meno- res — uma viagem, uma tarefa, uma visita - eram acompanhados de mil béngdos, ceriménias, ditos e convencdes. Contra as calamidades e as privagGes, havia menos lenitivos do que agora; ¢ elas eram mais opressivas e cruéis. 0 contraste entre a doenca ¢ a satide era maior; o frio severo e a escuridio medonha do inverno eram males mais pungentes. Honra e riqueza eram des- frutadas com mais intensidade, mais avidez, pois destacavam-se da pobreza e da degradacao circundantes com maior veeméncia do que hoje. Um manto de pele, um fogo brilhante na lareira, bebidas, pilhéria e uma cama macia ainda conservavam aquele alto aprego pelos prazeres da vida, que o romance inglés soube perpetuar vivi damente. E todos os elementos da vida mostravam-se abertamente, com alarde e crueldade. Os leprosos chacoalhavam suas matracas e safam em procissao, os mendigos lamuriavam-se nas igrejas expunham suas deformidades. Cada estamento, cada ordem, cada oficio podia ser reconhecido por seus trajes. Os grandes senhores, venerados e invejados, jamais se deslocavam sem um aparato pom- poso de armas e librés. Julgamentos, transagées comerciais, casa- mentos ¢ enterros, tudo se anunciava sonoramente com prociss6es, gritos, lamentos ¢ miisica. O amante levava o simbolo de sua dama; a 1a Vista para as torres de Bruges: Prantear Cristo, pelo Mestre da Lenda de Santa Licia (detalne) ‘0s membros de uma irmandade, seu emblema; um vassalo, as cores € 0s brasdes de seu senhor. Também entre a cidade e 0 campo imperava um nitido contraste. A cidade nao se estendia, 8 maneira das nossas, em subtitbios des- mazelados de fabricas enfadonhas e casas humildes. Ao contrério, fechava-se em seus muros, era compacta ¢ erigada com numerosas torres. [1.1] E por mais altas ou macicas que fossem as casas de pedra dos nobres ou dos comerciantes, o vulto altaneiro das igrejas domi- nava a sillnueta da cidade. (1.21 Assim como 0 contraste entre o verao e o inverno era mais severo do que para nés, também o era o contraste entre a luz e a escuri- dao, o silencio ¢ 0 rufdo. A cidade moderna praticamente desconhece a escuridio ¢ o siléncio profundos, assim como 0 efeito de um lume solitério ou de uma voz distante, O contraste continuo e as formas simbi jicas com as quais tudo se imprimia na alma conferiam vida cotidiana uma excitagdo e um poder de sugestdo que se manifestavam nos animos instaveis de emo- tividade tosca, crueldade extrema e ternura intima entre os quais se movia a vida urbana medieval. Havia um tinico ¢ inconfundivel som que vencia sempre o clamor da vida agitada e que, por mais difuuso que soasse, por um momento elevava tudo a uma esfera de ordem: o dobrar dos sinos. Na vida coti- diana, 0s sinos eram como espiritos protetores cujas vozes familiares ora 12 + AVEEMENCIA DAVIDA 1.2. Gerard David,"Maria eFilhocom sani 1", com detalhes, anunciavam 0 luto, a alegria, a paz ou a desordem; ora conclamavam, ora advertiam. Eram conhecidos por apelidos: a gorda Jacqueline, o pontual Rolando. Conhecia-se o significado dos toques. Ninguém era indiferente a esses sons, a despeito de seu uso exces- sivo, Durante 0 escandaloso duelo entre dois cida- dios de Valenciennes que, no ano de 1455, deixou em estado de alerta toda a cidade e toda a corte da Borgonha, 0 sino maior ressoou “horrorosamente” [laquelle fait hideux d oyr| durante toda a luta, como diz Chastellain.' Nas torres da igreja de Nossa Senhora de Antuérpia ainda se encontra o velho sino de alarme de 1316, chamado Orida, isto &, horrida, “horrivel’? [1.31 Dizia-se “sonner leffroy” ou “faire leffroy” a propdsito dos dobres de emergéncia;’ a palavra, que significava originalmente “discérdia” - exfredus -, passou a desig- nar o antincio desse tipo de circunstancia por meio de sinos e, finalmen- te, aemergéncia eo terror. Com que espanto formidvel nao se ouviam todas as igrejas e mosteiros de Paris soando seus sinos da manha a noite, ainda a noite inteira, para anunciar a eleicéo de um papa que poria fim ao Cisma ou um tratado de paz entre a Borgonha e os Armagnac.’ ‘Também as procissdes exerciam um efeito profundamente como- vedor. Em tempos de medo, e esses eram frequentes, havia procissoes didrias, semana apés semana, Em 1412, quando a disputa fatal entre as casas de Orléans e Borgonha finalmente conduziu a uma guerra civil aberta e o rei Carlos vi empunhou a auriflama para lutar ao lado de Jodo sem Medo contra os traidores Armagnac aliados & Inglaterra, orde- naram-se procissdes didrias por toda a Paris enquanto o rei estivesse em territ6rio inimigo. [1.4] Duraram do final de maio até julho, a cargo de diferentes grupos, ordens, guildas, a cada vez por mais ruas, com mais reliquias: “as procissdes mais piedosas jamais vistas na hist6ria” [les plus piteuses processions qui oncques eussent été veues de aage de homme, Todos caminhavam, os pés descalcos e 0 estmago vazio, os membros do Parlamento ao lado de pobres burgueses; quem podia levava uma vela ou uma tocha; e sempre havia muitas criancas pequenas. Também das aldeias ao redor de Paris vinham gamponeses pobres, caminhando grandes distncias a pé. Todos participavam ou assistiam “aos prantos, com muitas égrimas, em grande devocao” en grant pleur, en grans lermes, en grant devocion]. Quase sempre chovia torrencialmente.* 1.3 Osinodealarme rida da torre de Nossa Senhora em Antuerpia: 0 metrode m, coma inscricao MAGISTER: JERADUS: OE sino tem um di LEODIO: ME: FECIT: ANNO: DOMINIE MCCEXVI: 0: RIDA’ vocor, [mestre Gerard van Lulk me fezneano do senhorde 36. Sou chamado de O Horrivel,] 1.4 Aaurifiama era origi- nalmentea mortalha de ‘S80 Denis, mais tarde uma flamula vermetha com estrelas douradas. Os fran- ceses levamaauriflama consigo na batalha em Poitiers, 1356. Havia ainda as entradas triunfais dos principes, preparadas com toda a maestria alusiva de que se dispunha. E, numa sequéncia inin- terrupta, as execugées. 0 fascinio cruel e a compaixao grosseira diante do patibulo eram um elemento de peso na dieta espiritual do povo. 1.5] Era um espetéculo da moral. Para crimes hediondos, a justica inventara punicdes horriveis; em Bruxelas, um jovem incendiatio e assassino foi acorrentado a uma estaca giratoria no meio de um cir- culo de feixes de madeira em brasa. Com palavras comoventes, ele se apresentou como exemplo ao povo ¢ tanto “enterneceu os coracées, que todos se desfizeram em légrimas de compaixao, e seu fim foi considerado o mais belo que jamais se vira” [et tellement fit attendrir Tes coeurs que tout le monde fondoit en larmes de compassion, et fus sa fin recommandée Ia plus belle que l'on avait oncques vuel.* Em 1411, 0 senhor Mansart du Bois, um armagnac, decapitado em Paris durante o regi- me de terror dos duques da Borgonha, nao somente perdoou de bom grado 0 carrasco (como este Ihe rogara, seguindo a tradigio), como ainda pediu que Ihe desse um beijo: “havia uma multidio, e qua- se todos choravam lagrimas célidas” [foison de peuple y avoit, qui quasi tous ploroient a chaudes larmes).’ Muitas vezes, as vitimas eram grandes senhores; entio 0 povo se deliciava ao testemunhar 0 rigor da justica e a severa adverténcia quanto a inconstancia das grandezas terrenas, 14+ AVEEMENCIA DA VIDA mais vividamente do que em qualquer pintura ow danga macabra. As autoridades cuidavam para que nada faltasse ao efeito do espetaculo: os senhores faziam seu triste desfile levando os simbolos de sua grandeza, Jean de Montaigu, grand maitre d’hotel do rei, vitima do édio de Joio sem Medo, dirigiu-se ao cadafalso no alto de uma carroca, com dois arautos a frente: vestia seus trajes de gala, gorro, capa, calcas metade brancas, metade vermelhas e esporas de ouro nos pés; e, ainda com as esporas de ouro, pendurou-se o corpo decapitado no patibulo. 0 abastado cénego Nicolas d’Orgemont, viti- ma da vinganga do partido Armagnac em 1416, € conduzido por toda Paris em uma carroca de lixo, trajando um gorro e um grande manto violeta, para assistir a decapitacao de dois companheiros, antes de ser ele mesmo condenado 4 prisio perpétua, a base de “pao da dor e égua da angdstia” [au pain de doleur et d eaue d’angoisse]. A cabeca de mestre Oudart de Bussy, que se negara a assumir um lugar no Parlamento, foi exumada a mando de Luis x1 ¢ exposta na praca de Hesdin com um gorro escarlate forrado de pele, “a maneira dos conselheiros do Parla- mento” [selon Ia mode des conselleillers de parlament), ¢ alguns versos expli- cativos. O proprio rei escreve sobre 0 caso com humor implacvel.* Mais raros que procissdes ¢ execucdes eram os sermées dos prega- dores itinerantes que vinham vez. por outra chocar 0 povo com suas palavras. Nés, leitores de jornal, mal conseguimos imaginar 0 efeito violento da palavra sobre almas nisticas e ignorantes. Em 1429, 0 frei Ricardo, pregador popular que teve a honra de servir como confessor de Joana d’Arc, pregou em Paris por dez dias consecutivos. Comecava as cinco horas da manhi e terminava entre dez e onze, quase sempre no Cemitério dos Inocentes - em cujas criptas foi pintado um mural com a cena famosa de Danga Macabra -, de costas para os ossudrios; ao redor, nas arcadas, empilhavam.-se cranios a vista de todos. Ao anunciar que seu décimo sermio seria o ultimo, uma vez que expira- ra sua autorizacdo para pregar, “os grandes e os humildes choraram to penosa e sofridamente como se tivessem presenciado o enterro de seus entes mais préximos, e ele também chorou" [les gens grans et petitz plouroient si piteusement et si fondement, commes s'itz veissent porter en terre leurs meilleurs amis, et lui aussi]. Chegada a hora da partida de Paris, 0 povo imaginou que o frei ainda faria um sermao dominical 5 15 Miniatura ce Evertvan Zoudenbalch na Biblio histérica, em Saint Denis; em grandes hordas - talvez seis mil pessoas, segun- do o Burgués de Paris ~ deixaram a cidade na noite de sdbado para garantir um bom lugar e passaram a noite ao relento.’ ‘Também os sermées do frade franciscano Antoine Fradin foram proibidos em Paris, uma vez que ele se pronunciara drasticamente contra o mau governo. Por isso mesmo, era querido pelo povo, que fez vigilia noite e dia no mosteiro dos Cordeliers; as mulheres ficaram de guarda, armadas de freixos ¢ pedras. Todos riam da proclama que proibia a vigilia: o rei nao sabe de nada! Quando Ffadin, finalmente exilado, teve de deixar Paris, o povo 0 acompanhou até a saida da cidade, “gritando e suspirando por sua partida” [crians et soupirans moult fort son departement].° Quando o santo dominicano Vicente Ferrer vem pregar, 0 povo, os magistrados, 0 clero ~ dos bispos aos prelados — recebem-no com Canticos de louvor. Ele viaja com um séquito numeroso que todas as noites, depois que o sol se pée, circula em procissio com can- tos e flagelagdes. Em cada cidade, novos adeptos juntam-se ao grupo. Ferrer nomeava homens irrepreensiveis como intendentes e assim fazia organizar cuidadosamente os alojamentos ¢ a alimentacao do séquito. Um grande niimero de padres de diferentes ordens viaja com ele, sempre 0 auxiliando na tarefa de ouvir as confissdes e celebrar a missa. Alguns notarios também 0 acompanham, para intervir ¢ for: malizar o mais répido possivel a conciliacdo de disputas que o santo pregador promove em toda parte. O magistrado da cidade espanhola de Orihuela declara em carta ao bispo de Muircia que teve de efetuar 123 reconciliagdes, das quais 67 eram casos de assassinato.” Onde Ferrer prega, € preciso uma estrutura de madeira para proteger a ele © a seus seguidores da pressio dos muitos que gostariam de beijar suas maos ou suas vestes. A rotina de trabalho ¢ interrompida quando ele faz seus sermées. Era raro que nao levasse os ouvintes ao pranto; €, quando falava do Juizo Final, das penas infernais ou da Paixio de Cristo, tanto Ferrer como os ouvintes choravam tao copiosamente que ele era obrigado a se calar por um bom tempo, até que o pranto cessasse. Malfeitores se jogavam ao chao perante os presentes e con- fessavam em lagrimas seus grandes pecados.” Em 1485, quando 0 famoso Olivier Maillard fez os sermoes da Quaresma em Orléans, tan- ta gente subiu aos telhados das casas que foram necessarios 64 dias para os reparos.""Temos aqui 0 mesmo carter dos revivals anglo- americanos e do Exército de Salvacdo, mas de forma desmesurada e 16» AVEEMENCIA DA ViDA muito mais publica. Nao € 0 caso de pensar que, na descricao do impacto que provocava Ferrer, seu bidgrafo tenha introduzido algum exagero piedo- so; 0 sbrio e seco Monstrelet [1.6] retrata quase da mesma maneiza 0 efeito que, em 1428, um certo frei Tomas, fazendo-se passar por carmelita e mais tarde desmascarado como impostor, causoti com seus sermées no norte da Franca ¢ em Flandres. Também ele foi bem recebido pelos magistrados, enquanto os nobres seguravam as rédeas de sua mula; também foram muitos - mesmo alguns senhores cujo nome Monstrelet menciona ~ os que, a fim de seguilo aonde fosse, deixavam para trés, casa e familia, Os burgueses mais distintos eleva- ram para ele um trono e 0 adornaram com os tape- tes mais suntuosos que podiam pagar. Além da Paixio e do Juizo Final, era contra 0 luxo e a vaidade que 0s pregadores populares mais falavam as pessoas comuns. 0 povo, diz Monstrelet, era grato e devotado a frei Tomés por sua recusa da pompa e da ostentacio, e particularmente pela censura que langava sobre a nobreza ¢ o clero. Ele costumava incitar 0s meninos (com pro- messas de indulgéncia, alega Monstrelet) a provocar as damas que se arriscavam a se misturar a seu ptiblico com arranjos de cabeca altos ¢ pontudos, gritando: “au hennin, au hennin!”. As mulheres perderam a coragem de usar hennins e andavam de touca a maneira dos beguinos. “Mas, seguindo o exemplo do caracol”, diz o cronista cheio de simpatia, “que recolhe as antenas quando alguém se aproxima e depois, quando no ouve mais nada, as pée para fora, assim também fizeram estas damas. Pois to logo 0 pregador deixou o pais, tornaram as antigas maneiras e esqueceram a doutrinacao, e aos poucos retomaram suas velhas pompas, to grandiosamente ou ainda mais do que antes” [Mais 4 Pexample du Iymecon lequel quand on passe prés de luy retrait ses cornes par dedens et quand il ne ot plus riens les reboute dehors, ainsy firent ycelles. Car en assez brief terme aprés que ledit prescheur se fust départy du pays, elles mesmes recomencérent comme devant et oubliérent sa doctrine, et reprinrent petit a petit leur viel estat, tel ou plus grant qu’elles avotent accoustumé de porter). Tanto frei Ricardo como frei Thomas acendiam a fogueira das vai- dads, assim como aconteceria em Florenca, sessenta anos depois, por vontade de Savonarola, em proporgées bem maiores e com enorme v 1.6 Ocronista Enguerrand de Monstrelet prejuizo para a arte. Em Paris e no Artois, em 1428 e 1429, queimavam- se tdio somente cartas, tabuleiros de jogos, dados, enfeites ¢ joias, que homens ¢ mulheres traziam de livre e espontanea vontade. Na Franca ena Itilia do século xv, essas piras eram um elemento frequente nos tumultos causados pelos sermées de pregadores."* Eram a forma ceri- monjal em que se dava vaziio ao arrependimento contrito pelas vaida- des e prazeres, eram a estilizagao de um sentimento profundo sob a em que tudo tende forma de um ato social e solene, nesses tempos A estilizacdo formal. . Devemos tentar imaginar essa sensibilidade, essa propensao as ligrimas e 4s reviravoltas espirituais, se quisermos captar 0 colorido © 0 vigor da vida de entdo, Cenas de luto politico pareciam responder a verdadeiras calami- dades, No enterro de Carlos vit, 0 povo fica fora de si tao logo vé o féretro: todos os dignatarios da corte “vestidos de luto fechado, que dava muita pena de ver; e a dor e a grande tristeza que se viam neles pela morte de seu senhor fizeram toda a cidade prantear e lamentar” [vestus de dueil angoisseux, lesquelz il faisoit moult piteux veoir; et de la grant tristesse et courroux qu'on leur veoit porter pour la mort de leurdit maistre, Jurent grant pleurs et lamentacions faictes parmy toute ladicte ville]. Seis Pajens do rei montavam cavalos cobertos de veludo negro, e “sabe Deus 0 penoso ¢ piedoso luto que guardavam por seu senhor!” [et Diew scet le doloreux et piteux dueil qu’llz faisoient pour leur dit maistre!]; de tao triste, um dos rapazes nao comia ou bebia havia quatro dias, comen- tava 0 povo enternecido.” Mas nao s6 um grande luto, uma pregagio vigorosa ou os mistérios da f€ levavam 0 povo ao pranto. Também nas solenidades profanas vertiam-se torrentes de légrimas. Um enviado do rei da Franca em visita a Filipe, o Bom, irrompe em lagrimas repetidas vezes em meio a seu pronunciamento. Quando o jovem Joao de Coimbra se despede da corte da Borgonha, todos caem no pranto, como nas boas-vindas ao delfim ou no encontro entre os reis da Inglaterra e da Franca em Ardres. Todos viram como Luis x1 chorou ao entrar em Arras; € durante sua estada, ainda como delfim, na corte da Borgonha, Chas- tellain 0 descreve repetidamente aos solucos e lagrimas." Certamen- te hé exagero nessas descrigbes; deve-se compartlas a alguma coisa como “todos ficaram de olhos marejados” numa noticia de jornal. Em sua descricdo do Congresso de Paz de Arras, em 1435, Jean Ger- main diz que, durante os discursos dos enviados, as pessoas caiam 1B + AVEEMENCIA DA VIDA no chao, sem palavras, suspirando, solugan- do e chorando." As coisas com certeza no devem ter sido assim, mas desse modo 0 bis- po de Chalons pensava que deviam ser: no exagero via-se um fundo de verdade. Vale aqui o que vale para as torrentes de lagrimas sentimentais do século xvii. O pranto era algo edificante e belo. De resto, quem de nds desconhece a comocio que um cortejo pode causar, por mais que o principe em questio nos deixe de todo indiferentes? Mas outrora uma tal emogio conjugava-se ao sentimento _i quase religioso de veneracao pelo aparato e wi ‘ BOE Oe pela grandeza, provocando légrimas sinceras. Um exemplo de outro dominio que no o das kigrimas, a saber, 0 17 Tebuleio dexadsex da irascibilidade, talvez torne mais claro o contraste entre a sensibi- °4¢92™0. marfime Tidade do século xv e a do nosso tempo. dificil imaginar um jogo ™™“"T* © 485 to pactfico e calmo quanto o xadrez. [1.7] Mas De la Marche diz. que as rixas sdo comuns durante as partidas e que até “o mais calmo perde a paciéncia” fet que le plus saige y pert patience]. Uma querela entre filltos da casa real a propésito de uma partida de xadrez ainda parecia to natural ao século xv quanto o fora nas cangées de gesta. A vida