Vous êtes sur la page 1sur 24
SEGUNDA PARTE Coral O Homem, a sociedade e a tecnologia Cardcter arquitecténico Todos 0s povos que produziram arquitectura desenvolveram o seu estilo proprio que Ihes ¢ tao especifico como a sua lingua, 0 seu vestuario ou as suas tradicées populares. Até ao colapso das fronteiras culturis, ocorrido no século XIX, havia formas e pormenores arquitecténicos locais por todo o mundo, ¢ _as construgdes de cada regia eram o maravilhoso fruta da feliz alianca entre a imaginacao do povo & af exigéncias do teritério. Nao pretendo alargar-me aqui a respeito das origens da identidade nacional nao é da minha competéncia, Creio apenas que determinadas formas seduziram a imaginacao de um povo e que ele as usou numa enorme variedade de contextos, rejeitando sem duvida as férmulas menos felizes @ desenvolvendo uma linguagem visual prépria, colorida e generosa, perfeitamente de acordo com a sua identidade € com 0 seu pais. Qualquer um sabe distinguir 2 curva de uma ciipula persa da curva de uma copula siria, maura ou egipcia. Qualquer um sabe reconhecer @ mesma curva, a mesma assinatura, numa cipula, numa jarra ov num turbante de uma mesma regiao. E ninguém pode gostar de ver construgdes que foram transplantadas para um ambiente alheio Eno entanto, no Egipto maderno no ha um estilo autéctone. A assinatura esta ausente, tanto as €25a5 dos ricos como as casas dos pobres sao desprovidas de identidade, do cunho egipcio. A tradicao perdeu'se e nds ficémos separadas do nosso passado desde o dia em que Mohamed Ali decapitou 0 Ultimo mameluco. Esta ruptura na continuidade da tradicao egipcia foi sentida por muitos, ¢ vérios foram 0s remédios apresentados. Existia alguma rivalidade entre aqueles que consideravam os Coptas como sendo os verdadeiros descendentes directos dos Antigos Egipcios, e aqueles que consideravam que a nova arquitectura egipcia devia ter como base o estilo érabe, Houve pelo menos uma tentativa, por parte de uma figura do Estado, de conciliar estas duas tendéncias, quando Osman Moharam Pacha, ministro das Obras Piblicas, sugeriu a divisdo do Egipto em dois, tal como Salomao sugeriu que o bebé fosse divido ao ‘meio: propos atribuir 20s Coptas 0 Alto Egipto, onde poderiam desenvolver um estilo faraénico tradicional, enquanto 0 Baixo Egipto teria ido pare os Muculmanos, que al fariam uma arquitectura verdadeiramente arabe! Esta historia mostra duas coisas: primeiro, 0 facto animador de que 0 povo € sensivel a esta contusdo cultural presente na nossa arquitectura e que deseja acabar com ela. Depois, e menos animador, que esta confusio ¢ considerada um problema de estilo, e que o estilo é considerado um pormenor de acabamento que pode ser aplicado a qualquer construcdo e que até se pode tirare substituir se necessario for. 0 arquitecto egipcio cantemporaneo acredita que a arquitectura do Antigo Egipta se resume ao templo, com os seus pilones e as suas cornijas de garganta, e que por sua vez 2 arquitectura drabe se resume a0 conjunto das suas estalactites. No entanto a arquitectura civil do Antigo Egipto era muito diferente da arquitectura dos templos, e 2 arquitectura civil drabe muito diferente da arquitectura das mesquitas. AS construgées profanas do Antigo Egipto, coma as casas de habitacao, eram construcdes simples, ligeiras, de linhas sébrias & semelhanca das melhores produgoes modernas. Mas a histéria da construcao popular nao consta do programa das escolas de arquitectura, Estudam-se as periados arquitecténicas de acordo com os acidentes de estilo e as caracteristicas evidentes, como 0 pilane ¢ a estalactite. De tal forma que um aiquitecto com diploma acredita que isto ¢ tudo aquilo que define o estilo, e julga que um edificio pode ” mudar de estilo como um homem muda de roupa. Foi esta maneira de pensar que levou um arquitecto a estragar a entrada das salas de aulas da escola de Guina, transforrando a abobada original numa imitacao de pértico de templo antiga combinada com uma comija de garganta. Ainda nBo se percebeu que uma arquitectura auténtica s6 pode existir numa tradicdo viva, e que no Egipto a tradigdo arquitectonica esti actualmente préximo de se extinguit Consequéncia desta