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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Edson Bueno de Camargo

de
Lembranças

&

Fórmulas
Mágicas
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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Edições Tigre Azul

Prólogo.

Lembro de minha avó paterna cozinhando feijão, em um fogão de lenha, no rés do


chão aos fundos de sua grande casa em Rio Claro, um tanto improvisado, quase uma
trempe. Lembro da fumaça que a envolvia e na minha visão de criança tudo era mágico. Os
seus santos espalhados por toda a casa, seus benzimentos meio que escondidos, seus chás e
mezinhas os quais o mais importante era o famoso chá de ferradura, que envolvia leite,
hortelã e uma ferradura incandescente. Minha avó nos amava ao seu modo silencioso,
nunca lembro de ter me dito uma palavra de carinho, nunca lembro de ter feito uma
repreensão. Em contraposição ao olhar severo de meu avô (que em compensação a tudo de
nós era conivente), seu olhar era terno, triste mas resignado, profundo e misterioso. É triste
lembrar de minha irmã e eu pedindo açúcar cristal para comer como se fosse um doce,
criança da cidade desvendando o mistério do campo. Hoje nem minha avó nem minha irmã
podem testemunhar em meu favor, pertencem a um outro plano, mais simples e mais
completo que o nosso. O mundo das lembranças começa a ficar envolto em névoas, e
começo a lembrar de coisas que não aconteceram, e algumas outras que ainda estão por
acontecer.

Lembro de minha avó materna desde meus primeiros dias, de quando não
deveria me lembrar de nada, foi ela que curou meu umbigo, deu meus primeiros banhos.
Cuidou de mim em minhas primeiras febres, me criou ao seu modo medieval e cristão
enquanto minha mãe dava seu tributo à fábrica. Fui uma criança doente e acredito que por
alguns momentos duvidou que aquele menino bronquitivo e verminoso fosse vingar.
Naqueles dias crianças morriam como moscas, e havia muito mais moscas que crianças.
Quando nos mudamos para nossa própria casa à alguns quarteirões, a visitava praticamente
todos os dias, na certeza de sempre encontrar um doce de abóbora, curau, doce de leite
talhado e umas e outras tantas guloseimas, era faminto por comida e carinho. Minha avó foi
perdendo o olhar para dentro a medida que a loucura lhe tomava a sanidade. Nada perdia,
cada detalhe absorvido e analisado, sabia de tudo, e para tudo tinha uma opinião, mesmo
próximo a morte e com a consciência turvada pela loucura.

Somos o resultado de todos que vieram antes de nós, daí a grande mágica
que é estar vivo, sermos entes animados e respiradores de ar. A vida não tem explicação por
si mesma, explicamos o corpo e o funcionamento quase mecânico de seus órgãos internos,
da concepção, até a hora da morte, mas o grande mistério não é resolvido, porque um
punhado de carbono e água passa a ser animado? Nossa existência no mundo é de tal
precariedade que nos agarramos às lembranças como maneira de nos sentirmos vivos e
pertencentes aos lugares e as coisas. A magia mais fantástica de todas está a nossa volta e
são nossos antecessores que nos dão as pistas para desvendá-la. Carrego em mim os olhares
de minhas avozinhas e na ausência destas é o meu olhar que dará à minha filha e ao meu
neto meu aprendizado impreciso. Hoje sou o ancestral, herdeiro e responsável pelas
ancestralidades que me precederam. Um elo na corrente que foi encadeado no princípio de
tudo e que seguirá até o incerto, o fim de todas as coisas.

Edson Bueno de Camargo


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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Dedico,

a todos que me precederam e aos que estão por vir

ao meu clã e todos que estão sob sua proteção

às minhas avós Maria Julia e Mercedes

aos seus olhares

aos meus avôs José e António que sustentam minhas pernas

aos meus pais Emídio e Eunice, que não entendem bem o que é ter um filho poeta

ao meu neto André e a seus pais Sarah e Marlon

a minha amada companheira Cecília

à todos os membros da Taba de Corumbê em deferência ao poeta Domingos Arnaldo


Bedeschi que em sua ausência nos deixa saudades

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

hoje todos estes estão mortos

Manoel Rodrigues de Carvalho


português de nascimento
teve o filho José Rodrigues de Carvalho
meu tataravô
cujo nome da mãe não me chegou a estes dias

José casou-se
já na Bahia, em Riacho de Santana
com a índia pega a laço
batizada Clementina Maria de Jesus
seu nome primeiro também no vento das eras se perdeu

conquistada a poder de panos e jóias


teve vários filhos
Laudelino, Laura, Isaura, Jovelina, Mercedes, e uma outra menina
cujo nome não nos chegou

Laudelino Rodrigues Carvalho


meu bisavô
rompeu o chão do sertão
e passo por passo
veio parar em São Paulo
aqui trabalhou como um doido
mas pela sua inteligência e perspicácia
estudou e enricou

conheceu Dona Adília


com quem se casou
que lhe deu três filhos

um deles minha avó


Mercedes
que me olhava com olhos profundos
como se visse minha alma
dentro do meu parco corpo

hoje todos estes estão mortos


já se vão dois séculos de história
seis gerações lhe observam
leitor

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Exercício de Memória II.

