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11 © Tempo Virgem mestica: devogdo a Nossa Senhora na colonizagado do Novo Mundo Juliana Beatriz Almeida de Souza” Dentro da grande mesquita hé entre salas onde esto os idolas principais, todos de maravilhosa grandeza (...) Os principais destes dolos e nos quais eles tinkam mais fé, eu derrubei de seus assentos ¢ os fix descer escada abaixo (...) Em lugar dos idolos mandei colocar imagens de Nossa Senhora ¢ de outros santos (Herndn Cortés). A Virgem Maria é um dos simbolos femininos mais fortes do mundo ocidental cat6lico, o que, alias, se pode compreender, levando em considera- go 0 dominio que a Igreja catélica teve sobre a vida social, durante séculos, © as marcas que ainda deixa na cultura dos povos de raizes cristds. Ao longo dos anos ¢ dos Coneilios, a [greja foi amadurecendo suas afirmagoes doutrinais relativas a essa figura. E a expansio da sua devogao permitiu a apropriagio dessa imagem, que ganhou histérias em diferentes culturas. As narrativas sobre as devogGes marianas podem fascinar, Mas a falta de trabalhos mais sisteméticos de cunho comparativo acerca da devogio mariana, quer no mundo europeu, quer no mundo ibero-americano, tornam dificil o esforgo de esbogar esse quadro, nao obstante seja ele instigante. Nao *Professora do Departamento de Histéria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tempo, Rio de Janciso, 9# 11, pp. 77-92 7 Dossié € tarefa facil encontrar estudos que déem atengao mais do que passageira ao tema, excecio feita a Virgem de Guadalupe do México, e que no estejam comprometidos, quer por um posicionamento catélico militante, quer seja por seu oposto. Ainda assim, ciente dos riscos, proponho, nas paginas seguintes, um esbogo panoramico da devogao mariana na colonizagio ibérica da América, a fim de avaliar sua importancia no ambito do catolicismo colonial! ressaltan- do o fendmene da Vila de Guaratingueta, origem da historia da padrocira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Por isso, aqui se encontraré um pouco das histérias de Maria no Novo Mundo ¢ um esforgo de aproximagao entre clas, procurando perceber os significados que as fizeram importantes para o mun- do ibero-americano. Como simbolos, as imagens da Virgem sio passiveis de diferentes interpretagGes. Imagens, feitas icone e discurso, cujas leituras permitem penetrar no universo das representagdes. Segundo R. Darnton,’ “os historiadores da cultura talvez tenham a ganharse (...) pensarem nos sim- bolismos como polissémicos, fluidos e complexos”. E seguindo essa orienta- 40 que minha reflexio procura caminhar. A descoberta da América recolocava a questo da antiga crenga na quarta parte do mundo, Durante toda a Idade Média, aventou-se a possibilidade de um quarto continente, além dos j4 conhecidos Europa, Asia ¢ Africa. Mas, com a “descoberta”, tornava-se imprescindivel comprovar alusées/profecias a sua existncia nas Sagradas Escrituras. No século XVI, o jesufta Anchieta, em seu sermio da Assungao, dizia que Deus conferiu 4 Virgem Maria a mis- so de multiplicar seus filhos, estendendo a ela a quarta parte do mundo, para ali, também, repartir suas gragas.? Aurs do porto de Palos, de onde sairam as embarcagGes comandadas por Colombo — uma delas, a Santa Maria — ficava a capela de Nossa Senho- ra de Rabida, de quem o navegador era devoto, que, mais tarde, seria cha- "A expressio ¢ usada por Laura de Mello ¢ Souza (O Diabo ea Terra de Santa Crus: feitigaria ¢ religiosidade popular no Brasil colonial, St0 Paulo, Compania das Letras, 1989), referindo-se as manifestagdes assumidas pela cultura crist na eolénia portuguesa da América * Robert Darnton, 0 beijo de Lamourette, SP, Companhia das Letras, 1990, p. 259. Teresa Baumann, A Gesia de Anchieta: a construgi do “outro” nas idéias e priticasjesuiticas nos quinkentos, Niver6i, 1993, Dissertagao (Mestrado em Historia), Universidade Federal Fluminense. Virgem mestiga: devogdo a Nossa Senhora na colonizagto doNovo Mundo mada de Nossa Senhora das Américas ou de Virgem do Descobrimento da América, Segundo alguns relatos, todas as noites era entoada a “Salve Rai- nha”, durante a cravessia. A segunda ilha nomeada por Colombo foi chama- da Santa Maria da Conceigao. A expediggo de Cabral chegou as novas terras, trazendo a imagem de Nossa Senhora da Esperanga. Antes de sair de Portu- gal, o navegador teria pedido protegao a Nossa Senhora de Belém. A Primei- ra Missa na coldnia teria contado com 0 retibulo de Nossa Senhora da Pieda~ de. A devogio