auséncia de tradicao: as nossas cidades e as nossas aldetas estao a toinar-se cada vex mais feias. Cada nova construcao contribui para aumentar esta fealdade e cada tentative para remediar a situacdo nda faz sendo acentud-la ainda mais ‘A fealdade dos desenhos das casas atinge-nos particularmente na periferia das cidades de provincia onde se erquem as consirucdes mais recentes, e é agravada pela mé construcao destas caixas raquiticas de todos os tamanhos, de estilo copiado aos baitros mais pobres da metrépole, ainda mal terminadas e j4 vetustas, rodeadas por todos os lados de fios eléctricas e de cordas meio ocupadas com roupa 8 secar por cima de galinheiros e assentes num lastimoso emaranhado de estradas por acabat Nesta promiscuidade saida de um pesadelo, uma sede de dar nas vistas e um desejo desentreado de madernismo levam 0 proprietério a esbanjar 0 seu dinheira em decoracdes aparatosas e remodelacdes urbanas, continuando a ser avarento em relacdo as areas e recusando-se a aceitar as vantagens de uma verdadeira competéncia profissional. Esta atitude resulta em casas amontoadas umas sobre as outras € abertas directamente para a rua, de tal forma que a familia se vé obrigada a arejar a sua roupa de cama para a via publica e a expor-se a vizinhanca enquanto apanha ar nas varandas desprotegidas. No entanto, 82 05 proprietérios fassem menos avarentos, poderiam aproveitar o unico tipo de casas que torna a vide suportével em lugares como estes: a casa com patio interior, e ganhar em espaco e em intimidade Infelizmente, esta arquitectura de sudvrbio é vista pelos camponeses como um exemplo de modernism, @ tem vindo a ganhar terreno nas nossas aldeias. Na periferia do Cairo ou de Benha, podemas ler 0 destino que ameaca Gharb Assuao. Para bajular a5 seus clientes e os levar a crer que sao modeinos & compardveis com os habitantes das cidades, 0 pedreiro da aldeia faz experiéncias num estilo que nao conhece senao em segunda ov terceira mao, e constidi com materiais que nao sabe bem como aplicar, Afasta-se das vias segures da tradigo para, sem possuir a ciéncia ou a experiéncia, experimentar fazer «arquitectura de arquitecto». Desta forma, um arquitecto que desenhe, por exemplo, o projecto de um edificio localizado nos bairros pobres do Cairo para um especulador ganancioso, ¢ Ihe introduza varios elementos modeinos capiados de obras europeias em voga, vai fazer com que, em poucos anos, o seu trabalho se infiltre das periferias pobres ate as aldeias, onde iré corromper a verdadeira tradicao. A situacao 6 180 grave que se alguma vez quisermas inverter a corrente da mediocridade, da fealdade, da vulgaridade das construcbes nao funcionais actuais nas nassas aldeias, sera indispensavel a realizacao de um estudo cientilica aprofundado. Cheguei por vezes a desesperar perante a amplitude do problema, estive tentado a renunciay, 3 consideré-lo insolivel, proveniente da acgao perniciosa e irteversivel do destino. RendF-me a um sentimento de impoténcia, de tristeza e de dor perante a destina do meu pavo ¢ do meu pais. Mas quando fiquei encarregue da construcao de Guina recampus-me, e volte! a pensar no problema de maneira mats pragmatica. 0 processo de decisdo A cultura que vem da raiz ‘Mas ume cultura que ver de fora atravessa troncos, rebentos, falhas e flores, despefada sobre os homens, petlica-os; de uma célula para outra como um sangue verde e-4os como bonecos de actcar e alimenta 0 espaco debaixo da chuva que as generasas chuvas da vida deste perfume de jardim regado. transformam numa pasta informe e dens. 32 men peasees one Parecia-tne que ndo seriamos capazes de resolver a crise geral da arquitectura egipcia construindo apenas uma ou dus casas-modelo, nem sequer uma aldeia inteira. Em vez disso deviamos tentar encontrar o problema e compreender as suas causas protundas. 