o que este menino pequeno


faz debaixo da máquina de costura?
(uma Leonam comprada usada)
em seu mundo particular
com seus silêncios e pequenos objetos
palitos de fósforo queimados e suas caixas,
caixas e vidros de remédio vazios
catados na casa da avó
o grande quintal de explorações

parece que brinca com o ar


este censo rarefeito de leveza
se abriga da solidão dos dias
e das noites não dormidas
(algo o espreitava do escuro)

uma velha mala carcomida


é sua arca do tesouro
seus pertences
todos sempre bem guardados
como se tivesse sempre
arquitetando uma fuga
como se tivesse que se refugiar
do tempo e do medo

crescer é uma questão de tempo


com corpo em crescimento
as dúvidas assaltando
já não quer mais ir a igreja
já não consegue confiar em Deus
Este já não lhe responde

mas a solidão permanece


um vazio escuro e frio
uma inconseqüência, se jogar para frente
sem planos e projetos

pulou da infância a fábrica


quebrou os objetos e a mágica
abandonou seus poucos brinquedos

o que faz este rapaz


com seus livros debaixo do braço?
suas certeza e bandeiras vermelhas
caminha pelo mundo
com sonhos de “viramundo”

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ama a revolução
encontrou uma solução
para consertar o mundo

guardou em uma pequena caixa


que construiu com cuidado,
mas ficou um tanto quanto torta,
uns dois ou três objetos, talvez mais se bem se lembra
um guizo de cascavel,
tipos de impressão,
uma forquilha de estilingue feita de mamoeiro,
um pequeno caderno de endereços preto
com um poucas anotações
mas nenhum endereço
e outras coisas perdidas na memória e de fato
(um dia entregou a caixa e objetos coletados com o tempo
a única filha, como quem confia uma herança)

a paternidade precoce
um trágico acidente
a responsabilidade de uma casa
sem projetos, sem futuro,
só a certeza do amor verdadeiro

quem é este homem


diante de um espelho?
rugas de expressão, cabelos e barbas brancas,
carrega um velho cansaço,
não se ilude mais com promessas de mudanças rápidas e certeiras,
o mundo ganhou mais complexidade,
nunca acreditou em milagres,
talvez esteja perdendo, sua fé na humanidade,

mas mantém
escondido em algum canto obscuro
meio envergonhado
sem jeito
por ser tão fora de moda

a última esperança
aquela, a que teima em não morrer.

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Corredores.

nos corredores úmidos da fábrica


escuro que as fracas lâmpadas não venciam
a argila batida nas “marombas” e “tamborões”

o cheiro acre nas ventas


o cinza sujo nas roupas
o pó branco e fino, nos cabelos

nas frinchas das velhas vigas, os ratos nos observavam


olhos negros na sombra

passei a esmo, o resto de infância e a adolescência na fábrica


no ruído das correias, o baque seco do pedal do torno
a louça branco tingida de vermelho sangue
o peso das prateleiras e carrinhos

ali sonhei meus primeiros sonhos


e deixei de acreditar um pouquinho a cada dia

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O Apito.

verde,
tudo era invariavelmente
pintado desta cor

portas, portarias,
armários,
maquinários, carrinhos de louça,
caminhões

um verde escuro
sobre as superfícies de ferro e encanamentos

verde claro contrastando com cinza


nas paredes dos prédios e galpões
(algo cheira a nazismo)

paredes envelhecidas
muros altos e aramados
uma densa ramagem
heras e sebes
os recobriam em diversos pontos

ainda ressoa
em meus ouvidos apressados
em sonhos e pesadelos

o apito da fábrica
a se apossar do silêncio
de todas as manhãs

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Gavetas de Guardados.

meninos correndo buliçosos


nas ruas de pedras inocentes
de corte preciso e exato

granitos históricos
caminhos
muito percorridos

dentro da velha casa


paredes brancas e encardidas
o quarto semi escurecido
teias e picomãs

gavetas de guardados
grampos de cabelo enferrujados
projéteis da revolução
bulas de remédio
anotações inconclusas e inúteis

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Vitório Veneto – Casa.

há sempre uma velha casa


em um ou outro poema meu
reconheço um ou outro detalhe
da casa de minha avó
onde quase nasci
e não existe mais

o que faço para me libertar do passado


se a memória me assalta em sonhos
e também nos pesadelos

como demoli-la
tijolos e caliça caindo ao chão
as telhas francesas esverdeadas de musgo
numa nuvem de poeira
trágicas lágrimas e lamentos
(ouço a tosse de minha vó a noite)

o jardim de sempre-vivas
a roseira selvagem e espinhuda

tenho que convencê-la que já morreu


não existe mais
a não ser neste lembrança
que não quer me libertar

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Rua Vitório Veneto –1969.

há uma rua que não me sai da cabeça


aquela em que nasci
Rua Vitório Veneto
Vila Nossa Senhora das Vitórias

não esta que existe agora


via asfaltada, transito
mão de direção
assaltos a mão armada
todos os benefícios da modernidade

a das minhas recordações


era de chão batido
casas velhas rachadas
e reboque caindo

jardins de sempre-vivas, onze-horas,


degraus de cimento vermelho
e portões verdes
(igual o verde da fábrica)

esgotos e águas servidas correndo em valas


galinhas ciscando e cães, soltos

e nós livres como o vento


correndo na poeira
ou chafurdando na lama da chuva

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Rua Vitório Veneto P&B.

por que minhas lembranças


são sempre em preto e branco?
será que algo se perdeu
com a passagem do tempo

tendo a imaginar
um passado sem cores
rostos em sépia e desbotados

avós e avôs poeirentos e amarelecidos


tios e primos que nunca conheci
outros que não tenho mais o nome de memória

o velho caminhão do meu avô


(que na verdade, era só o motorista)
este sim, me lembro bem, era verde
um velho Mercedes Bens alemão
que ele vinha dirigindo da fábrica
estacionando em frente a nossa casa

a rua de terra
as cercas de ripas
o esgoto correndo nas valas
os cães e galinhas soltos nas ruas

a barroca, as bananeiras
o córrego pútrido de esgotos
esconderijos secretos e amoreiras silvestres

e nós de calças curtas


pés descalços
perdidos em nossa inocência

hoje continuo perdido


mas já não tenho mais a inocência

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Cemitério da Vila Vitória.