mariana, assim, aportava em terras amerindias com os primei ros navegadores. A expansio do catolicismo foi estimulada desde o inicio da coloniza- do ibérica, A instituigao do padroado real da Igreja do ultramar, exercido pelas Coroas Ibéricas, era revelador da estreita alianca entre o altar ¢ 0 trono, ape- sar das no poucas divergéncias. Segundo C. R. Boxer, o Padroado Real Por- tugués pode ser “vagamente definido como uma combinacio de direitos, privilégios ¢ deveres, concedidos pelo papado & Coroa portuguesa, como patrono das misses catélicas das instituigdes eclesidsticas na Africa, Asia e Brasil”. Seu campo de ago no ultramar foi, durante muito tempo, apenas li- mitado pelos direitos, privilégios e deveres paralelos, conferidos ao Patronato Real da Coroa de Castela.* Desse modo, a cristandade, aqui, uniria os interesses politicos aos reli- giosos. Nao é de estranhar, portanto, que, como expresso do sistema colo- nial, cenha colaborado em guerras contra os amerindios e na expulsio de fran- ceses ¢ holandeses e, ainda, tenha tolerado a escravidao, construindo-Ihe um discurso legitimador.® Durante mais de cem anos, a colonia portuguesa na América s6 contou com um Gnico bispado, o da Bahia, criado em 1551. Em 1576, foi criada a Prelazia do Rio de Janeiro.’ As Constituigdes Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, foram a tinica legislagao eclesiéstica em todo periodo colo- nial. O Concilio de Trento nao contou com prelado colonial algum para assis- * Charles R. Boxer, A lgrgia ea expansdo ibérica (1410 — 1770), Lisboa, Edighes 70, 1989, p. 99. *C£ Ronaldo Vainfas, Ideologia eescravidto:0s ktrados ea sociedade escravista no Brasil, Pets6polis, Vozes, 1986. © Até 1551, na América portuguesa, a Igreja Catdlica esteve subordinada ao Areebispado de Funchal. O Bispado de Salvador esteve subordinado, desde a sua criagao, a0 Areebispado de Lisboa. A Prelazia do Rio de Janeiro s6 se tornou Bispado apés em anos da sua instalagio. S6 entio, 40 que parece, a estrutura cclesiastica ganhow impulso, adequando-se “A expansto territorial ¢ maior densidade do processo civilizatorio”. Fortunado Almeida, Historia da lereia en Portugal, Porto, Live. Givilizasio Ed., 1968, v: 2, pp. 23, 33-34. 9 Dossié tir as suas sessdes, assim como nao formulou, entre suas resolugées, uma po- litica especifica para o Novo Mundo. Distante de Roma, com uma estrutura eclesidstica fluida, endo nos jesuitas os primeiros organizadores do catoli- cismo na coldnia, nossa religiosidade foi marcada, assim, por seu carter es- pecifico: colonial. “Branca, negra, indigena, refundiu espiritualidades diver- sas num todo absohatamente especifico e simultaneamente multifacetado”.” Foi a partir do final do século XVI que se iniciaram as expedigoes, es- pontaneas ou orientadas pela Coroa, que incursionavam pelo interior, & cata de riguezas: indios para escravizar, metais ¢ pedras preciosas, notadamente 0 ouro. Nao foram poucos os que desejaram driblar a pobreza do planalto vicentino com as riquezas das matas. Guaratingueté foi uma das primeiras vilas estabelecidas, em 1656, com a expansio do povoamento no Vale do Paraiba. Habitagdes de pau-a-pique, erguidas ao redor da capela de Santo AntOnio, no pequeno outeiro a margem direita do Paraiba, deram inicio a vida do povoado: Santo Antonio de Guaratingueté. Passagem comum aos roteiros do caminho da Vila de Sao Paulo ¢ do caminho velho da Cidade do Rio de Janeiro para as Minas Gerais ¢ para o Rio das Velhas," a vila desenvolveu-se, mesmo apés a segunda metade do século XVIII, marcada por uma economia de subsisténcia. A descoberta de minas, em 1693, por Ant6nio de Araao, pro- yocou grandes migrages para as dreas das Minas Gerais, fazendo com que povoados, como o de Guaratingueté, se firmassem como zona de passagem, cujas rogas de mantimentos e feitorias de pesca garantiam a subsisténcia nao 36 de seus moradores, mas também de tropas que por ali passavam. As incur- ses sertanistas trouxeram, para toda a regio vicentina, um maior mimero de negros —escravos — bem como aumento da populacao mameluca. Todos nascidos ¢ criados em extrema pobreza: rudes padrdes de habitagao, alimen- tagiio e vestuario. Em 1709, desmembraram-se da Capitania do Rio de Janeiro as regides de Sao Paulo ¢ das Minas, formando a Capitania de So Paulo ¢ a das Minas do Ouro. A medida significou uma centralizagao do poder, que se expressou na fundagko de vilas, pelo governador Antonio de Albuquerque, com o obje~ tivo de melhor ordenar a populagao. A primeira delas, criada em abril de 1711, foi a Vila do Ribeiro de Nossa Senhora do Carmo — mais tarde, Mariana — trs meses depois, seguiu-se a fundagao da Vila Rica de Albuquerque, logo 7 Laura de Mello ¢ Souza, op. cif, 1989, p. 88. 