0 declinio cultural comeca quando o individuo se vé confrontado com escalhas que nao estd preparado para fazer, e € neste ponto que temas de intervir. Constuir é uma actividade criativa em que o momento decisivo é o instante da concepsao, 0 instante em que 2 ideia ganha forma e em que tados os aspectos da nova criagao ficam virtualmente estabelecidas. ‘ho passo que as caracteristicas de um ser vivo ficam definitivamente estabelecidasno momento da fecunda¢ao, ‘as caracteristicas de uma construggo séo determinadas por um conjunto de decisdes tomadas por cada um daqueles que t&m uma palavra a dizer ao longo das varias etapas dessa construcdo. Desta forma, no caso da construgao, o instante da concepeo, do qual depencle a totalidacle de um ser vivo, desdobra-se numa infinidade de instantes, em que cada um desempenha um papel primordial para o conjunto do processo da ciiagdo. Se consequitmos identifcar e aprender estes instantes, entao poderernas contiolar o processo da crac. Esta reflexdo permitiu-me compreender a importéncia do processo de deciséo na nossa vida em geral, e na arquitectura e no urbanismo em particular. 0 exercicio deliberado da escolha — tomada de decisoes — & a actividade central da existéncia, Quanto mais um organismo vé multiplicarem-se as ocasibes de exercer uma escolha, mais alto se coloca na hierarquia da vida. Desde 0 organism mals primitivo, como os rotiferos, cuja existéncia € passada a distinguir aquilo que se came daquilo que nao se come, até & criatura mais complexa, © Homem, que tern cada instante da vida preenchido com decisées tomadas ou por tomar, no hé muitos organismos que nao assem todo 0 seu tempo a escolher. Estar vivo é tomar decisbes. As decisbes que o Hornem tem de tomar sa0 bem mais subtis, e pedem uma avaliacéo consciente de muito mais factores do que as decisbes tomadas pelos animais. Para além disto, as decisbes do Hamem sao qualitativamente diferentes das decises dos outros ‘animais, uma vez que com as suas decisdes 0 Homem tem o poder de influenciar o mundo envolvente de lhe mudar radicalmente a aparéncia e a natureza. A responsabilidade do Homem é realmente elevada, as suas decisdes apresentam um grande potencial, quer para o bem quer para o mal. Que as decisbes do Homem mudem 0 mundo, que 0 Homem nao possa fugir tomada de decisdes, que o Homem esteja consciente do bem e da mal que faz, do belo ou do feio que cria tudo isto sao, na verdade, aspectos essenciais da condicao humana. Conta-se que, hd muito tempo, Deus chamou os anjos e ofereceu-Ihes a responsabilidade da decisao. Sabiamente, os anjos recusaram, preferindo continuar em perfeita harmonia com o universo. Deus perguntou ‘entao as montanhas se queriam aceitar esta responsabilidade e elas, por sua vez, recusaram, contentando-se em ficar passivamente submissas as forcas da Natureza. Mas quando Deus ofereceu esta responsabilidade ‘ao Homem, a ignorante criatura aceitou porque nao se tinha dado conta de tudo 0 que esta oferta acartava E agora, quer goste quer nao, 0 Homem cattega 0 peso da responsabilidade que assustou os anjos e as montanhas, € tem a possibilidade de se mostrar maior do que estes. Porém, ndo nos esquecamos de que o Homem aceita o risco da derrota e quando for vencido vai ser considerado coro o animal mais presuncoso e mais miserdvel da criagéo. E ai que reside 0 sentido da responsabilidade, 0 sentido deste factor essencial da vida que € a obrigacao de tomar decisdes, de criar o belo ou 0 feio. O universo é, a cada instante, uma folha em branco a espera do nosso lapis. Um espaco virgem pode receber uma catedral ou um monte de escorias. Perante as mesmas circunstancias, dois homens nao tomam as mesmas decisdes, € dizemos que estes homens tém personalidades diferentes. Tomar decisdes, escolher, sdo palavras diferentes para designar o.acto de se exprimir a si proprio — ou melhor, $80 a condicao prévia necessatia a esta expresso de si Uma decisao consciente pode ser tomada quer recorrendo a tradicao quer através de raciocinios lbgicos e de andlise cientifica. Estes dois processos teriam de conduzir a0 mesmo resultado, pois a tradicéa 60 ponto de chegada da experiéncia pratica de varias geracdes face a um mesmo problema, enquanto a andlise cientitica & apenas a abservacéo sistematica dos aspectos do problema 33 ‘As decisbes mais subtis s40 necessérias quando o Homem faz qualquer coisa, Na vida quotidiana, muitas decisbes aparentemente conscientes s8o, na verdade, 0 resultado de habitos. Quando se fabrica um objecto ha um campo de decisbes mais alargado