cotidiana ainda reservava um espaco ilimitado para a paixéo ardente e a fantasia infantil. Desconfiando da veracidade das cronicas da época, 0 medievalista de hoje prefere se basear ao maximo em fon- tes oficiais e, com isso, corre as vezes o risco de cometer um erro grave, Os documentos tém pouco a dizer sobre o colorido que tanto distingue aqueles tempos dos nossos. Eles nos fazem esquecer 0 pathos vigoroso da vida medieval. Das paixées que colorem a vida medieval, os docu- mentos em geral s6 conhecem duas: a cupidez e a violencia. Quem nao se surpreende diante da intensidade e da frequéncia com que a cupidez, as querelas, as vingancas figuram nas fontes juridicas da época! Esses tragos de comportamento s6 se tornam compreensiveis para nds em vista do tom geral de paixio que colore todos os dominios da vida. £ por isso que 0s cronistas, por superficiais? vagos ou errOneos que sejam, permanecem indispensdveis para uma visdo clara da época, A vida ainda conservava 0 colorido das fatbulas em varios de seus aspectos. Se os cronistas da corte, homens de educacio e respeito, 19 que conheciam seus principes de perto, nao eram capazes de ver e descrever as pessoas ilustres sendo de forma arcaica e hierdtica, qual nio ter sido 0 esplendor magico da realeza aos alhos do ingénuo imagindrio popular! Veja-se um exemplo desse colorido na obra de Chastellain 0 jovem Carlos, o Temerario, ainda conde de Charolais, chega de Sluis a Gorkum e fica sabendo que seu pai, o duque, retirou- Ihe a pensio e os beneficios. [1.8] Chas- tellain descreve nto como o conde man- da chamar todo o seu séquito, inclusive os ajudantes de cozinha, e Ihes conta suas desgragas num discurso comovente, em que manifesta respeito pelo pai equivo: cado, preocupagio com o bem-estar dos seus e amor por todos eles. 0 conde insta aqueles que tém meios préprios a espe- rar com ele por uma fortuna melhor; aos mais pobres, diz que esto livres para par tir; caso venham a ouvir que a sorte do conde se reverteu, pede que “voltai, tereis vosso lugar de volta e sereis bem-vindos ¢ eu vos recom- pensarei a paciéncia que tivestes comigo”. “Ouviu-se entao o clamor de vozes e lagrimas, e todos disseram de comum acordo: “Todos nés, todos nés, senhor, viveremos e morreremos com o senhor’” [Lors oyt- Von voix lever et larmes espandre et clameur ruer par commun accord: “Nous Tous, nous tous, monseignenr, vivrons avecques vous et mourrons"]. Profun- damente comovido, Carlos aceita sua lealdade: “Assim sendo, que vivam e sofram; e eu sofrerei por todos, antes que sintam falta de algo” (Or vivez doncques et souffrez; et moy je souffreray pour vous, premier que vous ayez faute|. Os nobres se adiantam e Ihe oferecem todas as suas posses, “dizendo um, “Tenho mil’, e o outro, ‘Tenho dez mil’, e um terceiro, ‘Tenho isto ou aquilo para vos dar e para esperar por vosso futuro” (disant Yun: j pour mettre pour vous et pour attendre tout vostre advenir}. E assim tudo ay mille, Yautre: dix mille, Vautre: j'ay cecy, j'ay cela continuou como sempre, ¢ ndo faltou sequer um frango na cozinha.” 0 aformoseamento da cena é obviamente de Chastellain, Nao sabe- mos até que ponto o relato estiliza o que realmente aconteceu, O que 20 + AVE! ICIA DA VIDA, importa é que ele vé o principe nas formas simples de uma balada popular; o acontecimento, narrado com sobriedade épica, ¢ integral- mente dominado pela motivacao mais primitiva de fidelidade miitua. A essa época, 0s mecanismos de governo e administracao do Esta- do ja haviam assumido formas complexas, mas no espirito popular a politica ainda se materializa numas poucas figuras, simples e fixas. 0 imaginario politico vigente era o da cango popular e do romance de cavalaria. Os reis da época so rotulados de acordo com um certo niimero de tipos, cada qual mais ou menos correspondente a um motivo das cangées ou das historias de aventura: o principe nobre e justo, o principe enganado por conselhos maldosos, o principe vin- gador da honra de sua linhagem, o principe amparado no infortt nio pela fidelidade de seus servos. Os stiditos do fim da Idade Média, pagando impostos elevados mas sem direito a participar nas decisoes sobre seu uso, desconfiam sempre que seu dinheiro sera desperdi- ado e nao servird ao bem comum da nacio. Essa desconfianga se expressa em imagens simplificadas: o rei est cercado de conselheiros ambiciosos, 0 luxo ¢ a opuléncia da corte real so a causa dos males da nagio. Desse modo, as questes politicas ganham ares de fabula aos olhos do povo. Filipe, o Bom, sabia em que lingua falar ao povo. Em 1456, durante as festividades que promoveu em Haia, mandou expor num quarto ao lado do Sakio dos Cavaleiros um requintado servico de louga no valor de 30 mil marcos de prata, a fim de impres- sionar os holandeses e frisios que talvez suspeitassem de sua falta de fandos para conquistar o bispado de Utrecht. Todos so convidados a admirar. [1.9] Além disso, foram trazidos de Lille dois batis de dinhei- ro, com 200 mil ledes de oro? Quem quisesse podia tentar levanté- los ~ seria em vao. Pode-se imaginar uma mistura mais pedagégica de contas piiblicas com diversio de quermesse? Avida e os negécios dos principes ainda dispunham de um elemento fantstico que faz lembrar o califa das Mil e uma noites. Por vezes, os heréis se movem em meio a negociagses politicas frias e calculis- tas com um impeto imprudente e um capricho pessoal que poem a perder sua vida e seus esforcos. Eduardo 111 arrisca a si proprio, ao principe de Gales e aos interesses de sua nagao para atacar uma frota mercante espanhola, como retaliacdo a um ato de pirataria mariti- ma sem muita importancia.* Filipe, o Bom, se empenha em ver um de seus arqueiros casado com a filha de um rico cervejeiro de Lille. a ug Esplendor de praca, Borgonha, c. wa0s4so. Quando o pai ndo consente e leva 0 caso ao Parlamento de Paris, 0 duque, tomado de ira, interrompe sem mais nem menos os traba- Ihos que o retinham na Holanda e empreende uma perigosa viagem maritima de Rotterdam a Sluis, pouco antes da Pascoa, para que sua vontade fosse satisfeita.* Numa outra ocasiio, furioso por causa de uma briga com seu filho, saiu cavalgando de Bruxelas como um meni- no fugindo da escola ¢ acabou passando a noite na floresta. Quando finalmente retorna, cabe ao cavaleiro Philippe Pot a perigosa tarefa de fazé-lo retornar ao juizo. O habil cortesao encontr4 as palavras certas: “Bom dia, meu senhor, bom dia. 0 que ocorre? O senhor € agora o rei Artur ou 0 cavaleiro Lancelote?” [Bonjour monseigneur, bonjour, qu’est cecy? Faites-vous du roy Artus maintenant ou de messire Lancelot?].2° Quando os médicos prescrevem ao mesmo nobre que raspe a cabe- a, duque, a maneira de um califa, obriga todos os nobres a fazerem 0 mesmo ¢ ordena a Peter van Hagenbach que corte os cabelos dos refratarios.** O jovem rei de Franca, Carlos v1, sai disfarcado com um amigo, ambos montados num s6 cavalo, mistura-se 4 multidao para assistir A chegada de sua noiva, Isabel da Baviera, ¢ acaba espancado pelos guardas.*” Um poeta do século xv censura os principes que elevam 0 bobo da corte ou o menestrel a condicio de conselheiro ou ministro, como foi o caso de Coquinet, bufio da corte da Borgonha.”* A politica ainda nao esta completamente encerrada nos limites da burocracia e do protocolo: num piscar de olhos, o principe pode se livrar desses limites e tomar outro rumo. Assim, os monarcas do século xv vio repetidamente buscar conselho em assuntos de gover- no junto a visionarios ascéticos e pregadores populares. Dionisio Cartuxo ou Vicente Ferrer faziam as vezes de conselheiros politicos; © espalhafatoso Olivier Maillard, pregador francés de Bruges, esteve envolvido nas negociagées mais sigilosas entre cortes reais” Assim sendo, um elemento de tensio religiosa mantém-se vivo nas mais altas esferas da politica, No final do século xrv e no inicio do século xv, o grande teatro dos principes parecia tomado por uma atmosfera sanguinolenta e roma- nesca, cheia de quedas repentinas do alto da majestade e da gloria, Em setembro de 1399, o Parlamento ingles se reuniu em Westminster para ouvir que o rei Ricardo 11, derrotado e aprisionado por seu sobrinho de Lancaster, renunciara a coroa; nesse mesmo més € ano, os eleitores reunidos em Mainz depuseram o rei Venceslau de Luxemburgo - tio instavel de espfrito, to incapaz de governar e tio excéntrico de caréter 2+ AVEEMENCIA DA VIDA quanto seu cunhado ingle: Vencestau viveu muitos anos ainda como rei da Boémia, enquanto que & . mas com um fim menos trégico. De fato, queda de Ricardo seguit-se a sua misteriosa morte na prisio, 0 que fez pensar no assassinato de seu bisavo Eduardo 11, setenta anos antes A coroa nao era, afinal, uma possessio carregada de perigos? No tercei- ro grande reino da cristandade, um louco, Carlos vi, ocupa o trono, 0 pais logo ser partido ao meio numa selvagem disputa entre faccdes Em 1407, a rivalidade entre as casas de Orléans e Borgonha irrompeu em luta aberta: Luis de Orléans, irmao do rei, é morto por mercenatios contratados por seu primo Joao sem Medo, duque da Borgonha. [1.10] 10 Retrato de Jodo ser Medo, possivelmente do pintor originario ce Gelderland, Jan van Maelweel ou jean Malouel Doze anos mais tarde, a vinganga: em 1419, Jodo sem Medo é assassina- do traicoeiramente durante um encontro solene na ponte de Montereau. 1111 Os dois assassinatos reais, com sua infinddvel sequela de vingan- as € combates, conferiram a um século de histéria francesa um tom geral de édio sombrio. O espirito popular vé os desgovernos da Franga A luz desse grande motivo dramatico; nao poderia haver outras causas seno as de ordem pessoal e passional. Nao bastasse isso, o perigo turco se fazia cada vez mais proximo e ameacador. Em 1396, eles haviam destruido na batalha de Nicépolis ‘0 maravilhoso exército de cavaleiros franceses que avancara audacio- samente sob 0 comando do mesmo Joao da Borgonha, que era entao conde de Nevers. Recorde-se, ainda, que a cristandade andava dividi- da pelo Cisma, que a essa altura ja durava um quarto de século: dois papas, cada qual apoiado fervorosamente por uma fracdo dos paises do Ocidente. Mais tarde, em 1409, quando 0 concilio de Pisa falhou na tentativa de restituir unidade a Igreja, seriam trés a lutar pelo poder papal. “Le Pappe de la Lune”: assim chamavam o obstinado aragonés Pedro de la Luna, que sob o nome de Bento x11 vivia em Avignon; como nao terd soado delirante essa alcunha, “Le Pappe de la Lune”, aos ouvidos do povo simples! Durante aqueles séculos, vagavam pelas cortes principescas mui- tos reis destronados, na maioria das vezes de magros recursos, mas cheios de planos grandiosos, cercados pelo brilho do Oriente mara- vilhoso de onde vinham - Arménia, Chipre e logo Constantinopla -, cada qual encarnando um personagem da roda da Fortuna, que deita- va por terra os reis, os cetros ¢ os tronos. [1.12] René d’Anjou nao per- tencia a esse grupo, embora fosse também ele um rei sem coroa. Esta- va em posigéo segura, com suas preciosas possessdes em Anjou e na Provenca. E, todavia, ninguém personifica a incerteza e a inconstan- cia do destino real melhor que esse principe da famila real francesa, que sempre deixou passar as melhores oportunidades, que ambicio- now as coroas da Hungria, da Sicilia e de Jerusalém e que nao obteve nada sendo derrotas, fugas perigosas e longas prisdes. 0 rei-poeta sem trono, que se divertia com poemas pastorais e miniaturas, devia ser de uma frivolidade profunda para que o destino nao a tenha curado. Viu morrer quase todos 0s filhos, e a filha.que Ihe restou teve um des- tino que superou as trevas de sua propria fortuna. Passional, cheia de espirito ¢ de ambicao, Margarida de Anjou casou-se aos dezesseis anos de idade com o rei da Inglaterra, Henrique vr ~ mentalmente, um 5 sum Jo30sem Medoé assassinado na ponte de Montereau, Miniatura da cronica de Monstrelet, Paises Baixos do Sul, final do século Xv. incapaz. A corte inglesa era um inferno de inimizades. Em nenhum lugar como na Inglaterra a vida politica era tao eivada de suspeitas contra a familia real, acusagSes contra os poderosos da corte, assassi- natos secretos ou puiblicos ~ perpetrados como medida de seguranca ou por mera intriga. Havia muito tempo Margarida vivia nesse clima de medo e perseguicao, quando a querela entre York ¢ Lancaster, a casa de seu marido, irrompeu em huta aberta e sangrenta, Margarida perdeu a coroa e as posses. Os vaivéns da Guerra das Rosas (1445-85) fizeram-na conhecer o perigo e a pemtiria. Finalmente a salvo na cor- te da Borgonha, contou em primeira mao a Chastellain, cronista da corte, sua hist6ria de adversidades e peregrinacdes: como ela e 0 filhinho tiveram de se entregar a piedade de um ladrao; como ela, querendo fazer uma oferenda numa missa, tivera de pedir uma moe- da a um arqueiro escocés, “que, meio que a contragosto, tirou um ceitil da bolsa e o emprestou a ela” (qui demy d dur et d regret luy tira un gros d’Bscosse de sa bourse et le luy presta], O bom cronista, comovido, dedicou-the Temple de Bocace, “um pequeno tratado sobre a fortuna, sua inconstancia e sua natureza enganosa” [un petit traité de fortune, prenant pied sur son inconstance et déceveuse nature): [1.13] seguindo as férmulas da época, quis dar animo a filha do rei fazendo desfilar uma sombria galeria de infortinios reais. Nenhuni dos dois tinha como saber que o pior ainda estava por vir: em Tewkesbury, no ano de 1471, 26 - AVEEMENCIA DA VIDA aaa Arodada fortuna no manuscrito de Christine de Pisan, Epistre dOthéa G Hector aioe pelos sat rain a os Lancaster foram derrotados definitivamente; 0 tnico filho de Mar- garida foi morto na batalha ou assassinado logo depois, seu marido foi morto em segredo; ela mesma passaria cinco anos na Torre de Londres antes de ser vendida por Eduardo v1 a Luts x1, de quem se viu devedora e a quem teve de deixar toda a heranga do pai, o rei René. Se até a prole dos reis sofria tal sorte, que mais poderia fazer o Bur- gués de Paris sendo acreditar nas historias de coroas perdidas e reis exilados com que os vagabundos por vezes buscavam atrair atencio e caridade? Em 1427 apareceu em Paris uma tropa de ciganos se fingin- do de penitentes, “um duque e um conde e mais dez homens, todos a cavalo” [ung duc et ung conte et dix hommes tous d cheval]. Os demais, cerca a 13 Margarida de Anjoue Henrique Vi da Inglaterra estao sentados em frente a Giovanni Boccaccio, que, para consolé-los de sua sorte, narra-lnes a historia a triste vida de homens utrora famosos. Minia- tura de Le Temple de Bocace de Georges Chasteliain, escrito com mesmo propésito para Margarida, quando foi obrigada a permanecer exilada na corteda Borgonha de 120 pessoas, tiveram de ficar do lado de fora. Diziam vir do Egito e que o papa lhes ordenara uma peniténcia por terem desertado a fé crista: deviam errar pelo mundo durante sete anos, sem poder dormir em nenhuma cama. No comeco, eram 1200 pessoas, mas no cami- nho tinham visto morrer seu rei, sua rainha e muitos mais. Como Jinico alivio, o papa determinara que todo bispo ¢ abade Ihes desse dez libras tournois. Os parisienses vinham em grande nimero olhar aquele povo estranho e deixavam que suas maos fossem lidas pelas mulheres, que faziam o dinheiro mudar de bolso, “por arte magica ou de outro modo” {par art magicque ou autrement|:* A vida dos principes acontecia numa atmosféra de aventura e pai- xdo que no era meramente fruto do imagindrio popular. O homem moderno mal consegue imaginar a que ponto o animo medieval podia ser desenfreado e inflamavel. Quando s6 se consultam docu- mentos oficiais, tidos corretamente como a fonte mais confidvel de dados histéricos, pode-se bem chegar a formar uma imagem da his- toria medieval que nao difere essencialmente de uma descrigio da vida dos ministros e embaixadores do século xvrtt. Mas falta a essa imagem um elemento importante: a paixdo onipresente que impe- Ie os povos e os principes. Certamente, ainda hoje hé um elemento passional na politica, que no entanto, excecio feita aos momentos de revolucao e guerra civil, encontra mais freios e impedimentos nos mecanismos complexos da vida social. No século xv, ele ainda afe- ta imediatamente 0 ato politico, que volta e meia escapa ao célculo objetivo. Quando a paixdo e o poder se encontram, como no caso dos principes, ent&o tudo ganha intensidade redobrada. E Chastellain que 0 diz sem rodeios: nao é de surpreender que os principes vivam em inimizade, “porque os principes so homens, seus negécios so impor- tantes e inci vos, suas naturezas sao sujeitas a paixdes como 0 6dio e a inveja, que moram em seus coracées, devido ao orgulho em reinar” Ipuisque les princes sont hommes, et leurs affaires sont haulx et agus, et leurs natures sont subgettes d passions maintes comme a haine et envie, et sont leurs coeurs vray habitacle d’icelles é cause de leur gloire en régner'.”* Nao seré isso 0 que Burckhardt chamou “das Pathos der Herrschaj” [o pathos do poder}? Quem quiser escrever a histéria da casa real da Borgonha teré de fazer soar, como tom fundamental do relato, o motivo da vinganga, negro como 0 cadafalso, e que confere a todo ato, na corte como na batalha, 0 gosto amargo da vinganga sombria e do orgulho ferido. Seria ingénuo querer voltar 4 visio simplista que o préprio século xv 28» AVEEMENCIA DAVIDA tinha da histéria. Nao seria 0 caso de reduzir a rivalidade secular entre a Franga ¢ os Habsburgo a disputa entre Orléans e Borgonha, 0s dois ramos da casa de Valois. Ainda assim, a par da pesquisa sobre as causas politicas e econmicas, deve-se ter sempre em conta que, para espectadores e protagonistas, a vinganca de sangue era o motivo crucial das aces e dos destinos dos principes e dos paises. Filipe, 0 Bom, [1.14] é para eles sobretudo o vingador, “aquele que, para vingar oultraje feito ao duque Jodo, sustentou uma guerra de dezesseis anos [celluy qui pour vengier Youtraige fait sur la perSonne du duc Jehan soustint la gherre seize ans).* Filipe impusera-se um dever sagrado: “buscar a vinganca do morto enquanto Deus Ihe permitisse, e nisso arriscar corpo e alma, riqueza e poder, julgando mais santo e agradivel a Deus persegui-la do que abandons ila” [en toute criminelle et mortelle aigreur, il tireroit dla vengeance du mort, si avant que Dieu luy vouldroit 29 naa Fi fa Borgonha, Roglervan der weyden permettre; et y mettroit corps et dme, substance et pays tout en Vaverture et en la disposition de fortune, plus réputant oeuvre salutaire et agréable @ Diew dey entendre que de le laisser]. E nao se saiu bem o dominicano ofician- te no funeral do duque assassinado, em 1419, que teve a ousadia de lembrar o dever cristo de perdoar.