8 Anconil, Cultura e opuléncia do Brasit, Sto Paulo, Ed. Nacional, 1967, pp. 248-288. 80 Virgem mestiga: devogao a Nossa Senhora na colonizacdo doNovo Mundo rebatizada de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar, ea da Vila Rica de Nossa Senhora da Conceigao do Sabard.’ Vale notar aqui que todas as trés vilas re- ceberam nomes de Nossa Senhora, revelando a forga da devogio mariana na- queles tempos, por aquela regio. Foi, entdo, em uma ambiéncia de miséria ¢ de conflitos, de busca do maravilhoso ¢ do rompimento de fronteiras, de encenagao do poder e da pro- fanagao do sagrado, que d. Pedro de Almeida Portugal atravessou a Capita- nia de So Paulo a das Minas do Ouro, para, de Vila Rica, exercer seu cargo de governador. Bra 1717. D. Pedro de Almeida Portugal foi nomeado em margo de 1717, por d. Joao V, para substituir d. Baltasar da Silveira, Chegou ao Rio de Janeiro em junho, tomando posse, em setembro, em Sao Paulo. A 18 de dezembro do mesmo ano, fez sua entrada solene em Vila Rica. Sé em 1718 foi nomeado conde de Assumar, como acabou sendo mais conhecido e come consta nos documentos que relatam o encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida, O governador passou pela Vila de Guaratingueta, provavelmente en- tre os dias 17 € 30 de outubro, quando, entio, se deve ter dado o milagroso encontro,"” Segundo a tradi¢ao devocional, os pescadores foram convocados pela Camara para que apresentassem todo o peixe que pudessem. Preten- diam preparar um banquete em homenagem a d, Pedro de Almeida Portu- gal. Entre os pescadores, estavam Felipe Pedroso, Joio Alves ¢ Domingos Garcia. Os trés langaram sua redes insistentemente no Rio Paraiba, desde o porto de José Correia Leite até o de Itaguagu, sem obterem resultado. A época nao seria boa para pesca. Jodo Alves, em mais uma tentativa, atirou de novo a rede. Foi, entdo, que, sentindo um peso em sua malha, puxou-a ¢ perce- beu, no seu fundo, um pequeno objeto de cor escura. Os pescadores identi- ficaram-no como sendoa imagem de Nossa Senhora, sem a cabega. Joko Alves atirou de novo a rede, Veio a cabega da imagem. Os trés guardaram-na no barco, voltando-se para a pesca. Dai em diante 0 sucesso da pesca foi tal que 0s pescadores, por medo de naufragarem, retiraram-se, voltando para suas casas, Felipe Pedroso foi quem conservou a imagem em sua casa, tendo uni- doa cabega ao tronco com “cera da terra”, Ap6s a sua morte, seu filo, Atané- * Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro, 3 ed, Rio de Janeiro, Graal, 1990, p. 10h 4 *Dilirio da Jornada que fez o Exm? Sr. Dom Pedro desde © Rio de Janeiro até a cidade de ‘Sto Paulo c desta até Minas, ano 1717”, apud Jodo Cossta Machado, Aparecida na histéria ena Jiteratura, Campinas, sjed., 1975, pp. 156-187. sr Dossié sio Pedroso, construiu um altar ¢ um orat6rio para a imagem, que ganhou manto e coroa artesanais, e a devogao foi crescendo. Jé na segunda metade do século XVIII, capelas € orat6rios dedicados a Nossa Senhora da Concei- (do Aparecida foram construidos em outros lugares, nos quais a fama da Se- nhora foi levada por tropeiros, sertanistas e mineradores, desde Sorocaba até Campos de Curitiba, Laguna e Viamao, na diregao sul; ¢ a Cuiabé ea Goias. Aparecida seguia 0 caminho do ouro. Assim, primeiro, eram as familias que se reuniam todos 0s sébados — dia, ent&o, consagrado ao culto mariano — para, diante da imagem, rezarem 0 tergo e cantarem em seu louvor. Depois, eram os que passavam pelo cami- nho e vinham pedir ou agradecer sua intercessdo. O titulo de “Aparecida” parece ter surgido nesses primeiros tempos devocionais, denotando as cir- cunstancias do encontro dessa imagem de Nossa Senhora da Conceigao: aparecida das aguas." A imagem da Aparecida, feita de terracota, mede cerca de 39 em de altura. Foi esculpida, provavelmente no século XVII, por um ceramista beneditino, discipulo do Frei Agostinho da Piedade, o Frei Agostinho de Jesus, que trabalhou em Sao Paulo por volta de 1680. Originalmente, segun- do pericia feita, ela teria sido policromada sobre o tom claro, cinza ou rosado do barro paulista, depois de cozido, com um manto azul-escuro, forrado de vermelho-granada. Mas o tempo que ficou submersa nas aguas, junto 20 lodo do rio, tornou-a escurecida e sem 0 colorido do manto."