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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Profa.Dra. Leila Mezan Algranti | Livros de Devocado, Atos de Censura: Cultura Religiosa na América Portuguesa (1750-1821) Tese de concurso de Livre Docéncia, na area de Historia do Brasil, Diseiplina HH384 — Historia do Brasil 1, junto ao Departamento de Histéria do Instituto de Filosofia e Ciéneias Humanas da Universidade Estadual de Campinas Campinas Setembro de 2001 UNICAMP Biblioteca - IPCH Sumario Introdugao- 1 Primeira Parte: Género e Priticas de Leitura 7 1. Conventos ¢ recolhimentos no Brasil ¢ em Portugal: espagos de leitura 8 ede escrita feminina Reclusito feminina: o principio e a pratica 8 Conventos e recolhimentos na meirépole e na colénia 4 Experiéncias de leitura e de escrita das mulheres reclusas 32 ConsideragGes finais 52 2, Jacinta de Sao José : a biblioteca de uma mistica na América portuguesa 58 A vida de Jacinta 56 A posse de livros 61 Usos dos livros 70 3, A hagiografia ¢ 0 ideal de santidade feminina :o impacto da leitura de vides B de santas nos conventos e recolhimentos (um estudo de caso) Das vidas de santos B Os textos e seu contexto: as biografias de madre Jacinta de Sao Josée 9 seus escritos “autobiogréjficos” Vidas exemplares: Jacinta ¢ 0 ideal de santidade feminina 86 Epilogo 100 Segunda Parte: Censura ¢ Livros Religiosos na Corte do Rio de Janeiro 107 4. A censura no tempo de D. Joao 108 Anecedentes 108 Os procedimentos da censura joaning 12, Censura e comércio de livros 119 Consideragoes finais 130 5, Circulagdio ¢ posse de livros religiosos no Rio de Janeiro (1808-1821) A circulagdo de livros e a histéria da leitura O universo livreiro no Rio de Janeiro as vésperas da chegada da corte Livros religiosos: definigdo e posturas da Coroa portuguesa Livros religiosos e sua importagéo no Rio de Janeiro de D. Joao Consideragoes finais Anexo 6. Leituras ¢ leitores: interpretagoes em torno de um livro de teologia moral Apresentagdo do problema Modos de ler de um livro de moral Alguns significados da leitura de livros religiosos 7. Nos bastidores da censura: os “homens bons” do Paco 0 Pago de D. Joao ‘A Mesa do Desembargo do Paco: censura e censores Disputas por honra e prestigio entre os “homens bons” do Pago Consideragdes finais Reflexes finais Anexo Fontes ¢ Bibliografia 133, 133 138 149 158 173 176 179 179 182 187 194 194 197 204 225 234 Agradecimentos Estes ensaivs, na redagie proviséria, foram diseutidos em semindrios e coiéquios para os quais se destinavam. Agradeso, portanto, a todos aqueles que ouviram as comunicagSes contribuiram com criticas ¢ observagtes. Quero, contudo, agradecer especialmente a um grupo de historiadores que se encontrou pela primeira vez em Lisboa, em 1994, a convite da Professora Maria Beatriz, Nizza da Silva para © Coléquio Intemacional Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Este grupo, nos anos subsegiientes, continuou debatende em outros eventos ¢ ocasides, nos quais a maior parte destes texios foi apresentada, quer em Portugal, no Brasil, no Canadé ou nos Estados Unidos: Maria Beatriz Nizza da Silva, Angela Domingues, Alida Metcalf, David Higgs, Donald Ramos, Eliane Goldschmidt, Guilherme Pereira das Neves, Laura de Mello ¢ Souza, Lticia Maria Bastos. P. das Neves, Mary Karasch, Luiz Carlos Villalta, Muriel Nazzari, John Russel-Wood ¢ Renato Pinto Venancio. ‘Agradego também aos meus colegas da Linha de Pesquisa Historia, Cultura e Genero, Pés Graduagdo em Historia da UNICAMP, pela troca de idgias, indicagdes bibliogrificas e pela solidariedade demonstrada em relagdo ao meu trabalho: professores Célia Azevedo, Eliane Mouraé Silva, Leandro Karnal, Margareth Rago, Paulo Miceli, Pedro Paulo Funari ‘Aos colegas ¢ amigos do IFCH que, ao longo desses anos de convivéncia, contribuiram de iniimeras formas para 0 desenvolvimento deste trabalho, meu agradecimento profundo. Dirijo-me especiaimente & Maria Stella Bresciani, Izabel Marson, ftalo Tronca, Guita Debert, Mariza Corréa, Heloisa Pontes, Maria Filomena Gregori, além de Adriana Piscitelli, Margaret Lopes ¢ Iara Beleli do Nticieo de Estudos de Genero ~ Pagu ¢ lara Lis Carvalho Souza. Com Vavy Pacheco Borges, historiadora e amiga de muitos anos tenho um débito imenso ¢ permanente, mas como ela me ensinou ha muitos anos “que amigo no cobra © nfo faz contabilidade do que da ou recebe”, s6 posso dizer: muitissimo obrigada! Agradeco ainda, aos meus alunos da Unicamp e orientandos de Pés-Graduage, com os guais, ensinando, acabei aprendendo muito mais Sou grata também a Teresa Cecilia Ramos, Maria Marta Ferreira da Rosa, Sénia Costa, Jadison da Silva Freitas ¢ Claudia Mezan Algranti que contribuiram com suas habilidades profissionais para a realizagio desse trabalho. ‘A CAPES, ao CNPq ¢ a0 Fundo de Apoio a Pesquisa da Unicamp (FAEP), agradego pelo apoio recebido na realizagdo das pesquisas. Por fim, meu agradecimento a Fernando Novais, por tudo o que me transmitiu em mais de vinte anos de convivéncia, e ter me possibilitado chegar a esta etapa da minha carreira, No decorer dos capituios outros agradecimentos sero feitos a colegas, amigos, bibliotécdrios ¢ arquivistas, pois tive o privilégio de contar com a colaboracao ¢ o estimulo de inimeras pessoas e de uma familia maravilhosa ACA-RI ACLU-SP ACM-MG ACM-SP ACST-RI AIHGB. ANRJ ANTT BNL BNRJ RIHGB. Abreviaturas Utilizadas Arquivo do Convento da Ajuda (Rio de Janeiro) Arquivo do Convento da Luz (Sto Paulo) Arquivo do Convento das Macaitbas (Minas Gerais) Arquivo da Curia Metropolitana de Sao Paulo Arquivo do Convento de Santa Teresa (Rio de Janeiro) Arquivo do Instituto Histarico ¢ Geografico Brasileiro Arquivo Nacional (Rio de Janeito) Arquivos Nacionais da Torre do Tombo Biblioteca Nacional de Lisboa Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) Revista do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro (Os livros fazem parte de circuitos de comunicagao que funcionam segundo modelos homogéncos, por mais complexos que sejam. Exumando esses cizcuitos, 0s historiadores podem mostrar que 05 livros ndo se limitam a relatar a histéria: eles a fazem. (Robert Darnton, O Beijo de Lamourette, Midia, Cultura # Revolucdo. p. 131) wi Introdugao 7 Bota coletinea compreende ensaios apresentados em coléquios e/ou publicados entre 1995 ¢ 2000, modificados ¢ ampliados para este trabalho. Dois ensaios sto inéditos (o primeiro ¢ 0 quinio). © titulo da tese reflete preocupagGes ¢ interesses que surgiram a partir da conclustio do meu doutorado, em 1992. O que aproxima estes estudos ¢ justifica os oritérios da escolha ¢ a relagao entre leitura ¢ cultura religiosa na América portuguesa entre meados do século XVIII e inicio do XIX/No entanto, a escrita ndo resultou de um projeto linear. Se hoje, 0 que os une me parece evidente, nao foi assim desde o inicio: os ensaios, que se transformaram em capitulos, foram escritos em contextos diferentes e a partir de estimulos distintos. Em 1994 comecei a desenvolver um projeto com apoio do CNP, sobre Zeituras religiosas na América portuguesa, posteriormente desdobrado com o subtitulo Blografias ¢ autobiografias de santas e mulheres exemplares. O ponto de partida foram duas bibliotecas de conventos femininos, parcialmente analisadas na minha tese de doutorado, e algumas leituras sobre a histéria dos livros, que me incentivaram a retomar esses inventrios, O projeto inicial leyou-me a vasculhar 0 Arquivo Nacional em busca de fontes sobre o que se lia no inicio do séeulo XIX. Guiada por colegas historiadores mais experientes nesse campo de investigagao, cheguei a documentagao da Mesa do Desembargo do Pago, que contém as licengas para liberago de livros na alféndega do Rio de Janeiro no periodo joanino, Esta documentagao continha indmeras listas de livros, elaboradas por livreitos e particulares, com indicagdes sobre as obras que desejavam introduzir na Colénia. Lendo os manuscritos do Desembargo do Pago me dei conta de que, para entender o universo dos livros nessa época ¢ chegar ao segmento dos livros religiosos, precisava desvendar o sistema de censura que estava na origem da minha documentagdo. Dela extrai, portanto, os mecanismos eo funcionamento da pritice da censura no tempo de D. Jogo (capitulo 4); fiquei fascinada, porém, pelo que me sugeria sobre as bastidores da censura, as personagens histéricas envolvidas ¢ as priticas de leitura. Surgiu assim uma primeira versio do capitulo 7 ~ Nos Bastidores da Censura — e 0 ensaio intitulado Leituras Leitores: interpretagdes em torno de ume livro de moral (capitulo 6).! capitulo 4, intitulado A Censura no Tempo de D. Jodo, foi escrito para o “Coléquio Minorias Silenciadas”” (Evento Direitos Humanes no Limiar do século XXD, realizado no Centro Maria Anténia, em Séo Paulo, em Ainda em 1994, embora o que me levasse a esse arquivo fossem os documentos da Real Mesa Cens6ria (a fim de ve a oportunidade de pesquisar pela primeira vez na Torre do Tombo e, entender o proceso de censura no periodo anterior Aquele que estava estudando), nio resisti a procurar no catélogo da Inquisigtio de Lisboa minha personagem favorita desde 0 inicio da pesquisa para a tese de doutoramento. Sabia que madte Jacinta de Séo José, iniciadora da ordem carmelita no Brasil, havia sido inquirida por um experiente padre oratoriano. na década de 50 do século XVIII, quando esteve em Lisboa, mas ignorava em que instincia isso ocorrera. Apés algumas buseas, la estava Jacinta no “rosirio” da Inquisigao de Lisboa! Eu supunha existir em algum lugar um proceso com os autos de um interrogatério, mas o que encontrei foi uma denincia de falsa santa. Fui pega totalmente de surpresa! Os dados colhidos na época requereram, tempo para seem analisados, dada a riqueza e a extensio das informagdes, ¢ deram origem a varios ensaios apresentados em coléquios, os quais, ampliados, fundidos ou reorganizados, resultaram nos capitulos 2 e 3 desta coletdnea.” De qualquer forma, eu estava de volta 4 tematica das recolhidas e religiosas da Coldnia, ao seu mundo de clausura. De inicio pareceu-me que estava simplesmente num terreno conhecido, retocando imagens. Mas, na verdade, passei a me defrontar com outras quest6es; os problemas que surgiram eram novos para mim e me levavam a leituras muito diferentes daquelas realizadas para o doutorado.’Diante de todo esse material era impossivel nao refletir sobre a cultura religiosa da primeira metade do século XVIII, de onde @ necessidade de amplier a abordagem sobre as reclusas. inserindo-as no contexto da época moderna e do império portugues, 1997 e publicado posteriormente va Revista Portuguesa de Hisséria. Universidade de Coimbra, tomo XXIII, vol, Ih, 1999, pp. 631-63, com 0 titulo Censura e comércio de livres no periods da permanencia da corte portuguesa no Rio de Janeiro, Uma versio 40 capitulo 7 ~ Nos Bastidores da Censura : confltas entre os yhomens bons” do Paco ~ {1 spresentada no “Seminério Internacional D. Joo VJ Um Rei Aslamado no Brasil”, em 1999, no Museu Histérico Nacional, Rio de Janeiro, ¢ publicada nos Anais do mesmo semindrio pelo Ministério da Cultura institto do Patrim@nio Historico Nacienal, 2000, pp. 82-93. Q capitulo 6 surgiu de fima comumicagio no “Col6quio Intemacional Sexuniidade, Faria © Religido na Colonizag8o do Brasil” que ‘ocorreu em Lisboa, em 1998, na Fundaglo Calouste Gulbenkian. 2 Qeapitulo 2 — “Vacinta de So José; a bibltoreca de wma mista na América Portuguesa” ~ teve wma primeira erst apresentada no 70.0 Congresso de Leitura do Brasil realizado no Instituto de Linguagem, Unicamp, em 1995, c posteriormente publicada na Revina de Ciincias Histéricas, Porto, Universidade Portucalense, vol. XITL1998, pp. 179-194. 0 capitulo 3 ~%4 hagiografia e 0 idea! de santidade feminina: impacto da feteura de vidas de santas nos comventos e recoilimentos (um estudo de caso)” ~ & resiltado de tr8s textos diferentes esctitos para eventos realizades em 2000: International Conference on Colonial Saints in the Americas, University of Toronto; Coldquio Internacional De Cabral a Pedro 1, Lisboa, Fundagiio Calouste Guidenkian; Coléquta tnternacional Meméria e (Res)semimentos ~ indagacdes sobre uma questao sensfvel, UNICAMP, 2000. “Reunindo. portanto, duas questées que me inquietavam hd algum tempo ~ 0 cotidiano nos claustros femininos da Colénia e a leitura dos livros religiosos ~ fui desenvolvendo paralelamente dois projetos de pesquisa, cujos resultados apresento agora em forma de tese de livre-docéncia: 0 projeto do CNPq sobre /eituras religiosas, e outro que elaborei para um convénio intemacional apoiado pela CAPES e a ICCTI (agéncia portuguesa) sobre os Conventos ¢ recofhimentos em Portugal e na América portuguesa. Nesse projeto, 2 dentincia contra Jacinta de Sao José fazia parte do micleo basico de documentos, Dessa pesquisa, levade a cabo em Lisboa em 1998, resuliou um grande conjunto de informagties, mas s6 recentemente pude me dedicar ao material coletado ¢ escrever ensaio que abre este trabalho, © qual serve também de contexto ¢ introdugdo para as questées discutidas na primeira parte,” capitulo sobre a cireulagao dos livros religiosos no Rio de Janeiro, por sua vez, foi o tiitimo a ser redigido, embora o primeiro a ser planejado. Sem os demais e sem os elementos reunidos no percurso dessas duas pesquisas, ndo conseguiria elaboré-io, pois ¢ fruto do ceruzamento de leituras, idéias € teflexao sobre os dados coletados. ‘Assim, esta coletinea de ensaios resume meu percurso e preocupagées na ultima década, ¢ resulta das minhas atividades de pesquisa, docéncia e reflexdo como historiadora da sociedade colonial. Ao proceder & organizagfio do material para a livre-docéncia, contudo, pautel-me sobretudo por deixar cada capitulo coerente e com sua unidade propria. Isso levou incvitavelmente a algumas repetigdes, bem como 4 necessidade de aprofundar ¢ retomar certos aspectos em diversos ensaios. wae Entre os motivos que me levaram a estudar as relagdes existentes entre os colonos © os livros religiosos (mulheres reclusas ¢ leituras, censura, circutagao de livros), encomtrava-se 0 desejo de investigar o impacto desse género literério numa sociedade reconhecidamente pouco letrada e marcada pela influéncia da religido catélica em seu cotidiano. Analisar a socicdade colonial 2 partir de diferentes aspectos tem sido meu objetivo nestes 25 anos de trabalho. Mas 2 capitulo 1 intitula-se: Conventos & Recothimentos no Brasil e em Portugal: espagas de feitura e de escrita Feminina, abordar a sociedade como um todo pareceu-me descabido, pois a maior parte dos estudos sobre priticas de leitura apontavam para opgdes metodologicas nas quais predominam anélises circunscritas a determinados grupos ou individuos, em momentos histéricos bem delimitados. O que eu questionava era © que liam as colonos (se € que liam), como liam, ¢ quais os significados da presenga desses livros emn suas vidas. conjunto de ensaios apresentados na primeira parte deste estudo concentra-se, portanto, ‘em um grupo especifico de leitores(as} (mulheres reclusas) em um espago determinado (as clausuras femininas, na América ow em Portugal). Sao estudos de caso, emblematicos, mas que permitem refletir sobre a cultura religiosa que se desenvolveu nessas instituig6es dos dois lados do Atlantico, levantando o problema da especificidade ou nfo da cultura religiosa na América, ainda que venham & tona ouiras questées no menos significativas, como a relacdo entre memeéria, biogratia historia, Enquanto este niicleo de ensaios se concentra na primeira metade do século XVII, época ainda repleta de elementos proprios da religiosidade barroca, a segunda parte trata de um universo cultural distinto: as primeiras décadas do século XIX, durante a permanéneia da Corte no Rio de Janeiro. E a época em que se monta um aparato censor na Coldnia, ¢ um momento do pés-lluminismo, ou seja, de laicizagao da sociedade, no qual 0s livros refigiosos ainda exam umn segmento importante mas no mais predominante, como nos séeulos XVIL € XVIII. Entre os dois perfodos estudados € possivel notar, portanto, uma mudanga de interesses © de expressao da religiosidade dos colonos, possivelmente fruto, entre outros elementos, da diversidade de leituras. No entanto, a questo da cultura religiosa volta a se apresentar na segunda parte desie trabalho, cnvolvendo agora néo apenas um grupo especifico de leitoras, mas sim leitores em potencial, cujas priticas séo filtradas por uma documentagao de caréter normativo ¢ oficial: os papéis da censura de D. Joao VI. O procedimento adotado, porém, é semelhante ao utilizado nos ensaios contidos na primeira parte (com excegdo do primeiro capitulo, que € também um capitulo introdutério), pois optei por trabalbar numa escala “reduzida, atendo-me novamente a contextos bem definidos: curtos periodos de tempo e estudos de caso. Certamente minhas escolhas nfo esgotaram as possibilidades oferecidas pela documentagdo, ¢ a sensagdo de que me movo em um territério ainda novo — a histéria dos livros da leitura, cuja temética deixou de ser periférica nos estudos historicos, mas que ainda titubeia ‘nos caminhos a seguir — leva-me a avangar com cuidado, atenta ao risco das generalizagdes Mesmo a abordagem comparativa que realizo no primeiro ensaio me leva a pensar se seria possivel abordar a questio da cultura religiosa na Metrpole ¢ na Coldnia a partir das continuidades, € no das rupturas e especificidades. Esse ¢ o cene da questo ¢ o fio condutor do trabalho. Quio distinto, ou semelhante, ¢ 0 universo das leituras ¢ dos livros religiosos dos dois lados do Atlintico, na medida em que a colonizagdo ocorreu sob o impacto € os efeitos longevos da Reforma Catélica, tendo sido realizada por leigos, mas com a presenga marcante de religiosos, ¢ alimentada por novas ondas migratérias, novas ordens religiosas que aqui se estabeleceram? Como o extenso brago da Iereja atingiu os colonos? Qual o papel dos livros religiosos na construgdo dessa cultura? Que peso devemos dar, numa andlise desse tipo, a0 contexto, ou seja, as diferentes realidades historicas? Desde a elaboragdo dos dois projetos de pesquisa ¢ ao longo de seu desenvolvimento, deparei-me com quests complexas e com as contradigées da sociedade colonial. Ajudar a desvendi-las foi o propésito desses ensaios que tratam da cultura religiosa a partir da perspectiva do mundo dos livros ¢ de sua histéria na América portuguesa, no sentido atribuido por Carlo Ginzburg a0 termo como “conjunto de atitudes, crengas, codigos de comportamento de grupos sociais especificos”.