** Segundo De la Marche, a honra ea vinganga deviam ser o ponto central da politica, e mesmo para os stiditos: todos os estados do duque clamavam por vinganca, diz ele 0 tratado de Arras, que em 1435 pareceu trazer a paz entre a Franca e a Borgonha, comeca com a estipulacio de peniténcias pelo assassinato de Montereau; fundar uma capela na igreja de Montereau, onde Joao fora primeiramente enterrado e onfle se deveria cantar um réquiem diério, por toda a eternidade; erigir na mesma cidade uma cartuxa, uma cruz sobre a ponte em que se cometera o crime; rezar uma missa na igreja cartuxa de Dijon, onde os duques da Borgonha estdo enterrados.* E tudo isso era apenas parte da peniténcia piiblica que o chanceler Rolin exigira em nome do duque: igrejas ¢ capitulos nao sé em Montereau, mas também em Roma, Gent, Dijon, Paris, Santiago de Compostela e Jerusalém, com inscricdes gravadas em pedra que narrassem 0 acontecido.” Uma sede de vinganca revestida de formas tdo minuciosas devia ter raizes fundas na alma. E que outra coisa 0 povo teria podido entender melhor que esses motivos simples e primitivos de ddio ¢ vinganca a guiar a politica de seus principes? A devocao ao principe tinha ainda uma natureza infantil, impulsiva; era um sentimento espontaneo de fidelidade e comunidade, uma extensao da antiga concepcao que ligava 08 vassalos a0 suserano, os homens a seu senhor, e que no calor da luta fazia arder uma paixao desenfreada. E um sentiment de partido, nao um patriotismo. 0 fim da Idade Média é uma época de grandes lutas par- tidarias, Na Itdlia, os partidos se consolidam ja no século x111; na Franga € nos Paises Baixos, eles surgem no século x1v. 0 estudioso da época nao tarda a notar que os motivos politicos e econdmicos nao explicam exaustivamente a luta entre partidos. As oposicdes econdmicas nao séo mais que construgdes esquemiticas impossiveis de deduzir dos docu- mentos, nem com a melhor das intencSes. Ninguém tentaria negar a presenca de cauisas econémicas por trés desses grupos partidarios; mas somos tentados a indagar se 0 ponto de vista sociolégico nao teria mais @xito que 0 politico-econémico em explicar o conflito partidario na Idade Média tardia. O que as fontes permitem ver sobre o surgimento dos partidos ¢ mais ou menos 0 seguinte: nos tempos feudais, veem-se 30 + AVEEMENCIA DA VIDA | ; em toda parte rixas locais, sem outro mot vo econdmico além da inveja pela proprie- dade alheia. Nao somente pela proprieda- de alheia, mas também pela gléria alheia. Oxgulho de familia e desejo de vinganca, mais a fidelidade apaixonada dos segui- dores, sto aqui as motivacdes primérias. A medida que 0 poder do Estado se consoli- dae expande, as disputas familiares veem- se ligadas & autoridade soberana e, num proceso de aglomeracio, dio origem aos partidos, que se baseiam tio somente em y termos de solidariedade e honra comum. | 4 lpi. Entenderemos melhor esse fundamento se | WALLA postularmos oposicdes econémicas? Quan- do um contemporaneo perspicaz declara que nao ha motivo racional para o ddio entre os Hoeksen ¢ os Kabeljauwsen,” ndo temos por que dar de ombros com desdém e tentar ser mais sabios que ele. Nao ha de fato nada que explique bem por que os de Egmond eram Kabeljauws © 05 de Wassenaar eram Hoeks. Pois as diferencas econdmicas entre as linhagens so, em primeira instancia, produto de suas posigées em relacao ao principe como seguidores de um ou de outro partido. A cada pagina da historia medieval pode-se ler a que ponto a fide- lidade aos principes podia chegar. 0 poeta do mistério Marieken van ‘Nimwegen nos mostra como a tia maldosa de Marieken, depois de discutir furiosamente com as vizinhas sobre a disputa entre Amold © Adolf de Gelre, pée a sobrinha para fora de casa e, mais tarde, arre- pendida, acaba por cometer suicidio quando o velho duque é liberta- do da prisdo. [1.15] O poeta quer advertir contra os perigos do espirito de partido; seu exemplo é extremo, sem duivida, mas dé conta do carter passional desse espirito Hé exemplos mais reconfortantes, No meioda noite, os magistra- dos de Abbeville fazem soar os sinos, pois um mensageiro de Car- los de Charolais acaba de chegar, pedindo que se reze pela cura do duque de Borgonha. Os burgueses assustados enchem as igrejas, acen- dem centenas de velas, ajoelham-se ou caem por terra, em légrimas, enquanto os sinos dobram sem parar. Em 1429, quando a populacdo de Paris, ainda favordvel A Inglaterra e a Borgonha, descobre que frei Ricardo ~ que havia pouco thes tocara a 115 Suicidio da tia malvade ‘de Marieken van Nimwegen. a alma com suas pregacdes ~ dedica-se a ganhar cidades para o partido Armagnac, passa a maldizé-lo por Deus e todos os santos; em vez da moeda de estanho com o nome de Jesus, que ele lhes dera, levam agora a cruz de Santo André, sim- bolo do partido da Borgonha. [1.16 €1.7] Os parisienses voltam a pratica dos jogos de azar, tio abominados por frei Ricardo, e “a despeito dele” {en despit de luy]. Seria de se esperar que o cisma entre Avignon e Roma, nao envolvendo nenhum artigo de fé, nao despertaria paixdes reli- giosas, pelo menos em paises distantes de ambos os centros, onde sé se sabia © nome dos papas e onde nao havia nenhum envolvimento direto com eles. Mesmo nesses casos, 0 cis- ma logo ganha ares de caso partidario ou, mais ainda, de oposi¢io entre fiéis e inféis. Quando Bruges se submeteu ao papa de Avignon, um bom contingente abandona casa e cidade, negécio ou prebenda, para ir viver em Utrecht, Lige ou alguma outra area obediente a Urbano. Antes da batalha de Rozebeke, em 1382, 0 comando do exército francés hesita em desfraldar diante dos rebeldes flamengos a auriflama, o estandarte real que s6 podia ser usado em guerras san- tas. A decisao é afirmativa: os flamengos sao partidarios de Urbano €, portanto, infiéis.** Em visita a Utrecht, o politico e escritor francés Pierre Salmon nao péde encontrar nenhum padre que Ihe permitisse celebrar a Péscoa, “pois diziam que eu era cismatico e fiel a Bento, © antipapa’ [pour ce qu'ils disoient que je estoie scismatique et que je créoie en Benedic 'antipape], de modo que ele vai se confessar sozinho numa capela, fingindo estar diante de um padre, e depois ouve a missa no convento dos cartuxos.* O sentimento de partido e a fidelidade ao soberano eram reforca- dos pelo efeito sugestivo e poderoso dos simbolos, cores, emblemas, divisas ¢ gritos de guerra que muitas vezes anunciavam assassinatos ¢ que raras vezes eram sinal de ocasides mais felizes. Em 1380, cerca de 2 mil pessoas foram ao encontro do jovem Carlos vi em sua entrada em Paris, todas vestidas de verde e branco. Entre 1411 ¢ 1423, trés vezes Paris trocou de simbolo: primeiro capuzes violeta com a cruz de 32 + AVEEMENCIA DAVIDA 126 Duaue Filipe, Bom, \do diante da cruz de Santo André, depois capuzes brancos e, por fim, novamente capuzes violeta. Mesmo 0 clero, as mulheres e as criancas se vestiam assim. Em 1411, durante o reinado de terror dos duques da Borgonha em Paris, os sinos tocavam todo domingo para as excomunhées de par tidarios dos Armagnac; e houve padres que, nas missas ou nos batis- mos, persignavam-se na diagonal, seguindo a cruz de Santo André.* A paixa cega pelo senhor e por seus interesses nao deixava de exprimir também a certeza inquebrantavel de que cada ato exige sua recompensa ou punicao, 0 sentimento de justica, sélido como um muro e duro como uma pedra, que era préprio do homem medieval, O sentimento de justica ainda era trés quartos pagio. Consistia em uma sede de vinganca. A Igreja tentara temperar as modalidades de punicdo, insistindo na mansuetude, na paz, na cleméncia, ao mesmo tempo que exasperava a sede de justica, acrescentando-lhe 0 horror a0 pecado. Para 0 espirito violento, o pecado passa a ser aquilo que 0 inimigo faz. A ansia por justica chegou a seu ponto maximo impul- jonada tanto pela nocao barbara de “olho por olho, dente por dente” 117 Aciuzde Santo André como pelo horror religioso ao pecado; ao mesmo tempo, o dever dob”? ausaca na vestimenta como insignia demembro da ordem Estado de punir severamente parecia uma necessidade urgente. No fim da Idade Média, torna-se cronico o sentimento de inseguranga, 0 medo que, a cada crise, exige das autoridades um reinado de terror. A ideia de que alguém possa se redimir de seus crimes aos poucos perde lugar, para se tornar um resquicio quase idilico de uma boa indole antiga, a medida que se arraigava mais fortemente o conceito de que um crime era ao mesmo tempo uma ameaga para a sociedade uma violéncia a majestade divina. O fim da Idade Média foi a época de ouro da justica severa e da crueldade judiciaria, Ninguém duvi- dava um instante que o criminoso merecia sua pena; todos ficavam profundamente satisfeitos quando o proprio principe ditava uma sentenga. Volta e meia, o governo se lancava em campanhas de jus- tica severa, ora contra ladrées ¢ salteadores, ora contra bruxas ¢ fei- ticeiros, ora contra a sodomia. O que nos impressiona na crueldade judicidria do fim da Idade Média é menos a perversidade doentia que a alegria animalesca e embrutecida do povo, a atmosfera de quermesse. As pessoas de Mons compram o lider de um bando de ladrées a bom prego, para ter 0 prazer de esquartejé-lo, “com que 0 povo ficou mais feliz do que se 0 corpo de um santo tivesse ressucitado” (“dont le peuple fust plus Joyeulx que si un nouveau corps sainct estoit ressuscité”)* Durante a prisio 33 de Maximiliano em Bruges, em 1488, a bancada de tortura foi insta~ Jada na praca central, sobre uma plataforma elevada, para que o rei pudesse vé-la; [1:18] e 0 povo parece nao se fartar de ver as torturas aplicadas aos magistrados suspeitos de traicao, clamando para que a execucio fosse retardada, a fim de desfrutar de novos tormentos.” A mistura de crenga e desejo de vinganga podia levar a extremos nada cristdos, como prova o habito, vigente na Franga e na Inglater- ra, de negar ao condenado a morte nao s6 0 vidtico, mas também o direito 4 confissdo: nao se tratava de salvar-lhes a alma, mas sim de agravar a agonia diante da certeza das penas infernais. Em 1311, 34.» AVEEMENCIA DA VIDA 138 Maximiliano presona casa de Craenenburgem Bruges, em 1488. forca ele assisted execucao de seus partidarias. Desenho colarido em Historia Fridert- ietMaximilian’ de Joseph Grimpecte, 514-15, © papa Clemente v instrufra em vao que se permitisse o sacramento da peniténcia. Philippe de Méziéres insistiu mais de uma vez no pon- to, primeiro junto a Carlos v da Franga, depois junto a Carlos v1, Mas o chanceler Pierre d’Orgemont, que Mézidres chama de “forte cervelle”, mais dificil de mover que uma pedra de moinho, dizia-se contra, e Carlos v, 0 rei sabio e pacifico, decidiu que, enquanto ele estivesse vivo, 0 habito nao seria mudado, Foi s6 quando a voz de Jean Gerson juntowse a de Méziéres que foi promulgado o edito real de 12 de fevereiro de 1397, permitindo a confissao dos condenados. Em Paris, Pierre de Craon, a quem se devia a deciso, mandou erguer uma cruz, de pedras perto do cadafalso, onde os franciscanos poderiam assistir aos criminosos arrependidos.** Ainda assim, 0 antigo habito nao desa- pareceu da moral popular: pouco depois de 1500, 0 bispo de Paris, Etienne Ponchier, foi forcado a reeditar 0 estatuto de Clemente v. Em 1427, enforca-se na cidade um jovem salteador de sangue nobre. ‘Na hora da execucio, o tesoureiro do Regente vem manifestar todo © seu ddio ao acusado e nao permite que se faca a confissio. Ele sobe a escada atrés do condenado, insulta-o, bate nele com um por- rete € espanca 0 carrasco que exorta a vitima a pensar na salvagio da alma. O carrasco assustado se apressa; a corda se rompe, o pobre criminoso cai por terra, quebra perna e costelas, ¢ assim mesmo tem de novamente subir a escada.? ‘A Idade Média ignora os sentimentos que tornaram nossa nogio de justica mais timida e hesitante: a noc&o de atenuantes, a nocio de falibilidade, a responsabilidade social, a ideia de emendar em vez de punir. Ou quem sabe esses sentimentos nao faltassem, mas se exprimissem nos stibitos impulsos de compaixao e perdao que por vezes refreavam a aplicacao cruel da justica. Em vez de penas menos severas, baseadas na nocdo de culpa parcial, a justica medieval s6 reconhece dois extremos: a punicdo e o perdao. E, quando se perdoa, ndo se pergunta se o culpado merece a graca por algum motivo espe- cial: todo crime, mesmo o mais flagrante, pode ser objeto da graca. Na pratica, nem sempre a compaixao era o elemento decisivo. E sur- preendente a indiferenga com que 0s contemporaneos contam como a intervencio de um parente propicia uma “lettre de rémission”. Ainda assim, a maioria dessas cartas trata de gente pobre do povo, que ndo tinha acesso a intermediarios importantes.” O contraste entre dureza ¢ compaixiio também rege a moral medieval fora do ambiente judiciario, De um lado, a mais apavorante severidade para com os necessitados ¢ desvalidos, de outro uma indi- zivel ternura, um sentimento profundo de comunhao com os doentes, pobres e loucos, que encontramos, ao lado da crueldade, na literatura Tussa. O prazer nas execugdes justifica-se até certo ponto por um sen- timento de justica cumprida. Mas na inacreditavel e ingénua dure- za, na troga atroz com que se observa a desgraca dos infelizes, falta qualquer elemento enobrecedor de justica. O cronista Pierre de Fenin conclui a historia do fim de um bando de ladrées com as palavras: “e todos riam a solta, pois tratava-se de gente pobre” [et faisoit-on grant rrisée, pour ce que cestoient tous gens de povre estat].°* Em Paris, no ano de 1425, organiza-se um “esbatement” de quatro cegos armados que devem lutar por um porquinho. Um dia antes, os quatro desfilam pela cidade em armadura completa, conduzidos por um gaiteiro e um homem que leva um grande estandarte, em que estava pintado um porquinho.” \Velézquez conservou para nés os rostos profundamente tristes das ands que faziam as vezes de bobos da corte na Espanha. Essas mulhe- res eram muito procuradas como objeto de diversao nas cortes do século xv. Durante os “entremets” das grandes festas da corte, elas, expunham suas habilidades e suas deformidades, Madame d'Or, a ana de cabelos loiros de Filipe da Borgonha, era muito famosa; faziam com que lutasse contra 0 acrobata Hans. Durante as celebracdes do casamento de Carlos, 0 Temeratio, com Margarida de York, em 1468, entra Madame de Beaugrant, “la naine-de Mademoiselle de Bourgogne”, fantasiada de camponesa, montada num ledo dourado, maior que um cavalo. O ledo abre e fecha a boca e canta uma cangiio de boas- vindas, a pequena camponesa é presenteada a jovem duquesa e posta sobre a mesa. Se nao nos chegaram queixas sobre o destino dessas pequenas mulheres, temos pelo menos os livros de contabilidade, que tém muito a dizer. Eles contam, por exemplo, como uma duque- sa mandou buscar uma ané da casa dos pais dela, como a me ou 0 pai vieram trazéla, como os dois as vezes vinham visité-la e, nessas ocasibes, recebiam uma gorjeta. “Ao pai de Belon, a louca, que veio ver sua filha” [Au pere de Belon la folle, qui estoit vemu veoir sa fille|. O pai voltava feliz para casa, orgulhoso da filha que servia na corte. No mesmo ano, um chaveiro de Blois produz para a duquesa dois colares de ferro, um “para prender Belon, a louca, eoutro para amarrar 0 escoco da macaca da senhora duquesa” [pour attacher Belon la folle at Tautre pour mettre au col de la cingesse de madame la Duchesse).* 36 » AVEEMENCIA D4 VIDA Podemos imaginar o tratamento que se dispensava aos loucos a partir de uma crénica a respeito de Carlos vr, que, sendo rei, certa- mente foi objeto de um cuidado privilegiado, melhor do que aquele a que os outros estavam sujeitos. Ninguém pensara em nada melhor do que surpreendé-lo com doze homens pintados de negro, como diabos que viessem buscé-lo.** HA na insensibilidade daqueles tempos.algo de “ingénuo”, que qua- se nos impede de condend-los. No meio de uma epidemia da peste que afligia Paris, os duques da Borgonha e de Orléans propdem instalar ‘uma “cour d’amours", & guisa de distracdo.”” Numa pausa em meio aos horrendos assassinatos dos Armagnacs em 1418, 0 povo de Paris ins- titui na igreja de Saint Eustache a irmandade de Santo André; todos, padres € leigos, levavam uma guirlanda de rosas vermelhas; a igreja se enchia de um perfume, “como se a tivessem lavado com agua de rosas” [comme s'fl fust lavé d'eau rose).®¥ Com o fim dos processos de bru- xaria que, em 1461, haviam assolado Arras como uma praga diabélica, os burgueses celebraram a vitéria da justica com uma competi¢io de folies moralisées. Primeiro prémio, uma flor de lis prateada; quarto prémio, um par de capuzes; as vitimas torturadas ja estavam mortas havia muito tempo.” Dura e colorida, a vida era capaz de tolerar o odor misturado de sangue € rosas. Os homens, gigantes com cabeca de crianga, viviam entre os terrores infernais e a diversao infantil, entre a dureza cruel e a ternura mais comovente. Era uma vida de extremos, entre a rentin- cia completa a toda alegria mundana e o amor mais delirante ao bom. € a0 prazeroso, entre o dio sombrio e a bondade risonha, Pouco nos chegou do lado claro dessa vida, como se toda a dogura feliz.e serenidade de espirito do século xv se houvessem fundido em sua pintura e cristalizado na pureza etérea de sua grande misic: O riso daquelas geragdes pereceu, sua generosa vontade de viver e sua felicidade despreocupada persistem apenas na canc&o popular e na farsa. E o bastante para adicionar & nossa nostalgia da beleza efémera de outros tempos um anseio pelo brilho solar do século dos ‘Van Eyck. Mas quem se aprofunda no estudo desses tempos logo per- cebe que € dificil prender-se ao aspecto feliz. Pois fora da esfera da arte reina a escuridao. Nas adverténcias dos sermées, nos suspiros cansados da literatura erudita, no relato monétono das crénicas e documentos oficiais, de todos os lados gritam os terriveis pecados ese lamenta a miséria. 