? © Dizuum wecho da “Annua da Provincia Brasileira de 1750”: “Chegaram finalmente a Capela da Virgem da Conceigao [...] que 0s moradores chamam ‘Aparecida’ porque, os pescadores tendo langado suas redes no rio, recolheram primeito 0 corpo, depois, em lngar distante, a cabega da imagem.”, Jtilio Brustoloni, Milagres da Senhora Aparecida: histéria popular do San- 1udrio, Aparecida, Ed. Santuério, 1985, p. 31. Vale notar que o titulo Aparecida nao & exclusive dessa imagem. Em 1721, o pescador Domingos André Ribeiro, saindo para pescar, encon- trou, em uma gruta de pedras, por onde entrava 6 mar bravo, um imagem feta de nogucira, com um palmo ¢ trés dedos de comprimento, desbotada nas suas cores, s6 com a coloragio ainda perfeita no rosto © nas mos, mas dando a perceber que se tratava de uma imagem de N. S. da Conecigio, por trazer a lua sob os pés. Os textos mais antigos, encontrados com 0 titulo Aparecida, dizem respeito a essa devoeio do santudrio de Cabo Frio, no Rio de Janeiro: a expressdo Virgem Aparecida, em 1721, Senhora Aparecida, em 1724, , €m 1731, D. Joao V usa, em documento oficial, a denominagao Nossa Senhora da Conceigdo Aparecida.V. Joao Correa Machado, op. cit, 1975, pp. 179-182. Cf, cambém, Alberto Lamego, Verdadeira noticia do apa recimento da milagrasa imagem de Nossa da Gonceigéo que se venera na cidade de Cabo Frio, Patis, Edition d’Art Gaudio, 1919. 8 [lio Brustoloni, A Senhora da Coneeigéo Aparecida: histéria da imagem, da capela, das romari- 4s, 6 ed,, Aparecida, Ed. Santudrio, 1986. pp. 14-17. 62 Virgem mestiga: devogiio & Nossa Senhora na colonizagéo doNowo Mundo Se os limites entre a América portuguesa e a espanhola no foram rigi- dos geograficamente, sendo palco de disputas, no campo das religiosidades oir-e-vir de influéncias também parece estar presente, alids, desde a Penin- sula Ibérica. Luiz Mott procurou resgatar quais elementos e tradig&es da re~ ligiosidade do Brasil tiveram na Espanha sua origem ¢ inspiragao, tendo en- contrado quatro canais, através dos quais se fez mais notavel essa influénci (.-) através de sacerdotes espanhdis que aqui missionaram; pela radigao do cultoa diferentes invocagées de Nossa Senhora, cujas aparigées se deram ori- ginalmente em territorio espanhol; pela devogio a santos ¢ santas hispanicos €, finalmente, através de tratados de teologia e espiritualidade traduzidos do espanhol para a lingua portuguesa.” Entre os santos, um dos exemplos do autor és, Pedro de Alcantara, de Estremadura, que viveu entre 1499 e 1562. Rigoroso reformador da Ordem Franciscana na Espanha e em Portugal e conselheiro de Santa Teresa D’ Avilla e do reid. Jodo IIL, seu culto se propagou no Brasil, especialmente no século XIX, por ser o principal patronimico do nosso segundo Imperador. Mais do que isso, s. Pedro de Alcdntara seria ainda patrono secundério do nosso pais."* A influéncia espanhola, no entanto, pode ter sido ainda maior, se levarmos em conta o que L. Mote diz, citando o padre Machado: Segundo alguns estudiosos de nossa histéria retigiosa, ‘a estétua de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, nao € senao a cépia em barro, do re- trato miraculoso da apari¢Zo de Nossa Senhora de Guadalupe’, uma portento- sa evidéncia de quanto a mariologia hispanica marcou nossa piedade popu- lar Naverdade, as semelhangas, entretanto, ndo parecem passar daquelas relativas a representagio oficial da Imaculada Conceigao, isto é, 0 manto azul ©, aos pés, a meia-lua ¢ 0 anjo. De comum, ainda, entre a Virgem de Guada- Lui Mott, A infludncia da Espanka na formagao religiosa do Brasil, Salvador, Cento Edivorial ¢ Didatico da UFBA, 1993, p. 8. ¥ Segundo José Osear Bcozz0, até a proclamagao de Nossa Senhora Aparccida, 0 padrociro principal era 8. Pedro de Alcintara, “por forga do nome do primeiro e do segundo imperador do Brasil, ambos com o nome de Pedro. Impunha-se 4 nagio 0 santo protetor da casa reinante, de escassa penetracio popular.” Com a proclamagio de 1930, torna-se padrociro secundirio. José Oscar Beozzo, “A Iercja entre a Revolugio de 30, 0 Estado Novo ea redemocratizagao”, Béris Fausto (org.), Histéria geral da civilizagdo brasileira, Sto Paulo, Difel, 1984, Tomo TIT, vol. 4, p. 294. Luiz Mott, of. cit, 1993, p. 18. 3 Dossié lupe cade Aparecida, h4 0 tom escurecido da cor das imagens, relacionado, em Um caso, aos indios, e, no outro, aos negros. Nao ha, porém, o que com- prove ter sido essa caracteristica copiada, ainda que a semelhanga possa ter significado uma vantagem em ambos 0s casos, tornando-se um dos elemen- tos importantes para a sua posterior transformagao em simbolos nacionais.'