* ‘Ao longo dos capitulos, 0 termo cultura foi compreendido, portanto, em sentido amplo: ‘como expresso da civilizagao material (técnicas, instrumentos), das instituigdes (direito, associagbes), ¢ das manifestagdes humanas (religido, arte, cigncia e filosofia). Assim, quando penso em cultura religiosa refiro-me a um fundo difuso de erengas compartilhadas sobre 0 ser humano, sobre o destino, a alma, permeadas pela cosmovisdo religiosa em diversas das suas facetas - moral, costumes, préticas, manciras de pensar — transmitidas por via oral ou por meio de livros, a um piblico constituido de leigos ¢ religiosos (homens ¢ mulheres). Essa cultura religiosa compreende tanto o segmento clerical como o faico, ¢ para ambos a religido € o prisma preponderante por meio do qual véem o mundo. Ela se manifesta também nos padrées de relacionamento interpessoal, nas relagdes de género, nos contatos entre os estados socials, e nas relagSes dos individuos com sodrenatural, 0 qual tem uma presenga “natural” no cotidiano (inilagres, peniténcias, devocdes, festas). Mas, conforme alertou Thompson, “uma cultura € também um conjunto de diferentes recursos, em que ha sempre uma troca entre o escrito ¢ 0 oral, ¢ dominante ¢ 0 subordinado, a + CE Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o catidiano e as idéias de um moteiro perseguido peia Inquisicao, aldeia © a metrépole: é uma arena de elementos conilitives, que somente sob uma pressio imperiosa - por exemplo. 0 nacionalismo, a consciéncia de classe ou a oriodoxia religiosa predominante — assume 2 forma de um sisrema”.® ‘Assim, se ao longo des capitulos me movo no interior de um sistema cultural no qual a religifio catdlica assume uma invocagdo de consenso, nao podemos ignorar que dentro desse conjunto existiam contradigdes, oposigdes e conflitos, ¢ que ele nao estava alheio a influéncias extemas, Optei, contudo, por trabalhar com os iivros religiosos ¢ refletir sobre seus significados enquanto transmissores de normas e priticas impostas pela Igreja Catdlica, ou seja, entendidos como objetos culturais. Para tanto, procedi a dois recortes. Num eixo horizontal, que divide os agrupamentos sociais entre leigos e religiosos, escolhi estudar o impacto da leitura dos livros religiosos entre as mulheres religiosas, selecionando portanto, intemamente, desta vez.a partir da categoria de género. O segundo eixo é vertical e corresponde & cronologia, ou seja, um recorte temporal, a fim de investigar 0 que sucede: com os livros religiosos entre a segunda metade do século XVII co inicio do século XIX, momento em que se dio profundas mudaneas culturais no mundo ocidental, entre as quais ndo podem ser ignoradas a educagdo € a crescente alfabetizagiio da populagao. Os estudos que se seguem procuram, portanto, recuperar a historia desses livros e de sua leitura, especialmente no Rio de Janeiro, por meio das praticas de agentes histéricos diversos, como as mulheres reclusas, censores, leitores leigos ¢ mercadores de livros, os quais partieiparam do movimento de circulago de livros ou estabeleceram outras relagdes com a palavra impressa na Amériea portuguesa, no fim do petiodo coionial. trad,, $40 Paulo, Companhia das Leiras, 1987, p16 5 CLED. Thompson, Costumes em camumestudas sobre a cultura popular tradicional, trad, Sto Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 17. Primeira Parte Género e Praticas de Leitura 1. Conventos e recolhimentos em Portugal e na América Portuguesa: espacos de leitura e de escrita feminina (séculos XVII e XVIII) Reciusdo feminina: o principio e a prética’ Desde o inicio do cristianismo, mulheres devotaram suas vidas exclusivamente ao Cristo consagrando-as 4 oragdo, & humildade e ao servigo a0 proximo, Durante 0 lnpério Romano, tanto no Oriente como no Ocidente, havia um espago para as mulheres que desejassem dedicar-se a uma vida de perfeigao, Eram as virgens consagradas, que viveram isoladas em comunidades ou em suas propries casas, porém em reclusio total.’ Embora nao tenham deixado testemunhos, tomamos conhecimento deles através da literatura religiosa e das historias de seus familiares. Na hagiografia dos séculos II a0 V, por exemplo. encontram-se registros de irmas de ermitéos vivendo como virgens consagradas.? Ao longo do séeulo IV, hi indicios de comunidades femininas no deserto vivendo proximas, mas completamente separadas dos grupos de ascetas masculinos. Por essa época jd se estabelecem diferengas entre as virgens consagradas € as que optavam pela vida comunitéria, Enquanto as ltimas renunciavam ao mundo, & familia, consagrando-se & oragdo ¢ a0 trabalho, as virgens se recolhiam em suas casas sob a protegdo de parentes. Porém, @ virgindade - simbolo da pureza do corpo € por extenso da alma ~ ¢ & distincia em relagtlo aos assuntos mundanos assumiram, desde 0 inicio da vida religiosa feminina. papéis de destaque. A primeiza regra especialmente composta para monjas de que se tem noticia foi a do bispo Cesaize d’Arles (morto em 542), eserita para o convento de sua vila. Até cntio as religiosas valiam-se daquelas existentes para os homens. Em 43 capitulos breves, ele prescreveu normas de vida comunitaria, com énfase na reclusto.* * Este item inttodutrio € uma sintese modificada de uma pequena parte do primsico capitulo do’ meu 1s70 Honradas ¢ devotes: mutheres de Colania ~ condicdo feminina nas conventos e recoihimentos do Sudeste do Brasil 1750-1822, 2 ed, RYBrasilia, José O'ympio/EEdunb, 1999, pp. 36-51 Ver, sobre as virgens corsagredas, Joan MeNara, *Muffled Voices” IN John Nichols ¢ Lilian T. Shank (orgs) Distant Eshoes, Medievel Religious Women, Kalamazoo, Cistercian Publications, 1984, pp. 21-2 ‘Rirma de Santo An6nio, «famosa ermita egipeie, por exemplo, foi a primeira mulher de que se tem noxcia 2 fndar, por valle de 280, ump partenon que reunia um grupo de jovens virgens. Idem, pp. 14 + CF Michele Parise, Les Nanes au Moyen Ave, Christiane Bonnctor (ed.) Pari, Le Puy, 1983. 8 Nos séculos centrais da Idade Média (XI, XIf, XII), a prética claustral encontrava-se plenamente estabelecida, Juntamente com os homens, as mulheres participaram dos movimentos de renovagiio da Tgreja e ajudaram a erguer mosteiros ligados as antigas ¢ novas ordens. Um aspecto entretanto foi constantemente reforgado por aqueles que legisiaram sobre a vida comunitéria das mulheres: a necessidade e importaneia da clausura,” Diferentemente dos homens, a reclusio total foi exigida das mulheres. O primeiro decreto de clausura universal para elas data de 1298 e foi promulgado por Bonifacio VIII ~ a bula Periculloso. Poi precedido, entretanto, por uma longa e significante tradigdo de enclausuramento das religiosas. Considerada parte integrante da vida monstica, cuja experiéncia exigia um espaco “protegido” das distragdes do mundo ¢ uma atmosfera apropriada para oragdes, a clausura consistia fisicamente numa barreira de altas muralhas que dificuitava a entrada de pessoas cstranhas. Psicologicamente, funcionavam como guardias das vidas e da castidade das noivas de Cristo® ‘Como enfatizou Jane Schulenberg, “embora a clausura fosse aplicada a monges e monjas, ‘uma énfase diferente foi colocada na inviolabilidade da ciausura feminina. Assim, as obrigagoes que resultaram das prescrigdes sobre a clausura tém significado sexual especifico”.’ Uma das maiores diferengas reside no fato de que, enquanto em muitas ordens os abades mantinham autoridade para decidir onde e quando sair dos conventos, as prioras estavam sujeitas ao bispo nessa e em outras questdes. Mais do que um elemento importante da vida contemplativa feminina, @ clausura acabou por se tornar umn fator de sujcigéo da mulher a0 homem e de total dependéncia das convunidades a hierarquia eclesiéstica masculina, quer aos bispos, quer diretamente a0 papa, O fato de que a clausura imposta as mulheres estava relacionada bem mais & propria condi¢ao femninina do que simplesmente & devoga0 fica claro quando se constata a presenga de mulheres leigas nos conventos medievais ¢ da Idade Moderna. Solteiras, vitivas ou casadas, criangas, jovens ¢ idosas registraram sua passagem pelos mosteiros. Mesmo apés 0 Concilio de Trento (1543-1563), quando se proibju a entrada para a vida religiosa contra a vontade das candidatas, encontraremos 2 Sobre as primeiras regres para monjas, ver Eleonor Duckett. The Gateway to the Middle Ages Monasticism, ‘Ann Arbor, University Michigan Press, 1961, pp. 122-123. © C£ Jane Tibbetts Schulenberg, “Strict Active Enclosure”, IN John Nichols e Lilian Shank, op. cit. p. $5) Idem, p. 53. nos claustros femininos mulheres em busca de asilo € protegio, pensionistas e educandas. Local de devocto a Deus, mas também de preservacdo da virtude feminina, sao caracteristicas que se encontram indissoluvelmente associadas aos claustros femininos ¢ & condigio de vida das mulheres, quer nos tempos mais remotos, quer nos séculos mais recentes. ‘A idgia de que sem as in‘luéncias nefastas do século ¢ o despojamento material no seria possivel atingir alto nivel de espiritualidade estava, portanto, profundamente enraizada no universo mental catdlico da Europa modema, ¢ Portugal ndo fugia & regra. A reclusdo havia se tomado sem diivida o principio bésico da vida religiosa feminina, Também na América portuguesa a origem das primeiras comunidades religiosas encontra-se sempre nia tecluséo de um pequeno grupo de devotas, cuja fama de piedosas acabava atraindo posteriormente outras mulheres.® Mas tanto em Portugal como no resto da Europa a reclusdo feminina no esteve condicionada apenas a vida religiosa. Na epoca moderna, érffis, mendigas ¢ decaidas eram abrigadas em instituigdes de reclustio criadas com apoio dos monareas, de irmandades !eigas ou dos bispos, inspiradas pela pritica de caridade individual herdada da Idade Média, Com a Reforma, de acordo com Michel Foucault, “a caridade passa de uma experiéncia teligiosa que santifica para uma concepgdo moral que condena”. ° A lereja, por sua vez, também reformula sua. visto de pobreza, abandonando a antiga postura doutrinal que concedia as obras de assisténcia. Trata-se portanto, para os reformadores protestantes, 03 coneiliares de Trento ¢ para o Estado, de assistir aos miserdveis (homens ou mulheres), mas de certa forma puni-los pelo temor que inspiravam as populagdes ¢ pelo perigo que representavam & sociedade."® Vale alertar, porém, como fez Isabel Guedes, “que a politica de reciuso dos pobres néo surgiu tio precocemente em Portugal como em outros paises. Esta tendéncia aparece so em fins do século XVIII, com as jniciativas do intendente da policia — Pina Manique —” com sua ordem de expulsio dos mendigos 5 Gobre as primeiras fundacdes para religiosas no Brasil, ver meu livro Honradas e devotass mulheres da Coldniae - condigdo feminina nes conventos e recothimentos do Sudeste do Brasit 1750-1822, ap. cit pp. 62- 106. ° CE Michel Foucault, Histéria da Toucura, Sto Paulo, Perspectiva,p. $9. © intemamento de pobres foi uma prdtica difundide em toda a Europa no sécule XVII, mas © movimento inieiou-se muito antes; na Inglaterra hi um estatuto de 1530 anterior &s primeiras Poor Laws (1572), coercitivo fmm relagao aos pobres. Na Franca ¢ possivel retroceder @ 1532 em busca de medidas semelhantes, Alérn da Historia da foucura ver, também: Dario Melossi e Massimo Pavarini, Carce!y fabrica: los origines del sistema (penitenciario, Barcelona, Siglo XXI, 1978, p. 32 10 de Lisboa datada de 1780,!' Na verdade. a motivagio religiosa nunea chegou a desaparecer nas atividades de caridade, “mesmo quando as autoridades laicas mantinham dispositivos de controle sobre elas”.!? Como demonstrou Isabel Sd. a assisténcia aos pobres no Antigo Regime “fazia parte de uma relagdo tripartida, que envotvia os doadores, os receptores e Deus”? Mas enquanto ao Estado era possivel encontrar formas aitemativas para se desvencilhar das populagdes masculinas indesejadas (workhouses, degredo, recrutamento) as mulheres restavam poucas oportunidades, a no ser o recothimento forgado.'* No imaginario da época, pobreza e miséria levavam indiscutivelmente donzelas ¢ vitvas 4 dissolugdo dos costumes e, em Ultima instincia, & prostituig80. © que a aurora da Idade Moderna traz de novo, no entanto, nfo ¢ apenas 0 enclausuramento de mulheres pobres ¢ ociosas — como foi amplamente estudado -, mas 0 surgimento de instituigdes leigas de reclusto destinadas as mulheres, fossem pobres ou ricas, visando preservar a honra e controlar a sexualidade feminina. A necessidade de prover as mulheres da elite que ndo dispunham de protegiio masculina (6rfis e vitivas) com um minimo de conforto ¢ seguranga, @ altura de seu status, acaba por levé-las também as institui¢des de reclustio.'* Desde 0 fim da Idade Média, portanto, do sul ao norte da Europa, assiste-se 4 ampliagao dos espagos destinados ao enclausuramento das mutheres. O movimento se dé tanto por meio dos conventos que acolhem cada vez mais mulheres leigas, educandas ¢ irmas conversas, como de instituigdes leigas — 0s recolhimentos - onde se vivia uma vida claustral sem contudo tomarem-se votos solenes. Nestas titimas, a estadia podia ser passagcira ou por toda a vida. O principi 1 CF Ana leabel Marques Guedes, 4 assirténeta e a educacdo des drfados durante o Antigo Regime (0 Colégio Tos Orfos do Porto), Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1993, p. SI 1 Cf Stuart Wolf, preficio a0 livra de [sabel dos Guimarges Si, Quando 0 rico se jaz pobre: misericérdia, ‘caridade e poder no impéria portugués 1500-1800, Lisboa, Comissdo Nacional Para as comemoragies dos Descobrimentos Portugueses, Lisbos, 1997, pL] CE Sgabel dos Guimaraes SA. op. cit, p. 17 Sobre a pratica do degredo para o ultramar portugues ¢ o recrutarmento forgado como forma de pnigdo, ver Timothy Coates, Degredados e dxf: colonizacio dirigida pela Coroa na Império portugués 1550-1793, Lisboa, Comissio Nacional para as comemoraries dos Descobrimentos Portugueses, 1998. 1S para Portugal, ver Sobre 0 assunto Maria Joana de Sousa Anjos Martins, Subsidiae para o estudo da assisténcia social portuguesa — os recolhimentes de Lisboa 1 343-623, Dissertaczo para Licenciatura, Faculdade de Letras dda universidade de Lisboa, 1961: Vitor Ribeiro, A Sansa Casa de Misericérdia de Lisboa, subsfdias para a sua Irstiria, Lisboa, Academia Real de Cincias, 1900, p. 429; sobre insttuigées semelhentes na Itia do uarocento, ver Lucia Fertante “L'Onore ctrovato, dnne nella Casa dei Socorso di Saa Paolo, secolo XVI- XVII", Quacdermi Storici, $3, XVUL, 0° 2.1983, pp. 499-527 u entretanio, ¢ semelhante ao adotado nos mosteiros: trata-se de afastar as mulheres do contato com: co mundo ¢ do espace pablico, a fim de purifica-las, protegé-as ou puni-las, Em Portugal, entre os séculos XVII ¢ XVIII, encontraremos uma grande variedade de estas ultimas instituigdes de reclusdo fetninina fumdadas com objetivos religiosos ou assistenciai: remontam geralmente ao infcio da Idade Modema. A pratica foi estendida 4 colonia americana mas somente no fim do periodo colonial, com o surgimento dos primeiros conventos no final do século XVII, ¢ mesmo assim de forma muito reduzida, uma vez que a Coroa portuguesa, preocupada com o povoamento do novo tertitétio, dificultou sempre que possivel a fundagao de ‘conventos femininos. Ao longo de todo o periodo colonial foram fundados apenas seis conventos: dois no Rio de Janeiro ¢ quatro na Babia, todos eles, com excegao de um, no século XVII." Essa diferenga temporal entre a Metropole e a Colénia causa estranheza, principalmente se levarmos em conta que Portugal era um pafs extremamente catdiieo € com uma vasta experigneia de vida religiosa contemplativa feminina. Mais intrigante se toma o fato ao constatarmos que havia um convento em Goa” desde o inicio do século XVIL, varios nos Agores e dois conventos de clarissas na Ilha da Madeira, '* Por outro lado, para sanar a falta de conventos, os colonos fundaram na América ‘oso, na esperanga de um dia transformé-los em portuguesa recolhimentos de cardter re conventos, pritica que existiu em Portugal, embora nio de forma tao marcante ¢ predominante como no Brasil. Os recolhimentos americanos de cardter assistencial para meninas érfiis, "5 Convento do Desterro da Bahia foi fundado em 1677, depois de vinte anos de espera. Ver, sobre @ fundagto, Susan Sociro, 4 Barrogue Nunnery: the economic and socia! role of a Colonial Convert Santa Clara da Desterro, Salvador (1677-1800), Michigan, University Microfilm, Ann Arbor, 1974, Desde 1742, iniciou-se a onsmugio ce um convento no Rio de Janeiro, mas a concessdo do papa s6 chegou em 1748 2 a provisto regia fem 1749, Em 1750 as clarissas da Bahia iniciaram a implantagio de tegra freneiscana no Convento de Nossa Senhora de Conceigao da Ajuds”, Cf BNR, “Prosisedo da chegada des religiosas fundadoras do Convento da Ajuda, doc, [E-34,15-44 Francisco Bethencourt, "Os conventos femininos no Império portugués ~ 0 caso do convento de Sants Ménica tm Gon”, IN eras do Congresso Internacional O Resto Feminina da Expansdo Portuguesa, Lisboa, Comissio para a Igualdade das Mulheres, va. 1, 199, p. 631-52. 18 Nos Agores as claissas estabeleceramse desde o século XVI, até o séoulo XVII, haviam fundado um total de cinco convenios que abrigavam inclusive mulheres envizdas do Reino. Cf. Maria Margarida de Sa Nogueira Lalanda, 4 admissdo aos mostecras de clarissas na ltha de So Miguel (séeulos XVI e XVI), Tese de Mestrado, Universidade dos Acores, Ponta Delgada, 1987; 0a Madeira havia dois conventes de clarissas: Além ¢ um recolhimento carmelita, um segundo convento foi fundado em 1660. Cf. Eduarda Maria de Sous Gomes, O Convento da Encarnacao do Funchal, Funchal, Centro de Estudos de Historia do Atléntieo, 1995. 12 mulheres desvalidas © vitivas, deixaram poucos vestigios, ao contririo do que sucedeu em Portugal, onde, além de seu grande ntimero, sobreviveram até o século xx.? Assim, se o prinofpio que regia a reclusio feminina parece ter sido semeihante nos dois tados do mundo portugués da época, na prética as instituigdes apresentam certas diferengas sobre as quais vale a pena refletir 2 fim de se compreender tanto o carter desses estabelecimentos sous significados para ambas as sociedades, como o que representaram para as mulheres que neles viveram, jé que parecem evidentes as diferengas na politica de recluséo feminina no império portugués. Procurarei empreender aqui, num primeiro momento, uma analise comparativa entre as instituigBes de reclusto femininas existentes no Reino de Portugal e cm sua colénia americana, nos séculos XVII e XVIII, recuperando os aspectos histérices referentes & fundagdo desses estabelecimentos ¢ 0 modo de vida das mulheres reclusas. Em seguida pretendo refletir sobre a cultura religiosa que essas mulheres constrairam no interior dos estabelecimentos, especialmente a partir dos usos dos livros religiosos e do desenvolvimento da escrita. Para tanto foram selecionadas algumas instituigdes, haja vista a impossibilidade de trabalhar com todos os estabelecimentos de reclusdo feminina, devido ao seu grande nimero, especialmente em Portugal. Primeiramente levou-se em considerago 0 tipo de instituigio ~ convento ou recothimento — ¢ 0 objetivo da fundagéo. Fm seguida foi avaliado o carater das fontes, uma vez que estas sao diferentes ¢ muitas vezes fragmentadas para cada estabelecimento ‘Assim, optamos por trabalhar com um convento do século XVIII ~ Convento da Visitagao de Santa Maria de Lisboa ~ do qual localizamos documentagio semelhante a existente para outros estabelecimentos do Sudeste do Brasil, e um convento do século XVII, momento de apogeu da vida religiosa feminiaa em Portugal. Trata-se do Convento Real de Nossa Senhora da Encarnagao, instituig’o totalmente diferente por destinar-se as mulheres viivas ou Orfts da nobreza, cujos pais e maridos haviam sido membros da Ordem de Aviz. Com relagio avs recolhimentos portugueses, optamos por trabalhar com o maior ntimero possivel de dados disponiveis, por acreditarmos que as maiores diferengas entre as instituigdes dos dois lados do ‘Antico residem nesses estabelecimentos. Para a América portuguesa, privilegiamos as Ao tratar dos recolhimentos de Lisboa, José Pinte Aguiar menciona que em 1945 os recolhimentos da capital foram integrados no Insituto de Assisténcia aos Invalides por deereto-lei, o qual estabelecia que “os recolhimentos dz capital destinevani-se a fornecer habitago gratuita a vitivas ou filhas soiteiras dos offciais do Enercito ¢ da Armada ou ce funciondrins civis que tivessem prestado reievantes servigos 4 Nagao”. Op. cit. pS 1B instituigdes existentes na regido Sudeste (1750-1822). devido a grande quantidade de dados coligidos para um estudo realizado anteriormente.”