7 Desde a Reforma, os pecados capitais de soberba, ira ¢ avareza nao sdo mais vistos com a sanguinoléncia purpura e a audécia sem pudor com que passeavam entre a humanidade no século xv. A desmedida soberba da Borgonha! A hist6ria inteira dessa linhagem — desde os feitos de bravura cavaleiresca com que tem inicio a fortuna do pri- meiro Filipe, passando pela amarga inveja de Jotio sem Medo e pelo sombrio desejo de vinganca apés sua morte, através do longo vero daquele outro Magnifico, Filipe, 0 Bom, e até a louca obstinacdo com que 0 ambicioso Carlos, 0 Temeratio, cai ~ nao seria esse um poema de soberba heroica? Seus paises foram os mais fortes do Ocidente: Borgonha, dotada de um carter pesado como seu vinho, “la colérique Picardie”, a voraz e rica Flandres. Enquanto, nas mesmas terras, 0 esplendor da pintura, da escultura e da musica floresce, 0 mais baixo direito de vinganca e a mais violenta barbarie grassam livremente entre nobres e burgueses,® Nenhum mal foi tio conhecido daqueles tempos quanto a avare- 2a. Se a soberba € 0 pecado dos tempos antigos, a avareza é 0 pecado dos novos tempos. A soberba é o pecado da era feudal e hierarquica, em que propriedade e riqueza eram pouco méveis. 0 poder nio esti incondicionalmente ligado & riqueza; o poder é mais pessoal e, para ser reconhecido, deve se manifestar em grandes demonstragées, em séquitos numerosos, em aparato. A sensagio de superioridade é ali- mentada continuamente no pensamento feudal e hierarquico por formas vividas: vénias e homenagens, juras de fidelidade e pompa impostada, que, juntas, dao a ver a preeminéncia como alguma coisa de real e de justificada, A soberba é um pecado simbélico e teolégico, que esta na raiz das concepgdes de vida e de mundo. A soberba era a origem de todo 0 mal; a soberba de Lticifer fora 0 comeco e a causa de sua perdicao. 1119] Assim pensara Santo Agostinho, e todos os que o sucederam: a soberba éa fonte de todos os pecados, eles brotam dela como a raiz ¢ 0 tronco! Mas além da passagem dos Evangelhos que confirmava essa visio — “A superbia initum sumpsit omnis perditio”® -, havia uma outra: “Radix omnium malorum est cupiditas”.® A partir daf, podia-se ver a avareza como raiz de todo o mal. Pois a cupiditas, que nao tem lugar na série dos pecados capitais, era entendida como avaritia. O século x111 pare- ce acreditar que a avareza desenfreada € a perdigio do mundo, desban- cando assim a soberba como o primeiro e mais nefasto dos pecados, A antiga preeminéncia teolégica da superbia recua diante do coro de 38 - AVEEMENCIA DA VIDA { | | ' vozes, sempre mais volumoso, que culpa a avareza por toda a desgraca dos tempos. E como Dante a amaldigoou: “La cieca cupidigia!”. Falta a avareza o cardter simbélico e teolégico da soberba; ela é um pecado natural e material, um puro impulso terreno. Ela é 0 pecado de uma época em que a circulacdo monetiria transformou o exerci- cio do poder, em que a dignidade humana se reduziu a um célculo aritmético. Abriu-se um campo mais vasto & satisfacdo dos desejos e & 39 vag A queda de Liiifer ‘em Les Trés riches heures du Due de Berry. — acumulacao de tesouros. E esses tesouros ainda nao possuem a intan- gibi © ouro ainda domina as imaginagdes. E 0 uso da riqueza ainda nao ‘dade fantasmagérica que os bancos modernos deram ao capital; tem 0 caréter automatic e mecinico do investimento continuo de capital: a satisfacao ainda se move entre os extremos da avareza e da dissipacdo, Na dissipaco a avareza se une A antiga soberba, que ain- da se mantinha forte e viva: o pensamento hierarquico feudal ainda nao perdera seu esplendor, o desejo de brilho e pompa, refinamento e magnificéncia continuava a arder, Justamente o vinculo com a soberba confere a avareza do fim da Idade Média um carter imediato, passional e exasperado que parece ter se perdido nos tempos posteriores. 0 protestantismo e o Renas- cimento deram-Ihe um contetido ético: ela foi legalizada como fator de prosperidade. Ela perdeu seu estigma na mesma medida em que perdeu prestigio o desdém pelos bens terrenos. Em contraste, o espi- ito medieval s6 podia pensé-la nos termos de uma oposicdo insoltivel entre avareza pecaminosa e caridade ou pobreza voluntarias. Na literatura e nas crdnicas da época, no ditado popular como no tratado religioso, ressoam 0 édio amargo aos ricos, 0 protesto contra a avareza dos grandes. Por vezes, hé um vago prentincio da nogao de luta de classes, expressa nos termos da indignacao moral. A esse respeito, tanto os documentos oficiais como as fontes narrativas nos transmitem um mesmo tom da vida ~ pois em todos os autos de pro- cessos se evidencia a mais impiedosa avaieza, Em 1436, os servicos de uma das igrejas mais frequentadas de Paris foram interrompidos por 22 dias, depois de dois mendigos terem se envolvido numa briga e profanarem o templo com seu sangue; o bispo nao quis reconsagré-la enquanto nao recebesse uma certa quantia dos miserdveis, que nao tinham um tostao. O bispo, Jacques du Chatelier, tinha reputagio de “homem muito pomposo, ambicioso, mais mundano do que sua posicao pediria” ung homme trés pompeux, convoicteux, plus mondain que son estat ne requeroit|. Mas tudo se repetiu em 1441, sob seu sucessor, Denys de Moulins: dessa ‘vez, 0s enterros e as procissdes no Cemitério dos Inocentes, o mais famoso e procurado de Paris, foram suspensos por quatro meses, pois 0 bispo exigia mais do que a Igreja podia pagar. Esse bispo passava por um “homem de pouca misericérdia, ¢ dizia-se que tinha mais de cinquenta processos no Parlamento, pois dele nao se conseguia nada sem processo” [homme trés pou piteux d quelque personne, sil recevoit 40 + AVEEMENCIA DA VIDA argent ou aucun don qui le vaulsist, et pour vray on disoit qu'il avait plus de cinquante procés en Parlement, car de lui n’avoit on rien sans procés|. E pre- ciso ter em mente a historia dos nouveaux riches daquele tempo, de uma certa familia d’Orgemont, por exemplo, com toda a sua baixeza e gandncia, para que se possa entender 0 ddio do povo e a ira dos pregadores e poetas. 0 povo nao podia ver sua prdpria sorte e os acontecimentos daque- les dias sendo como uma sequéncia infinita de abuso ¢ extorsao, guer- ras e pilhagem, carestia, miséria e pestiléncia. A forma crénica que a guerra costumava assumir, a inseguranca na cidade e © campo em mos de malfeitores, a ameaga perpétua de uma justica dura e par cial e finalmente 0 medo do Inferno, dos dem@nios e das bruxas mantinham vivo um sentimento de incerteza geral que conferia tons sombrios ao cendrio da vida. E nao é apenas a vida dos pobres e desvalidos que parece precéria; também entre os nobres e magistra- dos as reviravoltas mais drésticas e os perigos continues so quase a regra. Mathieu d’Escouchy, natural da Picardia, é um historiador como tantos que o século xv produziu: sua cronica, simples, precisa, imparcial, cavaleiresca e moralizante, faz pensar num autor honrado que dedicou seus talentos ao trabalho historiogréfico. Mas que vida nao veio a tona por obra do editor de sua obral* Mathieu d’Escouchy comeca a carreira de magistrado como conselheiro, notario, jurado, aguazil da cidade de Péronne, entre 1440 ¢ 1450. Ele logo se envolve numa disputa com a familia do procurador da cidade, Jean Froment, que resulta em uma série de processos. Por sua vez, 0 procurador persegue D'Escouchy por fraude e assassinato, e ainda por “excessos © abusos” [excez et attemptaz}. © aguazil revida, abrindo um processo de bruxaria contra a vitiva do inimigo; mas a mulher consegue um mandado que forca D'Escouchy a entregar a investigacao a justica. © caso chega ao Parlamento de Paris, e o historiador é encarcerado pela primeira vez. Nés 0 encontraremos seis outras vezes na prisio: numa outra ocasiio, serd prisioneiro de guerra. Tratase sempre de crimes sérios, e mais de uma vez ele ser posto a ferros. A escala- da de acusagées entre as duas familia iba num embate violento, quando 0 filho de Froment fere D’Escouchy. Cada qual contrata mer- cendrios para pér fim a vida do outro. Quando os documentos final- mente se calam sobre essa querela, tém inicio outras mais. O aguazil é ferido por um monge; surgem novas acusacées, até que, em 1461, D’Escouchy se muda para Nesle, sob suspeita de varios crimes. 0 que a nao o impede de fazer carreira: ele chega a ser aguazil de Ribemont, procurador do rei em Saint Quentin, e finalmente ganha um titulo de nobreza. Depois de novos ferimentos, prisées e penas, nés o encon- tramos em vestes militares: em 1465, ele luta pelo rei em Montlhéry contra Carlos, o Temerério, e cai prisioneiro. Volta mutilado e se casa, sem por isso comecar uma vida tranquila, Damos com ele a caminho de Paris, para onde é levado sob acusacio de falsificar selos reais “como ladrao e assassino” [comme ladron et murdrier], numa nova dispu- ta.com o magistrado de Compiégne; submetido a tortura, ele confessa sua culpa sem possibilidade de recurso. novamente sentenciado, quando entio os rastros de sua existéncia de é condenado, reabilitado e Odio e perseguigo desaparecem dos documentos oficiais. Onde quer que se investigue a biografia das pessoas mencionadas nas fontes da época, surgem imagens de uma vida terrivelmente agi- tada. Leiam-se, por exemplo, as informacoes que Pierre Champion colecionou sobre as figuras que Villon menciona em seu Testamento®* 11.20] ou as anotagdes de Tuetey no Diario do Burgués de Paris. Sao pro- cessos, crimes, disputas e perseguicdes sem fim. E essas so vidas comuns, safdas de documentos juridicos ou religiosos. Crénicas como a de Jacques du Clercq - uma colecdo de crimes - ou didrios como 0 de Philippe de Vigneulles, cidadao de Metz,” talvez deem uma ideia negra demais do que foi a época; e mesmo as “lettres de rémission", que poem a mu a vida cotidiana com tanta precisio e vividez, bem podem, por seu contexto judicial, iluminar exclusivamente o lado ruim da vida. Mas cada novo exemplo, tirado dos materiais mais variados, confirma essa imagem negra. Esse € um mundo mau. A chama do édio e da violencia arde vigo- Tosamente, a injustica reina, o demOnio cobre com suas asas negras a terra em trevas. Todos esperam o fim iminente de tudo. Mas a humani- dade nao se converte; a Igreja combate em vio, ¢ em vio se lamentam € exortam os pregadores e os poetas 42 + AVEEMENCIA DA VIDA 1.20 Francois Villon Notas Georges Chastellain, Ocuvres, Kervyn de Letten- hove (ed.), 8 vols. Bruxelas: 1863-66, v. 111, p. 44. 2 Antwerpen's Onze-Lieve Vrouwe-Toren, Antuérpia, 4927, PP. X1, 23. 3. Chastellain, op. cit. v.11, p. 267: Olivier de la Marche, Mémoires, Beaune e d’Arbaumont (ed.). Paris: société de l'histoire de la France, 1883-88, VT, p. 248. Jowrnal d'un bourgeois de Paris, A. Tuetey (ed.). Paris: Publications de la Société d'histoire de Paris, doc. n. 111, 1881, pp. 5, 56. 5 Id. ibid., pp. 20-24; Cf também Journal de Jean de Roye, dite Chronique scandaleuse, B. de Mandrot (ed), Paris: Société de l'histoire de la France, 189496, ¥.1, P. 330. Chastellain, op. cit. v. 111, pp. 403, 461 Jean Juvenal des Ursins, Chronique [1.412], Michaud ¢ Poujoulat (eds,. Nouvelle collection des mémoires, s.4..¥. 1, p. 474. 8 Journal dun bourgeois de Paris, op. cit.. pp. 6. 70: Jean Molinet, Chronique, Buchon (ed.), Coll. de chorn, nat,, 1827-28, v. 11, p. 23: Lettres de Louis, x1, Vaesen, Charavay, de Mandrot (eds. Paris: Société de Phistoire de la France, 1883-1909, 2 vols., 20 abr. 1477, ¥. Vi, p. 1585 Chronique scandaleuse, op. cit.,v. 11, Pp. 47. 364. 9° Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit., pp. 234-37. 10 Chronique scandaleuse, op. cit, v.11, pp. 70. 72. 44 Apud M, M, Gorce, Saint Vincent Ferrier. Paris, 1924, P. 175. 12 “Vita auct. Petro Ranzano 0. P.” [1455], Acta san- foram Apr. tt, Pp. 494 88. 413 J. Soyer, “Notes pour servir a Vhistoire littéraire. Du suceés de la prédication de frére Olivier Maillart & Orléans en 1.485", in Bulletin de la société archéologique et historique de VOriéanais, v. xvitt, 1919, apud Revue historique, t. Cxxxt, p. 351 14 Penteado conico, sobre o qual se jogava um véu. wt] 415 Enguerrand de Monstrelet, Chroniques, Douét aArcq (ed) Paris: Société de Vhistoire de la France, 1857463, V. 1V. pp. 302-06. 16 Wadding, Annales Minorum, v. x, p. 72: K. Hefele, Der heflige Beruhardin von Siena und die franziska- nische Wanderpredigt in Italien, Freiburg: Herder, 1912, pp. 47, 80. 47 Chronique scandaleuse, op. cit.,v. 1, pp. 22, 1461; Jean Chartier, Histoire de Charles viz, D. Godefroy (ed,), 1661, p. 320. 18 Chastellain, op. cit / 111, PP. 36, 98, 12425, 210, 238-39, 247, 474; Jacques du Clereq, Mémoires [1448-1467], de Reiffenberg (ed). Bruxelas, 1823, ¥. 1V, D. 40, ¥. 1, Pp. 280, 355, V.111, p. 100; Jean Juvenal des Ursins, op. cit., PP. 405, 407, 420; Molinet, op. cit. v. 111, Pp. 36, 314. 19 Jean Germain, “Liber de virtutibus Philippi ducis Burgundiae”, in Kervyn de Lettenhove (ed), Chroniques Relatives a U'Histoire de la Belgique sous la domination des dues de Bourgondie, Collection des chroniques belges, 1876, V. 1, p. 50. 20 De la Marche, op. cit, v. 1, p. 61 21 Chastellain, op. cit., v. 1V, pp. 333 88. 22 Id. ibid. v. 111, p. 92. 23 Jean Froissart, Chroniques, S. Luce e G. Raynaud (eds), Paris: Société de histoire de la France, 1869-99. ¥. 1¥, Dp. 89-93. 24 Chastellain, op. cit, v. 11, pp. 85 ss. 5 Id, ibid., v. m1, p. 279. 26 De la Marche, op. cit,, v.11, p. 424. 3 27 Jean Juvenal des Utsins, op. cit.. p. 379. 28 Martin le Franc, Le Champion des dames, apud. G. Doutrepont, La Littérature francaise la cour des ‘dues de Bourgogne. Paris: Champion, 1909, p. 204. 39 Acta Santorum, v. 1, p. 496; A. Renaudet, Pré- réforme et humanisme & Paris, 1494-1517. Patis: Champion, 1916, p. 163 30 Chastellain, op. cit, v.1¥, pp. 300 ss.,v. vit, P. 73; cf. Thomas Basin, De rebus gestis Caroli viz et Lud. xx historiarum libri x11, Quicherat (ed). Paris: Société de V'histoire de la France, 185559, V.1, p. 158. 31 Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit., p. 249. 32 Chastellain, op. cit, v. 11, p. go. 33 De la Marche, op. cit. v1 p. 89. 34 Chastellain, op. cit. v. 1, p. 82, 79; Monstrelet, op. cit. v. 111, p. 364 35 De la Marche, op. cit. v1, p. 201 36 Id. ibid. v.1, p. 207 37 Chastellain, op. cit. v.1, p. 196. 38 Basin, op. cit.,v. m1, p. 74. 39 Minha concepgao ndo exclui absolutamente os fatores econémicos ¢ nao deve ser lida como Protesto contra a explicacao histérica de inspi- ragdo econémica; vale citar as palavras de Jau- 1s; “Mas as lutas de classes nao so tudo na histéria, hd também as lutas de partidos. Pois, para além dos antagonismos ¢ das afinidades econémicas, formamrse agrupamentos movidos ela paixdo, pelo prestigio, pelo dominio, que disputam o cenario historico e causam grandes comocbes”. Cf. Jean Jaurés, Histoire socaliste de la Revolution francaise, Paris: . Hou v. tv, p. 1458. 40 Chastellain, op. cit.,v.1v, p. 201; Cf. meu ensaio “Uit de voorgeschiedenis van ons 44» AVEEMENCIA DA VIDA national besef”, in Tien Studien, Haarlem: H. D. ‘Tjeenk Willink & Zon, 1926. 41 Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit. p. 243; cf. Monstrelet, op. cit., v.1v. p. 341. 42 Jan van Dixmude, Cronike, Lambin (ed.). Ypres, 1839, P. 783. 43 Froissart, op. cit. v. x1, p. 52. 44 Mémoires de Pierre le Fruictier dit Salmon, Buchon (ed.), 3* suppl. de Froissart, v. xv, p. 22. 45 Chronique du Religieux de Saint Denis, Bellaguer (ed.). Collection des documents inédlts, 1830952, 6 vols.,¥. 1, p. 34; Jean Juvenal des Ursins, op. cit. PP. 342, 467-71; Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit., pp. 12, 31, 44. 46 Molinet, op. cit., v. m1, p. 487. 47 1d, ibid., v. 11, pp. 226, 241, 283-287; De la Marche, op. cit, v. 111, pp. 289, 302. 48 Clements v constitutiones, livro v, titulo 9, ¢. 13 Ioannis Gersonts opera omnia, E. Dupin (ed.). 1728, V.I1, p. 427; Ordonnances des rois de France, t. vith, P. 123; N. Jorga, Philippe de Mésiéres et la croisade ‘au xaV" siéde, Paris: Bibliotheque de l'Ecole des Hautes ftudes, fasc. 110, 1896, p. 438: Chronique du Religieux de Saint Denis, op. cit., v.11. p. 533. 49 Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit., pp. 223, 229, 50 Jacques du Clereg, op. cit., v. rv. p. 265: Petit- Dutaillis, Documents nouveaux sur les moeurs popu laires et le droit de vengeance dans les Pays-Bas au xv* sigele, (Bibl. du xv* sidcle) Paris: Champion, 1908, pp. 7, 21 51 Pierre de Fenin, Mémoires, Michaud e Pou- ~ joulat (eds. Petitot, Nouvelle collection des mémoires Vint, ¥. 11, p. 593: cf. 0 relato do bufio assassinado a p. 619, 52 Journal d’un Bourgeois de Paris, op. cit., p. 204. 53 Jean Lefevre de Saint Remy, Chronique, F. Morand (ed). Paris: Société de l'histoire de la France, 1876, v. 11, p. 168: Laborde, Les Dues de Bourgogne. fitudes sur les lettres, les arts et Vindustrie pendant le xv* siéde, Paris, 1849-1853, v.11, p. 208. 54 De la Marche, op. cit., v. 11, p. 133; Laborde, op. cit. ¥.1t, p. 335. 55 Laborde, op. cit.,v. 111, p. 355, 398; Id., Le Moyen- Age, xx, 1907, pp. 194-201. 56 Jean Juvenal des Ursins, op. cit., pp. 438, 1405; cf. ainda Chronique du Retigiewx de Saint Denis, op. cit., 1m, p. 349. 57 A. Piaget, in Romania xx (1891), p. 417, € XXXI (1902), pp. 597-603. 58 Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit, p. 95. 59 Jacques du Clerca, op. cit. v. m1, p. 262. 60 Id. ibid.; Petit-Dutaillis, op. cit., p. 131. 61 Hugo de Séo Vitor, De fractibus carnis et spritus, Migne (ed), in Patrologia latina, CLXXVI, p. 997. 62 Tobias, 1v. 13. 63 1 Timéteo, v1, 10. 64 Pedro Damiao, Epist. Lib. I, 15, in Migne (ed) Patrologta latina cxxiy, p. 233; Contra philargyri- am, Migne (ed.). Patrologia latina CxLW., p. 533: Pseudo-Bernardo, Liber de modo bene vivendi, Mig- ne (ed). Patrologia latina CLXxx1¥, p. 1266. {65 Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit., pp. 325. 343, 357. 66 L. Mirot, Les D'Orgemont, leur origin, leur fortune. Paris: Champion, 1913; P. Champion, Frangois Villon, sa vie et son temps. Paris: Champion, 1913, Vel, Pp. 230 5. 67 Mathieu d'Escouchy, Chronique, G. du Fresne de Beaucourt (ed.). Paris: Société de I’histoire de la France, 1863-64, ¥. 1, Pp. 1V-XXXII1 68 P. Champion, op. cit. 69 0 diario foi editado por H. Michelant (Stutt- gart: Bibliothek des literarischen Vereins zu Stuttgart, 1852): hé uma nova edigdo, aos cui- dados de C. Bruneau, La Chronique de Philippe de Vigneuiles. Metz, 1927-29, que contém o diario. 