° Caberia, talvez, perguntar se a devogao a Nossa Senhora de Guadalu- pe foi importada diretamente da Espanha — onde sua aparigao se deu, em finais do século XIIT, para o pastor Gil Cordero, no sitio Villuereas, em Toledo, que recebeu o encargo de fazé-la venerada em todo mundo— ou se chegou através do México, onde a Virgem, em 1531, apareceu, no monte do Tepeyac, ao indio Juan Diego, ¢ lhe pediu que intercedesse junto a Bispo para que este construisse um templo em sua honra, Essa foi a interpretagao de Megale, para quem, (...) de Portugal, para onde foi levada por dois lusitanos que estiveram no ‘México, a devogio de Nossa Senhora de Tepeyac veio para a Terra de Santa Cruz, com os primeiros colonizadores. Os pardos ¢ os mesticos tomaram logo a Virgem Morena por padrocira, erigindo-Ihe templos na Bahia e em Olinda.” Assim, em 1590, um dos fundadores da Capitania de Sergipe, 0 capi- to-de-mar-e-guerra, Pedro Homem da Costa, ld se estabeleceu, colocando sua estiincia sob a protegao da Virgem de Guadalupe. Em 1614, ela teria aju- dado na expulsao dos franceses do Maranhao, ¢ Jerénimo de Albuquerque se teria tornado herdi da expulsio, apés invocar sua protegao."* Mas os des- cendentes de Pedro Homem da Costa vieram para Sao Paulo ¢ formaram uma fazenda perto de Guaratingueté, onde ergueram uma ermida em homena- gem a Guadalupe. Pouco depois, na primeira década do século XVIII, em conflitos com os mamelucos, a capela teria sido arrasada e a imagem, quebra- da em dois pedacos, separada a cabega do corpo. Um escravo, encarregado de fazer desaparecer a imagem, a teria atirado no rio." Esse relato, portanto, explicaria o aparecimento da imagem quebrada nas aguas do Paraiba ea idéia de que a imagem da Virgem de Aparecida é uma representagao da Guadalu- pe. ¥ Nossa Senhora de Guadalupe foi declarada padrocira do México em 1754 das Américas, ‘em 1910; Nossa Senhora Aparecida tornou-se padroeira do Brasil em 1930. ” Nilza Botelho Megale, 107 invocapies da Vingem Maria no Brasil: historia, iconografia, folclore, Petropdlis, Vozes, 1980. * [bid ; of. também Jodo Gorr8a Machado, op. cit, 1975, pp. 98-99. ™ Paulo Seabra, O retrato de Nossa Senhora, Petsépolis, Vozes, 1954. od Virgem mestiga: devogao & Nossa Senhora na colonixagdo doNovo Mundo De qualquer forma, Nossa Senhora de Guadalupe mereceu, na Amé- rica portuguesa, varios altares,” em que foi venerada, e, na América espanhola, a Virgem Morena do Tepeyac, cujo culto se caracterizou sempre por expres- sdes variadas de devogio coletiva, teve reconhecida sua protegao, tanto pe- los indios quanto pelos crio/los ou espanhéis.** A devogio a Virgem de Guadalupe, no México, estava ligada, no seu inicio, & pratica jesuftica de rezar o rosario. Sua primeira igreja, cuja obra se completou em 1622, foi construida com a ajuda dos devotos, notadamente criotlos, demonstrando a forga do culto desde o seu comego. Em 1694, foi inaugurado um novo prédio, edificado no mesmo lugar do anterior, como fazia © antigo costume asteca de sempre construir as suas piramides no local das precedentes. As dimensdes desse novo prédio fizeram dele um destaque entre 0s templos marianos na América espanhola.”* A basilica da Guadalupe nao foi a primeira construgao religiosa no monte do Tepeyac. Antes dela, o lugar tinha abrigado 0 templo da deusa asteca da fertilidade, Tonantzin, que era associada lua e possuia poder de proteger o seu povo, o que possibilitava a construgio de lagos de similicude com a Gua- dalupe. O poder sagrado da imagem provocou peregrinagdes desde os pri- meiros tempos do culto, assim como expressées variadas de devogao coleti- va. O monte era, ao mesmo tempo, visitado por autoridades mexicanas ¢ pessoas ilustres.? Foi na segunda metade do século XVII que veio o reconhecimento da aparicao, pela Santa Sé. Segundo Lafaye, no entanto, para os doutores da Tgreja sé havia mais uma imagem da Virgem Imaculada; para os espanhéis, era uma c6pia da Guadalupe de Extremadura, mas, aos olhos dos indios, no ‘Tepeyac, s6 estava a deusa-mie dos astecas, Tonantzin,* Com a cor morena, Guadalupe fez dos cria/los, mestigos ¢ indios um s6 povo, unido pela fé, ain- da que nao se tivessem eliminado as diferencas culturais. Para o autor, muito antes de ter consciéncia de estar formando 0 povo mexicano, os mexicanos tiveram consciéncia de serem filhos de Guadalupe. ® CE. Agostinho de Santa Maria, Pr., Saniudrio mariano, «historia das imagens milagrosas de Nossa Senhora... Lisboa, Oficina de Antonio Pedroso Galram, 1722, tomos 9 € 10. 