* Sdo quatro recolhimentos religiosos (Santa Teresa e Luz, em Sao Paulo, Santa Teresa, no Rio de Janeiro, ¢ Macatibas, em Minas Gerais), além do Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro; quanto aos recolhimentos leigos, a énfase recai ‘no Recothimento das Orfas da Misericérdia, do Rio de Janeiro. Porém outras instituigdes serao mencionadas, na medida em que indiquem dados comparativos relevantes, Conventos e recothimentos na metrépole ¢ na colénia De acordo com os dicionatios portugueses do século XVIII e com base na tradigio, embora fundados sob o prineipio da clausura estrita, conventos e recolhimentos eram instituigdes distimas, jA que os conventos abrigavam mulheres que buscavam a vida religiosa ¢ faziam os votes perpétuos da religiio — obediéncia, castidade ¢ pobreza ~, enquanto os recolhimentos eam. instituigdes leigas que acolbiam mulheres enclausuradas por motivos diversos (abrigo, catidade, unico, educagdo), provisoriamente ou nio, nas quais era comum se fazerem votos simpies. Na pritica, porém, tanto em Portugal como na sua colénia americana a relago entre esses dois tipos de estabelecimentos era intensa, pois virios elementos os aproximam, como por exemplo a arquitetura mondstiea de alguns recolhimentos, que inclufa a presenga de clausttos, capelas, coros. confessionatios e até grades nas janelas.” Por outro lado, os estatutos disciplinares que regiam 0 cotidiano das revelhidas, mais do que simplesmente “inspirados” nas regras religiosas, eram muito parecidos com elas, prescrevendo desde certas posturas a serem adotadas pelas 2 Tratase do livre de minha autotia sobre a reclusio feminina no fim do periode colonial, Honradas e devotas, op. cit 2 Segundo D Rafael Blutcau, “ecolhimenco é uma instiuigao onde se zecelnem mulheres de diferentes estados & iver com clausura e observéncia & regente”. Cf. Vocabuddrio Portugués e Latino, Lisboa, Oficina de Pascoat ds Sylva, 1790, p. 157; de acordo com Moras Silva, “recolkimento é uma casa religiosa organizada & manera ‘ie convento, mas sem votes”. O que o autor quer dizer & sem voros solenes, pois as recolhidas podiam fazer ‘otos simples (provisorios), como suoedeu por exemolo no Recolhimento de Santa Teresa no Rio de Janeiro, ou to Reeolhimento da Divina Providéncia em Séo Paulo. Ver Anténia de Morais Silva, Diciondrio da Lingua Portuguesa, 10 e4. Lisboa, 1956, vol. TX, pp, 26546. 2 Refetindo-se ao Recolhimento de Nossa Senhora do Amparo, mais conhecide por Revolhimento do Gril, Joss Pinvo de Aguiar chama a atengao para “sus feigo mondstica, embora tenha sido transferido para este edificio em 1835, © qual data de meados do séeulo XVII (1664-1666)".CE. “Recolhimentos da Capital”. separaca Boletim do Grupo Antigs de Lisboa, ano XX1X, julhovourubro, 1966; também o Recolhimento das Macaibas, constmuido em Minas Getnis no séevlo XVIII com auxilio fitanceiro do contwatador de diamantes Joao Sommandes, que nele internou as nove fas que teve com Chica da Silva, tinha¢ continua tendo o aspecto fisieo de um conveate. 4 habitantes da casa, como o siléncio ¢ as vestes sébrias, até os hordrios destinados ao trabalho, oragio ¢ repouso.”* Tudo isso regulado sempre pelos toques citrados do sino. Também 0 refeitério comum, as celas modestas ¢ a proibigdo do uso de “trastes” rieos aproximavam 0 modo de vida nos dois tipos de instituigées; sem falar nos cargos administrativos que inclufam porteiras, sacristis, vigérias, mestras de novigas, denominagSes proprias de um convento, presentes também nos estatutos dos recolhimentos Os estatutos do Recolhimento das Macatibas, em Minas Gerais, advertiam: “..que neste tecothimento nao entrem coisas em que se conhegam riqueza e preciosidade para que nelas ndo empreguem as recolhidas o seu afeto, mas sim que denotem pobreza ¢ humildade, porque destas € mais facil o desapego”.”* Nos estatutos do Recolhimento do Anjo, em Guimaraes, pode-se ler; “E costume nesse recolhimento rezarem todos os dias 0 oficio de Nossa Senhora no Coro, tocando para isso 0 sino de manhi depois da meia hora de oragdo e rezam Prime, Tercia, Sexta, Nona”: € atarde rezavam Vésperas ¢ Completes, e mais tarde Matinas ¢ Laudes.** ‘Na América portuguesa, especialmente na regidio Sudeste aqui estudada mais detidamente, a falta de conventos professos tomava as semelhangas entre os dois tipos de instituigdo mais intensas ainda, uma vez que nao era raro um recolhimento fundado com fins religiosos, como & 0 caso do Recolhimento da Divina Providéncia em Sao Paulo, proporcionar a suas habitantes uma ‘vida mais austera e de devogao do que aquela que vigorava no tinico convento professo da regio: ‘0 Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro.”* Da mesma forma, em meados do século XVITI, 0 recolhimento casioca de Santa Teresa possufa estatutos mais severos do que 4 regra que a seformadora do Carmelo redigiu para suas “filhas” no século XVI, na Espanha: por no ser ainda 2 Yer, por exeimplo, Leila Mezan Algranti, “Os estatutos do Retothimento das Orfis da Santa Casa de Misersedrdia do Rio de Janeiro”, IN Cadernos Pagu, n. 819 ~ Genero, Narrativas ¢ Meméria ~ Nileo de Estudos de Género- PagwUnicamp, Campinas, 1997, pp. 371-408. especialmente 0 estatuto quarto, parte primeira “dos exercicios espirituais © temporsis ¢ obediéncia que as recolhidas devem & Regente © de autres brigagbes”, pp. 382-3 % Cf Estatutos do Recolhimento das Macntbas, est 4, °Da virude da pobreza” 3 Cf Regra do Anjo, em Eduardo d’Almeida, O Recothimento do Arcanjo Sdo Miguel, Guimaraes, Mine:va Vimaranense, 1923, 0. 59. 2 A fundagdo (1775) do Recothimento da Divina Providéncia {hoje Convento da Luz) deve-se, entre outros fatores, 20 empenho do beato Frei Gaivéo, capelio das recolhidas. Enquamto ele thes serviu de guia espiritual (até 1822), a regra das concepcionistas foi seguida com plena observincia, CE. Arquivo do Convento da Luz (ACLU-SP), Livro de Crinicas 1, cap. Ill, ¢ *Manuseritos sobre a fndagao”, gavets 2, p.s 1, pasta 1. Quanto ds diffculdades para a implantagio da mestna regra 10 Convento da Ajuda, ver as pastoras do bispo D. Anténio ddo Desterro advertindo as religiosas pelos costumes mundanos teinantes #a casa, Cf. Arquive do Convento da ‘Ajuda (ACA-RJ), Provisdes e Licengas, livro 1, Pastoral de 1760, p. 24. verso. 1s formalmente um convento carmelita, sua fundadora ~ madre Jacinta de Sdo José (1715-1768) — julgou que poderia mexer livremente no texto de Teresa de Avila.” ‘Também em Portugal nfo faltaram recolhimentos fundados por beatas ¢ devotas, cuja vida de peniténcia assemelhava-se 2 dos conventos, levando-as a pleitear o status de monjas, como sucedeu com o Mosteiro das Capuchas de Guimaraes, que se constituiu iniciaimente como recolhimento de caréter religioso”*,cutro caso do mesmo tipo diz respeito ao Recolhimento de Santos-O-Novo, fundado numa casa doada por D. Sancho II e ocupada pelas filhas, mulheres & vitwvas dos cavaleiros que se batiam contra os mouros em Mértola e Aledcer, posteriormente transformado em mosteiro.”” Ha ainda o fato curiosissimo ocorride com o firturo convent das clatissas de Evora: no tempo de D. Sebastidio, algumas senhoras devotas tentaram transformar 0 “como se fossem filhas legitimas do Santo Pai recolhimento no qual viviam havia muitos anos §. Francisco” — em convento dessa ordem, Contudo, o cardeal infante D. Henrique, que era 0 arcebispo, decidiu fundar naquele local o colégio ¢ a Universidade da Companhia de Jesus, mandando as recoihidas de volta para suas casas “por lhe constar ndo serem elas verdadeiras religiosas, nem a profissio por elas feitas as obrigarem @ clausura...”. Apés a morte de D. Sebastido, ¢ com a chegada do novo arcebispo, uma das mulheres que vivia na casa na época da primeira tentativa de fundac2o do convento nfo “desanimon e, com sua sobrinha, pleiteou outra vvez.a licenga de fundagao”, conseguindo-a finalmente, Assim, com a ajuda de quatro ciarissas do Convento de Lisboa, implantou-se a regra no novo conyento franciscano.? © que 05 documentos sugerem. portanto, é que niio parece ter havido em Portugal grandes obsticulos para a transformagao de um recolhimento de caréter religioso em convento, enquanto 7 Jacinta prescreven para as carmelitas do Recolhimento de Santa Teresa no Rio de Janeiro, mais dias de jejum “de diseipinas do que os prevists na Regra Ge Santa Teresa. CZ Arquivo do Convento de Santa Teresa (ACST- Ru), Constinuigdes da Madre Jacinta de S40 José, edpia do manuscrto existente no Arquivo Ulramarino de Lisboa, papdis avulsos nfo catalogados, CX 86, 30/11/1753. A § historia da fundagdo desse convent & semelbante # muitas cutas, Inicia-se em meados do século XVI, Guando ura mulher devots, Catarina das Chagas, ingressa no Recolhimento dos Anjos em Guimaraes ¢ acaba Saindo para funder outro recolhimento: o da Maére de Deus. Posteriormente piciteis ditetamente a Roms a transformagdo da insttuigdo em convento. Consegue 2 aurorizagao em 1693, mas a buta de Clemente XI data eagosto de 1715 com a noreagio de uma religiosa do convento da Madre de Deus de Lisboa como fundadora Gauperiora. A festa de cecepgto das celigiosas de Lisboa fot organizada pelo arcebispo ¢ a procissz0 ocerrida peioy ruas da cidade com muita pompa e aclumagio popular possui todos os tragos das festas populares, proprias da religiosidade barroca. Ver, sobre a fundagdo ea festa, Biblioteca Nacional de Lisboa, doravante BNL, Seyio de Reservados. cod. 68, fl 216 e seguintes; ver também sobre o assunto Eduardo D*Almcida, 0 Recothimenta do Arcanso. Miguel, op. cit. p. 42. % Jose Pinto de Aguiar. op. it, pp.6-7 38 BNL, Sepdo de Reservados, cod. 16, Convento de Salvador em Evora. O relato foi escrito em 1674, 6 na regifo Sudeste do Brasil, mesmo apoiadas peias cdmaras ¢ pelos “homens bons”, as recolhidas do eram ouvidas pela Coroa em pedidos semelhantes.”" A iinica excegio ocorren com 0 Recolhimento de Santa Teresa no Rio de Janeiro, sua transformago em convento foi conseguida ® As “carmelitas” paulistas, por ‘em situagdo excepcional, como veremos posteriormente.” exemplo, que viviam em uma instituigdo fundada pela “nobreza da terra” em fins do século XVI, jamais foram atendidas em seu desejo de tomarem-se religiosas professas, assim como as concepcionistas do Recolbimento das Macaiibas ou as habitantes de varios outros recolhimentos teligiosos espathados pelo pais. Esses exemplos, extraidos de documentos normativos — constituigdes, regras ¢ estatutos — ou de fontes que incidem sobre as experiéncias cotidianas das mulheres reclusas (pastorais, memérias, correspondéncias), confirmam a impressdo de que, se formalmente as recolhidas nao cram consideradas religiosas, na prética elas podiam levar uma vida até mais estrita ¢ austera do que as freiras de qualquer convento professo, prineipalmente na Col6nia, onde predominavam os recolhimentos religiosos, muitas vezes uma forma utilizada pelos colonos para realizar seus Gesejos devocionais ¢ burlar a politica da Coroa. Em Portugal, por sua vez, os recolhimentos feigos sto mais tipicos no periodo. Eram no 56 mais numerosos do que os do ulttamar como ligavam-se a uma forte tradigo assistencial que imperava desde a Idade Média e seguia os padres do resto da Europa: uma assisténcia mareada pela concepeHo sacralizada do pobre, dominada pela caridade crist@, na qual a Iereje desempenhava um papel importante através dos mosteiros, dos bispados ¢ da esmola privada. # 2 4 correspondéncia do Conselio Ultramarino evideneia virios pedidos desde 0 século XVII pera a fundagEo de convents 2 recolhimentos, bem como as recuses com suas justficativas. No século XVII bd referéncias 20s pedigos do Padre Malagrida para a fundagao de recolhimentos no Para. Cf. Arquivo do Instituto Hist6rico & Geosrafico Brasileiro, Correspondéncia do Conselho Uliramarino, Arquivo 1-3-1, p. 154 Nos capitulos 2 e 3 deste estudo ha informasbes detalhadas sobre Recolhimento de Santa Teresa, Sobre o assunto ver, “Representagiio do povo de So Paulo pedindo que o Recolhimento de Santa Teresa seja transformado em mosteiro". IN Documentes Interessantes para a Historia ¢ Costumes de Sao Paulo, Arquivo tla Estado de SP, vol. XXIV, pp.222-6. Macaibas, por sua vez, surgi como recolhimento en 1727, mas em 1760 a Coroa apenas ceafinmou a autorizago para o fincionamento de um educandario e solicitou a reforma dos estazutos redigidos pelo bispo D. Manuel da Cruz em 1750. No final do século 2s reeolhidas ainda pleiteavam a transformagao em convento, mas 0 instituto aeabou famoso por se tomar eolégio de meninas da tlite mineira no século XIX. CE ANRJ, Mesa do Desembargo do Pago, cx. 130, pacote 2, doc. 57. Sabre os ecelhimentos femininos no Brasil, ver ainda Riolando Azzi ¢ Maria Valéria V. Rezende “A Vida religiosa feminina no Brasil colonial", IN R. Azzi (org.), Vida religiosa enfoques histérieos, C2kila, Edigbes Paulinas, 1983, pp.24-71, St Ana Isabel Marques Guedes, 4 assisténcia 2 a edcagdo das Srfdos durante 0 Antigo Regime (0 Colégia de rfas do Porta) Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1993, p. 45. 0 Nesse sentido, surgiram instituigdes para auxiliar os desfavorecidos (atbergarias, hospitais. mercearias), visando, no inicio, as pessoas de um certo nivel social empobrecidas. A primeira delas foi fundada por D. Afonso {V em Lisboa ¢ reunia tanto homens como mulheres. Embora no tivessem estatutos, seu cotidiano aproximava-se das praticas conventuais. Como destacou Ana Isabel Guedes, a crise do século XIV ¢ 0 principio da centralizagao do poder real contribuiram para uma alteragiio fundamental na assisténcia portuguesa, Com D. Joto II inaugura-se uma nova fase nesse setor, com a concentragao de todos os hospitais de Lisboa em um sé: 0 Hospital de Todos os Santos. A partir da criagfo da Imnandade da Misericordia em 1498, a cvolugao da assisténcia em Portugal se distancia da dos demais paises da uropa.* A multiplicagsio dessa irmandade em todo o império portugués criou ndo s6 uma rede de ascisténcia independente da Tgreja como imprimiu as priticas de caridade portuguesas uma expresso de compaixdo para com 0 préximo, mas também de salvagto pela f € boas obras daguele que as praticava, bem antes de sua reafirmagio pelo concilio tridentino.”’ “O movimento no sentido de secularizagao dos principios que sustentavam o sistema assistencial portugués levou séculos para se concretizar em Portugal”, como apontou Laurinda Faria Santos Abreu, ¢ 36 foi concluido em fins do século XVIIL"* Dado o papel ¢ o significado que a Irmandade da Misericérdia assumiu no setor da assisténcia portuguesa, nfo nos ateremos as. suas especificidades, que fogem aos propositos deste estudo: as instituigdes criadas para mulheres por ssa confraria, ou a ela ligadas, sero tratadas em conjunta com as demais.°? O que cabe destacar, contudo, é que os assistidos pela Misericérdia, pela Tgreja ou pelo Estado passam a ser divididos em categorias (doentes, expostos, érfios) ¢ também em idade ¢ género. Interessam-nos *® Tdem, p. 50. % biden. > Ver sobte 0 assunio Isabel dos Cuimartes Si, “Praticas de caridade e salvagio da alma nas misericordias metropolitanas e cltramarinas (séeulos XVIEXVII: algamas metaforas", IN Revista Oceanos ~ Miserlebrdias {Tinea séculos, Lisboa, Comissio Nacional para as Comemoragdes dos Descobrimentos Portugueses, n. 35, p. 33. 28 Cf Laurinda Faria Santos Abreu, “Padronizagao hospitalar © misericérdias: apontamentos sobre @ Reforma da ‘Assisloncia Paiblica em Portugal” IN Revista Portuguesa de Historia t. XXXI, vol. 2, Universidade de Coimira, 1996, p. 299 39 4 Misericérdia levou seus servigos de assisténcia as varias partes do Império, semeando todo tipo ce ipstiuigdes. Quanto 2os recolhimenos ferininas, estes podiam ser furdados pele Immandade ou colocades sob sua proteedo e supervisio posteriormente, como aconteeea com ¢ de Ceuta, fundado por uma vidva por vol de 1612 mas depois administrado pela Santa Casa, o qual desempenkou importance fungao na concessao de dotes 4 jovens para ce casnrem ob entrarem ua feligifo. Ver sobre essa instiuigao Isabel Mendes Drumond Braga, A Misericordia de Ceuta € a protegiio &s donzelas 1580-1640" IN Actas do Congresso Internacional de Historia Misslonagdo Portuguesa E Encontro de Culturas, vol Il, Braga, 1993. pp. 455- 63 18 especialmente as érfls ¢ demais mulheres para as quais, a partir do século XVI, foram fundados virios recolhimentos. ‘A preocupagao com os érftios em Portugal nio foi dirigida somente as meninas, mas as instituigdes destinadas a elas ¢ a salvaguarda de sua honra sempre foram muito mais numerosas do que 0s colégios € hospitais criados para os meninos, sinal de que havia um maior interesse com 0 seu futuro em termos de sobrevivéncia e de preparagde para o casamento.” Aos meninos se ensinava um oficio, ler ¢ escrever, ou eram preparados para a carreira eclesidstica. Nesse sentido, os colégios fundados pelos jesuitas tiveram um papel importante.' O principio da educagiio em estabelecimentos fechados, porém, é 0 mesmo para ambos os sexos, mas a atengAo concedida & honra das donzelas pobres, bem como a das nobres desamparadas, mobilizou reis ¢ rainhas, clérigos € leigos, os quais se tornaram fundadores ¢ patrocinadores de recolhimentos femininos por meio de donativos ou legados em testamentos. Um levantamento preciso dos recolhimentos destinados as érfiis ¢ demais mulheres em Portugal na época modema esbarra em informagdes desencontradas fomecidas pelos estudos sobre o assunto e pela documentac&o disponivel, principalmente para os mais antigos. Ana Isabel Guedes, no entanto, apresenta um itil quadro cronologico contendo 23 dessas instituigdes entre 1543, ano da fundagio do Recolhimento do Amparo ou do Castelo, em Lisboa — possivelmente 0 precursor dos demais —e 1809, quando {oj criado o Recolhimento de Nossa Senhora das Dores, pata as Grfiis do Porto. # provavel que 0 quadra nao esteja completo, pois localizamos dados referentes a recolhimentos que néo constam nessa listagem. Talvez nilo sejam estabelecimentos assistenciais, como os que 2 autora enumera, porém, come muitas vezes os recolhimentos assumiram fungdes e finalidades diferentes daquelas apontadas em seus estatutos, trata-se de mais um elemento que dificulta sua identificagao. © Sobre o significado dos sistemas de honra, vergonha e valores morais nas sociedades mediterrineas, ver os cnsaios de iiverses autores em J. G. Peristiany (org), Honra e vergonha — valores das soviedades mmediterrénicas, 2, ed, adusdo, Fundagto Calouste Gulbenkian, Lisbos, 1998. 