do que quando se realizam as funcbes acessorias da vida. E sem divida possivel fazer alqumas coisas de acorda com habitos. Serao entao coisas mais belas e vivas pela simples virtude residual das decis6es tornadas no momento em que estes objectos foram feitos pela primeira vez, e também pela virtude das decisoes menores, tomadas quando se realiza os gestos habituais da fabricacdo. No entanto, a melhor maneira de criar 0 belo nao é forcosamente fazendo uma obra estranha e original. Esta afirmacao ¢ verdade até na obra de Deus, que nao precisou de mudar o conceito base para criar no Homem a individualidade, mas que produziv toda uma gama de beleza desde Cledpatra a Caliban alterando, simplesmente, a posicao o tamanho dos elementos da cara E interessante observar que 0 habito pode, na verdade, libertar o Homem da necessidade de tomar decisbes menores, e petmiti-Ihe concentrar-se nas decisdes que sao realmente importantes para a sua actividade. Um cérebro ndo conseque produzir mais do que um determinado numero de decisdes nun dado intervalo de tempo; portanto da jeito poder relegar algumas delas para o incansciente, $0 exemplo, uma tecedeira que aprendeu a trabalhar com as suas maos com tanta precisdo e confianca que ja no pensa em cada gesto individualmente e pode concentrar-se no desenho que nasce sob 0s seus dedes; € também um mtsico que canaliza toda a sua atensgo para a interpretacao e mal acompanha os dedos que produzem as notas. O papel da tradicao Aguila que se chama modemo é talvez 0 que nao saberd permanecer Dante No plano social, a tradic3o € 0 equivalente 20 habito individual, e cumpre 2 mesma fungao no dominio da arte: libertar 0 artista de decisoes menores e acessirias para Ihe permitir concentrar a sua atengao nas decisdes vitais. Depois de se ter tomado uma decisao artistica, pouco importa quando ou por quem, n&0 é proveitoso eliminé-la; mais vale que entre para 0 nosso lote comum de habitos e nao nos incomode mais. A tradic3o nao & necessariamente obsoleta nem ¢ sindnimo de imobilismo. Além disso, néo tem obrigatoriamente de ser antiga, mas pode muito bem ter sido constitulda recentemente. De cada ver que um trabalhador se depara com uma nova dificuldade e encontra forma de a superar, esté a dar o primero asso rumo 8 constituic8o de uma tradigao. Quando outro trabalhador decide adoptar a mesma solusao, 2 tradicao progride. E quando um terceito trabalhador procede do mesmo modo € dé o seu contributo, a tradicdo est praticamente estabelecida. Alguns problemas sao féceis de resolver: um homem poder tomar uma deciséo em poucos minutos. Outros demoram mais tempo, talvez um dia, talvez um ano, talvez uma vida inteira; em qualquer dos casos a decisio poderd ser o feito de um homem sé. Contudo, ¢ possivel que algumas solugées s6 possam ficar perfeitamente afinadas apis varias geragdes, @ € aqui que 3 tradicdo tem de desempenhar um papel criador, pois ¢ apenas com a tradicao, ‘espeitando @ dando continuidade ao trabalho das geragdes precedentes, que a nova geracao podera progredir verdadeiramente e resolver 0 problema. Quando ume tradic8o resolveu um problema € parou de se desenvoiver, podemos dizer que 0 seu ciclo esté concluido. No entanto, na arquitectura, como noutras actividades humanas e em processos naturais, hé ciclos que comecam, ciclos que terminam e outtos que se encontram em todos os estados de desenvolvimento intermédias. E estes ciclos existem simultaneamente na mesma sociedade, Ha também tradigdes provenientes da aurora da humanidade que continuam vivas € que sem divida se perpetuarso tanto tempo quento a propria humanidade: por exemplo, a arte de fazer a0, ou de fazer tijolos 34 Por outro lado, existem tradicdes que, apesar de serem recentes e estarem, lagicamente, no infcio do seu ciclo, sao, na verdade, nadas-mortas. Modemismo no quer necessariamente dizer vida, ¢ 0 ideal nem sempre nasce da mudanca. Por out lado, hésituacGes que exigem inovacéo. Na minha opiniag, a inovacao tem de ser a resposta, profundamente pensada, a uma mudanca de ctcunsténcias, e nao uma coisa Lolerada por si propria. Ninguém exige que a torre de controlo de um aeroporto seja construida segundo uma qualquer técnica