3 Jacques Lafayete, Quetsacéat!y Guadalupe, México, Fondo de Cultura Econémica, 1992, passim. ® Ibid., pp. 384-386. ® Tid. p. 386. * Ibid. p. 388. % Jacques Lafayete, Mesias, crusadas, utopias. El judeo-cristianismo en las sociedades ibévicas, México, Fondo de Cultura Econémica, 1984, p. 135. 8 Dossié Como mde especial, a Virgem de Guadalupe pode dar vida e esperanga aos mexicanos, mas sua importéncia para estes, segundo Wolf, esta também em dar forma as suas maiores aspiragdes politicas e religiosas.* Para os in- dios, Guadalupe representavaa esperanga de salvagao no retorno de Tonantzin ©, mais ainda, um testemunho simbélico de que, como os espanhéis, podiam ser recebidos ¢ salvos pelo cristianismo. A Virgem thes garantia um lugar na ordem e na organizagGo social da Nova Espanha e lhes trazia a promessa de libertagao da opressao colonialista. Para os mestigos, ela também assegurava um lugar na sociedade, fazendo com que se percebessem como mexicanos acreditassem que o México poderia libertar-se do dominio espanhol. Sea primitiva imagem do Tepeyac era uma e6pia da espanhola Virgem de Guadalupe de Villucreas, a intervengao da Guadalupe nas terriveis inun- dagdes no México, em 1629, fez com que se iniciasse seu processo de “mexi- canizagao”.” As diferentes etnias pertencentes a0 México passaram a ter em comum a devogao a Nossa Senhora de Guadalupe, Ao aparecer a um indio, Guadalupe teria elegido um humilde, como aquele que deveria transmitir sua mensagem, que poderia, assim, atingir toda a comunidade, conferindo um cardter popular & sua devocao. Segundo Wolf, 0 simbolo da Guadalupe une, a0 mesmo tempo, as nogGes de familia, politica e religio, fornecendo uma “representagio coletiva” da sociedade mexicana. AVirgem de Guadalupe pode ser um simbolo para uma sociedade que afirmou, assim, sua identidade nacional. Espécie de paradigma da devogio latino-americana a Nossa Senhora, ela se tornou a padroeira principal da América Latina. Em 1963, foi inauguradaa primeira igreja-paroquial dedicada especialmente ao culto de Nossa Senhora Aparecida, fora do territério brasi- leiro: foi no México, pais da Virgem de Guadalupe. (Outra narrativa devocional mariana aponta para possiveis conexdes com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Por volta de 1630, o portugués Antonio Farias Sa, desejando construir uma capela em honra da Virgem Maria, na sua Fazenda Sumampa, em San- tiago del Estero, na Argentina, escreveu para um amigo seu, também portu- gués, morador de Sao Paulo, para que Ihe conseguisse uma imagem da Imaculada Conceigao. Seu amigo, entao, Ihe enviou duas imagens: uma da * Eric Wolf, “The Virgin of Guadalupe: A Mexican Symbol”, A. W. Gessa & E. Z. Voot, Reader in comparative religion, New York, 1965, p. 229. ® Jacques Lafayete, op. cit, 1992, p. 408. * Erie Wolf, op. cif, 1965, p. 230. 86 Virgem mestiga: devogao & Nossa Senhora na colonizagizo doNovo Mundo Imaculada Conceigao ¢ outra da Virgem, com o Menino Jesus nos bragos. Os caixotes com as imagens chegaram ao porto de Buenos Aires ¢ de lé foram mandados por carretas para Sumampa. No caminho, fizeram uma parada para descanso, 4 margem esquerda do Rio Lujén, Ao amanhecer, quando puse- ram 08 Carros para se mover, os bois ndo conseguiram tiré-los do lugar. De- pois de varias tentativas, alguém da comitiva sugeriu que fossem retirados os caixotes. Um por um, foram sendo retirados, para ver se a carreta voltava a andar, mas isso 56 aconteceu quando um certo caixote foi retirado. Ao ser aberto, percebeu-se que era o da imagem da Imaculada Conceigao. A mensagem parecia, entdo, clara: a Virgem nao desejava deixar aque- le local. A imagem foi, entio, levada para uma fazenda préxima, ¢ um escra- vo negro, que acompanhava a viagem, resolveu acompanhé-la, para dedicar- sea Virgem. O lugar ficou conhecido como o da “detengao da carreta” ou 0 do “Milagre de Lujan”, A partir daf, comegaram as peregrinagbes e os milagres. Chamam a atengio as semethangas dessa imagem com a de Nossa Senhora Aparecida, mesmo considerando os signos comuns & Imaculada Conceigao. Imagem pequenina (38 centimetros de altura), de terracota, maos jun- tas ao peito, a lua debaixo dos pés, sobre nuvens, rodeada de anjos. O corpo todo coberto com um manto de cetim azul, bordado de ouro, deixando apa- recer somente o rosto e as maos. Um colar com uma cruz ¢ na cabega uma coroa imperial.” Lida fora de contexto, essa descrigo bem que poderia passar como a da Virgem de Aparecida, salvo por um detalhe