brincadeiras infantis
o auto falante da igreja
tocava uma canção do Taiguara

aqui o silêncio
entre os mármores e granitos encardidos
cruzes e anjos sem nariz
capim brotado em espigas
gargalhadas e conversas lá fora

o cruzeiro
e velas ardentes
um cheiro indecifrável

aquele verão não volta mais


nem o seguinte

calor do meio do dia insuportável


brincadeiras entre os túmulos
esconde-esconde
com um certo receio
um medo escondido sem revelar
(todos tinham, porém ninguém admitia)

havia a estatua da santa


que meu amigo jurou que se mexeu
acompanhava com o rosto quem a fitasse
até hoje passo ali com arrepios na espinha

o tempo passou
agora só volto ali por obrigação
fujo daquele lugar
tenho medo, agora admito

temo
que eu entre para ficar

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Rememória.

vendedores de biju
matracas a avisar
contava as moedas
parcas e poucas
nem sempre dava

havia o vendedor de alho


com seu pregão cantado
“olha o alho, allheiroooo”
tinha um que tocava uma corneta
mas não me lembro mais o que vendia

havia um sorveteiro
que trocava o produto por garrafas velhas
enquanto empurrava a carrinho
fazia um barulho engraçado

na casa da Rua Riachuelo


quase todos os dias
na esquina com a Alberto Branco
o vendedor de algodão doce
com seu carrinho branco
com uma engenhoca tocada a pedal
aos nove anos de idade estas coisas são fascinantes

minha irmã não podia ver


que se enchia de desejo
às vezes até tinha uns trocados
e lá estávamos nós
com aquelas bolas grandes e brancas de algodão doce
e ainda ganhava-se uma decalcomania com desenhos infantis

minha irmã já não está dentre nós


para confirmar e ajudar a lembrar

do espanhol com sua charretinha


puxada por um pangaré manco e magro
vendia peixes a granel
“olha a sardinha, pintado, cavala, viva, viva!”

onde estarão agora estas pessoas


além de estarem presas a minhas reminiscências

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Genealogia.

meu avô
desembarcou na plataforma
do trem que vinha de São Paulo
com a miséria na bagagem
doença
uns trastes
quase nenhuma roupa
a mulher e uma ninhada de filhos
(entre eles minha mãe com quatro anos de idade)
uma carta de apresentação para uma igreja evangélica
e a fé que tudo iria melhorar

foram muitos anos difíceis


vi um dia distraído
em seus olhos brilhantes
o orgulho da prole de se multiplicara
e em muito progredira
daquele dia em 1944

anos depois, final dos anos 50


na mesma plataforma
desce meu pai
que vinha em busca de trabalho
para morar na casa de meu tio
logo começou a trabalhar

a cidade era fria e úmida


mas, nunca mais olhou para traz
Minas Gerais virou um mundo distante

conheceram-se na fábrica
meu pai e minha mãe
na mesma fábrica em que fui gerado
minha mãe na produção, onde quase nasci
onde trabalhei nas máquinas pintadas de verde
minha irmã também
meu avô e meus tios e seus filhos
meus primeiros amigos e também os inimigos

hoje a fábrica agoniza


trabalhei em outros lugares
passou o tempo, casei, tenho uma filha
professora, nunca pisará no chão de uma fábrica (?)

nunca tive uma fé igual ao meu avô

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

ranger de dentes

ouço um bater de objetos


e ranger de dentes
atrás da porta alguma coisa
a bulir no sótão
tentando sair

mas nem olho para aquele lado


sei muito bem o que está lá

são fantasmas do passado


que teimam em se libertar
os tranquei a muito
eles que fiquem no seu devido lugar

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o chá servido

o chá servido as fadas


mais doce e mais suave (de rosas?)
em minúsculas xícaras
espera na clareira
pelo sol iluminada

meninas sorridentes espreitam


a sua alegre armadilha
travessura de fim de tarde

pedra de toque
esquecida no fundo de uma gaveta

promessas de ouro escondida


papéis
velhas escritas indecifráveis
duas moedas de prata do império
uma semente de romã
simpatia a muita olvidada

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efemérides

minha mulher coleciona efemérides


que eu cuidadosamente escondo
à surdina
em um baú trancado a chaves

vez por outra


num descuido
uma escapa

e se planta em seus olhos suaves


como mágoa cristalizada chorar
manchando de pranto o globo ocular

e
cada gota de lágrima
puro soro e sal
é como agulha
no meu coração

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Nova Casa.

enterrarei nas fundações de minha nova casa


todas as pedras miúdas e pequenas conchas
que tem trazido com o tempo de tantos lugares

com isto amarei


esta casa
como te amo
este teto
como um abraço

(Estalagem Mercado do Pouso – Parati-RJ)

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estrito senso

“ o imperador adorava
liquens no jardim
de pedras”

Guilherme Primo Vidotto Jr.

estrito senso

rompida da aurora
meses chuvosos
meias atrás da geladeira
anos passados a vento

nós atados aos galhos


maçãs na memória do tempo
romãs no jardim esquecido

remoinhos de vento
observados
da porta da sala

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ouro outro

ouro outro
tempo
nas vergas de um velho salgueiro
deslocamento do ar

dona “Adília” assunta o céu


- Vai chover minha filha –

a pequenina “Mercedes”
recolhe o quase nada
rotos arremedos de brinquedos
corre para dentro

daquela nova casa de hoje


não entende por que não tem parada em lugar
algum

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Ouvidos de gato.

minha vó
com ouvidos de gato
ouvia toda a casa

rangidos
da memória do sol

eu
observava aranhas
tecendo a morte de pequenos insetos
nos esteios
(a velha casa não tinha forro)

troncos roliços enegrecidos de fumaça


fogão de lenha
fumegando as brasas

as velhas telhas
abrigavam ninhos e nichos
me assombravam criaturas invisíveis

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Um Domingo.