45 O anseio por uma vida mais bela Toda época anseia por um mundo mais belo. Quanto mais profundos © desespero e a consternacio diante de um presente incerto, tanto maior sera esse desejo. No periodo final da Idade Média, 0 tom geral da vida é de amarga melancolia. A alegria de viver e a confianga na capacidade dos grandes atos, como ocorre na histéria renascentista ¢ na iluminista, mal sio notadas na esfera franco-borguinha do sécu- Jo xv. Sera que essa sociedade foi de fato mais infeliz do que outras? As vezes pode-se acreditar nisso. Onde quer que se procure o legado dessa época ~ nos historiadores, nos poetas, nos sermées, nos trata- dos religiosos e em documentos notariais -, com pouicas excecies, encontramos apenas lembrangas de brigas, édio, maldade, ganan- cia, selvageria e miséria. Pergunta-se: essa época apreciava apenas crueldade, altivez e intemperanca; sera que para ela nunca houve uma doce alegria e uma felicidade tranquila? E bem verdade que cada época deixa mais rastros de seu sofrimento do que de sua feli- cidade. Suas desgracas se tornam sua histéria. Uma conviccio talvez instintiva nos diz que a soma total de paz e de felicidade destinadas as pessoas no pode variar muito de uma época a outra. Eo brilho da felicidade do final da Idade Média também ndo passou despercebido: ele sobreviveu na cangao popular, na miisica, nos horizontes quietos da pintura de paisagem e nos rostos sbrios dos retratos. Mas no século xv ainda nao era costume, dirse-ia até que ainda nao era de bom-tom, louvar a vida e o mundo. Aqueles que enfrentavam a dura rotina diaria e decidiam expressar sua opinido sobre a vida, costumavam somente citar tristeza e deses- pero. Viam 0 tempo tendendo ao fim e tudo o que ¢ terreno, a per- di auge no século xvii, ainda era estranho ao espitito francés do século xv. Quem sio os que pela primeira vez se expressam com esperanca e satisfacio a respeito do proprio tempo? Nao foram os poetas, muito io. O otimismo, que brotard no Renascimento para festejar 0 seu a 2.5 Avitoria dos ngleses sobre os franceses na batalha de Crécy (1346) Miniatura do ct Brestaver Froissort ramado O miserable et trés dolente viel. Ovida miserdvele tao infelizl La guerre avons, mortalité, famine; Temos guerra, morteefome; Le froid, le chau, le jour, la nuit nous mine; Calor frio nos minam noite e dia: Paces, cirons et tant dautre vermine Pulgas, sarna e outros vermes Nous querrayent. Bref, misere domine Nao param de nos atacar. Em suma, a miséria domina Noz mechans corps, dont le vivre est trés court. Nosso corpo insignificante, cuja vida é muito curta. ‘Também ele expressa outra vez a amarga conviccao de que tudo vai mal no mundo; a justica esta perdida, os grandes exploram os peque- Nos, € os pequenos uns aos outros, Sua hipocondria, segundo suas palavras, chega a levé-lo a beira do suicidio. Ele descreve a si mesmo: Etje, le pouure escrivain, Eeu, opobreescritor, ‘Au cueur triste, faible et vain, Com ocoracio triste, fracoe vao, Voyant de chascun le duel, ‘Ao vera dor de cada um, Soucy me tient en sa main; Apreocupacio torna conta de mim, Toujours es formes doe Sempre lagrimas nos olhos. Rien fors mourirje ne vue! Nao quero senao morrer Todas as manifestacdes do espirito de vida das classes elevadas teste- munham uma necessidade sentimental de vestir de negro a prépria alma. Quase todos declaram néo ter visto nada além de desgraca, e que o pior ainda esté por vir, que nao gostariam de refazer o caminho j4 trilhado. “Eu, homem triste, nascido nas trevas do eclipse, chu- va espessa de lamentac&o” [Moi douloreux homme, né en eclipse de téné- hires en espesses bruynes de lamentation], assim se apresenta Chastellain.® “Tanto sofreu La Marche” [Tant a souffert La Marche], foi o que o poeta da corte e cronista de Carlos, o Temerario, escolheu como aforismo; para ele a vida tem um gosto amargo, e seu retrato nos mostra os tracos sombrios que tanto prendem a nossa atencdo em diversos retra- tos dessa época.’ [2.1] Nenhuma vida desse tempo parece estar tao repleta de soberba terrena € ostensiva avidez ~ e, ao mesmo tempo, tao coroada de suces- Sos - quanto a de Filipe, 0 Bom. [2.2] Mas sob a sua gléria também esconde-se 0 desanimo frente a vida. Quando lhe informaram sobre a morte do filho de um ano de idade, ele disse: “Tivesse Deus também querido que eu morresse to jovem, eu me con’sideraria feliz” E notavel o fato de que, nessa época, os significados de tristeza, reflexdo séria ¢ fantasia fundem-se na palavra “melancolia’. A ponto 50 » CANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA de parecer que qualquer ocupacio séria do espirito precisaria levar a um estado sombrio. Froissart diz sobre Filipe de Artevelde, que estava refletindo sobre uma noticia que acabara de receber: “Depois deter meditado) por algum tempo, ele resolveu enviar ‘uma resposta aos comissarios do rei da Franga” [quant il eul merancoliet melancolizado tune espasse, ils’ avisa que il rescriproit aus commissaires dou roi de France]. Deschamps fala de algo cuja feiura supera qualquer poder de imagi- nagio: nenhum pintor é “merencolieux” o suficiente para ter condicdes de pintar a melancolia. [2.3] No pessimismo desses individuos saturados, desiludidos e cansa- dos, existe um elemento religioso, mas de pouca importancia. Cer- tamente o seu desgaste com a vida também é reflexo da espera pelo fim do mundo, 0 qual, devido ao ressurgimento da pregacdo popular das ordens mendicantes por todos os cantos, havia se precipitado nos 4nimos com uma nova ameaca e imaginacao realgada. Os tem- pos sombrios e confusos, a miséria crnica das guerras eram bem apropriados para reforcar essa ideia. Parece que nos tiltimos anos do século xv houve uma cren¢a popular de que, desde o Grande Cis- ma, ninguém mais havia sido aceito no paraiso.” A averso ao culto vaidoso das aparéncias da vida na corte amadurecia, preparando as 5 2.2 Filipe, 0 80m, em bronzed sécula wv pessoas para dizer adeus ao mundo. Mas esse estado de depressio, expresso por quase todos os ministros da corte e cortesiios, quase nio tinha teor religioso. No maximo, as nocoes religiosas imprimi- ram um pouco de cor a uma sensacio geral de mal-estar. A inclinacao para escarnecer da vida e do mundo é um choro distante de uma conviccio religiosa verdadeira. 0 mundo, diz Deschamps, € como um velho senil; primeiro era inocente; depois, por um longo tempo, tornou-se sabio, justo, honesto e valente: Orest laches, chetis et male, Agora ele é frouxo, mesquinhoe male, Vieutx, convoiteus et mal pariant: Velho, ganancioso e maledicente: Jene voy que fates et folz, $6 vejo loucos ¢ loucas. La fin s‘pproche, en verité fim se aproxima, na verdade Tout va mal..." Tudo vai mal fo € s6 0 desdnimo com a vida, mas também 0 medo de viver, a recu- sa da vida diante das profundas e inevitaveis tristezas que a acom- panham, a postura do espirito que, no budismo, forma a base de sua filosofia: um irresoluto dar-as-costas as dificuldades do dia a dia, medo ¢ horror frente a preocupacées, doenca ¢ velhice. Os feridos partilham esse medo com aqueles que nunca fraquejaram diante das tentagdes do mundo, porque sempre se esquivaram da vida. Os poemas de Deschamps estao repletos dessa difamagao mesqui- nha contra a vida. Felizes daqueles que ndo tém filhos, pois criangas pequenas ndo passam de gritaria, fedor, cansago e preocupagio; é preciso vesti-las, calgé-las e alimenté-las; esto sempre correndo 0 risco de cairem e se machucarem, Elas adoecem e morrem, ou cres- cem ¢ tornam-se mas; elas acabam na prisio. Nada além de traba- Iho e tristeza, nenhuma felicidade compensa as preocupacies, difi- culdades e gastos com a criacio. E nada pode ser pior do que ter criangas deformadas. © poeta ndo emprega uma palavra sequer de amor: o deformado tem um coracdo mau, o que ele alega com base nas Escrituras. Feliz daquele que nao é casado, pois a vida com uma mulher ruim é um inferno e, com uma boa, passa-se o tempo todo receando perdé-la. Deve-se evitar o infortiinio assim como se afastar da boa fortuna. Na velhice, esse poeta no enxerga nada além de sofrimento e repugnancia, a lamentavel decadéncia fisica e espiritual, 0 ridiculo eo desagradavel. O ser humano envelhece cedo, a mulher aos trinta ¢ o homem aos cinquenta, e sessenta é 0 seu limite." Quiio | | | | distantes estamos da idealizacdo serena com que Dante descrevera a dignidade do nobre idoso em seu Convivio.* Uma tendéncia a devocao, pouco presente em Deschamps, pode de certo modo tornar mais elevadas reflexdes como essas sobre o medo de viver, mas mesmo assim 0 animo geral da maioria ¢ certamente dominado pela desilusao e pelo pessimismo. De toda maneira, repro- vaces sérias a uma vida santa ecoam mais um elemento negativo do que uma vontade genuina de santificagao. Quando 0 irrepreensivel chanceler da Universidade de Paris e luminar da teologia, Jean Gerson, escreve um tratado destinado as suas irmiis, defendendo a exceléncia da virgindade, a sua argumentacio inclui uma longa lista de sofrimen- tos ¢ desastres ligados ao casamento. O marido podia ser um bébado, um trapaceiro ou um avarento. E se fosse bom e justo, uma desgraca, a perda do gado ou um naufrdgio poderiam despojé-lo de todas as suas posses. E que situaco mais desgracada é a gravidez, quantas mulhe- res no morrem na hora do parto! E quanto de sono tranquilo uma mae que amamenta tem? E quanto de verdadeira alegria? As criangas podiam nascer deformadas ou desobedientes; o homem podia acabar morrendo, deixando a mae como uma vitiva pobre e carenti Um profundo pessimismo em relacdo as coisas terrenas: é esse 0 animo com que se encara a realidade disria, tao logo a alegria de viver pueril ou o prazer cego desaparecem diante da reflexdo. Onde esta aquele mundo mais belo, que todas as épocas costumam desejar? O anseio por uma vida mais bela sempre teve trés caminhos que apon- tavam para esse objetivo distante e feliz. O primeiro levava direta- mente para fora do mundo: 0 caminho da remincia, Aqui parece que essa vida ideal somente pode ser alcancada do outro lado, mediante a libertagao de tudo o que é terreno; toda a atencao dispensada ao mun- do atrasa a prometida bem-aventuranca. Todas as grandes civilizacdes inculcara nos homens, de forma muito veemente, 0 ideal de rentincia como propésito da vida individual e base da cultura, 0 que por muito tempo impediu quase trilharam esse caminho; o cristianismo completamente os homens de trilhar 0 segundo caminho. Esse segundo caminho era aquele que apontava para a melhora ¢ © aperfeicoamento do proprio mundo. A Idade Média mal conheceu essa aspiracdo. Para os homens dessa época, o niundo era tio bom e to ruim como ele podia ser; ou seja, enquanto criagio de Deus, todas as coisas terrenas eram boas; mas era o pecado dos seres humanos 54» OANSEIO FOR UMA VIDA MAIS BELA que mantinha 0 mundo em situacdo de miséria. 0 pensamento e as aces da época nao conheciam uma busca consciente por melhora e reformulacao das instituig6es sociais politicas. A virtude do préprio trabalho é a tinica coisa que pode ter algum significado para o mundo, €, mesmo assim, o objetivo verdadeiro continua sendo a outra vida. Mesmo onde quer que tenha sido realmente criada uma nova forma social, ela inicialmente é considerada um restabelecimento do bom e velho direito, ou uma luta contra abusos por uma delegacao proposital do poder piblico protetor. A criagao consciente de organismos tidos de fato como novos é pouco comum, inclusive no intenso trabalho legis- lativo que a monarquia francesa empreendia desde Luis 1x, 0 Sao Luis de Franca, e que os duques da Borgonha imitaram nas terras herdadas. Eles ainda ndo percebiam, ou mal percebiam, que esse trabalho real- mente implicava 0 desenvolvimento da organizacio do Estado com formas mais efetivas. Ainda no veem diante de si um futuro para isso, uma aspiragao; ainda promulgam decretos e instalam conselhos municipais como parte do exercicio imediato de seu poder, e do cum- primento de sua fungdo para o bem comum, em primeiro lugar. Nada contribuiu tanto para essa atmosfera de temor a vida e de dtivida em relag&o aos tempos futuros quanto a auséncia de uma determinagio firme de tornar 0 préprio mundo melhor e mais feliz. Naquele mundo nao havia qualquer promessa de coisas melhores. Quem ansiava por algo melhor, mas nao conseguia se despedir do mundo e de toda a sua magnificéncia, s6 podia cair em desespero; no conseguia mais enxergar em nenhum lugar a esperanga ou a alegria; restava pouco tempo para o mundo, € a desgraga era tudo que o aguardava. No momento em que se envereda pelo caminho de uma melhora _Dositiva do préprio mundo, tem iniciojama nova era) na qual a cora- “gem € a esperanca tomami o lugar do temor a vida. Na verdade, esse conceito 6 ird surgir no século xvii. O Renascimento extraiu a sua nogao enérgica de vida de outras formas de satisfacao. Foi apenas no século xviii que a perfeicao do ser humano e da vida em sociedade tornou-se um dogma central, e a busca econdmica e social do século seguinte s6 perde a ingenuidade, mas nao a coragem nem‘o otimismo. O terceiro caminho para um mundo mais belo é 0 do sonho. Eo caminho mais facil, mas que mantém o objetivo igualmente dis- tante, Quando a realidade terrena é tao perdidamente trégica e a remiincia ao mundo tao dificil, ndo nos resta nada além de colorir 55 eliAtrcled a vida com um brilho claro, vivé-la no pais dos sonhos, temperar a realidade com 0 éxtase do ideal, Basta um tema simples, um tnico acorde, para se deixar levar pela fuga fascinante: um olhar para a felicidade sonhada de um passado mais belo jé é suficiente, um olhar para 0 seu heroismo e sua virtude, ou entio para os alegres raios de sol da vida na natureza. [ sobre esses poucos temas ~ 0 do herojs- mo, 0 da sabedoria e o do bucolismo ~ que toda a cultura literaria € estruturada desde a Antiguidade, A Idade Média, 0 Renascimento, 0s séculos xvi11 e x1x, todos eles juntos nao sao muito mais do que variagdes novas de uma velha cancao. Seria o terceiro caminho para um mundo ideal, a fuga da dura rea- lidade para um mundo de aparéncia bela, apenas uma questdo da cul tura literdria? Sem dtivida 6 mais do que isso. Ele atinge a forma e o contetido da vida comunitaria do mesmo modo que as duas outras aspi- rages, e quanto mais primitiva for a cultura, mais forte isso se torna. O impacto dessas trés mrentalidades na vida real difere bastante. O contato mais préximo e consistente entre as atividades da vida e 0 ideal constitui-se quando a ideia aponta para a melhoria e a perteicao do mundo em si. Nessas instancias a ousadia e a forca inspiradora desaguam no proprio trabalho material, a realidade imediata é car- regada de energia; realizar a obra da sua vida também é um modo de Iutar pélo ideal de um mundo melho} Se assim quisermos, também aqui um sonho de felicidade é 0 motivo inspirador. Até certo ponto, toda cultura almeja tornar real um mundo imagindrio mediante a rectiacdo das formas sociais. Ao passo que em outras instancias isso somente se refere a ums recriacio espiritualJa proposigio de uma Cparieicio tuséria posta 4 dura realidade que se quer esquecer, aqui -éa propria realidade. £ ela que se quer remodelar, objeto do son! “_Burificar e melhorar; 0 mundo parece estar no caminho certo para “o ideal, basta o ser humano continuar trabalhando. A forma de vida ideal parece estar bem pouco distanciada da existéncia ativa; s6 exis- te uma ligeira tensio entre realidade e sonho. E consideravelmente pouco o que se exige da arte de viver ali onde ja se cansou de aspirar pela mais alta produgio e pela divisio mais justa dos bens, onde 0 contetido do ideal € prosperidade, liberdade e cultura. Nao ha mais necessidade de acentuar que o ser humano um ser nobre [nobleman}, ou um heréi, ou um sabio, ou um cortesdo de-boas maneiras. No caso da primeira das trés mentalidades, a influéncia na vida real é bem diferente: trata-se da rentincia ao mundo, O sentimento de 56 + OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA falta da felicidade eterna torna o desenvolvimento e a forma da exis- téncia terrena indiferentes, ainda que a virtude seja cultivada e man- tida. Aceitam-se a formas de vida e as da sociedade pelo que elas sao, mas tenta-se permeé-las com uma moralidade transcendente. Com isso, a rejeigao do mundo pela sociedade terrena nao exerce uma acdo puramente negativa por abnegacio e remtincia, mas também difunde-se em trabalho piedoso e caridade pratica, E como € 0 impacto da terceira mentalidade sobre a vida: a busca por uma vida mais bela segundo um ideal sonhado? As formas da vida sao recriadas em formas artisticas. Mas nao apenas nas obras de arte em si se expressa 0 sonho de uma vida bela, pois ela quer enobrecer a prépria vida com beleza e preencher a sociedade com jogos ¢ formas. E é justamente aqui que se fazem as maiores exigén- cias a arte de viver das pessoas, exigéncias que somente podem ser satisfeitas por uma elite, em vida hidica artificiosa. Nem todos podem viver como herdis e sibios; é uma diversdo cara colorir a vida com uma tintura heroica ou idilica e, além disso, nem sempre da certo. A ansia pela concretizacio do sonho de beleza nas formas da prépria sociedade tem um carater aristocratico impresso no seu vitium ariginis, Com isso, aproximamo-nos do ponto sob o qual a civilizagao do fim do periodo medieval deve ser visto: a ornamentacao da vida aristo- cratica com as formas do ideal, isto é, a luz artificial do romantismo cavaleiresco sobre a vida, com 0 mundo trajado a maneira da Tavola Redonda. A tensao entre as formas de vida e a realidade é incrivel- mente forte; a luz € artificial e ofuscante. © anseio por uma vida mais bela é considerado, normalmente, a caracteristica fundamental do perfodo renascentista. A satisfacio da sede de beleza dé-se tanto na arte quanto na prépria vida; nesse momento, como nunca dantes, a arte serve a vida e a vida a arte. Mas também aqui o limite entre o periodo medieval ¢ o renascentista foi tracado de forma nitida demais. 0 desejo passional de revestir a pré- pria vida com beleza, o refinamento da arte de viver, 0 efeito colori- do de uma vida vivida segundo um ideal, tudo é mais antigo do que © Quattrocenta italiano, Nao passam de antigas formas medievais os proprios motivos usados pelos florentinos para o embelezameto da vida: Lorenzo de Médici, assim como Carlos, o Temerario, homena- geava 0 antigo ideal cavaleiresco como a forma mais nobre de vida; apesar do esplendor barbaro, sob muitos aspectos, ele vé até mesmo os duques da Borgonha como um modelo. A Italia descobriu novos horizontes da beleza da vida, dew a vida um novo tom, mas a postura frente a ela ~ 0 desejo de estruturar a propria vida ou mesmo elevé- Ja a uma forma artistica -, uma invengio vulgarmente considerada tipica do Renascimento, de modo algum foi criada nessa época. A grande ruptura na concepgao do belo se da, segundo muitos, entre 0 Renascimento ¢ os tempos modernos. 