dos camponeses, € as estruturas industriais, como ume central nuclear, seréa capazes de impor uma nova tradigdo 8 arquitectura. A parti do momento em que uma determinada tradigao esta estabelecida e adoptada, o dever do altista é de a fazer evoluir. Recomendo 4 sua criatividade e a sua perspicacia, val proporcionar a tradicao 0 impulso que a salvard do imabilismo, até que ela termine 0 ciclo do seu desenvolvimento completo. Com a tradi¢do, 0 attista ficard liberto de muitas decisbes, mas para evitar que ela morra nas suas Maos, 0 artista verse-4 obrigado a fazer outras coisas igualmente importantes. Na verdade, quanto mais desenvolvida estiver uma tradicao, mais esforcos teré o artista de despender para a fazer pragredir. No caso dos camponeses, a tnica salvaguarda da sua cultura € a tradicdo. Nao sabem apreciar esilos que nao Ihes sejam familiares, e se saitern dos caminhos da tradico iro inevitavelmente caminhar pata a tragédia. Numa sociedade essencialmente tradicional, como é a sociedade camponesa, pretender deliberadamente quebrar a tradicéo € um assassinio cultural, € 0 arquitecto tem de respeitar a tradicao em que se esta a intrometer. Aquilo que se faz nas cidades é outro assunto: 0 povo e 0 lugar conseguem detender-se 0 camponés que nao pense que a tradicio ¢ um entrave. Quando a forca plena da imaginagéo humana estiver apoiada no peso de toda uma tradicdo viva, 2 obra de arte que nascerd sera bem maior do que tudo aquilo que o artista poderd alguma ver criar sem o saber de uma tradicao, ou se dela se afastar intencionalmente 0 esforco de um sé homem pode proporcionar um avanco incomensurével, bastarlhe que construa sobre uma tradicgo preestabelecida. € como se acrescentassemos um Unico cristal microscdpico a uma solucio ja sobressaturada e, de repente, 0 conjunto se cristalizasse de forms impressionante. No entanto, a tradiggo difere da reacgao fisica na medida em que esta cristalizac4o nao é um facto estabelecido de uma vez por todas, mas antes uma reaccéo que tem de ser eternamente renovada. Perfeicao, sem estar perfeito, é til, Plenitude, sem ser pleno, é desejével Lao Tsé Este fenomeno verifica-se na arquitectura mais do que em qualquer outra actividade, porque a ~arquitectura é uma das artes mais tradicionais. Uma obra arquitectonica destina-se a ser usada, 2 sua forma 6 determinada pelas obras anteriores e estard no meio da populacdo que vai ser forcada a vé-la tados ‘os dias. 0 arquitecto tem de respeitar o trabalho dos seus antecessores e a sensibilidade do povo, sem que se sirva da sua arquitectura como forma de publicidade pessoal. Nenhum arquitecto consegue deixar de recorrer a0 trabalho dos seus antecessores; qualquer que seja a sua busca pela originalidade, a maior parte da sua obra assemelhar-se-a a uma tradicao, ou a outia. Entdo, por que raz80 haveria o arquitecto de desdenhar a tradicao do seu préprio pals ou da sua regido, introduzir tradicbes estranhas numa desadequada sintese artificial, e faltar a0 respeito dos arquitectos que o precederam, a ponto de deformar as suas idetas? E como quando, depois de uma evolugao, um elemento arquitecténico, que atingiu a perfeicao em termos de forma e de utilizacao, é posto ao contrario ou ampliado, até deixar de ser reconhecivel e de funcionar, apenas para satisfazer o desejo egoista de celebridade do arquitecto. © Homem precisou de muitos anos até compreender quais as proporcdes indicadas para cade janela nas diferentes tradigdes arquitectonicas; se um arquitecto comete o erro grosseira de aumentar uma janela até que fique com o tamanho da parede toda, vai deparar-se, de imediato, com um problema: a sua parede de vidro vai deixar passar dez vezes mais radiagao do que 2 parede com janela normal. 