compota de pêssego verde


um travo no gosto
recordação

minha mãe
na cozinha
às voltas com o fogão
o cheiro forte me enjoa

um domingo
perdido no passado

acordei tarde e de ressaca de vinho


um gosto horrível na boca
um promessa que não vou cumprir

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um trem

um trem manobra perto daqui

deitado na cama
sem sono

na sala
poltronas esperam

como mesinha de centro


um baú de ossos
branca calva de caveira

no porão desta casa


um pássaro que não dorme

um universo de rumores
percorre as paredes

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Nova.

corrente subterrânea
subúrbios da memória

rochas de fada
caminho no bosque

códices/ tropeço da língua

teurgos malabaristas
brincam com o tempo e o vento
vértices suspensos

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felizes os poetas que morrem cedo

o homem que vejo no espelho


(não é meu pai
o pai é do Mario Quintana)
metido em um cardigam marrom
me passa a impressão
que o cadáver que foi dono da blusa
era menor

mais magro com certeza


“conheci-o ainda jovem”
já morreu por certo
este outro

pobre sonhador
não encontraria
regaço neste nosso novo mundo

felizes os poetas que morrem cedo


não precisam rever seus próprios conceitos

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planos /asas

minhas fortalezas
na pedra bruta assentadas
por terra ruíram
(muralha de Jericó revisitadas)

afundaram
couraçados enferrujados
barcos de papel na chuva

meus sonhos de menino


desabaram
(depois disso
me esqueci dos mesmos)

até meu inimigo (invisível)


teve pena de mim
e me abandonou

arranquei meus planos /asas


como capim que dobra o vento

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

uma caixa

a maneira de Mario Quintana.

arrumando o velho sótão


achei uma caixa velha /empoeirada
cheira de anacronismos e recortes de jornais

fechei-a num sobressalto


e escondi sob os escombros e traquitanas

achei que fossem aforismos


prestes a me condenar

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tijolos, barro e cal

por que essa casa


que já não existe mais
volta sempre à memória?

habita presente o sonho


(recorrente)
tijolos, barro e cal

a pequena varanda
de cimento vermelho

três degraus para a casa


dois para a rua

a caminho da fábrica
minha mãe se voltou para mim
e sorriu

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Totem de vidro.

passagem de fogo
totem de vidro
água de geodo

sopro do dragão
congelado na pedra
rubi escarnado

encravado no anel
puro cristal transparente
fruto o fogo e do sal

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dordolhos

timbó
curare
é coisa de índio
ou troça de preto (véio)

tumescência
dormência
sonolência /indolência
moléstia de mato

picada de inseto pólvora


micuim
piolho
cobra de vidro
olho de cabra
serpente de guizo
mordida de cascavel

dordolhos
febre terçã
(úmida) (seca)

bacia de sal grosso ao sol


branco de doer os olhos

alho e óleo perfumado


guiné e espada de são jorge
reza de quebrar quebrante

e só

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

cozinhando feijão

nunca viu
sua bisavó
filha

cozinhando feijão
em panela de ferro de três pés
no braseiro que havia
no fundo da casa grande

se sentes hoje
compelida a dotes de bruxa
talvez também deva a ela

em meio a vapores e fumaça da lenha


completando a água
amassando alhos
assuntando o tempo
por entre os galhos das jabuticabeiras
nos benzia o tempo todo
de mal olhado e de banzo de criança

minha vó cosia bordados infinitos


em panos vindos de Santa Catarina
cabelos brancos revoltos
óculos na ponta do nariz

a casa na cidade
nunca foi bem ao seu gosto
foi adaptando os ares de sítio
horta, fogão improvisado no quintal
seus santos em altares espalhados pela casa

se bem que o que não esqueço


era seu olhar de descanso
seu sorriso curto
quase infantil

minha vó
era a madrinha que eu nunca tive

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

lagartos ao sol

uma lagartixa sem cauda


saindo do poço do elevador
indiferente
caminha na minha frente

ao perigo possível (humano)


de minha presença
desdenha

lagartos ao sol
são criatura ignóbeis e bizarras
(ao modo de Manoel de Barros)

lagartixas não se atrevem


senão morrem

teiú atravessou
a estrada
no caminho de José Bonifácio

no veio de minha
lembrança
teiús e lagartixas
se irmanam
(no deboche)

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

nunca vi tal criatura

todas as noites
recebo uma visita
mesmo naquelas de vigília

há um fantasma
que subconsciente
aflora de um inferno ( imaginário? )

nunca vi tal criatura


sei de sua ronda
pelo quarto
em torno de minha cama

de seus passos pesados


a profunda respiração

como uma criança


assustada

cubro a cabeça com lençóis


esperando que dê sua hora

que o galo cantando


lhe mande embora

temo que
se ver meus olhos
deite sobre mim
e devore-os

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

conteúdo verde-azulado

suporte
para chapéus
e guarda-chuvas
ante
portas que dão para o nada

caldeiras fervendo
conteúdo verde-azulado
bruxedos ou sopa primordial
chamas espectrais