0 ponto da virada situa-se ali onde a arte e a vida comecam a se separar, quando nao mais se desfruta da arte em meio & vida, como uma parte nobre do prazer de viver em si, mas fora da vida, como algo a ser altamente venerado, a0 qual as pessoas se voltam em momentos de exaltacao ou de tranquilidade. Com a separaco entre arte e vida, revive-se 0 velho dualismo que separava Deus e 0 mundo. Tragou-se uma linha separando os prazeres da vida. Eles foram partidos em duas metades, uma inferior e uma superior. Para o individuo medieval, juntas, elas constituiam um pecado; agora, todas elas so aceitéveis, mas com diferentes niveis de respeitabilidade, de acordo com o seu carter mais ou menos espiritual. As coisas que tornam a vida prazerosa permanecem as mesmas. Tan- to agora como antes sao: a leitura, am ‘ica, as belas-artes, viagens, 0 gosto pela natureza, esportes, a moda, vaidades corporativas (ordens de cavaleiros, cargos de honra, reunides) e a exaltacao dos sentidos, O limite entre o superior e o inferior, ainda hoje, para a maioria, pare- ce recair entre o gosto pela natureza e o esporte. Mas esse limite nao é fixo, Provavelmente o esporte, dentro em breve, pelo menos na medida em que ele é a arte da forca fisica e da coragem, passard outra vez a ser considerado superior, Para o individuo medieval, a fronteira estava, no maximo, no ato da leitura; mesmo o prazer da leitura s6 podia ser sacralizado se mostrasse a ansia pela virtude da sabedoria; e na miisica e nas belas.artes, somente se reconhecia positivamente como servis- sem a f6; 0 prazer por si s6 era um pecado. O Renascimento conseguiu livrarse da recusa do prazer de viver, considerado um pecado em si mesmo, mas ainda nao havia estabelecido uma nova separacao entre o prazer de viver superior e o inferior; ele queria um desfrute desem- baracado da vida como um todo, Tal ruptura € 0 resultado do compro- misso entre o Renascimento e o puritanismo, sobre o qual se assenta a postura espiritual moderna. Foi uma capitulacdo de ambos os lados, em que um insistiu na salvagio do belo e o outro na condenacio do pecado, O puritanismo radical, assim como ocorria na Idade Média, ainda con- siderava na base de sua doutrina que toda a esfera de embelezamento 58 - OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA da vida era pecaminosa e terrena, a nao ser que assumisse as formas religiosas citadas e se sacralizasse pelo uso a servico da fé. Somente A medida que a viséo puritana do mundo foi se desgastando é que a aceitagio renascentista da alegria de viver ganhou novamente espaco; € talvez mais espaco do que antes, pois desde o século xvii cresce a ten- déncia de enxergar o natural per se como um elemento do que era eti- camente bom. Quem agora tentasse tracar a linha de separacao entre o prazer superior ¢ o inferior de viver, de acordo com a nossa conscién- cia ética, ndo mais separaria a arte da devassidao, o prazer natural dos exercicios fisicos, 0 elevado do natural, mas separaria somente 0 ego- tismo, mentiras e a vaidade da pureza. No periodo final da Idade Média, quando um novo espirito ja esta- va em vias de surgir, existia somente, em principio, a velha escolha entre Deus e 0 mundo: o completo desprezo de toda a maravilha e beleza das coisas terrenas e da vida ou a sua aceitacdo ousada, colo- cando a alma em perigo. A beleza do mundo, por seu reconhecido caréter pecaminoso, acabava sendo uma tentagao dupla; uma vez ren- dido a ela, entio, significava desfruté-la com uma paixao desenfreada, Mas aqueles que nao conseguiam prescindir da beleza endo queriam se render ao mundo precisavam enobrecé-la. Todo o conjunto da arte e da literatura, em que o essencial do prazer era a admiragio, podia ser sacralizado, desde que posto a servico da fé. Ainda que o diverti- mento da cor e da linha realmente inspirasse os amantes da pintura e das miniaturas, foram os temas sacros que retiraram 0 carimbo de pecado do prazer da arte. Mas ea beleza com um alto teor de pecado? A divinizacao do corpo no esporte cavaleiresco e na moda da corte, a soberba e a ganancia por postos ¢ honras, as intensidades extasiantes do amor, como era pos- sivel enobrecer ¢ elevar tudo que fora condenado e rejeitado pela £6? Para isso servia 0 caminho intermedidrio que levava ao mundo dos sonho: revestia-se tudo com a bela aparéncia dos ideais antigos e fantisticos. Acaracteristica que liga a cultura franco-cavaleiresca do século x11 a0 Renascimento é precisamente o intenso cultivo de uma vida bela sob as formas de um ideal heroico. A veneragio pela natureza ainda era muito incipiente para que, com conviccao, fosse possivel servir-se da beleza terrena desnuda, tal como o espirito grego o fizera: 0 con- ceito de pecado era forte demais para isso; a beleza s6 podia tornarse cultura se estivesse envolvida nas vestes da virtude. 59 sujou toda a mesa”. “E necessario notar que, tao logo a comida era posta na mesa, todos comeca- vam a comer e, as vezes, o primeiro era aquele que ocupava a posicio inferior.” Na cozinha (imaginemos a cozinha de dimen- ses heroicas, a tinica que restou conservada no pakicio do duque de Dijon, com suas sete torres gigantescas) (2.41, esta o cozinheiro encarregado em um lugar entre a chaminé e 0 bufé, de onde ele pode supervisionar toda a operagio. Ele preci- sa segurar uma colher de pau “que Ihe serve para duas coisas: uma dela s, para provar sopas e molhos, a outra, para tocar os ajudantes de cozinha para fora, para que cumpram com as suas obrigacdes, e, se necessdrio, bater neles”. As vezes, em raras ocasies, o préprio cozinheiro servia a mesa, com ‘um trunfo em suas mios como, por exemplo, as primeiras trufas ou primeiro arenque. Para 0 distinto cortesao que tudo isso nos descreve, tratase de mistérios sagrados, dos quais ele fala com respeito e com uma certa cientificidade escolstica. “Quando fui pajem”, diz La Marche, “eu era ainda muito jovem para compreender as questdes de apresentacao e cerimonial."* Ele apresenta aos seus leitores questes relevantes sobre precedéncia e servico da corte, para resolvé-las segundo o seu conheci- mento maduro. Por que o cozinheiro cuida das refeicdes dos senhores endo 0 “écuyer de cuisine”? Como o cozinheiro deve ser contratado? Quem deve substitué-lo em sua auséncia: 0 mestre das carnes (hauteur) ou o mestre das sopas (potagier)? Eu respondo, diz o sébio homem: quando € necessério ter um cozinheiro na corte do duque, os mestres de cozinha (maitres d'hotet) devem chamar os ajudantes-mores da cozi- nha (escuiers de cuisine) e todos aqueles que trabalham na cozinha, um. ap6s 0 outro; e nessa escolha solene, feita por cada um sob juramen- to, 0 cozinheiro ser contratado. E quanto segunda questio: nem 0 mestre de carnes nem 0 mestre de sopas podem substituir 0 cozinhei- ro, pois o substituto dele deverd passar por um processo de escolha similar. Por que os servidores de pao e os enchedores de copo esto na primeira e segunda posicao, acima dos cortadores de carne e cozi- nheiros? Porque a sua tarefa refere-se ao pao e ao vinho, coisas santas sobre as quais incide a virtude do sacramento” 62 © OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA 2.4 Acozinha doantigo palacio ducal de Dijon Percebe-se que aqui existe uma ligacdo de fato entre as esferas da #6 e da etiqueta da corte. Nao € exagero dizer que no conjunto das for- mas de vida nobres ¢ belas esta contido um elemento litdrgico, que as eleva a um plano quase religioso. Apenas isso esclarece a impor- tncia extraordindria que (ndo somente no fim do periodo medieval) 6 atribuida a todas as questdes de precedéncia e etiqueta. No antigo Império Russo, antes dos Romanov, querelas a respeito de precedéncia levaram ao estabelecimento de um servico regular na secretaria de Estado. Os Estados ocidentais da Idade Média nao conhe- ciam esse tipo de disputa, mas neles a inveja também ocupa um papel importante nas disputas sucessérias. Seria facil reunir os exemplos disso, mas se trata mais de mostrar como as formas de vida foram elaboradas enquanto jogos edificantes e belos, e 0 crescimento descon- trolado desses jogos levou a uma ostentagio vazia. De fato, a forma as vvezes é tio preponderante que o objetivo se perde completamente. Um pouco antes da batalha em Crécy, quatro cavaleiros franceses reconhe- ceram a ordem de ataque dos ingleses. 0 rei, que aguarda impaciente 0 relatério deles, vai avancando lentamente pelo campo e para quan- do os vé voltar. Eles atravessam a multidao de guerreiros até estarem diante do soberano. 0 que ha de novo, senhores?, ele pergunta. Eles se entreolharam sem dizer uma palavra sequer, pois nenhum queria falar antes do companheiro. E ficavam dizendo de um para o outro: “Dizei ‘vos, senhor, falai com 0 rei. Nao falarei antes de vos". E assim ficaram se debatendo por algum tempo, pois nenhum queria “ter a honra” de comegar a falar. Até que o rei ordenou que um deles falasse. A obje- tividade teve de recuar ainda mais diante da beleza da forma no caso do messire Gaultier Rallart, o chevalier du guet de Paris, em 1418. Esse chefe de policia nunca costumava fazer a ronda sem que trés ou quatro intisicos seguissem a sua frente, soprando alegres seus instrumentos, levando o povo a dizer que, na verdade, ele estava avisando os malan- dros: fujam, pois estou chegando.”* 0 caso nao € tinico. Em 1465, vé-se novamente como o bispo de Evreux, Jean Balue, faz a ronda notur- na em Paris com clarins, trompetes e outros instrumentos musicais, “o que nao € normal para pessoas que fazem a guarda” (qui n'estoit pas acoustumé de faire a gens faisans guet).* Mesmo no cadafalso a honra ea posicdo sao levadas rigorosamente a sério: 0 do condestavel de Saint Pol é ricamente decorado com lirios, as almofadas de oracdo e a venda siio de veludo carmim, o carrasco é alguém que munca realizou uma execucdo, um privilégio um tanto quanto duvidoso para o condenado.” @ A competicao por quem tinha as melhores maneiras, que agora adquiriu um Carater pequeno-burgués, era especialmente desenvol- vida na vida da corte do século xv. Fra uma vergonha insuportavel nao ceder 0 lugar apropriado a alguém mais importante, Os duques borguinhées meticulosamente dao a preferéncia aos seus pares reais da Franga. Joao sem Medo sempre demonstrou um respeito exagerado sua jovem nora Michelle de Franca; ele a chamava de senhora e sem- pre Ihe fazia uma reveréncia de joelhos, oferecendo-se para servi-la 0 tempo todo; ela, porém, ndo estava preparada para isso." Quando Filipe, o Bom, ficou sabendo que seu sobrinho, o delfim, havia fugido de Brabante devido a um conflito com o pai, ele interrompe 0 cerco de Deventer, que deveria ser 0 comeco da expedicdo que colocaria a Frisia sob seu poder, e volta as pressas para Bruxelas, para dar as boas-vindas a0 héspede importante. Conforme o encontro vai se aproximando, surge uma verdadeira competicio para ver quem sera o primeiro a homenagear o outro. Filipe esta apavorado com a ideia de o delfim cavalgar até ele; esporeando violentamente seu cavalo, ele segue a toda velocidade e envia um mensageiro atras do outro para convencer o delfim a espera-lo onde esta. Jurara que se 0 filho do rei viesse ao seu encontro, ele voltaria e cavalgaria para tio longe, que esse jamais © encontraria em lugar algum, pois isso seria para ele, o duque, moti- vo de deboche e desonra que faria o mundo Jembra-lo para sempre. Abandonando modes- tamente a habitual demonstracdo de pompa, Filipe adentra Bruxelas cavalgando; desmon- tarapidamente a frente do palacio, entra eo atravessa correndo. La, ele vé o delfim, que havia deixado o seu cémodo acompanhado da duquesa dirigindo-se ao seu encontro no patio interno, de bracos abertos. Instanta- neamente o velho duque descobre a cabeca, ajoelha-se por um instante e, em seguida, continua a andar apressadamente. A duque- sa segura o delfim, para que este no dé mais nenhum passo; o delfim tenta, em vio, evi- tar que o duque se ajoelhe, e tenta fazé-lo se Jevantar, sem sucesso. Ambos choraram de emocio, diz Chastellain, assim como todos que estavam 4 sua volta. 64 + OANSEIO 2OR UMA VIDA MAIS BELA 2.6 Luts Xl, rel da Franga Durante todo o perfodo em que hospedou esse homem — o qual em breve, como rei, haveria de ser o pior inimigo de sua casa ~ 0 duque excedeu-se em demonstracdes de servilidade chinesa. [2.6] Chama a sie ao filho de “essas pessoas que nao valem nada” {de si meschans gens}, motha a sua cabega sexagendria na chuva, oferece todas as suas terras ao delfim.” “Aquele que se rebaixa diante de seu superior aumenta e multiplica a sua propria honra, ¢ a bondade desse ato resplandece de volta em sua prépria face” [Celuy qui se humilie devant son plus grand, celuy accroist et multiplie son honneur envers soy-mesme, et de quoy la bonté mesme luy resplend et redonde en face]. Com essas palavras Chastellain conclui o relato, depois de contar como 0 conde de Cha- rolais inflexivelmente se recusava a lavar as maos antes das refeicbes no mesmo lavatério da rainha Margarida da Inglaterra e seu joven. filho. Os nobres falaram disso o dia inteiro; 0 caso foi apresentado ao velho duque, que fez com que dois nobres argumentassem com os pis e os contras da atitude de Carlos. 0 sentimento de honra feudal ainda era tao vivo que coisas como essa realmente eram consideradas importantes, belas e dignificantes. Como, de outro modo, se poderia entender que possam ter durado mais de quinze minutos as recu- sas em aceitar a precedéncia como regra?® Quanto maior o tempo de duracao da recusa, mais impressionadas ficam as pessoas presentes Alguém a quem se destina um beijo na mao a esconde para escapar dessa honra. Assim, a rainha da Espanha esconde a sua mao diante do jovem arquiduque Filipe, o Belo; [2.7] este aguarda por algum tempo e, assim que vé uma oportunidade, agarra a mao de surpr. sa ea beija. Dessa feita a séria corte espanho- la explodiu em gargalhadas, pois a rainha jé nao esperava por aquele gesto." ‘Todas as manifestagdes espontaneas de ternura so cuidadosamente formalizadas. Prescreve-se de forma precisa quais damas da corte devem andar de maos dadas. E ndo apenas isso, mas também se uma pessoa pode ou ndo tomar essa iniciativa, Esse esti- mulo ~ acenarem-se mutuamente (hucher) para caminhar em conjunto - é, para a velha dama da corte que descreve 0 cerimonial 27 Filipe, oBelo, eJoana dearagao borguinhao, um conceito técnico.* A formalidade de obstar um hés- pede que deseja partir é exercida até o extremo da inconveniéncia, Por alguns dias, a esposa de Luis x1 foi héspede de Filipe da Borgo- nha; o rei havia estabelecido um determinado dia para a volta dela, mas 0 duque recusousse a deixé-la parti de seu séquito e por mais que ela mesma temesse a ira de seu mari- do. Goethe disse: “es gibt kein dusseres Zeichen der Héflichkeit, das nicht einen tiefen sittlichen Grund hatte” [nao hé nenhum sinal externo de cortesia que nao possuisse um profundo motivo moral]; “virtue gone to ; apesar de todas as stiplicas seed” [Virtude levada ao extremo| foi como Emerson chamou as boas maneiras. Talvez no se possa afirmar com toda a certeza que esse fundamento moral ainda pudesse ser percebido no século xv, mas sem diivida o valor estético se situava entre a manifestagio pura de afeto e a dvida forma social. Nao € preciso dizer que essa minuciosa ornamentagio da vida tem seu lugar sobretudo nas cortes dos soberanos, onde havia tempo e espaco para isso. Mas também permeavam as esferas inferiores da sociedade ~ algo comprovado pelo fato de que essas formas sociais continuam preservadas hoje justamente na pequena burguesia (sem falar nas préprias cortes). O convite reiterado para servir-se de mais comida, a insisténcia para que a pessoa fique mais um pouco, a recu- sa em passar na frente de alguém desapareceram em grande parte do comportamento social da alta burguesia na iltima metade deste século. No século xv, essas formas estiio em pleno vigor. Ainda quan- do penosamente observadas, so objeto de satira mordaz. Encontra-se sobretudo na Igreja 0 teatro das cerim6nias longas e belas. Durante 0 ofertério, ninguém quer ser o primeiro a levar a sua esmola ao altar. Passez. - Non feray. ~ Or avant! Pode passar. ~ Ah, nao, obrigada. ~ Por favor! Certes si ferez, ma cousine. Sem divida vés ireis, prima + Non feray. ~ Huchez no voisine, = Nao, eu nao. -Chamea vizinha, Quelle doit mieux devant offtir Emetnor que oferte primeiro, ~Vous ne le devriez souffr, ~V6s nao deveis tolerar, Dist la voisine: nappartient Diz vizinha: Nem me passa pela cabesa: ‘A moy: offrez, quit vous ne tient Oferece’ logo, pois depende s6 devas Que li pres tres ne se delivre.* Para que o clérigo continue, Quando finalmente o superior dentre todos ja havia passado, sob o tes- temunho humilde de s6 fazé-lo para pér um fim paralisia, segue-se 6G + OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA a mesma discuss, que comeca mais uma vez. junto a almofada do “paesberd”, “Ia paix”, [2.8 e 2.9] a placa de madeira, prata ou mérmo- re que passara a fazer parte da missa, no final do periodo medieval, depois do Agnus Dei, em substituicao ao beijo da paz dado de boca em boca.* 0 fato de o paix ser passado de mao em mio entre os presen- tes, sob a recusa educada de ser o primeiro a beijé-lo, transformara-se num transtorno demorado ¢ rigido para o andamento dos servicos. 2.8 2.9 Dols exerplos deum par (paz), poixof paesberd (quadro da paz) trans beljo da paz missio do Respondre doit ljulene fare A jovem mulher precisa responder: — Prenez, je me prendray pas, dame. —Pegai, eu nao pegarei, senhora —Siferez, prenez, douce amie Mas por favor, pegai, querida amiga. ~Certes, je ne le prendray mie; ~Certamente, no sou eu que vou pegar; en me tendirait pour une sote. Haveriam de me considerar louca ~Baillez, damoiselle Marote, —Passai-o a senhorita Marote — Non feray, hesucrist men gart! Nao, nao a mim, Deus me guarde! Porteca ma dame Ermagart Passai-o 8 senhora Ermagart. ~ Dame, prenez. ~ Saincte Marie, —Por favor, senhora, pegai. ~ Santa Maria, Portez \a paix ala billie. Passai o paix ao funcionario. Non, mais a la gouverneresse% = Nao, & mulher do governador. 67 Eesta, por fim, o aceita. Mesmo um homem san- to, que renunciara ao mundo, como Francisco de Paula considera uma obrigagao sua participar des- sas altercaces,” algo que foi reconhecido por seus, admiradores piedosos como marca de verdadeira humildade, provando que 0 contetido ético des- sas formas ainda nao havia se desfeito totalmente. A importancia dessas formalidades, alias, torna-se mais evidente no fato de que a precedéncia, que as pessoas tao civilizadamente impunham umas as, outras na Igreja, era por outro lado a causa de que- relas volateis e obstinadas.