35 Se, para combater o calor, o arquitecto acrescentar 2 sua parede luminosa um brise-soleil, que nao é mais da ue uma versdo ampliada de uma veneziana, 0 compartimento continua a receber mais 300% de radiacao do que se tivesse uma parede com janela normal. Se o arquitecto ainda alargar as laminas da veneziana de 4 para 40 cm, para no estragar as proporcdes da parede de vidro, qual seré o resultado? Em vez de entrar uma luz difusa, como aconteceria com uma persiana ou com uma veneriana, a luz vai encandear toda a gente que estiver dentro do compartimento com o contraste entre umas tiras largas de sombia escura e outras de luz directa Mas isto nao é tudo: 0 campo visual, que era 0 propdsito original desta superticie de vidro, fica completamente estragado com as tiras largas que 0 cortam; o brise-soleif nem sequer tem a vantagem de se abrir como uma persiana au uma veneziana, Mesma num clima temperado, como o de Paris, uma superficie de vidro torna-se numa extravagancia insuportavel: durante 0 calor do Verao de 1959, devido zo «efeito de estufa> das suas superticies envidracadas e apesar de todos os aparelhos de ar condicionado, a temperatura no interior do edificio da UNESCO aumentou de tal modo que muitos funcionarios desmmataram. Creio que € escusada desenvolver mais demoradamente este tema da introdugao de superfcies de vidio @ de brise-soleil em paises tropicals, e no entanto € dif moderna que nao tenha recorrido a estes elementos! il encontrar um exemplo de arquitectura tropical Ao avangar sobriamente na tradigéo da sua cultura, um arquitecto ngo pode pensar que a sua attividade artstica vai ser abatada. Bem pelo contrério, essa actividade poderé exprimir-se a si propria e contribuit, proveltosamente, para a tradicao @ para 0 progresso desta cultura Quando um arquitecto tem a0 seu dispor, para trabalhar, uma tradicao clara € limpa, como uma aldeia construida por camponeses, n3o tem o dlelto de quebrar essa tradic3o com as suas excentricdades pessoais. Aquilo que pode funclonar numa cidade cosmopalite como Paris, Londres au Cairo pode matar uma aldeia, ‘A mente de cada homem € tao complexa que as suas decisdes sdo sempre dnicas, A sua reaccao perante as coisas que o envolver é exclusivamente sua. Se, na sua relacdo com os homens, os considerer como uma massa, se extrait € se explorar as elementos que eles tém em comum, estaré a destruir os elementos singulares de cada homem. 0 jomalista que brinca com a fraqueza humana vulgar, a fabricante que satistaz os desejos trivia, 0 professor que incita a constantes reaccoes automatics, cada um, ‘sua maneira, mata a alma. A verdade é que cada um deles, ao sobrestimar os elementos comuns, esta a eliminar os tracos individuais. 0 individuo tem, em certa medida, de se sactificar pela massa, caso contréria nao € possivel haver sociedade e 0 Homem morreré de solid’o. Mas toda a gente se interroga sobre camo se devem equilibrar os factores comuns € 05 factores individuais ne personalidade humana. Os pattidarios da uniformizacao chegaram, inevitavelmente, mais 8 frente, eliminando, quase sem encontrarem oposi¢ao, a tradicao da individualidade da vida moderna. Comunicacao em série, produgao em série, educagao em série, estas s30 as marcas das nossas sociedades modernas, comunistas ou capitalistas — ambas idénticas sob este ponto de vista Um operatio que controle uma maquina numa fébrica nao pde nade de si préprio no que a maquina produz. Os abjectos feitos @ maquina sao todos iguais, impessoais € no proporcionam ao utilizadar maior satistacao do que aquela que proporcionam ao homem da maquina. 0s abjectos feitos @ mao agradam-nos porque exprimem 0 estado de esphrito do artesto. Cada irregularidade, cada particularidade, cada diferenca € resultado de uma deciséo tomada no momento da producao. A alteracao do padrao, quando 0 artesao se cansa de ser repetitivo; ov a mudanca de cor, quando Ihe falta uma cor ou uma linha, sao testemunhos da interaccao constante entre o Homem e 0s seus materials. A pessoa que utilizar um objecto feito & mao vai compreender a personalidade do artista através das suas hesitagdes e das alteragdes do seu estado de espirito, e € por isso que este abjecto vai ter mais valor do que outros. 