41 Segundo Ana isabel Guedes, os colégios sto instituigdes caractristicas do Antigo Regime, cuja evotucdo iniciou-se no periodo medieval: de um local fundado por inii iniciativa de um benfeitor para acolher estudantes pobres, ehegou a0 modelo de intemato do século XVII (p. 63). Embora em Portugal tenha existido um hospital para meninos funcedo em 1273, amaior parte dos estabelecimentos deste tipo datam co final do seeulo XVIII € fnicio do XIX. Para os séeulos anteriores tem-se noticia de quatro colégios para érffos em Lisboa, Evora, Vila Vigosa e Porto. Os dois primeitos criados no século XVI e 08 outros no século XVIL. Cf, Ana Isabel Guedes, op. ct, p. 63 € pp. 79-80, 19 Os recoibimentos portugueses para érfis podiam ser organizados de acordo com a condigéo social de suas habitantes (nobres ou plebéias) ou visar representantes de todos os segmentos da sociedade. Abrigavam também, muitas vezes, vitivas ¢ inclusive porcionistas (hospedes que pagavam por suas estadias). Os objetivos finalidades dos estabelecimentos dependiam da localidade em que eram fundatios, da existéncia de outros estabelecimentos do mesmo tipo ou de situagées circunstanciais, como periodos de peste. guerras ou demais catdstrofes que permeavam o cotidiano das populagies na época.** © Recolhimento do Castelo, também designado como Recolhimento Real das Oris Honradas, foi fundado em 1543, no reinado de D. Jodo III, e, se ele ndo foi o instituidor, logo 0 tomou sob sua protegdo. Alids, essa caracteristica estara presente em muitas outras instituigdes do Reino e das colénias, dado o interesse régio por elas e em garantir que as reclusas ndo padecessem devido a falta de recursos. Por outro lado, a concordancia do monarca era necessaria no momento das fundagdes.”* ‘A virtude das donzelas do Recolhimento do Castelo se expressava nfo apenas no nome dado casa, mas no perfil das érf%is, supostamente para diferencii-lo de outro fundado para as “erradas”, ou convertidas, criado na mesma cidade em 1587. As 6rfiis do Castelo eram acolhidas para serem educadas ¢ instruidas nas artes domésticas até que se Ihes arranjasse casamento no Reino ou nas colénias. Era o “remédio da vida”, como se dizia na época, Seus estatutos datarn de 1613 e tém 0 objetivo de precisar o sentido da clausura ¢ da reputagdo da casa.“* Organizado de forma conventual, como os recolhimentos religiasos, admitia érffs entre os doze e os trinta anos 2, se no inicio so concedidas dispensas As filhas ilegitimas e também por impureza de raga, apos © Consta que por ocasitio da grande peste (1569), com auxilio dos padres de Sio Roque ¢ apoio de D. Sebastito, fi fundedo 0 Recolhimento de Santa Marta, em Lisboa, devido aos grandes perigos de as donzelas értas andarem desamparadas com a morte dos ais. Em 583 foi transformado em mosteire religioso. CF Maria Joana Anjos Martins op. cit. pp. 122 Em 1790, por exemplo, algumas ims terceiras aleancaram de D. Maria a mereé para funderem um conservatério ou recolhimento junto a ermida de Nossa Senhora da Luz, Tratase do Recolhimento do SSamtissimo Sacramento, na Luz da Vila de Monte-Mor 0 Novo, que teria sido fundado por D, Joto V em 1749 e depois desativado. Em 1825, D. Joao VI ordena a Mesa da Santa Case da mesma vila que socora as recolhides fem suas enfermidades, como jé era castumne, Essa relagdo dircta entre recothidas e monsreas est presente em ‘varios documentos relatives aos recolhimemos. No caso da América portuguesa, os pedidos de fundagfo eram Feitos por meio do Conselno Uliramarino, mas também pela Mesa de Consciéncia e Ordens. © Recolhimento de ‘Santa Teresa em So Paulo foi eriado sem a autorizagdo régia ¢ o bispo D. Francisco de Sa0 Jerdnimo pretendea feché-lo, néo conseguindo seu intento devido aos pedidos da populagto e a interferéncia do proprio ei, D. José I. Cf, Vasco Smith de Vasconcelos, Histéria da Provincia Eclesiéstica de Sdo Paulo, S80 Paulo, Saraiva, 1957, p.36 ‘Maria Joana de Sousa Anjos Marins, ap. cit, pp. 29-30. 20 1613 negam+se as dispensos. As jovens deveriam ser saudaveis e nio ter feito voto de castidade. Nio ha referéncias precisas a origem nobre das recolhidas, embora estivessem previstas as porcionistas, ou seja, meninas, senhoras e viivas, que pagavam pelo seu sustento ou poredes Em 1569, um legado em testamento de uma scnhora de “qualidade” destinava-se fundagdo de uma instituigao de caridade para mulheres a scr administrada pela Misericordia de Lisboa. Por volta de 1595 ja se tem noticia de um recolhimento para Orfis ligado a essa jimandade, no qual as meninas permaneceriam no inicio por dois anos ¢, depois, por quatro, até que se casassem ou, entdo, na falta de um esposo, fossem alojadas em casa de alguin tutor. O regimento de 1609 previa porcionistas, “ou ainda aguelas que por qualquer motivo se queiram recolher a vida laica’."* As prescrigdes sobre o tipo de vida presentes nesses estatutos no diferem daquelas redigidas para os outros recolhimentos leigos de Portugal e do Sudeste do Brasil, onde foi fundado em 1739 0 Recolhimento das Orfas da Miserieérdia do Rio de Janeiro.“ Juntamente com o que foi criado pela Misericérdia da Bahia, em 1716, parecem ter sido os iinicos estabelecimentos especialmente destinados as drftis na América portuguesa, tendo como finalidade educd-las para o casamento."” Fm Portugal, ao contrario do que sucedia no Brasil, nota-se que além dos dois recolhimentos de érfs jé mencionados (Castelo ¢ Misericérdia) existiram, s6 em Lisboa, pelo menos mais seis institutos desse tipo, a saber: Recolhimento de Santa Maria, para “Arfas e vitivas da peste” (1569); Recolhimento de Sdo Pedro de Aledntara (1594), s6 para “6rfs"; Recolhimento de Nossa Senhora do Amparo, para “raparigas pobres ¢ em perigo” (1598); ¢ um recolhimento fndado cm 1688, que supde-se, era destinado também a ““érftis”, além dos Recolhimentos de Nossa Senhora da Encamagio (1704) e das Escraves do Santissimo (1789). Em Evora, 20 que parece, foi fundado no século XVI 0 Recolhimento das Mercés para “mulheres ¢ filhas dos servidores reais ausentes do pais”. No Porto, o Recolhimento do Anjo (1672), de Nossa Senhora da Fsperanga (1722) ¢ de Nossa Senhora dos Prazeres (1809) ‘cram instituigdes que teuniam “6rffs, vitivas e mulheres casadas”. Em Coimbra, desde 1704 * Idem, p. 59. 2 Fossem ligados és misericdtdias ou nio, os estatutos dos recolhimentos de 6rf¥s geralmente privilegiavam, no momenta da entrada, as orfis de pai, as filhas Jegitimas e as mais belas, “devido ao maior perigo que corviam mio manda”. Além de prepard-les para © c2samento com ligtes de feitures, religito © tabalhos manuals, as jnstnuigdes foreciam o indispensdvel dote para 0 casamento. + CER. Russell: Wood, Fidalgos and Philamropists the Santa Casa de Miserivérdia da Bahia 1350-1755, Macmillan, Londres, 1968, p. 192. a havia um colégio para meninas “Srfis” e, em Braga, o Recolhimento da Caridade ocupava-se das “raparigas pobres”."* Nao resta diivida de que a preocupagiio com as Orf%s eta uma constante em Portugal ao longo da Idade Modema, sendo que os proprios monarcas se interessavam pessoalmente pelo destino de algumas, enviando-as a india ou ao Brasil a fim de tomarem estado de casadas. Eram as famosas “érfis do rei”, a8 quais recebiam como dote o provimento de algum posto para seus futuros esposos. Certamente, como observou Maria Joana Anjos Martins, tratava-se do aproveitamento social dessas jovens na colonizagdo dos novos territ6rios conquistados, aléin de ‘uma retribuigdo a seus pais pelos servigos prestados ao reino.“° Sabe-se que poucas érfas foram enviadas para 0 Brasil enquanto que em Goa havia um recolhimento desse tipo desde o final do século XVI e a cémara local solicitou ao rei que no enviasse mais érftis da Metrépole, jé que tinham que cuidar das que se encontravam no Estado da india® Além dos institutos mencfonados ¢ daqueles existentes para es mulheres arrependidas ou decaidas, os quais visavam a sua recuperagiio por meio da pregagao ¢ da prética dos bons costumes”, havia outros destinados a educagdo — especialmente a partir do século XVIII, quando se passou a dar maior atengio a formago dos jovens -, como 0 Recolhimento — Colégio das Ursulinas da Vila de Pereira, bispado de Coimbra, fundado em 1748. A principio tratava-se de tum recolhimento no qual as mulheres professavam a Regra das Terceiras Franciscanas, mas depois, por sugestio do bispo, acabatam professando a regra de Santo Agostinho ¢ passaram a “® ana Isabel Guedes, op. cit. pp.77-8. E interessante observar que no Porto sé foi fundado um recothimento de Grfts Iigado & Miseriedrdia em 1722, sendo 0 iniefo de seu funcionamento, 1725, posterior, portanto, a0 da Bahia, criado em 1716. Ver sobre o assunto J. A Pinto Ferreira, Recoihimento de Orfas de Nossa Senhora da Experanca, Porto, Cimata Municipal, 1979. “© Maria Joana de Sousa Anjos Marins, op. cit, p. 28. 5 CF José Ferreira Martins, Histiria da Misericérdia de Goa, vol. 1, Nova Goa, Imprense Nacional, 1910 {Gépecialmente o captivlo inttulado “As 6rfds do rei", pp. 257-77, Martins tansereve virias cartas do monarea ¢ do vice-rei da india sobre como proceder com as drs. Em 1598 ja estavam estabelecidas as bases do Recolhimento das Orfls de Goa, fundado com apoio do bispo D. Aleixo de Menezes, da Misericordia de Goa ¢ da camara ~ recoihimento de Nossa Senhora da Serra — e, em 1606, as recalhidas mudaram-se para um prédio proprio. Cf. op. eit. 276 . Sobre as Sis do rei e seu significado na colonizagao do império, ver Timothy Costes, op. Cit, pp. 198-222. 5. Conhecidos come mosteiros das penitentes, arrependidas © madalenas, ¢ fundados muitas vezes sob a invocac3o ide Santa Madalena, como o que surgiu em Goa em 1605, ou a de Castelo Branco, em 1730, ha noticias deles fom Lishoa e Evora ja no reinado de D. Joao Ill. No Rio de Janeiro, os recolhimtentos de Itaipu e do Part, este tllimo fundado por uma liberta, serviram tambért de asilo as arzependidas. 2 acolher educandas, Desse recolhimento sairam posteriormente algumas freiras para fundar um novo colégio em Viana do Minho, bispado de Braga. © que contudo vale ressaltar é que tanto na Metrépole quanto na Coldnia esse perfil especifico que se procurava imprimir as instituicdes no momento da fundagiio logo se atenuava e as casas assumiam muitas vezes um caréter misto, com fungdes assistenciais, religiosas educatives, nas quais conviviam mulheres de condigdes distintas enclausuradas por motivos diferemes. Essa multiplicidade de fangdes é mais acentuada na América portuguesa, onde existiram poucos recolhimentos femininos ¢ falta de vagas. E certo que se tentou preservar, dos dois lados do Atlantico, uma certa hierarquia entre as instituig6es, semethante & que imperava na sociedade, mas nem sempre isso foi possivel. Nos estatutos do Recolhimento dos Santissimos Corages de Jesus ¢ Maria de Leiria, datados de 1752, por exemplo, exigia-se 0 pagamento de eéngrua para 0 sustento das meninas porcionistas, sendo as érffis dotadas por instituidores & legados, do que se conclui que havia jovens de condigdes diferentes ¢ inclusive de fora do bispado sendo educadas na mesma instituigio.* No recolhimento de Itaipu (Niterdi), sabe-se pela documentagdo da policia do Rio de Janeiro que mulheres decaidas ¢ “desonradas” conviviam com esposas de funcionérios que estavam ausentes da corte a servigo da Coroa.™ O Recolhimento do Parto no Rio de Janeiro, por sua vez, também abrigava convertidas e mulheres enclausuradas como punig#io por atos condenados pela sociedade. No Recolhimento das Orfis da Misericordia, na mesma cidade, em certos periodos havia mais poreionistas e mutheres desonradas do que meninas espera de um bom casamento.*' Essa multiplicidade de fungdes, em certos casos, estava prevista inclusive nos 3 Cf Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, doravante ANT, fundo arquivo geral das Congregagbes 317 e 85. ‘Na mesma época, na América portuguese, o Recolhimento das Macadbas cambém aceitava meninas para serem ceducadas ¢ foi confirmado por D. Maria I como educandario, apesar dos desejas e protestos das recalhidas que Sempre pleitearam o starus de religiosas. CF. Arquiva do Convento Nossa Senhora da Conceigo das Macaubas, Livro de Registros de Matriculas (1720-1822). 33 ANT, fando arquivo geral das congregag’es, 1105, Fxtarwas do Recolhimento dos Santissimos Coracdes de Jesus 2 Maria, cap. 2; "Do nimero e da qualidede das recolhidas, de seus Gotes e cOngruas”. + © Recolhimento de Itaipa foi fondado coro instituto Teigo € hd indicios de que sua fundagdo date do final do século XVIL_ A documentagio especifiea sobre ele nko foi lecalizada, mas of registro da Intendéncia da Policia fenire 1808 e 1822 fazemn varias referencias 20s pedicos de pais © maridos para que o intendemte intercedesse fom o intuite de conseguir uma vaga para suas filhas © esposas, Polos requerimentos fica claro que recolhimento setvia a miltiplos fins, inclusive como casa de comegao. Ver sobre 0 assumto ANRI, CorrespondOncia da Policia da Corte com varias autoridades, 1808-1822, cod. 323, vols, | 2 6, ¢ também meu livro Honradas ¢ devotas, op. cit. pp.131-36. 5 Sobre o eotidiano e o perfil da populago no Recolhimento da Misericdrdia do Rio de Janeiro, ver meu artigo “SMulheres enclausuradas no Brasil colonial”, IN Heloise Suarquc de Holanda e Maria Helena Capelato (org.) 23 estatutos ou transparece em outros registros. No Recolhimento das Ursulinas, os documentos referem-se a freiras, educandas e leigas, ¢ o bispo proibe que se discuta no interior do colegio “se ‘as reclusas sfo ou nio religiosas ¢ que da diversidade dos sentimentos nascem dissensdes”. Em. pastorais as recolhidas, apds uma visita eclesidstica, ele desaprova a organizagdo da casa, 0s mumtitios ¢ burburinhos no locutério, as auséncias no coro e a atengao especial que algumas pupilas recebem da regente. Explica ainda que ha duas ordens nesse recolhimento, “uma de recolhidas ¢ outra de educandas, as quais o sto por suas classes, principiando pela de ler ‘escrever”.? Em Guimaries, na regra do Recolhimento do Anjo, datada de 1756, estava prevista uma vida religiosa para as recolhidas, mas advertia-se que “as seculares que viverem dentro do recolhimento devem se conformar quanto Ihe for possivel com os costumes dele, e trajar honesto para nao servirem de ruina ¢ esedndalo”.** Nao se sabe se essas “seculares” eram pensionistas ou criadas. De qualquer forma, fica evidente que no interior dos recolhimentos portugueses do reino e do ultramar encontraremos, compartilhando do mesmo espago ¢ cotidiano, uma grande diversidade de mulheres das quais se esperava o exercicio dos valores cristios, independente da condigao social que desfrutassem ou dos motives da reclusto, Nos conventos professos, a expectativa daqueles que legislaram sobre a vida religiosa feminina nao era diferente da expressa nos estatutos dos recolhimentos. Assim como nestes iiltimos, tratava-se de prescrever uma vida pautada pela busea da perfeigio religiosa. No Reino e na Colénia eles abrigavam, além das religiosas professas, mulheres Ieigas (recolhidas, educandas ¢ criadas). Conventos e recolhimentos eram, portanto, na época modema, espagos de sociabilidade e de expresso de uma cultura religiosa essencialmente feminina; neles convivian vidvas com suas filhas, irméis, primas, parentes ¢ eriadas. Numa soviedade escravista, como a que se desenvolven na América portuguesa, nilo faltou ainda, mesmo nas casas mais austeras, a presenca de escravas particulares ¢ as que deveriam servir a toda a comunidade.*” Como Relagées de género ¢ diversidades culturals nas Américas. S80 Paulo ¢ Rio de Janeiro EDUSPY Expressio € Cultura, val. 9 da Colegdo América 500 anos, 1999, pp.147-62 S Ch. ANT, arquivo das congregagdes, 317, £5. 3 Cf idem, 85. Eduardo d’Almeida, op. cit, 64 5 Sobre o impacio da esctavidio no cotidiano da vida dos conventos e recolhimentos religiosos na Amética portuguesa, ver meu estudo: “A escravidio no cotidiano das instituigbes de reclusto feminina no Sudeste do “4 observou Fernanda Paula Sousa Maia, “o convento femtinino constitui um dos pilares essenciais & teprodugao ideoldgica do modelo de organizacdo social ¢ familiar do Antigo Regime”. A grande tradigio de vida religiosa feminina reinante em Portugal, entretanto, incentivow a fundage de conventos para as mulheres da nobreza, onde viviam muitas vezes de forma semelhante aquela da corte ou dos pagos de rainhas ¢ princesas.®' Foram fundados por iniciativa das proprias familias, que buscavam um lugar para suas fillias devido a falta de recursos para dotilas & altura de sua condigtio, Ao longo dos séculos XVI ¢ XVII, a nobreza portuguesa emperhou-se na fundagto de vérias casas ¢ pressionou diretamente os monarcas e as vezes até 0s papas em busca das autorizagdes necessérias para construir mosteiros femininos, sendo que raros pedidos foram recusados.® As origens dessas fundagées resultam, portanto, da “convergéncia da agdo da nobreza, da realeza e das proprias congregagdes que se haviam inclinado 4 reformagio, aprovada pela ctiria romana e mais tarde deeretada por Trento”. © Ha referéncias também & presenga de filhas de duques, rainhas e prineesas nos conventos, como por exemplo a vitiva de D. Jodo IV, a tainha D. Luisa de Gusmilo, que, ao deixar a regéncia em 1665, recolheu-se a0 mosteizo feminino da Ordem de Santo Agostinho, a qual ajudou a introduzir no Reino. Nao faltaram tampouco nos conventos portugueses aias de reis ¢ membros das familias cortess ou locais. Sabe-se, por exemplo, que havia vérias freiras nas familias dos Tavoras ¢ dos Noronha, sinal de que se tratava de um costume arraigado na sociedade portuguesa, 0 qual persistiu até meados do século XVIH, 0 que explica o grande nimero de mosteiros femininos no pais. O Brasil Coloniai”, IN Maria Beatriz Nizza da Silva Brasil (ong.}, Brasil colonisagio & escravidéo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, pp. 73-89. © Cf Fernanda Paula Sousa Maia, “Uma comumidade religlosa ferinina nos alvores da époce modema ~ as freiras do Mosteiro dos Remédios (Braga)”, IN Revista de Cigncias Histdrieas, Universidade Portucalense, vol XII, 1998, p. 177. 