* A precedéncia décil era uma rentincia bela e louvavel da arrogancia burguesa ou nobre que ainda se sentia vivamente. Dessa forma, as missas pareciam um minueto, pois na saida da igre- ja repetia-se a querela; depois vinha a competicao para deixar o indivi duo mais importante do lado direito, para dar a preferéncia na hora de atravessar uma tabua por cima de um fosso ou seguir por uma ruela. Chegando em casa, do mesmo modo que continua a exigir a etiqueta espanhola, deve-se convidar todo o grupo para entrar e beber alguma coisa, a que os outros devem recusar desculpando-se educadamente; depois, deve-se acompanhar 0s outros por uma parte do caminho, € tudo isso sob educados protestos dos que foram acompanhados.” ‘Todas essas formas frivolas nos parecem algo tocantes se pensar- mos que florescem da uta séria de uma raga raivosa e passional con- tra a sua propria altivez e célera. Muitas vezes a rentincia formal do orgulho fracassa. A rudeza agressiva acaba irrompendo através das formas ornamentadas. Joao da Baviera se hospeda em Paris; [2.10] os grandes senhores dao festas pomposas, e numa delas 0 bispo eleito de Liége ganha de todos o dinheiro apostado no jogo. O principe nao se contém e exclama: “Mas que diabo de padre é esse? Como? Sera que ele vai arrancar todo o nosso dinheiro?”. E Jodo responde: “Nao sou uum padre, ¢ nao necessito de vosso dinheiro”. E ele acaba por pegar 0 dinheiro ¢ jogé-lo ao redor de todo o grupo, “de forma que muitos ficaram abismados com a sua grande generosidade” {Dont y pluseurs orent grant mervelle de sa grant liberaliteit].° Hugo de Lanny [2:1] bate com uma luva de ferro num homem que esta ajoelhado diante do duque para acusé-lo; 0 cardeal de Bar acusa um padre de mentir na presenca do rei e 0 chama de cio traicoeiro.* 6B - OANSEIO POR UMAVIDA MAIS BELA 2.30 Joao da Baviera, Eleitor de Luik, mais, tarde conde de Holanda ezelandia, O sentimento formal de honra é tio forte, que uma transgressio da etiqueta, como até hoje acontece em muitos povos orientais, era considerada um ultraje mortal, pois destrufa a bela ilusdo de uma vida elevada e pura, que no entanto sucumbe a qualquer realidade desvelada. Para Jodo sem Medo era uma afronta indelével que Cape- luche, o carrasco de Paris, que 0 encontra em trajes régios, o cum- primentasse como a um nobre, tocando-Ihe a mio; somente a morte do carrasco poderia reparar esse ultraje.*? No banquete da coroagao de Carlos vi, em 1380, Filipe de Borgonha se colocou a forca entre o rei eo duque de Anjou para sentar-se no lugar que Ihe cabia como doyen des pairs; disso resultam gritos de ambos os lados e, quando a disputa ameaga se resolver pela forca, o rei a apazigua, concedendo a exigéncia do borguinhio.* Também na seriedade da vida do campo nao é tolerado nenhum descuido nas formas: o rei da Inglaterra fica muito ofendido quando L'Iste Adam aparece diante dele em um traje “blanc gris” e Ihe olha nos olhos.* [2.12] Um capitao inglés manda um parlamentar da Sens sitiada barbear-se antes de recebé-lo.* 69 2m Hugo deLannoy. Status et Armoria de a Tolson Or. 2az JeandeViliersde Lisle Adam. Status et Armarial de laToison dor A espléndida ordem da corte da Borgonha, prezada pelos contem- pordineos,%* revela seu verdadeiro significado apenas comparada a confusio que costumava reinar na antiga corte francesa. Deschamps queixa-se em intimeras baladas sobre o tédio da vida na corte, ¢ seus lamentos so um pouco mais do que a desaprova¢ao habitual pela vida dos cortesaos, sobre o que falard mais tarde. Comida e aloja- mentos ruins, ruido ¢ confusao permanentes, brigas e xingamentos, inveja e desprezo, um antro de pecados, uma porta para o inferno.” Apesar da respeitosa veneracio a realeza e da organizacao orgulhosa de grandes ceriménias, o decoro lamentavelmente deixa de existir em algumas das ocasies mais solenes. Por ocasidio do enterro de Carlos vi em Saint Denis, em 1422, hd uma grande querela entre os monges da abadia e a guilda dos oficiais da gabela (henouars) de Paris acerca da ttinica e outras roupagens que deveriam cobrir 0 corpo real; cada partido reclama o direito sobre isso: cada um puxa para 9 seu lado e quase se pegam a tapa, mas 0 duque de Bedford poe a solucao do conflito nas maos da justica, “e o corpo foi enterrado” et fut le corps enterré|* A mesma querela repete-se em 1461, no enterro de Carlos vit. A caminho de Saint Denis, chegados a Croix aux Fiens, 08 henouars, apés uma discusséo com os monges da abadia, recusaram- se a continuar carregando 0 corpo real se nao Ihes fossem pagas trés, libras de Paris, a que reclamavam ter direito. Eles largam o atatide no meio da rua e 0 cortejo fica suspenso por um bom tempo. Os cidadios de Saint Denis ja estavam se propondo a assumir 0 encargo, quando 0 grand écuyer promete pagar aos henouars do proprio bolso, com 0 que 0 cortejo pode seguir adiante para somente chegar a igreja por volta das oito horas da noite, Logo apés o enterro, segue-se uma nova disputa sobre a tinica real entre o proprio grande écuyer real ¢ os monges.** De certo modo, tumultos semelhantes pela posse dos utensilios de uma solenidade eram rotineiros; a quebra da forma ja havia se tornado uma forma.* 0 pibblico em geral, cuja presenca era obrigatéria até o século xvit em todos os acontecimentos importantes na vida real, fazia com que justamente nas solenidades maiores muitas vezes faltasse toda e qual- quer ordem. No banquete de coroagao de 1380, a confusdo de especta- dores, participantes e servicais foi tao grande, que estes ‘times tive- ram de servir 0 condestivel e 0 marechal de Sancerre a cavalo.** Quan- do Henrique vi da Inglaterra foi coroado rei da Franca em Paris em 1431, bem cedo pela manhé 0 povo invade o grande salio do palacio 7O + OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA onde serd realizado o banquete para olhar, roubar e se empanturrar. Os lordes do Parlamento, da universidade, o prévét des marchands e 0 conselheiro municipal mal conseguem chegar ao salao do banquete e, uma vez ld, encontram as mesas destinadas a eles ocupadas por intimeros artesdos. Tentou-se retira-los das mesas, “mas quando um_ ou dois se levantavam, seis ou oito sentavam-se do outro lado” (mais quant on en faisoit lever ung ou deux, il s'en asseoit vr ou vir d’autre costé].* Na coroacdo de Luiz x1 em 1461, adotou-se a precaucio de fechar e vigiar as entradas da catedral de Reims, de modo que nao houvesse mais pessoas na igreja além das que o coro pudesse acomodar com seguranga, Mesmo assim, as pessoas invadiram de tal maneira o entor- no do altar onde ocorria a ungao que os préprios prelados auxiliares do arcebispo mal tinham como se mexerem, ¢ os principes de sangue, em seus assentos de honra, acabaram correndo riscos.* A Igreja em Paris tolerou (até 1622) com dificuldade a ideia de que ainda era subordinada ao arcebispado de Sens. Faz-se com que o arcebispo note de todas as maneiras que a sua autoridade nao era apreciada, e hd referencias constantes a uma isencio concedida pelo papa. Em 2 de fevereiro de 1492, o arcebispo de Sens celebrou a missa na Notre Dame de Paris na presenga do rei. Com 0 soberano ainda na igreja, o arcebispo, abencoando o povo, retira-se com a cruz sacerdotal a sua frente. Dois cénegos entram com um grande nimero de eclesiasticos, agarram com violéncia a cruz, tirando-a das maos do carregador, e a danificam, criando um tumulto em que os cabe- los dos auxiliares do arcebispo sio arrancados. Quando 0 arcebispo tentou acalmar o entrevero, “sem lhe dizer uma palavra, foram para cima dele, Lhuillier (dedo da Catedral) deu uma cotovelada em seu estémago, 0 outro arrebentou o seu chapéu pontifical e seus cordées”. 0 outro cénego vai atras do arcebispo “falando todo tipo de impre- cacao e enfiando o dedo na cara dele, e o agarrou de tal forma pelo braco que 0 roquete acaba se rasgando; e se nao tivesse se protegido com a mio, teria levado uma bofetada na cara” [sans lui mot dire, vin- vent prés de lui Lhuillier lui baille du coude dans Vestomac, les autres rompirent le chapeau pontifical et les cordons d’icelluy. (..) disant plusieurs injures en luy mectant le doigt au visage, et prenant son bras tant que dessira son rochet; et eust esté que n’eust mis sa main au devant, Veust frappé au visage]. Seguit se um processo de treze anos.** O espirito apaixonado e violento, ora duro, ora condescendente, oscilando entre uma desesperanca profunda em relacio ao mundo e um festejo por sua beleza colorida, nao podia existir fora do mais estri- tamente formalizado comportamento, Era essencial que a excitacio fosse fixada em uma moldura rigida de formas-modelo. Apenas assim a vida poderia alcancar uma ordenagio regular. Com isso, a propria experiéncia se transformou em uma bela, intelectualmente aprazivel representacao; desfrutavase da exibicdo exagerada de sofrimento e alegria sob uma luz artificial. Ainda faltam os meios para uma expres- sdo espiritual pura; apenas a conformagao estética das emocdes per- mitia atingir o alto grau de expresso exigido nesse tempo. Isso nao significa que tais formas de vida - sobretudo as que cer- cam as grandes e antigas coisas sagradas do nascimento, casamento e morte ~ fossem instituidas com esse objetivo. Costumes e cerimé- nias surgiram a partir de crencas e cultos primitivos. Mas seu sentido original havia muito jé tinha se tornado inconsciente, € no lugar dele as formas adquitiram um valor estético novo. No luto, a encenacao do pesar assumiu sua forma mais sugesti- va. Havia um campo ilimitado para a maravilhosa hiperbolizacao da dor, que € 0 oposto da hiperbolizacao da alegria nas incriveis fes- tas da corte. Aqui néo queremos oferecer uma descricdo detathada de toda essa ostentacao sombria de trajes negros, de toda essa pompa dos servicos mortuarios que acompanham a morte de cada soberano. Elas ndo so exclusivas do final da Idade Média; as monarquias as, mantém até os dias de hoje, ¢ também o carro fiinebre burgués ainda uma remanescéncia disso. A sugestividade do preto, que por oca- sitio da morte de um soberano nao s6 a corte trajava mas também os magistrados, os membros das guildas eo povo comum, deve ter cons- titufdo um contraste ainda maior frente ao colorido vivo da vida urba- na medieval. A pompa do funeral de Jodo sem Medo, assassinado, foi claramente talhada para provocar um forte efeito (em parte, politico) [213] A comitiva de guerreiros com que Filipe marcha ao encontro dos reis da Franga e da Inglaterra brilha com duas mil bandeirolas negras, com estandartes da mesma cor e flamuulas de sete jardas, com franjas de seda preta e tudo bordado ou decorado com brasées dou- rados. 0 trono e os carros de viagem do duque foram pintados de preto para a ocasiéio.* Em uma espléndida reuniao em Troyes, Filipe acompanha as rainhas da Franca e da Inglaterra em uma roupagem de veludo de Into, que pende até o chao ao longo do lombo de seu cavalo.® Ele ¢ seu séquito continuam a se vestir de preto ainda por um bom tempo.” 72 + OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA As vezes, uma excecao em meio a todo aquele preto podia realcar o impacto: en- quanto toda a corte, inclusive a rainha, tra- java o preto, o rei da Franga expressava 0 Tuto em vermetho.* E em 1393 0s parisien- ses viram, abismados, toda a pompa bran- ca do cortejo fiinebre do rei da Arménia, Ledo de Lusignan, que morreu no exilio.” Sem diivida alguma aquele preto mui- tas vezes ocultava uma intensidade de dor verdadeira e passional. 0 grande horror a morte, os lagos familiares for- tes e a intima dependéncia do senhor transformavam a morte de um sobera- no num acontecimento verdadeiramen- te chocante. E, como no assassinato do duque da Borgonha em 1419, se além do mais fosse dilacerada a honra de um povo orgulhoso e evocada a vingan- ¢a como uma obrigacao santa, entéo a expresstio hiperbélica de dor seria pro- porcional em pompa ¢ em animo a dor deveras sentida. Chastellain lidou profu- samente com a estética dessa noticia de morte; no estilo pesado e arrastado de sua retérica distinta, ele inventa o longo discurso com 0 qual o bispo de Tournay em Gent lentamente prepara o jovem duque para a terrivel noticia, imaginando mesmo as lamiirias solenes do proprio Filipe e de sua esposa, Michelle de Franca. Mas o amago da histéria é bem real: nao resta dtivida de que ao receber a noticia 0 jovem duque teve um colapso nervoso, sua esposa desmaiou e uma tremenda confusio se instalou na corte, com gritos de sofrimento pela cidade, numa expresso descontrolada da dor. Também o rela- to de Chastellain sobre a expresso da dor de Carlos, 0 Temerério, por ocasidio da morte de Filipe, em 1467, tem elementos de verdade. © choque, aqui, foi bem menos intenso; 0 estado do velho duque, bastante senil, havia muito ja vinha se deteriorando; nos tiltimos anos, a relagdo miitua entre ele e 0 filho tinha deixado de ser cordial, de modo que o proprio Chastellain nota que todos ficaram pasmos quando viram Carlos aos prantos, a gritar, torcer as maos e cair no B 2a3 Jo30 sern Meda, ret tode pintor jesconhecido. chao junto ao leito de morte do pai, “e nio houve regra nem medida, e de tal maneira que catsou espanto sua dor desmesurada” [et ne tenoit régle, ne mesure, et tellement qu'il fit chacun s'esmerveiller de sa démesurée douleur] ‘Também na cidade de Bruges, onde o duque morreu, “era comovente ouvir todo tipo de gente gritar e chorar e soltar varios lamen- tos e expressdes de tristeza” [estoit pitié de oyr toutes maniéres de gens crier et plorer et faire leurs divers es lamentations et regrets].‘t E dificil distinguir até que ponto nesse e em relatos semelhantes estamos diante do estilo da corte, que considera adequada ¢ elegante uma demonstracdo ruidosa da dor, ou de uma intensa ¢ verdadeira emotividade propria da 6poca. Sem ditvida, ha um forte elemento pr mitivo: 0 pranto alto pelo morto, na voz de mulheres carpideias, e expresso artisticamen- .oca emprestam uma emogio muito forte a escultura tumular, te nos plourants, que nessa elemento cultural muito antigo. [2.14] A combinacao do primitivismo com essas demonstracées emo- tivas também pode ser vista no grande medo em comunicar um falecimento a alguém. Por muito tempo oculta-se da condessa de Charolais, enquanto ela estava gravida de Maria da Borgonha, a mor- te do pai; nao se ousava comunicar a Filipe, 0 Bom, que estava aca- mado, nem um nico caso de morte que de alguma forma pudesse atingi-lo, de modo que Adolfo de Cleves nao pode usar luto pela morte da esposa. [2.15] Mas quando o duque, mesmo assim, ouviu rumores da morte de seu chanceler Nicolas Rolin (Chastellain até usa a expresso: “avoit esté en vent un peu de ces te mort”), ele pergunta ao arcebispo de Tournay, que vai visita-lo enquanto esta acamado, se era verdade que o chanceler havia falecido. “Meu senhor”, diz 0 arcebispo, “a verdade é que morto ele ja estd, pois ele é velho e alquebrado, e nao vai mais viver por muito tempo.” “Déal”, diz o duque, “nao ¢ isso que estou perguntando, o que quero saber é se ele esta mort de mort et trespassé.” “Bem, meu senhor”, diz o bispo outra vez, “ele ndo morreu, mas esta paralisado de um lado, portanto, OANSEIO POR UMAVIDA MAIS BELA 2.34 Monge desolaco do monumento funeraio de ipe, 080m, alabastro, 1404-05, por Claus Sluter fatos 2ag Mestre d is, retrata de Adolfo praticamente morto.” 0 duque fica bravo: “Vechy merveilles! [papo furadol] agora diga-me claramente, se ele est morto”. $6 ento é que © bispo diz: “Sim, meu senhor, é verdade, ele realmente morreu’” Tal maneira peculiar de participar um falecimento nao revelaria antes de tudo uma velha e supersticiosa forma do que apenas a con- sideragio por um doente, a quem toda essa hesitacdo na verdade poderia irritar? Tudo isso fazia parte do tipo de pensamento que levava Luis x1 a nunca mais usar as roupas que vestia ou usar o mes: mo cavalo que montava no momento em que recebia uma noticia ruim; chegou até a mandar derrubar toda uma parte do bosque de Loches, onde recebeu a noticia da morte do filho, recém-nascido.* “Senhor chanceler”, ele escreve em 25 de maio de 1483, “agradeco- the pelas cartas, mas vos peco que nao mais as envie por quem as mandou, pois achei que seu rosto mudou terrivelmente desde a iltima vez. que o vi, ¢ juro pela minha fé que ele me incute grande medo; e adeus” [M. le chancellier, je vous mercye des lettres etc, mais je vous pry que ne m’en envoyés plus par celluy qui les m’a aportées, car je luy ay trouvé le visage terriblement changé depuis que je ne le vitz, et vous prometz par ma foy qu'il m’a fait grant peur; et adieu. Sejam quais forem os velhos tabus que possam estar por trés dos costumes do luto, seu valor cultural vivo é que dé forma ao softimento, eles 0 mostram como algo bonito e elevado. Conferem ritmo a dor. Eles transferem a vida real para a esfera do drama e Ihe calgam coturnos.** Em uma civilizacao mais primitiva ~ penso, por exemplo, na irlandesa ~ os costumes do luto ¢ a poesia funeréria ainda séo uma tinica coisa; entender 0 luto da corte na época da Borgonha é possivel apenas se o relacionarmos a elegia. O luto deve manifestar na forma bela quao de todo impotente diante do sofrimento se encontra a pessoa. Quan- to mais alta a posicio, tanto mais heroica precisa ser a demonstracdo da dor. A rainha da Franca teve de ficar um ano inteiro encerrada no quarto onde Ihe foi informada a morte do marido. Para as princesas, aregra eram seis semanas. Quando Madame de Charolais, Isabel de Bourbon, foi informada da morte de seu pai, ela chega a compare- cer ao funeral no castelo Couwenberg e, depois disso, fica reclusa por seis semanas em seu quarto, sempre deitada na cama, apoiada em almofadas, mas vestida com barbette,* touca e manto. O quarto 6 todo revestido de preto. No piso, em vez de um tapete macio, ha um grande lencol preto, e a grande antecamara esta igualmente revestida da mesma cor. As mulheres da nobreza ficam seis semanas de cama unicamente quando morre o marido. No caso da morte de pai ou mie sio apenas nove dias, porém durante 0 resto das seis semanas ficam sentadas diante da cama, sobre um grande pano preto. Quando se tratava do irmao mais velho, ficava-se recolhida a0 quarto por seis semanas, mas nao restrita & cama."” Numa época em que se observava um cerimonial t4o rigoroso, considera-se uma das circunsténcias mais terriveis do assassinato de 1419, relembrado a toda hora, 0 fato de Joao sem Medo ter sido enterrado sem maiores cuidados, apenas com um casaco curto, calcas e sapatos.