36 x Salvaguarda da individualidade da aldeia Outrora, quando um homem queria construir uma casa, estava @ aventurar-se numa das mais complexas © mais longas decisbes da sua vida. Desde a primeira discussdo sobre a ideia, em familia, até a0 cia em que o ditimo trabalhador saia da casa, 0 proprietério trabalhava com os construtores — nao forgosamente com as suas mos, mas talver sugerindo, insistindo, recusando — mantendo-se em contacto permanente com eles e assummindo a responsabilidade pela forma detinitiva da casa. E este interesse continua do proprietério em relacdo & sua casa chegava mesmo a prolongar-se indefinidamente porque, segundo uma antiga supersticao, © proprietario morreria quando sua casa estivesse completamente terminada; de maneira que 0 prudente dono continuava a alterar a sua casa, sempre acrescentando qualquer coisa e adiando a colocacao fatal da dltima pedra Todos 05 homens que trabalhavam nesta casa eram artesaos que sabiam 0 que tinham de fazer e que conheciam os seus limites. Eram, provavelmente, da mesma regio que o proprietério e conheciam-no bem, @ este nao tinha dificuldade alguma em explicar 0 que queria; 20 passo que o empreiteiro percebia muito bem quanto & que o proprietério podia pagar e aquilo que poderia ter por essa quantia. A medida que a obra avancava,o proprietério ia escolhendo os vérios acabamentos: discutia diferentes muxarabiés, portas @ aimérios com o marceneiro; se fosse pobre, discutia aparadores e decoracbes dos vaos de portas com 0 canteito; e se fosse rico, discutia mosaicos, fontes, lambris e pavimentos com o marmorista e vitrais para as suas janelas com o vitraleiro, 0 proprietério era um verdadeiro conhecedor destes assuntos: era impossivel engané-lo, sabia 0 que queria € como 0 obter Cada arteso mostrava-Ihe 0 que podia ser feito € 0 proprietirio escolhia entre subtis variantes de modelos tridimensionais que munca se conseguiriam representar num projecto de arquitecture’ Com efeito, o homem ausente desta aventura era 0 arquilecto. O proprietario negociava directamente com 0s homens que faziam 0 trabalho € podia ver como as coisas ticavam. Por seu lado, 05 artesaos eram livres de fazer variagoes a0s seus modelos, dentro dos limites da tradigao e sob reserva do aval do propritéria. Se um arquitecto se tivesse colocedo entre 0 propritério ¢ 0s artesaas, teria fornecido desenhos que nenhum dos outros dois teria conseguido interpretar e, escravo da sua prancheta de desenho, nunca teria sabido que 0 que faz toda a diferenca entre uma casa boa e uma casa mé s80 as possivels variacdes dos pormenores de um modelo. Certo dia, conversava com Mohamed Ismael, um artesao que fazia janelas de vidro colorido embutido noestuque. Esta decoracéo tinha, em tempos, sido vulgar em casas urbanas, mas quando perguntel a Ismael quantos artesaos, 8 parte dele, ainda exerciam 0 ofico, ele s6 se conseguiy lembrer de um moallem, Loutly Perguntei a Ismael se ensinava 0 oficia aos seus filhos. Disse-me. «0 meu filho mais velho € mecanico, € 0 mais novo mandef-o para a escola.» «Entao, depois da sua geracao nao vai existir mais ninguém a transmitir a tradigdo? «0 que quer que eu faca? Sabe que muitas vezes nao tems nada para comer? Nos dias de hoje ringuém se interessa pelo meu trabalho, Na vossa arquitectura moderna nao ha lugar para uma janela de vidro colorido. Pense: outrora até 0 aguadeiro decorava a sua casa e me contratava. Hoje em dia, quantos 20 0s arquitectos que nem sequer sabem que nés existimos, a minha arte e eu?» «E se eu Ihe trouxesse dez 5 Muxarabié:janela de sacada de madeira abalhada, totalmente fechada, que deixa passar a lz filtrada e atrds da qual se pode ver sem se ser visto (nata do autor). 6 Cera ve, o chefe dos arquitects do Ministéno dos Waafs, responssvel pela consiucBo e consewvagao das mesquias,tnha de preparar uns esbocos, incuindo o desenho de um copitel carn estalactites, segunda 0 maxlelo tadcional drabe. 0 alcado do capitel, com os seus complicados pendentes em pedra, era muito dal de desenhar € 0 arquitecto debateu-se com 0 problema Carante varios cas, de mau humor, até que um dos estucadores entou no eset e espreltou para o desenha, Perguntou a0 arqitecto 0 que estavaa fazer, e quando soube 0 que era disse-lhe: «Masso & fi, Faco-he um capitel desses em gesso € trago-0 amenh de manna.» E foi o que fer: um capitel maldado na perleigag, deta forma que o arquitecto steve de fazer 10s desenos de acordo com o modelo e entregé-los com pomp e cicunstanca ao mesmo estucador para que ele fiesse 0 capitel com a ajuda daqueles desentos De facto, muitos elementos de grande belezaarguitecténica no se deixar representar através de uma projeccao geametica planiicada, contece 0 mesmo cam uma escultura (note do auto) | 7 rapazes», perguntei-the, «ensinava-Ihes 0 seu oficio?» Ismael abanou a cabeca. «Eu no aprendi numa escola. Se quiser fazer renascer 0 oficio, muito bem, dé-nos trabalho, e veré aqui néo dez alunos mas 20 aprendizes» (Tive a oportunidade de Ihe fazer uma encomenda € o seu trabalho acabou por chamar @ atengdo de outros arquitectos, de tal forma que o filho mais velho, o mecanico, foi chamado de volta ao ficio e hoje supera 0 seu pai em habilidade.) 