41 Humberto Bacuero Moreno informa que em 1320 havia 32 casas de religiosas em Portugal, concentrads predominanterente na regito de Entre-Douro-e-Minho, sendo a grande maioria benedktinas, No século XV Encontravam-se 46 mosteiros feminines contra um total de 167 conventes masculinos. CF. “Mulher e zeligiéo fem Portugal nos finsis da !dade Média", IN Actas del f Congreso Internacional de! Monacata Femenino en Espata, Portugal y América 1492-1992, Leda, Universidad de Leén, tome Il, 1993, p. 635. © CE Jodo Francisco Marques, “O monacato feminino em Portugal nos séculos XVI e XVII — Estrategia da nabreza e das ordens religiasas” IN’ f Congreso Internacional del monacato femenino en Espaia, Portugal y América 1492-1992, op. cit. PP. 645-6, © dem, p. 648. © tiger, p. 642, fechamento do noviciado pelo marqués de Pombal procurou interromper esse fluxo, bem como reformar os estabelecimentos no Ambito moral e religioso. Encontraremos, assim, alguns mosteiros chamados de conventos reais que congregavam predominantemente mulheres de origem nobre ot que reservavam certo namero de vagas para elas, Quando Joana de Portugal, filha de Afonso V e irm’ do “Principe Perfeito”, recvsou seus protendentes e optou pela vida religiosa, era desejo de seu pai que ela fosse viver no famoso Convento de Odivelas, reduto de mulheres nobres. Mas ela surpreendeu a todos ao escolher 0 modesto Convento de Aveiro, da ordem dominicana, no qual, proibida de professar por ser herdeira do reino, viveu e morreu na pobreza das ordens menores." Essa preocupagdo com a descendéneia das grandes casas de Portugal ¢ com @ honra, distinggio e manutengio dos privilégios da nobreza & perceptivel em meados do séeulo XVI, quando da confirmagdo por D. Jodo IV do Real Mosteiro de Nossa Senhora da Encamagdo do Mestrado de Avis, logo apés a Restauracdo portuguesa. Nao hé pardmetros de comparagdo entre essa instituigao e os mosteiros americanos, mesmo aqueles reservados para as filhas da elite colonial, como o Desterro da Babia e o Convento da Ajuda no Rio de Janeiro, pois jamais as religiosas da Colénia usufruiram de concessdes e privilégios semelhantes. Desde o inicio, 0 Mosteiro da Encamago foi pensado como um espago para as mulheres nobres. Fundado no periodo da dominagao espanhola, a partir do desejo do legado de D. Maria, filha de D. Manuel e D. Leonor ~ ima de Carlos V -, acabou se distanciando das preserigSes testamentarias da princesa, que desejava uma casa austera como modelo de virtude e religiosidade. Pelas recomendagdes da infanta, as religiosas deveriam professar a regra de Sao Bento ¢ ficar ligadas a essa ordem, porém circunsténcias politicas alteraram sensivelmente 0 perfil e 08 abjetivos do estabelecimento. Quando da confirmacao dos estatutos em 1642, Portugal encontravarse ainda sob o impacto das conseqiléneias da guerra de Restauragiio em que, além da © No periodo pombalino nto era facil conseguir o benepideito reat para a fundacao de novas instimicbes relighosas, Pelo contrtio, procedeu-se a uma Gevassa sobre os costumes morais do clero em todo o reino ¢ entre 1764 @ 1778 0 marqués fechou os noviciadas, Ver sobre o fechamento do novictado frei Vendincio Willeke, “Senzalas e conventos” IN Revista de Historia, USP. 106, abriiunho, 1976, p. 336. +© sobre a vida da princesa Joana, ver Crdnica da fundagao do Mosteiro de Jesus de Aveiro e memorial da infanta ‘santa Joana filha del rei D. Afonso V. Revisio © preficio de Anténio Gomes da Rocba Madahil, Aveiro, 1939, p. 155-86; Frei Luis de Sousa, Historia de Sdo.Domingos (1626), 3 ed. Lisboa, Panorémice, pare segunda, liveo ¥, s/d, p. 410. fazenda real, havia perdido grande parte dos homens de armas do Reino, Diante da calamitosa situagao de continuidade desse segmento social, D. Jodo IV solicitou ao papa que comutasse, em parte, a ultima vontade da infanta com algumas limitagdes. O pedido incluia a mudanca da regra do Mosteito da Encamagao, devido a grande quantidade que neste reino ha de mosteiros de religiosas de diferentes ordens ¢ a utilidade que ao bem comum e em particular a nobreza dele receberia em haver outros que professassem as regras militares, onde as mulheres e fihas dos fidaigos que mando servir fora destes reines as conquistas desta terra e que ficam vitvas e Grfas, possam com mais facilidade ser recolhidas ¢ criadas na vida e doutrina conveniente és suas qualidades, de que resultaria grande servigo a Deus ¢ para outras justas causas...”* O monarca solicita, portanfo, que as religiosas professem na ordem e cavalaria de So Bento de Avis, da qual era o grdo mestre, submetendo as religiosas a sua obediéncia ¢ jurisdigio, devendo ele proprio prover o cargo de comendadeira (regente) ¢ as vagas destinadas a nobreza. Mas D. Jodo pedia também algo totalmente inédito: que as religiosas tivessem liberdade para contrair matriménio!® que ele propunha de fato era a possibilidade de dar continuidade as familias da nobreza portuguesa, cujos pais e filhos haviam morrido na guerra. Se fosse mantida a Itadigdo propria a essas circunsténcias, as Orfiis € viiivas da alta nobreza possivelmente seriam abrigadas em conventos, jd que nflo dispunham de meios para subsistir; muitas acabariam professando na religiéo pelo status que essa condig&o conferia as mulheres. Sendo assim, a sobrevivencia da nobreza portuguesa estaria ameagada. O papa Paulo V nao s6 acolheu o pedido do rei como permitiu que os estatutos fossem redigidos pelo presidente da Mesa de Conseiéneia e Ordens, o qual, além de conceder 0 direito as religiosas de contrairem matriménio™, liberou-as da clousura esttita, permitindo-lhes sair do convento.” Elas tampouco deveriam fazer 0 voto de pobreza e poderiam ter uma criada particular; quando nio dispusessem de bens, receberiam 10 mil réis de auxilio para seu sustento, conforme vontade de D. Maria, expressa em seu testamento. © ANTT, arquivo das congregesses religioses, 1142, Estatutos do Real Mostcito de Nossa Senhora da Eneamagao da Millcia e Mesirado de Aviz, segundo’ regra do Patriarca de Sio Bento da Congregagto de Cister, 1642, Idem. Ibidem ® As religiosas faziam o voto da castidade conjugal, como faziam os cavaleiros da ordem de Avis, os quais ‘enquanto fossem solteiros ou vidos viveriam em perpétue castidade. Cf. capitulo 10 dos Estatutos 1 “Histéria dos mosteiros, conventos ¢ casas religiosas de Lisboa, eddice transcrito ¢ orgatizado por Durval Pires de Lima, Oficina Grafica Santeimo, 1940, p. 432. s 2 Os estatutos desse convento diferem substancialmente dos outros aqui analisados. Eles presctevem normas de conduta tanto para as religiosas da casa como para as que saissem para casar, as quais continuavam tendo a obrigagdo de rezar as horas candnicas, comparecer as festas do convento pelo menos (és vezes ao ano © jamais se casarem sem o consentimento da comendadeira (regente) e do proprio monarca. As penas para aquelas que infringissem esse regulamento eram severas ¢ por efas se percebe a importincia para a Coroa da manutengao dos privilégios, da honra e do sangue nobre dessas mulheres, pois as religiosas so poderiam se casar ‘com pessoas da mesma estirpe e aps verificagdo dos pretendentes por parte do rei.” Quanto ao cotidiano, como as freiras de qualquer convento, deveriam rezar 0 oficio divino ¢, durante as refeigdes, com 2 comunidade reunida no refeitério. haveria ligdo espiritual. Elas dotmiriam em dormitsrios coletivos, embora pudessem passar o dia “com parentes e discipulas em um aposento fora do dormitério”. De acordo com Durval Pires de Lima, na pritica nao havia nem refeitério nem dormitérios comuns, pois as religiosas viviam em celas separadas onde faviam suas refeigdes.”” Cabe observar ainda que havia vagas no convento também para recolhidas” e para religiosas que nfo fossem de sangue nobre, porém sempre de familias dignas, sem mancha de “sangue impuro”, Aiém de uma forma de “agradecimento” 4 nobreza, 0 monarca, com essa atitude, zelava, na verdade, pela manutengio de uma hierarquia social na qual ele ‘ocupava o lugar mais proeminente e exercia o poder maximo. ‘Na Colénia, os “homens bons” ~ representantes da nobreza da terra - também como na Metropole, procuraram reproduzir seus valores de distingdio © qualidade, fundando, com o apoio das cémaras, estabelecimentos religiosos para suas filhas. Sabe-se pelos registros de entradas que ‘0 Convento da Ajuda e os Recolhimentos da Luz e de Santa Teresa em Séo Paulo acolhiam as mulheres da elite colonial, mesmo que a fama de alguns deles pudesse encobrir 0 seu brilho religioso. Afinal, era melhor uma filha freira em qualquer desses institutos, do que solteira e sem dote.”* Apés o alvara régio de 1732, que proibia a saida das mulheres da Colénia para o Reino — uma tentativa de impedi-las de professarem nos conventos da Metrépole -, a alternativa para 7 ver especialmente no Estatvtos do Mosteiro da Encarnayao os capitulos 27 e 28 referentes ao matrimonio das religiosas ” Histéria dos mostetres..op. cit. p. 440. % ANT, arquivo das congregacoes religiosas, 1142, Estarutos do Real Mostciro de Nossa Senhora da Encamagao, capftuos 22, 32,33. % Sobre o assunto ver meu livro Honradas e «levotas op. cit, especialmente 0 cap. 4, “A populactio feminina nas instimuighes de reclusto”, pp. 15-87. 28 aquelas que no se casassem era pleitear uma vaga nas instituigSes de reclusdo disponiveis na América.” ‘Assim, reunidas por motivos diferentes, as mulheres que viveram nessas instituigdes de teclusio acabaram moldando seu cotidiano muitas vezes de forma bem distante dos estatutos que iidade do que deveriam seguir, Algumas encontraram nos claustros mais independéncia ¢ soci se vivessem com seus parentes, Outras aceitaram as normas e regras que professaram, transformando suas vidas ou os estabelecimentos que as abrigaram em modelos de virtude ‘exemplaridade de vida crist@."” Houve também aquelas que abandonaram a recluse © até os votos.”® Impossivel tragar um perfil comum para os conventos ¢ recolhimentos do império portugués, pois varios fatores interferiam no funcionamento das casas, como 2 clientela, os objetivos da fundagdo, a presenga de bons guias espirituais, os costumes ¢ as necessidades das populagées locais, e certamente a politica da Corea, Dessa forma, aferir a vida cotidiana das reclusas pelos estatutos e regras ¢ algo bastante dificil e muitas vezes enganador. Quando %© CE Alvard régio de 14 de abril de 1752, IN Documentos interessantes para a histéria de Sto Paulo, op. cit, Vol. XXIV, p.86. Tudo sugere que o alvara foi inspirado em uma série de cartas entre 0 governador das Minas, 1D. Lourengo de Almeida, ¢ D. Joto V, nas quais . Lourengo informava que, apesar de ja bastante povoada a regio das minas com pessoas easadas, era "préprio da gente de baiso nascimento o fazer as flhas freiras & desta forma ndo serd possivel 0 povoarem-se estas ménas", CI. carta de Si6/1731, IN Revista do Arquive Piblico Mineiro, vol. XXXI, 1980, pp. 271-2. Em carta anterior comentava “que o meio mais ficil de se povoar 4as minas é proibir Vossa Majestade que nenhuma muther do Brasil possa ir para Portugal nem ihas @ serem {freiras, porque & grande 0 mimero que todos as anos vito se Vassa Majestade ndo colocar toda prosbleto” dem, pp. 110-1. E foi 0 que o monarea fez a0 redigir 0 alvard de 1732, Sobre o alvara de D. Joto V. ver também Sergio Milles, “Crise de mulheres", IN Revista do Arquivo Municipal de So Paulo, vol. 43, 1948, pp. 2223 1 Xs eronieas e registros de entradas & saidas dos estabelecimentos de reclusio feminina no Sudeste do Brasil oferecem exemplos de mulheres que reagiram a clausura e inclusive fugiramm, como aconteceu no Recolhimento dde Santa Teresa em S20 Paulo, mas também de mulheres devotas e piedosas que s¢ sujeltaram aos regulamentos {Recolhimento da Luz). 4 ainda vArios relatos de “Vidas exemplares” eseritos pelas reclusas sobre sues ompanheitas, que indicam a presenca de mulheres devotas nas instituigdes, como se veré no proximo item deste capitulo. Nao faltaram tambérs aquelas se que distinguizam os cargos de diego, enfrentaram seus bispos e concuistararm autonomia nas casas. As pestorsis ao Convento da Ajuda, por sua vez, expelham & sociabilidade reinante na casa. Ver, pot exemplo, Arquivo do Convento de Santa Teresa, Rio de Janeiro, Registros de Entradas do Convento de Santa Teresa; Arquivo da Citia Metropolitana de Sao Paulo, Regist de Entradas do Recolhimento de Santa Teresa, cod. 6-1-8; Arquivo do Convento da Luz ~ SP, Registros de Entradas, gav. 2, ex, 1, pasta 9; Arquivo do Convento da Ajuda, Livro de CrOnicas | 7% Sobre a resisténcia & clausura em Portugal e a socisbilidade nos conventos, ver, Maria Ivone da Paz Soares, ‘Spelabilidade feminina — enquadramento religioxo no quotidiano da sociedade bracarense setecentisia, Dissertagao de Mestrado, Braga, Universidade do Minho, 1997, pp. 329-39. 29 disponiveis, registros de entradas, corresponcéncins, memérias e pastorais permitem contrapor as normas as praticas, revelando um quadro mais préximo da realidade no interior das instituigées.” Os documentos normativos oferecem, contudo, a possibilidade de se captar as expectativas € as representagbes da sociedade da época sobre as mulheres, fossem casadas, vitivas ou solteias, religiosas ou leigas, representantes da nobreza ou plebéias, uma vez que, como vimos, a8 instituigdes de reclustio e seus estatutos visavam todos os segmentos femininos da sociedade. Mais do que isso, permitem entrever a construgio de um ideal de comportamento ligado ao género, moldado de acordo com os valores ctistios, dos quais destacam-se a fé, a castidade ¢ a caridade, independente delas viverem na clausura ow no século. Portar-se de modo recatado (distante do espago piiblico), ter gestos comedidos e postura submissa, ou vestir-se com modéstia, rezar as horas canénicas, confessar com freqiiéncia e ser instruida na doutrina da lereja. nao eram uma exclusividade das religiosas ou reclusas.*” Ao contrario, era dessa forma que se esperava que as mulheres honradas se portassem também fora dos muros dos conventos, pois, como dizia um sermao do século XVII bastante representative do pensamento da época sobre as mulheres, “ao homem criava-o [Deus] para correr o mundo, a mulher eriava-a para estar recolhida’”.s! Esse discurso enfatizado pela Igreja c carregado de significados religiosos ¢ morais incentivou o costume de se enclausurar as meninas a fim de serem educadas nos recolhimentos ¢ conventos, onde, como explicam os estatutos do Convento da Visitago de Lisboa, datados de 1782, ensinam-Ihes as boas artes, mas principalmente a Doutrina Crista ¢ obrigagdes de quem se deseja saivar, os bons costumes, a decéncia e atengilo com que se dever portar no século; 2.0 caminho da perfeigdo... .ensinam-Ihes depois a fazer oragdo, ¢ o modo de praticar no No livro Honraddas e devotas procurei fazer esse contraponto entre as normas e as priticas especialmente nos capinulos referentes ao cotidiano das reclusas (capitules 6, 7 ¢ 8); op. cit, pp. 211-306. %© Sobre o discurso religioso que reflete o pensamento da Igreja sobre as mulheres, ver, entre outras, Clara Revuelta Guerrero, “La imagen del monacato femenino en la literatura sagrada de la resteuraciéa borbonica”, IN J Congreso Internacional det Monacato femenino en Expaha, Portugal y America 1492-1992, op. cit, tomo 1, pp.131-40. 1 sermto do sécvlo XVIL tomo I de um sermonirio contendo varios sermoes estucado por Fernando Taveira Fonsoca, “Notas acerca do pensumento religioso sobre a mulher, @ mulher ta sociedade portuguesa”, Actas do Coldquio, Coimbra, 1985, Instituto de Historia Eeondmica e Social, Universidade de Coimbra, p. 119, Apud Helena Neves, Aulieres e Espagas ~ alguns aspectos sobre as vivéncias das mutheres em Portugal do séeula AVF oo século XVIII, Mestrado em Sociologia, Universidade Nova, Lisboa, 1995, 30 séoulo uma vida devota, sem austeridades, nem repatos, nem estranhes do mundo: tendo © sumo Cuidado em ihes arrancar os maus costumes que do século trouxeram... Ainda no século XVIII, apesar da laicizag&o da sociedade, a educagao conventual continuaya sendo a mais adequada para as meninas, especialmente para aquelas dos segmentos sociais mais altos." Por outro lado, as vitivas ou esposas separadas provisoriamente de seus maridos, a clausura oferecia o recat que se esperava demonstrassem pela sua condigdo, bem como a protecdo ¢ subsisténcia necessarias de todo dia. Nesse sentido, a regra da Visitagao informa novamente: ‘Também admitem com separagdo das religiosas, pessoas de bem, que querem fazer uma vida devota, separadas do século, ¢ se sujeitan a uma vida suave regular, que se Ihes prescreve. E deste modo pessoas de bem, cujos pais andam ou na guerra, ow ocupados no servigo real c nao tem ou parentes a que se acolham com seguranga, ou cabedais para um trato decente, vivem com recolhimento, decéncia e companhia, ¢ além disso com toda a comodidade para a vida devota, so com uma bem modiea pensio, que seus pais, ow parentes lhes ministram.** Pelos claustros dos conventos ¢ recolhimentos transitava, assim, um modelo de conduta feminina que ultrapassava suas grossas muralhas, levando para fora da clausura os valores cristdos que a Igreja introjetara na sociedade e essa, por sua vez, projetara nos conventos. Mas, no vaivem das rodas existentes nas portarias dos conventos, ou pelas grades dos locutérios, penetrava também todo um conjunto de habitos ¢ entretenimentos trazidos de fora ¢ apreciados pelas mulheres, como a arte de fazer doces ¢ enteites, bailes, teatros ¢ miisica, os quais, muitas ‘eres, 08 bispos procuravam extirpar por meio de pastorais redigidas para essas comunidades femininas, na esperanca de que os regulamentos ¢ a vida estrita de clausura fosse cumprida. Enfim, pelas gtades dos conventos ocorria um intenso intereémbio cultural entre esses dois mundos, 0 qual nem as escutas ou porteiras mais zelosas tinham © poder de barrar.° Esse movimento ininterrupto de trocas simbélicas e de experiéncias de vida gerava, intensas nas mulheres que viviam nos porém, aigumas manifestagdes culturais que eram mai claustros devido ao proprio caréter da vida conventuai e dos objetivos religiosos das fundagées. Refiro-me as devogdes exacerbadas, a0 misticismo, s priticas de mortificagdo e softimentos © ANT, arguivo das congregagdes celigiosas, 1053, Fundaco da Ordem da Vizitepie om Portugal, Lisboa, Oficina da Anténio Rodrigues Galhardo, Lisboa, 1782. p. 4. © © processo de laicizagio da sociedade no século XVIII seré diseusido no eapitulo $ desse trabalho * Idem, p. 16 31 fisicos estimulados pela vida contemplativa e pela leitura freqiiente de livros devocionais, que Gespertavam nessas mulheres o desejo de melior servir a Deus e a esperanga de unirem-se a Ele por meio de visdes imagindrias. No interior das clausuras proliferaram as misticas e visionarias, as quais chamatam a atengGo da Igreja que as condenava, mas também do povo mitido que as considerava santas.*° Um aspecto importante dessa cultura religiosa construfda nos clausttos diz respeito & instrugo. Enquanto fora das muralhas dos conventos a instrugio religiosa se dava bem mais por meio da oralidade (serm@es, Icituras coletivas, orientages do confessor), nos conventos ¢ recolhimentos havia nao s6 a necessidade de acompanhar os servigos religiosos com a leitura silenciosa ( 0 que niio excluia as leituras em voz alta), como a preocupagio de disponibilizar nas bibliotecas das instituigdes os livros para leituras individuais.”’ E certo que nem todas eram capazes de ler, mas as religiosas ou recolhidas do coro era exigida essa habilidade. As demais podiam ser dispensadas do Oficio Divino e da leitura sem perda de status. © mesmo acontecia ‘com a escrita, pois, entre aguelas que sabiam Jer, nem todas desenvolveram a capacidade de cescrever. De qualquer forma, assim como sucedeu nos mosteitos masculinos, 0s conventos & recolhimentos femininos se tomnaram espacos privilegiados de leitura ¢ de escrita das mulheres, bem como de expressiio de uma cultura religiosa feminina letrada, embora quase sempre restrita 20 segmento especifico das mulheres de elite, Elas nos legaram uma produgio fiterdria com contornos bem definidos, mas também ume escritura de caréter institucional da qual existem hoje varios exemplos. Experiéncias de leitura e de escrita das mutheres reclusas Para entendermos as relagdes que as reclusas estabelececam com a palavra impressa, além de identificarmos os livros que circulavam na clausura necessitamos de algumas evidéncias sobre os espacos fisicos em que a leitura ocorria e sobre as mulheres que, supomos, deveriam ler. Ou 45 Analisi o interedmbio cultural entre mundo da clausura e @ soeiedade como um todo, no Suudeste do Brasil, to livto Honradas e devotas, especialmente no capitulo 6 sobre as socabilidades: op. ct pp. 211-262. % Centamente hd casos famosos de visiondrias que ndo viveram na clausura, mus © ambiente dos conventos era propicia a essas manifestagées. * Veremas no préxime capitulo alguns exemplos de biblioteeas de conventos feminines. 32 seja, nos referimos a importéncia de definir um contexto de leitura e o perfil do puiblico leitor que se pretende estudar, sem os quais nao € possivei abordar 0s significacos ¢ os usos dos livros. Também & preciso lembrar, como fez Natalie Z. Davis, que “as pessoas nao necessariamente concordam com os valores ¢ id fas dos livros que Iéem”, ¢ que devemos considerar um livto impresso como “um mensageiro de relagdes” © nfo apenas como “uma fonte de idéias e de imagens”.** ‘Nas duas primeiras partes deste ensaio evidenciamos certos aspectos importantes. do mundo da clausura feminina (0 contexto da leitura), bem como da sua populagéo (0 piblico leitor), procurando evidenciar os motivos das fundagdes, a diversidade de mulheres que vivia nessas instituigdes e os diferentes tipos de estabelecimentos, apontando ainda as expectativas da sociedade em relagao a elas, fosse no Reino ou na Colénia. O objetivo foi apontar que, apesar das diferengas que pudessem existir entre as instituigdes nos dois lados do Atlintico e na orientagdo da politica da Coroa em relagio 4s mulheres do império portugués, tratavam-se de varingdes locais concentradas especialmente nas origens das fundagées, sendo as semelhangas © continuidades existentes no seu modo de vida bem mais significativas do que as rupturas. [sso permite consideré-las enquanto um grupo especifico e singular de mulheres em ambas as sociedades, que mantinha contato direto com a palavra impressa em uma ¢poca em que era ‘comum as mulheres serem iletradas e terem pouca aproximagao com os livros, especialmente na América.” Cabe agora, portanto, centrarmos a atengiio nesse piblico leitor feminino e na presenga dos livros em suas vidas, Observemos os estatutos das instituigées de reclusfo. Eles nos revelam de livros nesses estabelecimentos como também um conjunto de informagdes no 36 a existé relacionadas com o que suas habitantes “liam”, onde ¢ como o faziam. % CE Natalie.Z. Davis, Culturas do povo ~ sociedade ¢ cultura no infcio da Franga moderna, trad. Rio de Janeiro, Paz e Tetra, 1990, p. 159. % Come observou Luiz Carlos Villalta, “a instragao na América colonial subordinava-se a uma ordem marcada pela vigéneia de critérios estamentais e pela apressdo da mulher” Isso sfgnitica que a instuto era vansmiida de forma diferenciada de aeordo com o género e com a condigao social dos individuos. © mesmo é vilido para a Metropole, porém no caso da Colénia, como afirma o mesmo autor. “0 conjunto da sociedade predominou 0 desprestigin pela educagao escolar, entretanto esteve Longe de inexistir qualquer aprege a escola”, Cf. “O que se fala e 0 que se le: lingua, instrugdo e Jeitura”, IN Laura de Mello e Souza (org,), Coridiano e vida privada na “América portuguesa, voi. | da Histirta da vida privada no Brasil, coordenagdo getal Fernando Novais, S40 Paulo, Compantia das Letras, 1997, pp. 331 € 354. 33 fidos no século Os estatutos do Recolhimento de Sdo José da Lagoa, no Algarve, redi XVIII (1763), por exemplo, sto bastante explicitos nesse sentido, informando-nos que deveria haver ligdo espiritual no coro depois de acabar as Vésperas ( do que se depreende ser com 0 auxilio de livros) e no refei rio enquanto durasse o jantar, e ainda das duas as duas e meia da tarde, Esclarecia também que “os livros por onde devem ler" nesses momentos exam os Exercicios espirituais do padre Alonso Rodriguez, as obtas do venerdvel frei Luis de Granada, as dlo beato D, Joao de Avila, as do padre Estela, a Relacdo espiriiual, A reformagéo crisid, 0 Flos ‘Santorum, Comemptus Mundi, 0 Pecador convertido os Compéndios da doutrina cristé™ Nem sempre os regimentos sfio to evidentes com relagio as leituras quanto este, resumindo-se geralmente a informar os hordrios ¢ espagos nos quais deveriam ser dadas as liges espirituais. a ‘A lista de livros apresentada é, portanto, preciosa, pois permite avaliar que se tratam de obras ligadas a0 movimento reformador interno da vida crista que se liga & Devotio Modema ¢ se estende pelos séeulos seguintes. Ou seja, uma literatura spiritual em que a ascese determinava, quase como um fim, uma vistio de mundo. * Eram obras que se destinavam & pregagao e difusdio de uma douttina de vida imerior, bastante conhecidas na epoca, divulgadas pela Igreja e presentes em outras bibliotecas conventuais, como por excmplo na lista de livros antigos da biblioteca do Convento de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, no final do século XVIIL** E possivel, portanto, que esses livros fizessem parte de um nticleo basico de leituras essenciais para a boa formagio moral ¢ espirituai dessas mulheres, o qual pouco se alterou entre os séculos XVI & XVI" A ® Cf ANTT, arquivo geral das congregagses religiosas, 388, Estatutos do Recolhimento de So José da Lagoa do ‘Algarve, 1763, ° Yer, por exemplo, Arquivo da Cilia Metropolitana de $20 Paulo, cod. 2-1-39, Estatutos do Recolhimento de Santa Teresa, “Da distribuigio das horas", fi, 16-17. %2 Sobre a espirituslidade portuguesa nos séculos XV ao XVI, ver a “Introdugdo" de Maria de Lourdes Belehior e ‘José Adriano de Carvalho a Antologia de espirituais portugueses, organizada pelos mesmos autores e também por Fernando Cristévao, Lisboa, Imprensa NacionaliCasa da Moeda, 1994, pp. 11-23. Para esses autores Devotio Moderta é um movimento de reformacao no interior da Lzreja que desponta no século XIV, a partir de diferentes pontos da Europa do Norte, ¢ possui varias linhas que se cruzars, A Imitagio de Cristo de Tomas Kempis, taduzide parcialmente em portugués desde o século XV, “pode ser, por certos aspectos, a sua sintese ¢ © seu simbolo”, p16. 9 ACST-RI, Lista de livros aatigos da livraria das carmelites descalgas, feta recentemente pelas religiosas da casa, A biblioteca do convento seré analisada no capitulo deste estudo inttulado “Literatura refigiosa © bibliotece de uma mistica na América portguesa. Be acordo com Maria de Lourdes Belchior e José Adriano de Carvalho, os Exercicios de perfeigdo do jesuita ‘Alonso Redriguez, pela vastissima audiéncis que alcancaram, podem ser um paradigma da espirituatidade dessa Spoca, CE op. cit, p. 21. 0 Compéndio de dowtrina crista € possivelmente a obra de Luiz. de Granada, 0 qual {eve grande influgncia na espiritualidade portuguesa e recebeu influéncias tanto de Erasmo como dos espiritiais cdo Norte ¢ da Itlia. Em seus livros as praticss tradicionais de edificagao e peniténcia ocupam largo espero. Cr. 34 mudanga de sensibilidade estética e religiosa que ocorreu na Europa do Iluminismo penetrou pouco em Portugal, embora nie se possa negar que os principios ilustrados tenham também ecoado na Peninsula Ibérica, moldando-se ao catolicismo, © que confere especificidade ao ‘movimento da Iustragdo em Portugal, Porém, em sua coldnia americana, privada de um sistema de ensino abrangente ¢ orgenizado, da imprensa ¢ de universidades, a influéncia das formas barrocas de religiosidade persistem ainda mais. O que se lia em matéria de religiéo nos claustros coloniais era basicamente 0 que chegava da Metr6pole pelos canais oficiais. Nas bibliotecas dos conventos no Brasil encontrava-se aquilo que era permitido ou que o havia sido em algum momento, pois o fato de existirem em seus inventérios livros censurados pela Real Mesa Censéria na segunda metade do século XVII ndo significa necessariamente que a censura fora burlada, pois a obra poderia tet sido adquirida antes da sua proibigdo. Pelas grades dos locutérios, entretanto, ndo seria dificil introduzir qualquer tipo de obra, Os mesmos estatutos de S80 José do Algarve advertiam ainda que era proibido a madre exceto 0s acima regente ¢ as demais recolhidas lerem “sem licenga” outros livros espirituais, mencionados”, indicative de que havia livros de devocdo que necessitavam passar pelo controle dos responséveis pelo funcionamento da casa.” Isso se explica pelo fato de haver, na época, varias obras religiosas proibidas pelos orgdos censores portugueses.™ Embora em 1763 ainda nao tivesse sido criada a Real Mesa Cens6ria ~ momento no qual foram proibidas vétias obras que ‘marcaram a espiritualidade portuguesa nos séculos precedentes (especialmente os escritos dos jesuitas) ~, desde antes do estabelecimento da Inquisigdo foram publicados em Portugal intimeros Index de livtos defesos contendo obras de religiao, as quais sempre foram um dos focos centrais da censura portuguesa. Essa preooupa¢iio persistiu no periodo pombalino, quando se suspeitava principalmente daqueles livros cujos titulos pudessem confundir 0s leitores, como se percebe por um edital da Real Mesa Censéria datado de 1770 condenando dois livros sobre a vida de Santa Madalena: um escrito em italiano por D. Am6nio Silio Brognoff Sale ¢ traduzido para o portugués por frei Anténio Lopes Cabral em 1695, ¢ 0 outro composto por frei Anténio da José Sebastifio da Silva Dias, Correntes de sentimento religiaso em Portugal (séculos XVI e XVII, toro |, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960, pp. 308- (4. °5 Eseatutos do Recolhimento de S¥0 José da Lagoa do Algarve, op. cit. °% Para o século XVIII, ver o eatilogo de livros defesos neste Reino, desde o dia da criagéo da Real Meso CCensoria até o presente (1768-1814), existeate em anexo no lisro de Maria Adelaide Salvador Marques, 4 Real ‘Masa Censcria ¢ a cultura nacional- aspectos da geografia cultural portuguesa no século XVI, Coitabra, boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, vol. XXV1, 1963, pp. 118-206. 35 Assungao, da ordem de S40 Domingos, impresso em Lisboa em 1747 & 1768. A primeira obra havia sido publicada com o titulo Magdalena pecadora, amante ¢ penitente, € se achou que ela nfo continha a vida da santa, mas uma novela “das mais licenciosas. organizada de afetos indecentes, pensamentos puetis, jogos de espirito, metaforas, alegorias e fiegdes s6 proprias dos séculos da barbaridade e da ignordncia; e de outras muitas coisas inteiramente alheias @ majestade ¢ pureza do cristianismo”.”” Para a censura, esse livro era prejudicial ao publico “...por pretender iludir e enganar, dando-se-lhe a ler novelas com o titulo da vida dos santos”, Mandava-se suprimir a impressdo da segunda obra e recolher & seeretaria da Mesa Censéria o livro do elézigo italiano, embora, ao que parega, ambas tivessem circulado livremente até entio, ‘Assim, em alguns estatutos vinha expresso ndo s6 0 que as reclusas deveriam ler, mas também aquilo que lhes cra vetado. No regimento das drfis do Castelo, redigido no ano de 1613, teve-se 0 cuidado de indicar, por exemplo: “..nada de histérias mentirosas de livros profanos, ‘mas literatura edificante e moral, principalmente vidas de santas que foram casadas como a vida de Santa Isabel, Santa Ménica (mie de Santo Agostinho), Santa Felicitas, Santa Brigida € coutras”, A mengdo as santas que foram casadas é bastante sugestiva do cariter do estabelecimento, uma vex. que visava preparar as érfis para o casamento. A ligao “espiritual” nessa instituigio, como em muitas outras, deveria ocorrer na sala de “lavor” ¢ no refeitério. ane) ‘costume era uma das mulheres ler em voz alta enquanto as demais se entretinham com trabalhos de agulha.” ou comiam em siléncio, “por se evitarem conversagdes ociosas, ¢ no s6 por utilidade espiritual das mesmas recolhidas, mas também por se aperfeigoarem melhor no exercicio de lerem”.' © livro era visto, portanto, como elemento de devogdo, mas também de formagao moral e de desenvolvimento da habilidade de leitura. A forma wilizada nesses momentos era a da leitura coletiva — ainda presente nos conventos do século XVIII ~ na qual os livros eram “compartilhados”, o que permitia aquelas que no sabiam ler ter contato com seus contetidos ¢ Aquela que lia para as demais aperfeigoar-se, ® BNL, Colegio Pombalina, 493, editais da Real Mesa Censoria, % CF BNL, fundo geral, 9557, “Regimento des Oris do Castelo”, 1613, f1. 10 ss.. apd Maria Joana Anjos Martins, op. city B43. © Ver, por exemplo, “Constituigles ¢ leis peles quais lito de governar as religiosas da Concricio de Nossa Senhora da Ajuda", IN Padre AntOnio Alves Ferreira dos Santos, Noticia histdrica da Ordem dat Imaculada Conceigio — Convento de Nossa Senhora da Conceicéo da Ajuda, Rio de Janciro, tipegratia do Jornal do Comercio, 1998, capiaslo XVI, p. 68. 36 pois nem sempre a escolhida poderia ter uma leitura fluente que a dispensasse da nevessidade de ouvir a propria voz para pontuar o texto adequadamente. E muito dificil separar o que se propunha nos estatutos do que era efetivamente feito. Porém, 0 fato de 0s varios estatutos consultados reforgarem a informagaio leva-nos a supor que a prética da leitura de livros religiosos ocorria com certa freqlléncia nesses estabelecimentos em vérios momentos da vida comunitéria, independente do fato, é claro, de serem utilizados nas oragies privadas e publicas (no coro e na missa ). Essa preocupagdo com o ensino da leitura também se encontra presente em muitos regimentos, especialmente nos dos recolhimentos que acolhiam meninas. Jé nos conventos 0 aprendizado n8o € mencionado, pois € provavel que se esperasse que as religiosas professas fossem capazes de pelo menos acompanhar a leitura no coro. E certo que, dado o cardter repetitive da leitura dos textos sagrados, as religiosas podiam dectamé-los por memorizagdo, — “teconhecendo” o texto ¢ no exatamente lendo-o -, € o mesmo podia suceder nas ligdes espirituais, Disso resulta que havia formas distintas do uso da palavra impressa, da apreenséo dos contetidos dos livros, e portanto atribuicdo diferente de significados a um mesmo texto, 0 que nos leva a ressaltar que no interior das clausuras ocorriam préticas diferentes de leitura, mas que, apesar de tudo, a palavra impressa penetrou nesse espaco sobretudo através da liturgia ¢ das obras de devogéo ou piedade.'“ No Recolhimento de So José, 0 capitulo do regiment dedicado 4 mestra das novigas enfatizava a necessidade do aprendizado da seguinte forma: “ensine especialmente as pupilas 0 ler e eserever ¢ contar, o fiar, cozer e bordar e a tudo mais que possa constituir uma mulher forte, © uma perfeita mie de familia”.' Sabemos por estudos especificos sobre 0 processo da aifabetizagaio, na Frange do Antigo Regime. que ler e esctever eram nao s6 duas “competéneias diferentes, mas também duas habilidades éxicas”."”° © aprendizado da leitura ocorria geralmente antes que a escrita, pois podia se dar antes de o aluno freqtentar a escola, aprendendo a ler em 1° CE Leila Mezan Algramti “Os estatutos do Recoihimento das Ortts da Misericérdia”, IN Cadernas Page, Carapinas, n.8/9, 1997, p. 383 (estatuto quarto, parigrato 4) 191 Sobre o contetide das obras doutsinais, misticas ¢ de piedade a disposigao de wm convento na América portuguesa, ver meu estuclo “Os livros de devogto e a religiosa perfeita (normatizasao e praticas religiosas nos Fecolhimentos femininos do Brasil colonial”, IN Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz, Lisboa, Editorial Estampa, pp. 113-23. 2 Cf. Estarutos do Recolaimento de Sao José, op. ci casa com a ajuda da mie e de textos doutrinais. Ler significava entrar em contato com a letra dos textos impressos, enquanto a escrita pressupunha a decifragio e reproduedo da letra manuscrita. 104 Agcim, encontraremos certamente nos conventos ¢ recoihimentos femininos mulheres que desenvolveram essas habilidades de forma diferente. Na Colénia, 0 indice de alfabetizago era mais baixo que na Metropole, pois até o século XIX no havia institutos de educagio para meninas, enquanto para os meninos existiam os colégios dos jesuitas. Os conventos ¢ recolhimentos eram, na verdade, a nica opgiio de uma educagdo feminina institucional na América portuguesa nessa época, Neles poderiam aprender a orar vocal ou silenciosamente, a ler em voz alta e a escrever.'“* Revar em voz alta foi a forma predominante de oragdo até 0 século XIV. Por essa época bs teSlogos passam a estimular e a ensinar a oragdo silenciosa como uma forma superior de rezar, {6 que esta atividade reside, segundo eles, totalmente na alma, Paul Saenger nos informa que antes de 1300, na liturgia da [greja ocidental, a orago silenciosa ¢ de fato desconhecida.' Essa seria uma forma diferente de comunicacao com Deus e, portanto, uma forma privada de devogao, enquanto rezar em voz alta passa aos poucos a ser associado ao culto piblico. Os estudos diedicados aos livros de horas apontam bem essa mudanga entre as formes de orar que se estabelece mais claramente por volta de meados dos séculos XIV ¢ XV. As instrugdes contidas nesses livros destinados aos leigos ¢ 4 devocdo privada permitem perceber quando deveria ocorrer a orago vocal e a silenciosa. As horas candnicas, por exemplo, seriam lidas em voz alta tanto na intimidade como no coro!’ J& a oragao silenciosa significava um esforgo de compreensdo que poderia no estar presente tia orago vocal devido & repeti¢aio mecdiniea ~ 0 que tanto chocou os reformistas ~, tomando-se esséncia do gesto de devogdo, inseparivel da recitagdo.'* A oragdo interior silenciosa reflete, portanto, “um novo ideal que identifica siléncio ¢ santidade e considera tudo © que é oral — € contido nos sermées ¢ cAnticos — como impedimento %) CE Roger Chartier, “Do livro a leitura” IN R. Chartier (org,), Priticas da leitura, trad., Sto Paulo, Estado Liberdde, p 85, © dem, 1X sobre @ educasio feminina nos canventos e a falta de educandérios na América portuguesa, ver meu estudo "‘ducagao feminina vozes dissonantes no século XVEIL ¢ pratica colonial” TN Tiana Blaj ¢ John Monteiro, Historia & Utopias, Ste Paulo, ANPUH, 1996, pp. 252-66. 