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

degraus vermelhos

degraus vermelhos
duro cimento queimado
liso, frio e úmido

a velha casa
não está
só a sombra
de sua aparição

a rua
essa ainda está
mas não a mesma
me parece outra

a casa também talvez esteja


escondida sob a outra
não, não,
foi demolida tendo certeza
varanda e degraus vermelhos

uivo de cão
lembrança primeva
afunda aos primórdios

ainda há meninos
uns poucos e escassos

na dobra do tempo
tudo sempre quer voltar
mas, não

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

todos os dias

mesmo que me acolhe


a febre
o vento
e os corredores

todos os dias
como ritual
se alumbram porões

lâmpadas incandescentes
cercadas por monjas jovens

água de cabaça
senso de direção torcido
para depois
se iluminar mais leve

outro
ainda nesta carreira
encontrei formiga
“andando ao lado da casa”
que poderiam ser cigarras
de tão invisíveis

nestes dias
chove mais devagar
e todos os guarda-chuvas
são azuis
de desbotados

como se o velho preto


não fosse mais cor

doutra feita
minha vó
entregou-me um punhado de cinzas
tirada norma da borralha

tudo
nunca fez o melhor sentido

quando falar sem palavras


era o mais ouvido

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

toda casa

toda casa
tarde
findo dia
amarelece o chão
nas folhas de outono

não parte
o veio bruto
da pedra
montanha
pequeninas para a vista
imagem
cabe dentro dos dedos

o olhar constrói
o que cintila o vermelho
prevendo
que dará a noite
o escuro
e vaga-lumes

não é por desleixo


cavo a lua
mais adiante
entre as copas
onde abrem os seus braços

o último ouro
os galos
limparam do quintal
depois
empoleiraram no telhado do forno
para na manhã acordar outro dia

minha vó
é só lembrança
aos poucos se desvanece
feito foto antiga

o mercúrio
se verte em mancha amarela
(sépia, me disseram um dia)
enquanto grilos e cigarrinhas
roem os bagos do trigo

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

sepulcros
cemitérios
onde se misturam sentimentos
de paz e tristeza

cada túmulo
uma história interrompida
uma outra começada

crisântemos vermelhos
pelo aniversário

alamedas de sibipirunas
fazem do chão
um tapete de cimento e pequenas folhas

aqui tudo revela tranqüilidade


não mais o medo
lá fora
automóveis
e conversas indiscretas

uma criança
se aproxima sorrateira
e depois desaparece

ressurge mais adiante


com uma vassoura na mão
varrem os sepulcros
das flores amarelas,
ganham uns trocados

quando era criança


mal passava em frente
ao cemitério

hoje visito velhos amigos


nem quero me dar conta
que esse será meu endereço

as meninas
sobem sobre tumbas
e riem se divertindo
não tem o menor temor

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

antes se derramasse

antes se derramasse
o leite
nas fervuras
rompesse o fole
num berço em brasas

o que ouço do fogo


não alimenta antes

breves peregrinos
e suas vieiras
não encontrarão abrigo
nesse dia

tocarão rabecas encantadas


e nenhum será suficiente

cantam joões de barro


na tentativa
de encontrar uma fêmea
mas estas
estão indiferentes
neste verão
que se veste
de primavera tardia

não há mais
grossas colunas de fumaça
chaminés
apenas uma única
e derradeira
fábrica fantasma

41
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

braços e pernas

braços e pernas
te comandam

te acomodas
no caminho
que perfazes
não sabes onde vai dar

observas um menino
que traz à mão
algo brinquedo

hora ferido
talvez segredo

o degredo
lhe destes
a outro tempo

hora o lastimastes
doutra o olvidastes
agora te assombra
no teu desejo

e
de todo
acreditas
que tu é ele

(mas não mais serás,


nunca)

42
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

de lembranças e fórmulas mágicas

bicho folha
talo seco de mamão
bicho galho
taturanas
mato seco
quintal

amoreiras
do vermelho ao roxo
se pintam
barroca
bananeiras e esconderijos

pés descalços
cabelos ruivos (que escureceram)

o vento é tão livre


que a vida
nem tem sentido

o galo atento
galinhas e pintainhos
vigiar o portão da horta
permanente vigília

canteiro de almeirão
( que aprendi a comer com meu avô)
couves
salsa e hortelã
mastigar alho em folha
limão cravo com sal

o velho pastor alemão


ressona
com um olho meio aberto

o sol ilumina o quarador


sobre a tela
o macacão da fábrica
(azul com um dia vesti)

as nêsperas maduras
ficam no alto
as maiores também
mas não havia medo
subir
o tronco era desafio diário
43
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

a agonia de tardes de chuva


não sabia
ter que um dia
ir embora
não sabia

o apito longo da fábrica


a agonia das tardes de chuva
o trem do exílio
e voltar sempre

filha
família
soluços
perdas irreparáveis
renunciar a revolução

o conhecimento
sempre cobra
o preço de uma inocência

seria insolência
dizer
que não ganhou nada

estamos plenos
estamos vivos
e cada dia
tem o valor de um dia

44
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

o cajado

o cajado de freixo
nunca chegar a arco
(aflição de Penélope,
que entregará ao amado)

guizos e ossos miúdos


(de pequenos roedores)
um crânio completo de gato
a pele de um porco ao avesso
ainda pingando o sangue

velho avental de lona (verde)


sabão borbulha no tacho
cinza e soda acrescidos
sebo e gordura de ossos

o tempo voa veloz

dedal enterrado num vaso


terra úmida e preta
dentes de cachorro
pele de lagarto

colher de alpaca
ressoa como um sino

neve em tom de dourado

45
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

rentes ao chão

flores brancas diminutas


crescem rentes ao chão
trevos de três folhas
espigas de azedinha

respiro do porão
escuro
grade e treliça de ferro

mais
um verão chuvoso
infância e solidão

não havia ainda


a poesia

no entanto
goiabas verdes
proliferavam os quintais

46
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

velhos frascos

velhos frascos de remédio


ampolas utilizadas
moedas sem valor monetário
arruelas de aço
quinquilharias e talismãs

pedras de turmalina preta


cristais imperfeitos
encontrados pelo chão

relíquias de menino
(embebido até os ossos
de solidão)