0 progresso da tecnologia moderna deu-nos novos materiais e novos métodos de construgéo, mas impOs-nos a presenca de um arquitecto profissional, especialista que aprendeu a ciéncia da utilizacéo destes materiais. Este arquitecto, com a sua competéncia, retirou todo 0 prazer da constiucdo da casa a0 seu proprietario, que se vé ultrapassado pela rapidez do progresso técnica. Agora, ern vez de longas discussbes iticas com os artesdos no decutso da obra, 0 proprietario ja s6 pode exercer o seu direito de escolha no escritério do arquitecto, diante das linhas de um projecto. 0 proprietério néo sabe interpretar nem as linhas do desenho do arquitecto nem a sua gitia, de maneira que 0 arquitecto despreza 0 proprietério, recebe-o de maus modos" @ até o engana e a convence a aceitar aquilo que ele, arguitecto, quer, metendo érvores e Carros falsos no projecto, 0 arquitecto pensa que o seu conhecimento técnico especifico — a sua capacidede de falar em forcas @ momentos de flexao —o coloca num nivel superior, € o cliente, intimidado, aceita a sua propria destituicao. No entanto, nao deixa de ser irénico que sejam muito poucos os arquitectos que sabern manipular as novas formas com arte, e que a simples técnica esteje a substituir a arquitectura, contribuindo para que a cidade e ‘0 campo estejam cada vex mais feios. E assim, um homer rico que possa contratar umn arquitecto vé-se privado do seu antigo poder de decisao. 0 pobre deve ser mais feliz, pensardo voces. Sé-10-4 por vezes, quando esta entregue a si préprio, mas quando 0 Governo decide construit em seu lugar, a situacao consegue ser pior do que quando um rico € maltratado por um arquitecto. Isto porque os arquitectas do servico pAblico, mesmo que nao ponham de parte 0 pobre, considerado demasiado ignorante para que Ihe perguntem @ opiniao, dizem que nao tém tempo para lidar com cada familia separadamente. «Temos um milhao de casas para constrult, temas pouco dinheiro e pouco tempo. Seja realista, por favor. Coma é que pademos mandar arquitectos entrar em discussao com um milhao de familias? £ completamente utopico. A habitagdo é um problema politica... Fizemos as coisas muito bem, classificdmos as nossas familias de acordo com o tamanho, composicao, rendimentos ¢ perspectivas futuras. A analise estatistica revelou-nos que ha cinco tipos de familias e nés desenhdmos a casa ideal para cada tipo. Agora vamos construir 200 mil casas de cada tipo. O que mais podemos fazer?» E assim que os atquitectos do Estado fazer valer os seus argumentos irrefutaveis € constroem o seu milnao de casas iguais. 0 resultado é hediondo e inumano; um milhdo de familias em cubiculos desadequados sem poderem proferir uma palavra a respeito do projecto, e seja qual for a ciéncia utilizada para classiticar as familias e fazer corresponder uma casa a cada uma delas, a maioria esta condenada a ficar insatisfeita ‘Ao aplicar médias estatisticas habitacdo, estes arquitectos esto @ negligenciar uma adverténcia elementar que é transmitida a qualquer estatistico amadar. $20 05 préprios estatisticos que nos explicam que apesar de as caracteristicas do canjunto da populacdo serem estaveis, 0s individuos dessa populacao variam de maneita imprevisivel. Um estudo estatistico pode ser muito dtil a uma companhia de sequros de vida quando se trata de avaliar a esperanca média de vida dos seus clientes, mas a companhia, para nem falar dos estatisticos, nao 7 «Quats séo, por ordem de importanca, a suas preocupacdes quando tem de construir uma habitaca0?» (De Lauwe entrevis: tando Le Corbusier) Resposta:

Vous aimerez peut-être aussi