* 76 + OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA O sentimento do luto, vestido e assimilado nessas formas extre- mamente belas, torna-se mais facil de ser vivido; a ansia por drama- tizar a vida cede espaco aos “bastidores”, onde 0 pathos nobremente ornamentado pode ser recusado. Existe uma separacio ingénua entre status e vida real, a qual é caracteristicamente trazida a luz nos escri- tos da velha dama da corte Aliénor de Poitiers, que ainda venera todas essas demonstracées como se fossem elevados mistérios. A descricio do esplendoroso luto de Isabel de Bourbon, ela acrescent ‘Quando madame estava em seus aposentos privados, isso nao queria dizer que estava sempre deitada na cama, e muito menos que ficava em um, quarto” [Quand Madame estoit en son particulier, elle n'estoit point toujours couchée, ni en une chambre”), Aqui, “en une chambre” nao deve ser enten- dido como “num mesmo recinto”. Chambre significa um conjunto de decoragées de parede, vestuario, roupas de cama ete., que serve para estofar um recinto, ou seja, um quarto pomposo especialmente ajei- tado.® A princesa recebe visitas nessa condicdo, mas somente como uma bela formalidade. Assim, Aliénor também diz: 4 meméria do marido morto deve-se trajar o vestido de luto por dois anos, desde que “nao se tenha casado novamente”, E justamente nas posigdes mais altas, a saber os soberanos, eles se casavam bem depressa novamen- te: o duque de Bedford, regente da Franca em nome do jovem Henti- que VI, ja 0 faz. depois de cinco meses. Ao lado do luto, o quarto da partu- riente oferece uma ampla oportuni- dade para uma pompa séria e distin- Ges hierarquicas de ostentacao. Aqui, as cores tém um significado, O ver- de, que até 0 século x1x era uma cor comum para o bergo burgués e 0 vinur- ‘mand [secador das roupas do bebé], no século xv era prerrogativa de rainhas e princesas. [2.16] O quarto de partu- riente da rainha da Franca é de seda verde; antigamente, era todo branco. Mesmo as duquesas nao é permitido ter “la chambre verte”. Tecidos, peles € cores de mantas € colchas so pre- definidos. Sobre o aparador ha sem- pre duas velas grandes brilhando em 2.6 Petrus Christus, Anunclagdo candelabros de prata, pois as janelas do quar- to da parturiente somente sdo abertas quator- ze dias apés 0 parto. O que também chama a atenciio so as camas faustosas, vazias, assim como as carruagens no enterro do rei da Espanha, A jovem mie, Isabel de Bourbon, fica deitada em um leito diante da lareira, ea crianga, Maria da Borgonha, em um bergo no quarto do bebé; mas, além disso, no quarto da parturiente havia ainda duas camas gran- des ornadas de cortinas verdes, tudo ajeitado e arrumado para alguém dormir, ¢ no quar- to da crianca outras duas camas grandes, tudo em verde e roxo e, mais uma vez, uma cama grande em uma antecamara, toda forra- da de seda carmim, Essa chambre de parement tinha um tapete com um sol bordado em fios dourados, que havia muito Jodo sem Medo tinha ganhado da cidade de Utrecht e porisso era chamado de la chambre d’'Utrecht. Nas solenidades batismais, as camas destinavam-se ao uso cerimonial.” Essa estética das formas podia ser vista no aspecto diario da cidade e do campo: a rigida hierarquia de tecidos, cores e peles proporcio- nava as diversas classes um enquadramento externo que ao mesmo tempo elevava e protegia o sentimento de dignidade. A estética das emogoes no se limitava as alegrias e dores solenes nas ocasides dos partos, casamentos € morte, quando as procissées exerciam uma funco nas ceriménias obrigatérias. Cada agdo de natureza ética era preferencialmente vista em termos de uma forma lindamente este- tizada, Existe um elemento desse tipo na admiracio pela humildade autopunicao de um santo, pelo arrependimento do pecador, como a “moult belle contrition de ses péchés” {a mais bela contrico de seus pecados] de Agnés Sorel,” [2.17] Todo relacionamento na vida pessoal € estilizado; no lugar da preocupacio moderna de esconder ¢ varrer as relagées intimas, o homem medieval esforcava-se para expressé- Jas em uma forma e transformé-las em um espetaculo também para outros. Assim, também a amizade possui na vida do século xv a sua forma bela e elaborada, Além das antigas irmandades de sangue e de armas, honradas tanto entre 0 povo quanto entre a nobreza,”* conhece-se uma forma de amizade sentimental que ¢ expressa pela 78 + QANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA 2.27 Agnés Sorel, palavra mignon. O mignon do principe ¢ uma instituicao formalizada que se manteve por todo 0 século xv1 e parte do século xvi. Tratase da relagio de Jaime 1 da Inglaterra com Robert Carr e George Villiers; também Guilherme de Orange deve ser visto sob esse aspecto na épo- cada remiincia de Carlos v. Twelfth Night [Noite de reis] somente pode ser entendida tendo-se em vista essa forma particular de amizade do duque com 0 suposto Cesario. A relacao é vista como um paralelo ao amor cortesio “Sy n’as dame ne mignon” [se nao tens dama ou mignon] diz Chastellain,” Mas falta toda e qualquer alusdo que a levasse para © mesmo patamar da amizade grega. A franqueza com que é trata- da a amizade mignon, numa época em que o crimen nefandum era tao abominado, deve silenciar qualquer suspeita. Bernardino de Siena aponta como exemplo a seus compatriotas italianos, entre os quais a sodomia era bem difundida, a Franca ea Alemanha, onde ela no era conhecida.* Apenas um soberano muito odiado seria acusado, vez por outra, de ter um relacionamento proibido com seu oficial favori- to, como aconteceu com Ricardo 11 da Inglaterra e Robert de Vere.* Mas, em geral, trata-se de um comportamento acima de qualquer suspeita, uma honra para o favorecido, a qual ele mesmo confessa. 0 proprio Commines conta como ele desfrutava da honra distinta de ser favorecido por Luis x1, por the ter permitido vestir-se como ele.” Pois esse é 0 sinal claro de uma relagao. O rei sempre tem um mignon en titre, usando os mesmos trajes, em quem se apoia por ocasidio das recepgdes.” Muitas vezes sio dois amigos da mesma idade, mas de Classes diferentes, que se vestiam de modo igual, dormiam em um mesmo quarto e as vezes até na mesma cama.” Uma amizade insepa- vel existe entre o jovem Gaston de Foix e o seu irmao bastardo, que tem um fim tragico; entre Luis de Orléans (ento ainda de Touraine) ¢ Pierre de Craon,” e entre o jovem duque de Cleves ¢ Jacques de Lalaing. Da mesma forma, as princesas tém uma amiga intima, que se veste como elas, e também é chamada de mignonne. ‘Todas essas formas de vida belamente estilizadas, que precisavam clevar a verdade cruaa uma esfera de harmonia nobre, eram partes de uma grande arte da vida, sem que tivessem um impacto imediato na arte propriamente dita. As boas maneiras, com sua aparéncia amistosa de altruismo esponténeo e verdadeiro reconhecimento dos outros, a pompa ea etiqueta da corte, com toda a sua seriedade e dignidade hie- rética, a jovial decoracao das mipcias e do quarto da parturiente, toda essa beleza passou sem deixar rastros diretos na arte e na literatura. 9 © meio de expressio que os une nfo é a arte, mas a moda, Neste momento, a moda, de um modo geral, est muito mais proxima da arte do que a estética académica gostaria de admitir. Como uma acen- tuacio artificial da beleza e da movimentacao do corpo, ela apresenta uma ligagdo estreita com uma das artes: a danga. Mas, além disso, no século xv 0 dominio da moda, ou melhor dizendo, o cédigo dos trajes, esta muito mais perto da arte do que tendemos a imaginar. Nao somente pelo fato do uso frequente de joias e de metais trabalhados nos trajes de guerra, que Ihes conferem um elemento artesanal ime- diato. A moda partilha as mesmas caracteristicas essenciais da arte: estilo ¢ ritmo também sio indispensdveis para ela. O periodo da Idade Média tardia sempre expressou no cédigo dos trajes uma medida do estilo de vida, algo que hoje em dia, mesmo em uma solenidade real, nao passa de uma palida sombra. Na vida cotidiana as diferengas de peles e cores, capas e toucas indicavam a rigida ordem das classes, as dignidades esplendorosas, o estado de alegria ou softimento, a relacao terna entre amigos e amantes. Em todos os campos da vida, a estética se desenvolvera da forma mais expressiva possivel. Quanto mais alto 0 contetido de beleza e moralidade, tanto mais se podia expressé-lo como verdadeira arte. A cortesania e a etiqueta encontram sua expressao bela apenas na propria vida, nas roupas e pompa. 0 luto, por outro lado, encontra sua expresso mais forte em uma forma artistica poderosa e dura- doura: 0 monumento funerario; o valor cultural do luto situava-se num patamar alto devido a sua ligagio com a religiosidade, Mais rico ainda era o florescimento estético destes trés elementos da vida: bravura, honra e amor. 80 + OANSEIO POR UMAVIDA MAIS BELA Notas 4 Allen n? 541, Antuérpia, 26 de fevereiro de 4516)17, comp. n. 542, n. 566, n. 812, n. 967. Germanae, aqui, no pode significar “alemio” Eustache Deschamps, Euvres completes, De (Queux de Saint Hilaire e G. Raynaud (ed), Paris: Société des anciens textes francais, 1878-1903, VIL, B.34 (1, p. 113), comp. ns. 85, 126, 152, 162, 176, 248, 366. 375. 386, 400, 933, 936, 1195, 1196, 1207, 1213, 1239, 1240 ete. etc; Chastel- Jain, Oewres, Kervyn de Lettenhove (org). Bruxe- las: 1863466, V.1, PP. 9, 27, V. IV, PP. 5.56, ¥. VI, PP. 206, 208, 219, 295; Alain Chartier, Buvres, A. Duchesne (ed.). Paris, 1617, p. 262; Alanus de Rupe, Sermo, in B. Alanus redivivus,J.A. Coppens- tein (ed), Napoles, 1642, v. 11, p. 313. 1d, ibid., n. 562, v.1V, p. 18, 5. A.de la Borderie, Jean Meschinot, sa vie ct ses oeuvres, Bibliotheque de I'ficole des chartes, 1895, V. LVI, PD. 277, 280, 305, 310, 312, 622 etc. © Chastellain, op. cit, ¥.1, p. 10, v. VIT, p. 334. 7 Dela Marche, Mémoires, Beaune e d’Arbaumont (ed.). Paris: Société de W'histoire de la France, 1883-88, V. 1, p. 186, 1V, p. LxxxIX; H, Stein, Etude sur Olivier de la Marche, historien, poete et diplomate, Bruxelas, Mém., couronnés etc. de Acad. royale de Belg., 1888, xt1x, fron- tispicio. 8 Monstrelet, op. cit, v.1¥, p. 430. 9 Troissart, op. cit. v. x, p. 275; Deschamps, op. cit, m. 810, v.1¥, p. 327; cf. Les Quinze joyes de mariage. Paris: Marpon et Flammation, p. 54 (quinte joye): Le livre messire Geoffroi de Charny, Romania, v. xxV1, 1897, p. 399. 10 Joannis de Varennis responsiones ad enpitula accusa- tionum ete. § 17, por Gerson, Opera, v.1, p. 920. 41 Deschamps, op. cit., n. 95, ¥. 1 p. 203. 412 Deschamps, Le miroir de mariage, v. 1x, pp. 25, 69, 81, n. 1004, vv, p. 259: € mais v.11, pp. 8, 183-87; V. 11 pp. 39, 3735 ¥. VIE, P. 33 VIX, 209 ete. 13 Convivio, livro tv, cap. 27, 28. 14 Gerson, Discours de Fexcellence de virginité, Opera, V. 1, p. 382. Comp. Dionysius Cartusianus, De vanitate mundi, Opera omnia, cura et labore monachorum sacr. ord. Cart., Monstrotii- ‘Tornaci 1896-1913, 41 Vols., V. XXXIX, p. 472. 15 Chastellain, op. cit. v. v, p. 364. 16 La Marche, op. cit, v.1v, p. cxtv. A velha traducio holandesa de Estat de la maison du duc Charles de Bourgogne por Matthacus, in Analecta, Vil, PP. 357-494. 47 Christine de Pisan, (uvres poétiques, M. Roy (ed), Paris: Société des anciens textes francais, 188696, v.1, p. 251, n. 38; Leo von Rozmitals Reise, Schmeller (ed.). Stuttgart: Bibliothek des literarischen Vereins zn Stuttgart, v. vit, 1844, PP. 24, 149, 18 La Marche, op. cit., v.1V, pp. 458.; Chastellain, op. cit, v. ¥, p. 370. 419 Tournoit toutes ses maniéres et ses moeurs d sens une ‘part du jour, et avecques jeux et ris entremeslés, se Aéiitoiten beau paler et en amaonester ses nobles d ‘ver, comine un orateur. Bt en cestuy regart, plusieurs fois, s'est trouvé assis en um hautdas paré, et ses nobiles devant luy 1 ou i Teur fit diverses remonstrances selon les divers temps et causes. Bt toujours, comme prince et chef sur tous, fut richement et magnifiquement habitué sur tous les autres. Chastellain, op. cit. v. V. p. 868. 20 La Marche, op. cit, v. 1, “Estat de la maison”, PP. 34 Ss. 8 21 Nouvelles envoyees de la conté de Ferette par ceulx qut en sont esté prendre la possession pour monseignetr de Bourgogne, in E, Droz (ed.). Mélanges de philo logie ot d'histoire offerts dM. Antoine Thomas. Paris, 1927, P. 145. 22 La Marche, op. cit., vt, p. 277. 23 Id, ibid., v. 1, “Estat de la maison”, pp. 34, 51, 20, 31 24 Froissart, op. cit,, (1, p. 172 25 Journal d'un bourgeois, v. 248, p. 105, 26 Chromique scandaleuse, ¥. 1. p. 53. 27 Molinet, op. cit, v. 1. p. 184: Basin, op. cit. v.11, P.376. 28 Aliénor de Poitiers, Les honneurs de la cour, in La Curne de Sainte Palaye (ed.), Mémoires sur Vancienne chevalerle, +781, v.11, p. 201. 29 Chastellain, op. cit.,v. 11, p. 196-212, 290, 292, 308: v. IV, pp. 412-14, 428; Alignor de Poitiers, +» PP. 209, 212 3 de Poitiers, op. cit., p. 210; Chastellain, v.1¥, p.312: Juvenal des Ursins, op. cit., p. 405; La Marche, op. cit, v. 1, p. 278; Froissart, vr, PP. 16, 22 55. 31 Molinet, op. cit. v. v, pp. 194, 192. 32 Alignor de Poitiers, op. cit, p. 190; Deschamps, op. cit, v. 1x, p. 190, 33 Chastellain, op. cit, v. v, pp. 27-33. 34 Deschamps, op. cit. v. 1X, Le miroir de mariage, PP. 100-10, 35 Varios exemplares de tais “paix” por Laborde, op. cit, v. 11, MS. 43, 45, 75, 126, 140, 5293, 36 Deschamps, op. cit., p. 300, comp. vitt, p. 156, ballade n. 1462; Molinet, op. cit. v. v. p. 195: Les cent nouvelles nowvelles, Th. Wright (org. v.11, P. 123: comp. Les Quinze joyes de mariage, p. 185. 82 - OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA 37 Processo de canonizagao em Tours, Acta Sancto- rum Apr, t.1, p. 152. 38 Sobre essas querelas de sucesso na nobreza ho- Jandesa, jé referidas por W. Moll, Kerkgeschiedenis ‘yan Nederland wa6r de hervorming, Utrecht, 1864-69, 2 partes (5 pecas}, v.11, 3, p. 284, tratada detalha- damente por H. Obreen, a pedido de Vad. Gesch. ¢ Oudhk, p. 308; igualmente para a Bretanha por H. du Halgouét, Mémoires dela société @histoire et d'archeclogie de Bretagne, v. 1V, 1923. 39 Deschamps, op. cit, v. 1X, pp. 111-14. 40 Jean de Stavelot, Chronique, Borgnet (ed.), Coll des chron. belges, 1861, p. 96. 41 Pierre de Fenin, op. cit, p. 6075 Journal d'un bourgeois, p. 9 42, Aldus Juvenal des Ursins, op. cit. p. 543: ‘Thomas Basin, op. cit. v.1, p. 31. 0 Journal d'un bourgeois, p. 110, dé um outro motivo para a sentenga de morte, assim como Le Livre des trahi- sons, Kervyn de Lettenhove (ed.), Chron. rel. & Thist. de Belg, sous les dues de Bourg. v.11, p.138, 43 Rel. de S, Denis, op. cit., v. 1, p. 30; Juvenal des Ussins, op. cit. p. 341. 44 Pierre de Fenin, op. cit., p. 606: Monstrelet, v. WP. Pierre de Fenin, op. cit., p. 604. Christine de Pisan, vr, p. 251. n. 38; Chastellain, V.V, pp. 364 88; Rozmitals Reise, pp. 24, 149. 47 Deschamps, op. cit. v. 1, 8. 80, 114, 118; ¥. IL, aa 2s, 256, 266; v. 1V, ns. 800, 803; ¥. V. NS. 1018, 1024, 1029; ¥, VIL, N. 253: V. XS. 13, 14. 48 Relato andnimo do século xv no Journal de inst hist, v. rv. p. 353. CE Juvenal des Ursins, op. cit. . 569, Religieux de S. Denis, op. cit, ¥. VI, P. 492. 4g Jean Chartier, Hist. de Charles viz, D. Godeftoy (ed.), 1661, p. 328. 50 Entrada do delfim como duque da Bretanha em ‘Rennes em 1532. por Th. Godleftoy, Le oérémonial Francois, 1649, p. 619. 51 Rel. de S. Denis, op. cit, v.1, p. 32. +52 Journal d'un bourgeois, op. cit.. p. 277 53 Thomas Basin, op. cit, v.11, p.9. 54 A. Renaudet, Préréforme et humanisme a Paris, Pp. 11, baseado nos documentos do processo. 55 De Laborde, Les dues de Bourgogne, v. 1, pp. 172. 477. ‘56 Livre des trahisons, op. cit. p. 156. 57 Chastellain, op. cit, v.1, p. 188, 58 Alignor de Poitiers, Les Honneurs de la cour, op. cit. p. 254. 59 Rel. de S. Denis, op. cit., v.11, p. 114 60 Chastellain, op. cit, v.1, p. 49, ¥.V, p. 240% ver La Marche, op. cit, v1, p. 201; Monstrelet, op. cit, V.111, p. 358: Lefevre de S. Remy, op. cit, v.1, p. 380. 61 Chastellain, op. cit. v. v, p. 228, ver v.1v, p. 220. ‘62 Chastellain, op. cit., v.11, p. 296, v.1v, pp. 213, 216. 163 Chronique scandaleuse, interpol, op. cit., v.11, ».332. 64 Lettres de Louis x1, op. cit.. v.x. p. 120. 65 Referéncia ao habito comum aos atores da tragédia grega. 66 Uma fralda longa e pendente que era presa em volta do queixo. [N.t.] 67 Aliénor de Poitiers, Les honneurs de la cour, op. cit, pp. 254-56. 68 Leffvre de S. Remy. op. cit, v.11, p. 11; Pierre de Fenin, op. cit. pp. 599, 605; Monstrelet, « ¥- 111, p. 347; Theod. Pauli., De rebus op. ci actis sub ducibus Burgundiae compendium, Kervyn. de Lettenhove (ed.). Chron. rel. a Phist. de Belg. sous la dom, des dues de Bourg., t. 111, p. 267. 69 Ver F. M. Graves, Deux inventaires de la Maison 'Or- ans, Bibl. du xv* siecle, n. 31, 1926, p. 26: A. War burg, Gesammelte Schriften r, Leipzig, 1932, p. 225. 70 Aliénor de Poitiers, op. cit, pp. 217-45; Laborde, op. cit. v. 1, p. 267, Inventério de 1420. 71 Sucessor de Monstrelet, 1449 (Chastellain, op. cit, ¥.¥, p. 367}. 172 Ver Petit Dutaillis, Documents nouveaux sur les ‘moeurs populaires etc, p. 14; La Curne de S. Pax laye, Mémoires sur Pancienne chevalerie, v. 1, p. 272. 73 Chastellain, Le Pas de la mort, op. cit., v. v1, p. 61. 74 Hefele, Der h. Bernardin ¥. Siena etc. p. 42. Sobre a perseguigéo da sodomia na Franca, ver Jacques du Clercq, op. cit, v.11, pp. 272, 282, 337-38, 350, V. IIL, p. 15. 75 Thomas Walsingham, Historia Anglicana, v.11, H.T. Riley (ed.}, Rolls series, 1864, p. 148. No caso de Henrique 111 da Franca, nao ha divida quanto ao carter culpado dos mignons, mas {sso acontece no fim do século xvi 76 Philippe de Commines, Mémoires, B. de Mandrot (¢d,). Coll. de textes pour servir a Venseigne- ment de Vhistoire, 1901-03, 2 vols.,v.1, p. 316. 7 LaMarche, op. cit. 11, p. 425; Molinet, op. cit. ‘11, pp. 29, 280; Chastellain, op. cit, ¥.1¥, p. 41 178 Les cent nouvelles nouvelles, op. cit., 11, p. 64; Erois- sart, op. cit. Kervyn (ed.). v. x1, p. 93. 79 Froissart, op. cit, ib. x1v, p. 318; Le livre des fits de Jacques de Lalaing, op. cit., pp. 29, 242 (Chas- tellain, op. cit., v. vitt); La Marche, op. cit, v. 1, . 268: L'hystoire du petit Johan de Saintré, cap. 47. 80 Chastellain, op. cit., v.1¥, p. 237. 83

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