6 Cf Paul Saenger “Prier de boueie et prier de couer: les livres d°heures du manuscrit & T'imprimé”, IN Roger Charter (diregto), Les Usages de limprimé, Paris, Fayed, 1987, p. 394. © Og religiosos utilizavam-se dos breviérios, enqusinto os [eigos podiam ler as horas candnicas nos livros de horas * CE idem, p. 205. 38 para atingir os mais altos degraus da experiéncia espiritual”."”” Surgem inclusive livros para acompanhar a missa indicando os momentos de meditagao ¢ de recitagio do Padre Nosso em siléncio. avango da alfabetizagdo na Europa, nos séculos XV ¢ XVI, bem como o fato de varias oragdes presentes nos livros de horas serem escritas em lingua vulgar, também contribuem para que se note que, por essa época, ecorre uma profunda mudanga na forma de rezar ¢ de ler os textos devocionais, a qual sugere uma maior intimidade entre 0 leitor ¢ 0 livro religioso. E precisamente também durante esses séculos que a representagao do ato de rezar nas miniaturas dos manuseritos se transforma radicaimente, Em vez de mostrar 0 suplicante com os bracos abertos ¢ elevados, as representagdes mostram o fie] com as méos juntas, palma contra palma ou com os dedos entrecruzados.'' Todos esses elementos de mudanca na forma de ler os textos sagrados ¢ de orar sic importantes e merecem ser mencionados quando refletimos sobre os usos do livto ¢ as formas de feitura no espago da clausura, j4 que devem ter influenciado as relagoes {que as reclusas estabeleciam com a palavra impressa. A leitura individual silenciosa prescrita para alguns mementos no coro ou na privacidade das celas foi estimulada pelos estatutos © constituipdes dos estabelecimentos femininos (teligiosos ¢ leigos). A Regra das carmelitas ¢ extremamente detalhada a esse respeito, informando sobre 08 horérios das horas candnicas © como deveriam ser ditas: cantadas ou rezadas.''' Com relagao & Jeitura espiritual, informa: Empregardo as religiosas 0 tempo que Ines sobrar depois de sair das Vésperas em leitura espiritual até as trés, de modo que nas Vésperas sejam cantadas ou rezadas, ¢ nesta leitura se empregue uma hora, Nos dias de jejum de Quaresma se fard essa leitura de duas as trés, gastando nela pelo menos meia hora, E se alguma em qualquer tempo sentir vontade de se dedicar & oragdo, fara o que parecer mais converiente a scu espirito € aproveitamento de sua alma. No parigrafo 14 desse mesmo capitulo esti escrito: “Cuidaré muito @ prelada que nio faltem ao convento livros espitituais: convém a saber: Flos Sanctorum, Contemptus Mundi, as obras do Venerivel Luis de Granada, de Sao Pedro de Alcdntara, do Padre mestre de Avila ¢ sobretudo da nassa madre Santa Teresa ¢ outros semelhantes: porque ° Ipidem, pp. 203-4 2 para uma analise tnais detalhada Sobre a representaySes da oragio, ver Paul Saenger op. cit, pp. 207-8 29 CE. Rogla primitiva de las religiosus descalzas de N.S. Del Carmen, op. cit Ver especialmente 0 capitulo 1V, * De as horas candnicas, oracién mental, examen de consciencia y disciplin. pp. 54-63. 39 cesta leitura nfo & menos necesséria para alimentar 0 espirito, do que © comer corporal para alimentar 0 corpo.'"? Na maior parte das ordens teiigiosas, porém, nio era permitido as freiras possuirem objetos pessoais, nem mesmo livros. No Convento da Visitagao de Santa Maria, segundo o memorial de sua fundagao, “a pobreza das religiosas era to perfeita que nem das suas contas sao senhoras, nem dos seus livros, nem dos registtos; ¢ por isso no fim do ano, quando se tiram as sortes das celas, para onde hao de ir morar, cada qual deixa tudo quanto tinha na cela e vai para a ‘que saiu por sorte; ¢ 14 acha o que a outra deixou”.'” Disso resulta a importincia das bibliotecas conventuais, nas quais as reclusas poderiam encontrar os livros permitidos pelas ordens, quase sempre obras religiosas. Isso obviamente no significa que a regra fosse cumprida a risca: as reclusas poderiam tanto ndo ler 0 que se esperava que lesser como fer por meio de empréstimo obras profanas e até proibidas. Consultando a documentagdo do Convento de Sao Bento da Ave-Maria do Porto de fins do século XVILL, Olimpia Loureiro detectou que a leitura no refeitério decaira nessa instituigio € ‘que, embora “houvesse li¢Ho espiritual nele, era pouco freqientado”. Na correspondéncia de uma das prioras havia a observagdo de que “algumas religiosas eram aplicadas a livros franceses” e, finalmente, pelo rol de livros solicitados pela Real Mesa Censéria em 1769 a todas as instituigées religiosas, a autora conseguiu avaliar 0 teor e as quantidades dos livros presentes em varias bibliotecas particulares pertencentes as freiras daquele estabelecimento, as quais tiveram o cuidado de sé enviar titulos permitidos. $do 52 pequenas bibliotecas particulares com apenas 267 titulos e 299 tomos, pertencentes a mulheres da nobreza, « maior parte literatura religiosa ¢ em portugués.!4 Estudos como esse confirmam que, nas sociedades do Antigo Regime, conventos & recolhimentos eram espagos de leitura feminina, embora no interior das cfausures as mulheres se relacionassem de mancita diferenciada com os livros. Cabe lembrar, ainda, que grande parte da vasta literatura de devogdo (exercicios espirituais, obras misticas e de oragao mental, vidas de santos) escrita ow reeditada pos-Trento visava especialmente aqueles que abragavam a vida "2 Jem, pp.60-61 4 AN'TT, fando arquivo geral das congregagdes, 1053, Breve Noticia do Instituto das Religiosas da Visitegto de Santa Maria, Lisboa, Oficina de Aniénio Rodrigues Galhardo, 1782, p. 12. 4 Olimpia Loureiro, "Os livros das monjas do Convento de Sao Bento da Ave-Maria do Porto finais do século XVII", IN Revista de Ciencias Histéricas, Universidade Portucalense, vol. XII, 1997, pp. 227-37. 40 religiosa — homens ¢ mulheres -, embora se destinasse a todos que buscassem uma vida de perfeicdo. ‘A partir dessas leituras despertavam-se muitas vezes as devagdes aos santos, o desejo de imitéclos ¢ a convicedo de algumas mulheres de que haviam sido eleitas e privilegiadas com gragas divinas especiais, o que estimulava o misticismo e a pritica de uma vida exempiar, algo presente nas intmeras biografias de freiras disponiveis no periodo, escritas por religiosasy © papel ¢ o significado da escrita, por outro lado, também se manifestavam de forma diferente entre as mulheres reclusas, jé que havia as iletradas, as eseribas ¢ também as liveratas famosas que publicavam suas obras. Podemos dizer que trés tipos de esetita se desenvolveram nos claustros femininos: uma eseritura doméstica ow institucional e de caréter pragmético, produzida com vistas administragdo da casa, como os livros de contas (receitas e despesas), registros de entradas, ébitos, profissées; uma_escrita de foro fntimo ¢_privada, como_as correspondéncias particulares ou os escritos de consciéneia aos confessores. Entre eles desponta 0 tereeiro tipo de escritos: autobiografias ¢ as biografias (ou “vides”, como se dizia na época) de companheiras de clausura. Esse género de eserita era doméstico mas ao mesmo tempo privado, pois efa produzido por elas ou por clérigos ligados 4 ordem com a finalidade de preservar a meméria e a histéria da instiuiggo, circulando entre as proprias habitantes da casa. Mas, de certa forma, eles adquiritam um cardter também puiblico, pois sempre houve a intengéo, mesmo camutlada, de enaltecer a ordem e divulgar a exemplaridade das “vidas” fora dos conventos, 0 que explica o fato de muitas terem sido publicadas.""* Com relag4o ao primeiro tipo de escrita existem varios exemplos tanto para Portugal como para a América portuguesa, a maior parte em forma de manuscrito a disposigaio nos arquivos piblicos ou, no caso do Brasil, naqueles das préprias ordens religiosas e dioceses.'"* Além de serem documentos reveladores do cotidiano no interior das instituigdcs, os registros de entradas, de receitas e despesas e toda a documentagdo burocritica da instituigo indicam a \S yJejandro Valderas Alonso organizou umm extenso repertiio de biografias de refigiosas da Ordem da Imaculada Coneeigdo, 0 quai fortece uma idéia da vastissima produgdo de biograflas ¢ autobiogratias de freicas vyeneraveis. Ver “Bibliogralie histica sobre la ordem de Ia Imseulada Concepeién: biografias”, TN La Orden Concepcionista, Actas del I Congreso internacional, Le6t, 1990, vol. 2, pp. 329-S0. ME Sobre registos de despesas, ver ANT'T arquivo das congregasdes religiosas, 893, Despesa Anual com izrejas, festas, novenas ete, Convento da Visitagfo, Lisboa, 1789; ACST-RJ, Livro de Recetas ¢ Despesas do Convento 4ée Santa Teresa (1802-1818) ; no Arquivo da Citria Metropolitana do Rio de Janeiro encontra-se o Livro de Despesas ¢ Receitas do Patriménio da lgreja de Nossa Senhora do Parco (1786-1797). Para as entradas nas instiuigdes, ver o Registro de Entradas do Recolhimento das Macailbas em Minas Gerais (no proprio arquivo al presenga de escribas ¢ copisias que dominavam a escrita e possuiam uma caligrafia bem tragada. ‘A elas cabia manter em dia os livros e cadernos de assento para efeito da contabilidade doméstica, mas também da historia do estabelecimento. Junte-se a essas mulheres aquelas que escreveram as crénicas sobre as fundagdes, as hoticdrias ¢ até mesmo aigumas que nos legaram cademos com receitas de culinéria.'"? A correspondéncia particular das reciusas ou seus escritos dirigidos aos guias espirituais siio mais raras do que os exemplos de escritura domestica, mas existem inclusive publicados, especialmente quando se trata de uma religiosa que se sobressaiu na historia da ordem.''* O controle sobre as cartas que entravam ou saiam das clausuras sempre foi matéria de atencdo daqueles que legislatam sobre 0 cotidiano dessas mulheres e as adverténcias sobre o modo de proceder nesses casos foram previstas nas regras, constituigées ¢ estatutos, os quais atestam néo apenas o habito da correspondéncia mas certamente a habilidade dessas mulhetes de escrever.''* Através de correspondéncias particulares elas mantinham contato com o mundo exterior, desenvolviam amizades ¢ cumplicidades, sentimentos que jamais estiveram ausentes no interior dos claustros femininos.'”° As biografias e autobiografias representam, por sua vez, um género de escrita distinto dado o caréter literario que algumas possuem, mas principalmente por se tratar de uma literatura do convento) ¢ 06 registros de entradz do Recolhimento de Santa Teresa em Sto Paulo, no Arquivo da Céria ‘Metropolitana de S80 Paulo (1748), cod. 6-1-8. °"T Ver por exemplo o manuserito BNL, cod, 1073, Maria Leocadia Monte do Carmo, clarissa, Livro de receitas de doces e cosinhados varios deste Convento de Santa Clara de Evora ‘Ver por exemplo as cartas de Maria do Céu, BNL, Mss, caixa 24, n. 99, *Cartas em prosa ¢ em verso a Duquesa de Medinaceli D, Teresa de Moncada e a sua filha D. Maria del Rosario”, aped Maria Filomena Belo op. cit.) 277. As cartas de soror Helena ao Morgado de Mateus sobre « fundagao do Recolhimento da Divina Pravidéncia {atual Luz) estRo publicadas ne Revista da Arquivo Municipal de So Paulo, vol. 9-10, 1935. . 139. 1° Na Regra das carmelites, a porteira ou rodeira néo poderia entregar ds rligiosas cartas, recados ou bithetes de fora ou de dentro sem a licenga da prelada sob pena de “grave cufpa”, devendo registrar as cartas ¢ ié-las inteiramente sob a mesma pen, exceto as dos prelados superiores que deveriam ser entregues 4 religiosa & qual se destinasse a carta. Cf, capitulo XV, “De lo que estén obligades a haccr en sus ofieios ast la Priora como las dems monjas", Regta Primitiva de las Religiosas Descalzas de N.S del Carmen, confirmada por el papa ‘nocéncio 1Y (1796), Valencia, Tipografia Beneditina, (958, pp. 106-7. 1% Soror Matia de Agreda, que escreveu Misica Ciudad de Dios, uma vida novelada da Virgem Maria que fcentua os. mistérios da Imaculada Conceigdo — obra polémica © proibida pela Inquisigao espanhola posteriormente pela Real Mesa Censcria em Portugal, manteve uma correspondéncia intensa com o rei Felipe TI, a quem servia de conselhcira © amiga. Séo 308 cartas dirigidas por Soror Maria a Felipe If ¢ 306 do monerea 4 moaja. CE José Antonio Perez-Rioja, “Perfil humano y literario de Sor Matia de Agreda, 1 La Orden Concepeionista, Actas det I Congreso Internacional, Lebn, 1990, vol 2, pp. 255-64. 2 Pl Assim, se a escrita edificante, a servigo da evangelizagao, como a caracterizou Octavio Paz, institucional e o habito de manter correspondéncias esteve presente tanto nos estabelecimentos religiosos como nos leigos, as biografias ¢ autobiografias sio prdprias do segundo tipo de instituigo. Representam um género de escrita muito popular na Europa modema, cujo auge em Portugal se situa no século XVI, mas para o qual existem raros congéneres na América colonial.” Muitas delas sto obras eminentemente misticas, ¢ sua importincia reside fundamentalmente no fato de terem sido escritas nos claustros femininos, dirigides 4s mulheres que neles viviam, ¢ também pelo que revelam do quadro social da época, tanto no Reino como na Colénia. Através desses escritos € possivel recriar 0 cotidiano conventual, as condigoes de vida das mulheres dentro e fora das clausuras, os dramas intimos e a cultura religiosa do periodo. As dificuldades, as doengas, as aftontas e 0 sofrimento moral ¢ fisico imposto a essas mulheres enclausuradas sao vistos por elas nas biografias e autobiografias como formas pelas quais Deus se revelava ¢, portanto, impostas por Ele. De acordo com esses escritos, as religiosas aceitavam todos os sacrificios com humildade, todas as tarefas ¢ contradigSes vividas como obras divinas, imbuidas que estavam da. espiritualidade be metade do setecentos em Portugal. Essas mulheres escreveram sobre suas misses na Terra, unio jue dominou o final dos seiscentos ¢ a primeira com Deus ¢ 0 significado da vida religiosa. E nesse sentido que os textos adquirem um carater pedagégico doutrinal, se aproximam do género hagiografico ¢ certamente nele se espelham. ‘Como bem apontou Joio Palma Ferreira, a insipidez © por vezes insuportavel vacuidade das crénicas monésticas, em que em conjunto se relataram as vidas de frades e freiras (..}, tem contribuido para que no se reste a devida atencio a textos que, como poucos no seu tempo, so um auxiliar preciso para o estudo intimo de toda uma época e de uma sociedade.' A analise liteniria desses textos ndo € 0 objetivo do nosso estudo, embora ndo se possa negat que entre as religiosas portuguesas encontram-se fiteratas de renome, como Viotante do Céu (1607-1693), Maria do Céu (1658-1753) ou Anténia Margarida de Castelo Branco (1652- 1717), as quais entre outros escritos em prosa ou verso, iegaram-nos biografias de religiosas ¢ " GF Octavio Paz, Sor Juana Ines de ia Cruz o Las rrampas de ia fe, México, Fondo de Cultura, 3 ‘ed. 1990, p. 2 7 Cf. Margarida Vieira Mendes, 4 oratéria barraca de Vieira, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p. 44 ‘2 Aménia Margarida de Casielo Branco, autobiografta, prefacio e transcrieao de Joao Palma Ferreira, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, p. 38. B mesmo autobiografias.'"* Embora se trate de formas distintas de expresso, pois 0 género autobiografico se define “como um relato retrospectivo confessional em prosa que uma pessoa real faz de sua propria existéncia, destacando sua vida individual e a historia de sua personalidade”'**, as biografias e autobiografias serdo tratadas em conjunto. pois o que nos chamou a atengdio foi o fato de indicarem as relagdies que essas mulheres estabeleceram com a palavra impressa e com um tipo especifico de literatura. Sto religiosas que cultivaram 0 hébito da leitura de livros devocionais ¢ que ao escreverem nos revelam os usos que fizeram desses livros, projetando ¢ divulgando em seus escritos a cultura religiosa de seu tempo. Essa cultura que se manifestou intensamente nos claustros portugueses ecoou também do outro lado do Atlantico, penetrand nos conventos ¢ recolhimentos da América portuguesa, uma vez que os poucos exemplos que sobreviveram sto bastante semelhantes aqueles produzidos pelas freiras na Metropole, ?6 E muito vasta a produgdo de biografias de religiosas em Portugal. Elas se apresentam na forma de breves relatos, inseridos em livros que contém noticias sobre os antigos mosteiros da peninsula, como ocorre por exemplo no volumoso livro que trata da crénica do Mosteiro de Madre de Deus em Xabregas, findado pela rainha D, Leonor, vitiva de D. Joao It”, ou no manuserito sobre essa instituigo e vidas de suas fundadoras existente na Biblioteca Nacional, atribuido a soror Maria Madalena do Sepuicro, autora de mais dois livros.'* Qutras vezes as vidas foram publicadas separadamente, mas sempre remetem a histéria dos estabelecimentos nos = snabela Galhardo Valério do Couto, em um estudo sobre as escritoras portuguesas do periodo, confirma a iraportincia dos conventos enquanto espacos de eserita feminina e destaca produgQes de cardter nfo devoto, come poesias para os momentos de sociabilidade e festas conventuais, bem come novelas. Cf. Escrtaras de {fines do sécelo XVI ¢ inicios de séeula XVI: seu contributa para ¢ definigfo de uma cultura barroca em Portugal ( exemplar manuscrito). No mundo hispénico nio se pode ceixar de mencionar entre as ftetas Titeratas, Maria de Agreda e Sor Suana Inés de la Cruz "5 Cf Mercedes Gomez del Manzano, “Autobiogratia de fa Madre, Fifomena Bustamante. Su signfieacion Tieraria y espiritual”, IN La Orden Concepeionusia, Actas del F Congreso imernacional, op. cit, vol 2, pp. 277- e~ 88, 4126 Nas erdnicas do Recolhimento da Divina Providéncia em So Paulo ( Convento da Lu2), hé varies dessas breves biografis, 0 mesine sucedendo nos registras de dbites. Arquivo de Convento da Luz, Livro de Cxénicas L = Cf Pe, Jeronymo de Belém, Chronica Sordfica da Santa Provincia dos Algarves da Regular Observéncia de Nosso Padre S. Francisco... Lisboa, 1755. apud, Francisco Leite de Faria (coord,), Santa Clara e as clarissax ‘em Portugal 1193/94-1995/94, Lisboa, Instituto da Biblioteca Nacional ¢ do Livro, 1994, p67. " BNL, res, 1522v, apud Men; sobre a fundacio e vidas das fundadoras do Convento da Visitagao de Lisboa, ver ANTT arquivo das congregagées religiosas, 820, 1784; sobre a vida de algumas religiosas do Mosteiro de Salvador em Evora, ver BNL, res. cod.16 “Widas de algumas religiosus de singular virtude deste mosteiro do Salvador (século XVI", quais suas protagonistas viveram. O catilogo comemorativo do oitavo eentendtio do nascimento de Santa Clara, sobre as clarissas em Portugal, informa que nesse mesmo convento de Xabregas viveram outras escritoras como a madre Maria Micaela do Sacramento, a madre Francisca Isabel ¢ também a madre Cecilia de Sto Francisco, francesa ¢ fundadora do mosteiro, que publicow um opisculo devoto." Muitas das biografias de religiosas foram eseritas por elérigos ~ confessores e capeldes dos conventos ~ como a redigida pelo arcebispo da Bahia, intitulada Vida e morte da madve soror Vietéria da Encarnagdo (1661-1715) ¢ por ele dedicada as clarissas dessa cidade (um dos poucos fe raros livros redigidos em portugués e impresso na Itdlia.""” Ha ainda publicagSes que contemplam a vida da religiosa e sua obra literaria, como Clamores do eéu aos coracdes da terra, composta pelo padre Francisco Xavier. Na primeira parte desse livro nara-se a vida da madre Teresa Juliana de Sao Boaventura, falecida aos 73 anos, em 1750, ¢ nas paginas seguintes publicam-se as suas obras, constituidas de poesias escritas para as clarissas."