numa caixa feito baú de piratas


cuidadosamente guardada
à olhos inconvenientes

vidro enterrado
à maneira
de tesouro

47
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

pequenezas & infortúnios

anda
esta alma
desassossegada

não por estas


pequenezas
que nos afrontam
a vida

infortúnios
que apereiam
feito cães de Beijing
pequenos pequineses
destes que ladram
às portas e portões
miniaturas ridículas
de dragão

as mazelas
são outras
mais fundas
feito traição na quaresma

coisas de não correspondença


e coração ferido

48
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

no primeiro dia

no primeiro dia
as chaminés
pareciam mais altas
(talvez eu tenha encolhido)

era tarde
e o horizonte
tingiu-se de carmim
como violetas
antes de murchas em cinza

quanto as pedras
o matiz mauá do granito
brancas de atavio
se vislumbravam

(como foto desfocada


o velho trem de aço entrava na estação)

não eram portanto o sal


do mar português
em minhas chinelas

o poeta não mais


que outro fantasma
em meu mapa astrológico

nunca guardei rebanhos


nem acreditei
que deus pudesse existir
muito menos que não
(assombrava minha infância)

de resto
fica este travo
de enxofre em minha língua
gosto de noite mal dormida (mais uma)
e pesadelos encavalados (e esquecidos)

49
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

empunhadura

o corpo
empunhadura de adaga
que percorre e fere

risco de luz
relâmpago na íris
azulam planos e
palmas

50
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

aqui no sonho

como se pode
querer tomar à mão
o intangível?

ai dor
que supera o sonho
ou o sonho
nos recupera da dor?

por que tudo isso


me dá uma profunda nostalgia?
como canção do Chico
e cravos guardados na gaveta

como são frágeis


estes no jardim
mas, sua lembrança
superara a dor
do malgrado tempo

e habita
aqui no sonho

51
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

mecanismos de relógio

o velho suíço
tirado da algibeira
e rompido a martelo

saltaram a esmo
rodas dentadas e mola entrelaçados

mecanismos de relógio
quando observados
esparramados sobre uma mesa
não fazem o menor sentido

52
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

derradeiras sementes

quando o Sol se tornar uma gigante vermelha, não haverão mais tardes ensolaradas. Todos os dias,
rotina religiosa, uma pequena dose de aguardente como remédio esperado
um ato de condescendência com o pequeno pecado, distribuía bênçãos pelas ruas e esquinas, mas,
não acreditava em ressurreição

único sacerdote
e dignitário
de uma religião

não existiam neófitos


cortinas de corda
sandálias de pecador

tentou insistente o uso do telefone, até o ultimo crédito do cartão


retirou dos bolsos
as derradeiras sementes de papoula
cuspiu para o céu
em um último ato de apostasia

agora o trigo cresceria


como o ouro da tigela

dois gomos de cominho


uma folha seca de hortelã

sacou uma navalha nova


cabo de madrepérola
aço peruano
forjado em Potosi

o sangue nas narinas


a rajada do vento de maio
eriçou os pelos das costas das mãos

o menino atravessou a rua


entregando um pacote
embrulhado em papel branco

53
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

os pecados

agora
depois de tanto surrealismo
este sentimento anacrônico

deu de me comparecer
um lirismo
imperfeito de fora de hora

como se o relógio do tempo


fosse quebrado
voltando para trás
e continuasse retornando

o que será dos mortos


que partiram para a desvida
com um sorriso nos lábios

quem pagará esta dívida


já coberto o bezerro de sangue

o que cobrará o seu preço


se não ocorrerem os pecados
que nos deram a origem

54
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

sete corvos

um Sol
lento e certo se tingir de carmim
no horizonte agonizando
para a prece do por do sol

neste mesmo dia


aconteceu de minha filha
contar ter visto
sete corvos
empoleirados na cerca
ao lado da velha escola

os arames apodrecidos
paus podres e
quebrados
observam o milharal tombado

recordei de meus dias de espantalho


(colada as costelas como ripas)
que ainda hoje
me sinto paralisado

os corvos farão de ninho os meus ombros


enquanto se fartam de meus olhos

55
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

entre verdes e amarelos

figueiras bravas
e liquens
entre verdes e amarelos
disputam a posse do muro
(um pardal impassível
observa a tudo)

a água já diluiu a alma de cimento


o tempo quebra as últimas resistências

tijolos
que ainda resistem
por portar a marca do fogo
do ferro na argila

vermelhos como os fornos incandescentes


roubados da terra
em sua substância

reside
o fogo da madeira
do corte da mata

que colheu suave


brotos e folhas verdes
as lâminas de luz
e o calor do Sol

56
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

descrever a dor

o quanto de palavras são suficientes


para escrever liberdade
e descrever a dor

quantos ventos enfunaram as velas


arredadas ao Sol
para que se rompessem as ondas do mar
e a linha da maré

há um momento que me desiludi


tão completamente
que viver é carregar um fardo

mas acreditar é possível


desacreditar quase impossível

está fé ainda me mata


a coroa de Cristo em torno do meu coração
aperta quanto menos em chama ele arde

mas
meu olhar nunca deixou de ser triste

só há paz
no azul do mar
e na rebentação das ondas

57
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

na noite imensa da lua

grafado de forma rústica


risco em uma rótula
pela ponta de pedra
em paredes ásperas

depois
a busca do alinhamento
dos cristais específicos
e sua linha de clivagem

nos sulcos obtidos


se aplicará óxido de ferro
ocra dos feitiços
o mênstruo da terra

a isso
se adicionarão
carvão e óleos animais e vegetais

tudo a luz de velas ancestrais


beberagens
e histórias de fogueiras

à sombra do velho carvalho


te esperarei na noite imensa da lua

58
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

cheiros

cravo da Índia
cominho
cheiro
de ervas que queimam

benjoim e canela
na brasa úmida e dolorosa

59
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

minhas camisas velhas

talvez te incomodem
minhas camisas velhas
(essas que uso o tempo todo)
são testemunhas do tempo
como meus sapatos rotos
pisam à eras o mesmo pó
(antigas sandálias)