ou outro. As semelhangas se tornam ainda mais expressivas e instigantes, ao se considerar que foi um. morador de Sao Paulo a fornecer a imagem ao portugués, na mesma época em que se estima a feitura da imagem de Aparecida. Outras narrativas marianas ressaltam a idéia de uma teimosia da Vir- gem na escolha do lugar em que quer ficar. Esta presente, por exemplo, na historia de Nossa Senhora dos Anjos, da Gosta Rica, e de Nossa Senhora da Paz, de El Salvador. Os relatos sobre a devogdo 4 Nossa Senhora do Coromoto, da Venezuela, também merecem destaque, Segundo Ferreira," em 1652, 0 cacique Coro- moto ¢ sua mulher se dirigiam & lavoura, quando viram uma belissima mu- ® José Lélio Mendes Ferreira, Maria na América, Braganga Paulista, A & B Editora, 1992 “Wid. a Dossié Iher com um menino no colo, andando sobre as dguas do rio. A mulher diti- giu-se ao cacique e, falando em sua lingua, ordenou que fosse aonde mora- vam os brancos se batizasse. Coromoto, convencido, procurou a catequese, mas logo perdeu 0 entusiasmo e abandonou o estudo. A Vitgem, entio, lhe teria aparecido de novo ¢ insistido com ele. Ocacique se revoltou ¢ disse que nao faria 0 que ela pedia, argumentando: “Por ti deixei os meus afazeres & vim passar aqui dificuldades”. Sua mulher tentou acalmé-lo, mas Coromoto, no suportando a presenga da Virgem, que lhe sorria, pegou 0 seu arco € ati- rou-lhe uma flecha, com ponta de pedra, gritando: “S6 te matando me deixa- ras". E a Virgem desapareceu. O cacique ficou imével, com uma das mos fechada, Ao abri-la, nela apareceu uma pequena imagem resplandecente da Virgem. Coromoto levou a imagem para casa que se tornou local de oragdes e romarias. Essa narrativa impressiona pela diferenga da atitude do visionario e dos personagens, em geral, déceis ¢ solicitos. Aqui, trava-se um verdadeiro em- bate ¢ a atitude do indio revela as dificuldades que podiam ser enfrentadas pelo seu povo nos aldeamentos catequéticos. E uma narrativa, ao mesmo tempo, com elementos de violéncia e de rara beleza. Finalmente, é interessante observar um quadro com os paises da hoje América Latina e suas respectivas Virgens padroeiras ou de mais significati- va devogio.** Pais Nossa [Inicio da Milagres Personagens Senhora _|devogao principais [Argentina de Lujin _|Sée. XVII | “Detengio da Garreta” | Fazendeiro portugués| € escravo negro Bolivia | de Copacabana|Séc. XV1_ | A imagem fcita pelo indio| Indio de descendéncia| ‘© auto-restaura, tornando-| inca se bela ¢ accitavel para | devogao. Brasil |Aparecida _|Séc. XVIII|Encontrada nas aguas do | Ifés pescadores rio, com 0 corpo separado | mamelucos da cabeca. | 5 [bid No quadro, usei a expresso devogao importada para falar das devogbes que, introduzidas a partir dos colonizadores, nfo tiveram fato especial algum ocorrido na coldnia que as fizes- sem ganhar um tom novo, local, como a aparigio da Virgem, ou de uma imagem sua, ou a confeceio de uma imagem sua por colonizados. 88 Virgem mestica: devogito & Nossa Senhora na colonizagio doNovo Mundo [Chile |do Garmo | Sée. XVI] Devoeio importada [San Martin, Ss véspe- ras da Independencia Jdo Chile, colocaoexérci- todos Andes soba pro- ego da Virgem do IGarmo. [Golémbial de Ghiquin- | Séc. XVI [A Virgem se desprende da [Uma espanhola, uma quits imagem de um quadro [india e seu filho torna-se resplandecente, | mesti¢o restauando toda a pintura, em estado de detetioracio, [Costa Rica) dos Anjos | Sée. XVII|Encontrada cm um bosque,| Uma jovem negra Ja imagem teima em para la) retomar até que padre focal reconhece o milagre ¢ ali resolve construir um oraté- rio para a imagem. Guba [da Garidade | Séc. XVIT]A imagem foi encontrada, |Dois indios e um | [boiando sobre uma tibua, Jescravo negro ras aguas do mar, depois de jer8s dias de forte temporal, estando suas vestes de pano secas El da Paz ‘Sée. XVIT| Encontrada dentro de uma|Mercadores \Salvador caixa, que estava atirada nas arcias, é levada até as autoridades em um burro, ‘que empaca na praca, diante da Igreja. Equador |de EI Quinche| Séc. XVI [Aparigées aos indiosde [Indios da wibo uma tbo, pedindo um altar artista espanhol, que ‘em troca da protecao contra presenteia a tribe com| tursos, que 08 atacavam. —_ fumaimagem da Virgen jem troca de madeira. (Guatemald do Rosario —__|Devogae importada = [Honduras] de Suyapa | Sée. XVILI[A imagem da Imaculada _|Um jovem lavrador [Conceigio incomodava as Jcostas do lavrador, que [tentava dormir na relva, Jogada ao longe, cla retorna. ‘© rapaz-coloca na mochila o objeto, que s6 vai seco- nhecer