60
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

totem

totem
construção de símbolo
fibra a fibra
alimenta-se do mênstruo
mulher - terra
que se converte em arte(mis)
árvore de seiva vermelha

61
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

decifrar o conteúdo

1_

se pudesse
decifrar o conteúdo
das gavetas

como cartomante cega


que tateia os sulcos das mãos
lendo o futuro em braile

do fruto selvagem
que se desidrata
(como marcador do tempo)
e denuncia

sementes dispersas
carregadas de presságio
(e possibilidades interrompidas)

2_

acreditar na promessa
que segreda cada lume
que o vento não trouxe

ainda pode cortar


a navalha enferrujada
que caiu no ostracismo e anacronismo

brincos de cigana
(nunca usados)
papeis amarelos
com sua escrita roxa

moedas de rincões desconhecidos


países que não constam mais
em compêndios e mapas

as fronteiras foram (inter)rompidas


pelas esteiras dos tanques
e tiranos perturbadores

(outros pela geopolítica do ódio


e do racismo)

62
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

3_

haverá (sempre)
cartas que
nunca serão lidas

números de tômbola
e naipes que se destacaram dos baralhos

pedras de mica
e turmalinas sem nenhum valor

4_

sempre sinto que é meu


o lugar do enforcado

carrego o ás de espadas
o gládio negro do destino
cravado em pelo

5_

sempre haverá margaridas selvagens


e dentes de leão

63
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

meio aluado

minha avô
sempre dizia à minha mãe

este menino é meio aluado


estranho e taciturno
parece que fala em outra língua
nas suas engrolações

vê coisas em cima do guarda roupa


que só ele percebe e sente
coleciona insetos mortos
e vidros de remédio vazios

o que esperar de meninos estranhos


a não ser que virem poetas

64
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

dor incomoda

guardar
caixas de remédios vazias
drágeas nulas
e anacrônicas
que não curam esta dor incomoda

por que guardamos remédios que não vamos usar mais?


lotamos caixas e prateleiras
como trapos velhos
de bandeiras de combate?

há algo de não sutil em tudo isso


porque isto já foi um dia
e outro novamente

65
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

os olhos de meu avô

quando o tempo viração de vento


de recolher guaxuma para fazer vassouras
de varrer o forno para assar o pão
que minha vó, minha mãe e minhas tias haviam preparado

chegou antes de muitas chuvas


que meus olhos não pediram perdão
as brasas vivas e incandentes
os tijolos vermelhos também embrasados

a massa do pão amalgamava tudo


de lágrimas escondidas a feridas no coração
o tempo corria lento
e os cães mediam o quintal

quando vicejava nas hortas cercadas de paus e ripas


o almeirão colhido na hora
com óleo, vinagre e sal
era comido cerimoniasamente

meu avô tinha olhos tão profundos que me perdia dentro deles
tinha olhar de ver tudo
não perder nenhum detalhe
nós ao redor a ouvir suas histórias

da cozinha os olhos da minha avó


trespassavam
perscrutando nosso pequeno mundo

(antes da loucura
fazia muitos doces e bolos
sempre me guardando um pedaço)

de Domingo não havia o apito da fábrica


as moças e rapazes iam ao cinema

tenho lembranças em preto e branco


mas a cor de meu cachorro era amarela
as paredes de minha escola ainda são cinza e verde
assim como as da fábrica

hoje olho meu neto


com os olhos de meu avô

66
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Sob raiz de angico

placenta
raiz materna
cravada a carvão e sal
na raiz da outra mãe
àquela mais antiga

ao salgueiro
que arca seus membros
um cumprimento sutil

o campo sagrado
assim preparado
se enraízam às novas gerações

67
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

todos los hombres son Angeles

a estrela rompe
a rota
e ilumina distraída
o quintal desta minha casa

entre os corredores
uma luz fantasmagórica
que tem medo de espelhos
e janelas

carece de porta
esse cômodo que contém água
e cerâmica colorida

a velha perra dormita


o sonho de velhas calçadas
caminha sonora e late

a garagem abandonada aos livros


móveis velhos e licores empoeirados

mira madre
todos los hombres
son Angeles
pero sí
sin asas

68
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

nos degraus da concha acústica

I ‘ve got you under my skin.


C. Porter.

onde estão todos as garrafas para leite, o vidro e as chapinhas de alumínio, o pão embrulhado em
papel de seda, cuidadosamente desembrulhado para ser aproveitado?

o sol caustico daquele inverno


teus olhos vermelhos de tanto chorar
seguia uma agulha de bordado sob a pele
tuas veias azuis eram como rios da velha Europa

e meu caderno de capa negra


retalhado de uma escrita hoje indecifrável
calhamaços de papel
guardados em perfeita inutilidade
junto a uma garrafa de leite de vidro
aquelas com chapinha de alumínio
dos quais o velho japonês de bigodes brancos
fazia tisurus prateados
que brilhavam no sol da tarde

teus joelhos grandes e a magreza


as camisas de gola redonda para as meninas
(eu escrevia poemas escondido)

tudo se resumia num selo


conservado em uma caderneta faltando duas páginas
e tardes de domingo inúteis
sentado nos degraus da concha acústica

69
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

um velho amigo

um velho amigo
estes das antigas
me bateu à porta

portava um óculos escuros


cabelos despenteados
e um olhar no vazio

me falou do presidente
e da crise política nos jornais
(qual crise?
algum dia não houve uma crise qualquer
para alguém ganhar algum dinheiro?)

esse nós elegemos


tomamos pauladas da polícia
e o carregamos nas costas na praça

a revolução morreu em nós


estamos um tanto combalidos
ficamos anosos
assim como nossos sonhos da adolescência

velhos amigos são momentos perigosos


o tempo da segadora cada vez mais próximo

e tudo o que quero ver hoje


é poesia
e meu neto em seus cueiros

70
de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

de Lembranças & Fórmulas Mágicas

Edson Bueno de Camargo

Edson Bueno de Camargo nasceu em Santo André - SP,


em 24 de julho de 1962, mora a partir de seu segundo dia de
nascimento em Mauá – SP.
Publicou: ”O Mapa do Abismo e Outros Poemas”
Edições Tigre Azul/ FAC Mauá -2006, “Poemas do Século
Passado-1982-2000” edição de autor - 2002; “Cortinas”, com
poesias suas e de Cecília A. Bedeschi - 1981; participou das
antologias poéticas “As Cidades Cantam o Tamanduateí que Passa”.da Prefeitura do Município
de Mauá e “Poesia Só Poesia” Editora Novas Letras. Junto com os amigos escritores da extinta
Oficina Aberta da Palavra, grupo de Mauá-SP, edita o fanzine aperiódico "Taba de Corumbê".
Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê, do qual por aclamação foi
intitulado Cacique e das aulas da Escola Livre de Literatura de Santo André-SP, como aprendiz
de mundo. Recentemente conquistou o 1º lugar no I Prêmio Off Flip de Literatura 2006 –
Categoria Poesia em Paraty-RJ e Menção Honrosa no 24o Concurso Literário Yoshio Takemoto
- categoria poesia livre - São Paulo – SP.

Edson Bueno de Camargo


Rua José Cezário Mendes, 104 Vila Noêmia – Mauá – SP – Brasil.
CEP – 09370-600
correio eletrônico: camargoeb@ig.com.br

http://www.secrel.com.br/jpoesia/ebcamargo.html
http://umalagartadefogo.blogspot.com/
http://www.eldigoras.com/eom03/indic/buenodecamargoedson.htm
http://www.gargantadaserpente.com/toca/poetas/edson_bc.php
http://pt.wikipedia.org/wiki/Edson_Bueno_de_Camargo
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=5443045

O poema “Nova Casa” foi publicado na agenda Livro da Tribo - 2005-2006 – pág. 95 - Editora
da Tribo - São Paulo-SP;
o poema “rentes ao chão” foi publicado no site PD- Literatura http://www.pd-
literatura.com.br/pd2004/poemas/set.html em setembro de 2004, no site Pliegos de Opinion
http://www.pliegosdeopinion.net/pdo11/11barandal/11poesia/edsonbueno.htm e no site Revista
o Caixote n.º 14 http://www.ocaixote.com.br/caixote14/cx14_poemas_camargo.html ;
o poema “todos los hombres son Angeles” foi publicado no site Varal de Literatura
http://www.varaldaliteratura.ale.nom.br/poemas2.php ;
o poema “de lembranças e fórmulas mágicas” foi publicado no site Pliegos de Opinion
http://www.pliegosdeopinion.net/pdo11/11barandal/11poesia/edsonbueno.htm e na Revista O
Caixote n.º 14 http://www.ocaixote.com.br/caixote14/cx14_poemas_camargo.html

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

Orelhas:

O seu eu-lírico é como um Gregory Sansa metamorfoseado arrastando-se pelas


frestas mais escuras da memória, porém mais do que só memorialismo, sua poesia agora
busca imagens com uma pequena lanterninha, no fundo do subconsciente. E o leitor fica a
lembrar-se de uma infância muito antiga, mais antiga que a lembrança, um tempo em que
as sensações eram tudo.

Mas olha, o teu poema, a tua poética, bebendo em fontes orientais, conseguiu uma
síntese muito original entre esse nosso memorialismo bucólico, mineiro, drummondiano, e
a delicadeza sintética dos raicais, dos ideogramas, dos origamis. Seus poemas são
cerimônia do chá com bolinho de queijo!

Jorge de Barros – poeta, contista e guerreiro da Taba

...como sempre tuas poesias extremamente inteligentes, que deixam transparecer


um mundo mais amplo do que teu escrito registra. Vejo nele fantasmas rondando nossos
pensamentos , mar em fúria incomodados com os abusos da ciência, cabelos revoltos
pela intransigência do vento...

Leonor Domene Pedrão – escritora na aurora da vida e minha tradutora para o espanhol

Acredito piamente na grandiosidade da alma que cada um de nós traz consigo ou


em si. Nós (cada um de nós) deve saber aproveitar a generosidade divina para polir o seu
"eu" e, deste modo, servir o mundo com boas acções. Os escritores tentam fazê-lo por via
da palavra, tal como tu o fazes com a perfeição de um ourives e segurança de um
cirurgião.

Conceição Cristóvão – poeta angolano

fiquei surpreso e feliz com a chegada do seu livro pelo correio - entre tantos outros
mapas, guardo-o junto ao meu tesouro pessoal .agradeço. a poesia é sempre um belo
presente. coloco o poema Varais - e sua beleza imensa - entre os meus poemas
preferidos.

Mario Pirata poeta / brincadeiro

Gosto de ler as suas imagens fortes, e gosto de ver que você continua com toda a
verve.

José Carlos Mendes Brandão – poeta e ensaísta

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de Lembranças & fórmulas Mágicas Edson Bueno de Camargo

...tem um estilo muito bonito, amadurecido, usa vocabulário com dosagens


adequadas, enfim, sua obra é de excelente qualidade, ao contrário do que tanto se vê na
Internet...

Perce Polegatto - escritor e ensaísta

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