na manhi seguinte, Dossié México |de Guadalupe] Séc. XVI | Aparigao, deixando sua | Indio imagem pintada no poncho mexicano. [NicarigualLaPurissimal| — | Devogio fmporrada Mi nos, que introduziram| a devocioa Imaculada| Conecigao. Panama |daAssungao| — | Devogao importada Missionérios francisca-| nos que introduziram| a devogio & Assungao de Maria Paraguai | de Caacupé | Sée. XVII] Encontrada dentro de uma] Dois indios: 0 que mala, por um indio, quandg pescou a imagem € 0 baixavam as dguas do rio, | que,segundoa tradigao, | que inundara aldeias ateriafeito, anosantes, indigenas como pagamento de uuma promessa que fez) 8 Virgem, quando es- tava sendo perseguido| por indios de uma tribo| inimiga, ¢ cla osalvou, ndrios franc! Pera [dasMercés | — _| Devopio importada [Mereedarios Rep. de Altagracial = — Um dono de terras procura Colonos Domini- uma imagem de N. S. de cana Altagracia a pedido de sua filha mais nova, sem sucesso, nem 0 Areebispo aconhecia. Um velhinho se apresenta como tendo uma imagem, oferece-a ¢ depois some. [Uruguai | dos’Irinta ¢ | Sée. XVIII] Protecao a Patria, no mo- | Os 33 homens coman- mento da independéncia | dados pelo general A. Lavalleja, que partici- param da independén- cia uruguaia. Venezuela] Coromoto | Séc. XVII] Aparece a indios ethes | Cacique Coromoto pede sua conversio ao cristianismo. © quadro nos revela dados interessantes. O primeiro deles 6 incidén- cia, na América espanhola, de relatos em que indios aparecem como interlo- Virzem mestiga: devogao & Nossa Senhora na colonizagdo doNovo Mundo cutores da Virgem. Os casos se repetem na Bolivia, na Colombia, no Equa- dor, no Paraguai, na Reptiblica Dominicana ¢ na Venezuela, além do ja cita- do caso mexicano. Narrativas, envolvendo personagens negros, encontramos na Argentina e na Costa Rica. E hé 0 caso de Cuba, onde a Virgem teria sido encontrada por um negro € um indio, juntos. Ainda se pode notar a impor- tncia dada aos indios para 0 crescimento das devogées imporradas, como na Guatemala, além do caso da Virgem de Honduras, conhecida como Moreniza. E também interessante marcar que, na América espanhola, o tema in- digena aparece mais forte, possibilitando-nos levantar a hipétese de que Maria, ao falar ora com indios, ora com negros, em uma sociedade colonial com dificuldade para integré-los, abria um canal para a Igreja chegar Aqueles que estavam mais distantes do seu discurso. A Igreja encontrava um meio de transformar 0 colonizado, potencialmente rebelde, em aliado, no fortaleci- mento da sua presenga nas coldnias americanas. Nao seria casual, portanto, tantos episédios de aparigzo a indios, na América espanhola, uma vez que a sua domesticagao, inclusive como mio-de-obra, foi uma preocupagio mais constante do que na América portuguesa. Nesse sentido, pode-se buscar 0 entendimento da atribuigao da cor negra” a Aparecida, processo que percor- reu longo caminho até ser incorporado pelo discurso oficial. Possivelmente, tal percurso se tenha dado com outras Virgens da América espanhola, o que, por si s6, seria assunto de grande interesse. As varias invocagdes e representagdes da imagem de Nossa Senhora demonstram a multiplicidade de realidades que esse simbolo pode incorpo- rar. Talvez seja exatamente af que resida a sua forga: ao ser tinica e a0 poder tomar diferentes representagdes, Maria se consolidou como mediadora do povo cristo junto a Deus. Intercessora especial, tinica a gozar o privilégio da proximidade de Deus ¢ dos homens, se fazia, ao mesmo tempo, elo de liga- do entre 0 Céu ea terra. Mais do que isso: na América, identificando-se com a cor de negros, indios ¢ mestigos, fazia-se mediadora cultural® entre o uni- verso letrado e o mundo a ser conquistado pela fé catélica. Importante notar, enfim, que a imagem de Nossa Senhora da Concei- Ho foi encontrada no Rio Paraiba, numa época e num meio geografico e so- 8 Vale ressaltar que o fendmeno das Virgens negras nao é exclusive da América. Hi 0 easo da Virgem negra Czestochowa, padroeira da Poldnia, ¢ da padrocira da Catalufia, entre outras, seguindo um fenémeno mais antigo da cristandade, ¥ Cf. Michel Vovelle, Idealogias ¢ mentalidades, 24 ed., S40 Paulo, Brasiliense, 1991. 7 Dossié cial em que a devogao mariana tinha espago para se expandire se propagar. A criagao do mito da Senhora Aparecida das aguas nao esti isolado, mas, a0 contrério, pertence a um universo de crengas € priticas religiosas que cabia& Igreja Catdlica normatizar e incorporer. 92

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