*! Interessa-nos, porém, chamar a atengo para aquelas redigidas pelas proprias freiras, como a Vida da madre Mariana do Rosdrio, religiosa do Salvador em Evora, “escrita em parte por ela ¢ em parte pela madre Helena do Espirito Santo”.""* vida de madre Helena da Cruz, do Mosteiro da Esperanga em Lisboa, recentemente estudada transerita por Maria Filomena Belo"; ou ainda a clarissa Guiomar do Espirito Santo que Ou a famosa biografia feita pela madre Maria do Céu sobre a ‘escreveu 0 Livro das virtudes ¢ milagres que fez em vida a venerdvel Maria Mecia da Conceigao.™ Ha porém um grande niimero inédito de biografies © de autobiografias de religiosas datadas de meados do séeuio XVII ao XVII nos eédices da Biblioteca Nacional de Lisboa e de outros arquivos.'"* Joao Palma Ferreira observa que, “de um cédice sebastianista, dos muitos que CF, Francisco Leitéo de Faria (coord), op. cit. p. 69. °° fdem, p. 81. A obra Toi eserita por D. Sebastigo Monteiro da Vide e impressa em Roma na estamparia de Jo8o Francisco Chracas, em 1720, Teresa Juliana foi religiosa no Mosteiro de Santa Clata em Lisboa ¢ @ sua vida foi publieada em Lisboa, na oficina de Francisco Silva, em 1752. 8° Cf Francisco Leite de Faria, op. cit, p.79. ° Bilomena Belo, Relacdo da vida e morte da serva de Deos a venerdvel madre Helena da Crus por séror Maria do Céu, Lisboa, Quimers, 1993. As obras de Maria do Céu estio arroladas no catdlogo sobre as clarissas ‘organizado por Francisco de Lite Faria, op. cit. pp. 95-106. + Francisco de Leite Faria, opcit.p. 89 138 Jogo Palma Ferreira, op. cit. p.34; Isabel Morujao realizou um trabalho importantissimo € inédito de fevantamento da produgdo literaria mondstiea feminina em Portugal registrando ¢ seguindo o percurso editorial 4“ se mantém inéditos ¢ raramente se véem citados, ha que registrar a vida da veneravel madre Leoeddia da Conceigo, freira do Convento da Madre de Deus de Monchique (datada de 1685)".'°* Essa biografia foi eserita por outta religiosa por incumbéncia dos confessores. Entre as autobiografias podemos considerar a vida de madre Maria da Assuncao (morta em 1701), religiosa do convento das madres Agostinhas Descalgas de Xabregas, “por preceito ¢ mandato de seus prelados ¢ confessores””, € a da madre Antonia Margarida de Castelo Branco (1652-1717), filha de Anténio de Albuquerque, capito-mor do Maranhao e da Paraiba (filho do lendétio Jeronimo de Albuquerque, 0 Meranhio), que se destacou na guerra contra os holandeses mas acabou regressando ao Reino, onde se casou.'"* ‘Mas 0 que dizem essas freiras? Tomemos como exemplo algumas biografias escritas sobre as primeiras religiosas da Ordem da Visitagdo na Franga, “copiadas” ¢ “traduzidas” pelas monjas do Convento da Visitagio em Portugal, as quais localizamos junto aos documentos relativos 4 fundagio desse estabelecimento.'” Trata-se de um conjunto de nove biografias, todas referentes a religiosas que viveram no primeiro convento da ordem cm Annecy, contemporéneas de Santa Joana de Chantal ¢ de Sio Francisco de Sales, ¢ que se envolveram na propagagao dessa ordem, especialmente como superioras de outros estabelecimentos que ajudaram a criar na Franga, Suiga e Bélgica atuais.'“” As biografias nfo estilo datadas nem assinadas. Sabe-se por uin documento que as acompanha, dirigido “as nossas muito amadas e queridas irmas”, que deveriam compor um livro que se pretendia publicar ¢ que daria continuidade a um outro jé existente, cujas vidas ieriam sido “trabalhadas” por um padre jesuita que néo quis ser identificado. Porém, algo intezrompeu a publicagao dessas “vidas”, escritas, 00 que parece, pela inma Francisca Madalena das Chagas, a qual nfo sabemos quem foi nem quando ou onde as redigiv, Tudo leva a erer que fosse uma religiosa francesa, pois no final da introdug’o pode-se ler; *Vossas muito humildes e indignas irmas ¢ servas da Comunidade da Visitagao de Santa dias obras impeessas, E digna de nota a grande quantidade de culos publicados localizados. Cf. “Conteibuto pata uma bibliogratia cronolégica da Viieroira mondstica ferminina portuguesa dos séculos XVI e XVIII Tinpressos)" IN Lusitania Sacra ~ Revsia do Centro de Estudos de Histéria Relgiasa. Porto, Universidade Catdica, 2a sie, 7, 1995, pp. 253-338, Idem, 35. ©? thider,p. 36. © biden, p. 15. © Em edital de 30 de janeiro de 1782, D. Mati I autoriza a fundagdo do primeiroinstituto da Ordem da Visitagdo de Santa Maria, ANTT, arguivo das eongregagdes, 1053, *Fundagdo da Ordem da Vistasto", op ct. 140 ANTT, fundo arquivo geral das congregagdes, lévro 1108 (cinco vidas) e 1056 (quatro vidas). 46 Maria D’ Annecy”. Mas 0 fato de poderem ter sido escritas por freiras francesas nfo altera nosso propésito; ao contrario, por ele ja se nota uma das principais caracteristicas desse género literdtio: ser um fenémeno de longa duragdo presente na vida das religiosas, independente da ordem a qual estiveram ligadas, da instituigdio ou do pais em que viveram.'"! Narrar a vida de companheiras de clausura, principalmente de irmas que se destacaram nas instituigdes, viveram exemplarmente ou morreram dignificando a comunidade, ¢ uma prética presente cm muitas ordens religiosas tanto em Portugal como no resto da Europa. Desse conjunto de biografias selecionamos primeiramente quatro vidas, a fim de tomamnos conhecimento sobre seus contetidos e o propésito da escrita: madres Paula Jerénima, ‘Ana Maria Rofet, Ana Catarina e Maria Margarida.'? narrativa cronolégica ~ desde a infiineia até a morte das personagens -, enfatizando-se a As biografias seguem sempre uma “chamada para a vida religiosa”, os exemplos de virtudes da biografada, as boas obras realizadas, ‘mas também os conflites internos, segundo se acreditava, das almes daqueles que se devotavam a Deus. Ou seja, elementos que geralmente encontramos presentes nos relatos das vidas dos santos. Nesses quatto textos 0 estilo € muito simples ¢ as histérias de vida repletas de intimeros detalhes sobre os problemas que envolveram o surgimento dos conventos e a implantagdo da regra, numa nitida preocupagio com a preservagdo da meméria da ordem. Todas as religiosas viveram na primeira metade do século XVI e morreram entre 1656 ¢ 1667. O costume de destacar e celcbrar ‘a data da morte dos santos, em vez da de seu nascimento, também aparece nessas biografias, uma vvez que 0 ano da morte vem assinalado em destaque no cabegalho dos textos. Estes, por sua vez, sdo entremeados de breves trechos de cartas que elas esoreveram ou receberam de Sdo Francisco de Sales ¢ de relatos individuais sobre premonigdes, sonhos ¢ interpretagGes de fatos referentes As suas vidas, Como as biografias sfo todas muito parecidas, se passam na mesma época, escolhemos apenas uma para comentar mais detidamente ¢ ifusttar duas questfes que nos parecem importantes a respeito dessa cultura letrada e de caréter religioso que s¢ desenvolvia no interior dos claustros femnininos. Um primeiro aspecto que se depreende desses escritos é que, se havia freiras que possuiam habilidade para escrever, usaram-na geralmente para enaltecer a ordem a que estavam "9 © fato dessas biografies encontrarem-se em am arquivo portagués, juniamente com as fontes relativas a uma institaigdo portuguesa revela como esses escrtoscirculavam e sua importancia, a qual transcende 0 aspecto da nacionalidade. a7 ligadas nartando as “vidas” de suas companheiras de forma exemplar, num estilo que se aproxima do hagiografico, mas principalmente com a preocupagdo de transmitir os valores da vida religiosa “selecionando” certos acontecimentos. Na biografia da irm& Paula Jerénima, como nas demais, os trés votos da religido (castidade, obediéncia e pobreza) so constantemente reforgados, A castidade adquire proeminéncia na vida da irma Paula Jerdnima, sendo preservada de imimeras formas por seus pais, que a protegcram de um “herege” calvinista que por ela se apaixonara e a perseguia. Entende-se que a menina corria tisco de ser raptada, jé que a grande fé catolica de seus pais nao consentiria no casamento. Naqueles tempos de Reforma, a fidelidade 4 Igreja ¢ os softimentos advindos do fato de a familia nao aderir ao calvinismo sto fortes elementos na biografia da futura religiosa, Em vista dos perigos que passava, toda a familia se viu obrigada a mudar constantemente de domicilio e Paula acabou sendo enviada para a casa de parentes a fim de preservar sua castidade. A docilidade de scu caréter ¢ a sua devoco foram logo notadas pelos familiares que a acolheram ¢ enaltecidas pela bidgrafa.'** Quanto a obediéneia ~ 0 mais dificil ¢ importante dos votos de uma religiosa ~, tansparece em varias passagens da biografia de Pauia Jerénima, tanto em relagdo aos pais quanto a seus superiores. O trago mais distintivo dessa vida é certamente a dedicagdo & ordem que entiio nascia ¢ que efa abragou, Desde © primeiro momento em que teve contato com as religiosas da Visitagiio, Paula no deixou de se submeter aos seus designios. Pouco tempo depois de fazer os votos, Santa Joana foi a Grenoble fundar uma nova casa, deixando Paula em seu lugar, na dirego do Convento de Annecy. Segundo consta, “Ela se abandoncu totalmente ao seu fervor ¢ a0 seu zelo, desde que the deram este emprego, que o santo fundador foi obrigado a moderar o fervor desta nova diretora”, 4 Mas Jogo camegaram outras fundagdes e Paula passou a viajar de vila em vila ajudando a fundar as casas sem opor resisténcia ou manifestar sua vontade, enfrentando todo tipo de dificuldade com extrema humildade. Inicialmente foi indicada para fundar o convento em Bruges, mas uma doenga impediu-a de partir. Logo depois foi a vez do convento de Moulins, depois o de Nevers ¢ finalmente o de Blois. Nunca questionou uma ordem de Joana de Chantal ou de Sao Francisco de Sales ~ bispo de Genebra -, e jamais se apegou a coisas materiais. Enfim, de acordo com sua 2 CE ANTT, fundo arquivo geral das congregagdes religiosas, 1056. '8 4 vide da madre Paula Jerdnima de Monthour D'Annemase, professa do primeiro Mosteiro da Visitagao da Santa Maria d’Annecy morta em o convent de Blois em 10 de setembro de 1661", ANTT, fundo das ‘congregapses religiosas, 1056, pp. 23-4 4 Idem, pp, 29-30. bidgrafa, viveu modestamente, embora tenha nascido em uma familia de posses ¢ de origem social destacada, O que temos, portanto, nfo difere de outras vidas de fumdadoras e superioras, “muito amadas de suas comunidades e das populagdes locais", ¢ que se consagraram a religido, Mas € justamente a simplicidade de sna vida marcada por poucos fatos extraordinarios, ¢ até mesmo sua morte singela, 0 que confere relevo & sua biografia, pois poderia ser igualada ¢ imitada por qualquer outra religiosa dedicada. De suas virtudes a mais destacada na biografia ¢ a caridade, algo, além da obediéncia, valorizado muma religiosa. O que se observa na biografia de Paula Jerdnima ¢ de suas companheiras, escritas no contexto das Reformas catélica ¢ protestante, a necessidade de reafirmar nao s6 0 modo de vida, mas também os valores cristfos: a fé ¢ a presenga divina nos menores gestos dos individuos e nas suas pequenas realizagbes. segundo aspecto a destacar, embora se encontre presente apenas nesta biografia, entre as que foram consultadas, serve para ilustrar a complexidade a diversidade das relagSes que as religiosas mantinham com a palavra impressa e os usos que faziam dos livros religiosos. Logo no inicio da nazrativa, a bidgrafa informa que irma Paula Jeronima, antes mesmo de entrar para 0 convento, passava 0 tempo em adoracto ao Santissimo Sacramento, destacando que sua devocdo havia sido despertada pela leitura de livros de devogio: dois livros concorreram prinefpalmente para entreter em seu coragiio este fogo nascente de amor divino: a Introdugdo a vida devota de Sto Francisco de Sales e 0 Guia dos pecadores do veneravel Luis de Granada. Pode-se dizer que desde que estes dois livros Ihe cairam entre as mos fizeram quase toda a sua ocupagao e por gostar deles com mais prazer havia muitas vezes fugir as companteiras que chegavam de toda a parte..." ‘As Icituras do livro de Luis de Granada, segundo a irma Francisca Madalena das Chagas, “Jhe inspiraram uma fortissima devogio a esse religioso a ponto de dizer que se ainda fosse vivo iria se deitar a seus pés € pedir-lhe que a recebesse sob sua ditegdo” tendo inclusive desejo “de se 4 Tpidem, p. 25. A obra do dominicano frei Luis de Granada marcou profundamente 0 pietismo portugues no século XVI e seguintes, Pregou em Portugel (chegando em 1551) e suas obras foram publicadas ainda durante sta estadia no pais. Conquistou rapidamente a admiracdo éa elite politica ¢ religiosa. Sua doutrina se inspira nos misticos do Norte ¢ nos italianos. Sofreu ainda influéncia de Jo3o de Avila ¢ dos inacianos. O Guia des pecadores & uma das suas obras mais conhecidas, mas escreveu varias outras, todas com @ mesma preocupacao de charnar o fel as prticas espirituais, O tema nuclear de seus escritos é.a orago mental. Para ele quem nao a pratica ou a pratica mal esté longe quase sempre da verdadeira devogtio. Cf. José Sebastiso da Silva Dias, Correntes de sentimento religioso em Portugal, séeulos XVI a XVII, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1960, tomo 1, pp. 299-316, 49 fazer religiosa em uma casa de sua ordem”.'“* Paula comecou entio a sonhar com frei Luis de Granada ¢ a0 longo de sua vida consultou-o sempre que necessario em sonhos © pensamentos ‘Num desses sonhos, 0 religioso the apareceu dizendo-Ihe que “no se inquietasse que Deus tinhe formado outros designios para ela”, isto é, nfo seria a ordem de Luis de Granada aquela a qual professaria. Passou entio a ler suas obras “de joclhos nus sobre a terra tanto pelo respeito que tinha pelas adoraveis produgdes do espfrito deste grande homem, como para por este fim atrair as luzes do eéu a fim de melhor penetrar o sentido e de ter, para assim dizer, uma mais deliciosa inteligéncia”. Mas seu diretor espiritual advertiu-a de “que s6 a escritura santa merecia este culto... ¢ que era dessa fonte sagrada que o venerdvel Luis de Granada tinha tirado que o simples camal é infinitamente inferior & origem”."” A jovem acreditou entio que essa era uma forma de permitir-Ihe ler a Escritura Sagrada ¢, encontrando um exemplar da Biblia em vulgar no gabinete de sua tia, passou a lé-la, se apegando a cla e fazendo corm que seus exercicios espirituais diminuissem. Mas ela estava persuadida de que pouco importava aa servigo de Deus em que empregasse 0 tempo, contanto que tudo 0 que se fizesse respeitasse de alguma forma a sua gléria, Um dia, porém, separada de suas companheiras, se pOs a ler de joelhos a Biblia ¢ sentiu uma mao invisive que Ihe apertava os olhos “de sorte que todos os esforgos para abri-les eram incertos... Compreendeu que se tratava de algo sobrenatural ¢ se langou ao chao, pois para cla, Deus queria puni-la por sua temeridade”. “E se humithou e pediu perdio. Deus aceitou a sua contrigdo(..)”. Paraceu-lhe entio ver o padre Luis de Granada “que Ihe fez compreender que era necessario uma outra disposigdo sua para ler a Escritura Santa, que nao deveria ler sendo com sentimentos de profunda humildade e com desejo de aproveitar... e que cla até entio a ndo tinha lido sendo por va curiosidade”. [Depois disso, segundo a bidgrafa, Paula adquiriu] “a disposigdo para ler este liveo sagrado e para ter alguma inteliaéncia dos segredos que nele se encerram”. ‘A proposta de incentivar e divulgar a leitura dos livros de espiritualidade catélica para que o fiel atingisse a perfcigao cristé é muito nitida nesse trecho da biografia de Paula Jerénima, Ela instrui também o leitor leigo e despreparado sobre como deveria ler essas obras, bem como sobre 05 beneficios que traziam, advertindo-o ainda sobre os perigos de ler a Biblia sem intermediarios, como pregavam os reformistas. Nota-se, além disso, que havia, segundo a autora, uma forma correta de leitura dos livros religiosos para que se pudesse aproveitar melhor seus ensinamentos. Mais uma vez é 0 cariter pedagégico e doutrinal desses escritos que vem a tona ¢ nos chama a 1 Idem, Ipidem, p25. " Ypidem, p. 26. 50 atengio. A profusdo e a rapidez com que as narrativas de vidas exemplares se espalharam pela Europa pés-Trento, sendo reeditadas com freqtiéncia, confere-Ihes, por outro lado, um carater de leitura popular e um papel de destaque na literatura devocional da época. Como observou Giovanni Levi, o bidgrafo seleciona os aspectos da vida do biografado que considera socialmente determinantes ¢ comunicéveis.'" E é nesse sentido que as biografias das religiosas adquiem um significado importante no interior do segmento de livros religiosos, enquanto forma de expresso ¢ de divulgagdo da cuitura religiosa da época, pois reproduzem 0 que era considerado essencial pela Igreja em termos de desenvolvimento da vida espiritual catélica, divulgando de forma simples e com excmplos o que cla ensinava por meio de livros mais complexos. O cariter ambiguo da biografia, na qual bidgrafo ¢ biografado se encontram diante do leitor — 0 primeizo interferindo ¢ selecionando aspectos da vida do segundo -, permite- nos refletic tanto sobre a religiosa que a produz quanto sobre o que esereve e para quem o faz. A vida de inmit Paula indica-nos, portanto, de um lado, as praticas de leitura ¢ os usos que essas mulheres faziam dos livros no interior dos claustros, ou seja, um uso eminentemente de devoodo; por outro, sugerem os propésitos ¢ finalidades que levavam as religiosas a escreverem, marcadas polo desejo de construirem a meméria da instituigao. Porém, 20 circularem entre os leitores, tanto no interior dos estabelecimentos como fora das murallas, esses escritos adquirem eles proprios um sentido de objeto de devogio, pois tansformam-se em literatura devocional. Quando publicadas, essas vidas exemplares passavam pela censure da Jereja, a qual possuia 0 dominio sobre elas, ¢ iam engrossar as publicagSes do género hagiografico, embora a Tgreja nfo pudesse jamais controlar os usos ¢ interpretagdes que Ihe scriam conferidos. Se em Portugal, como vimos, as religiosas escreveram imimeras biografias sobre suas companheiras, ¢ também autobiografias, na América portuguesa hé raros exemplos conhecidos desse género de escrita, embora se saiba que tanto as catmelitas como as concepcionistas (as duas oxdens femininas presentes no Brasil colonial) cultivam até hoje 0 habito de escrever sobre as freiras que se destacam em suas comunidades. O que dispomos geralmente para o perfodo colonial ¢ de breves relatos sobre as vidas de religiosas presentes nas erénicas dos conventos. As poucas biografias publicadas foram redigidas por padres que conviveram com essas religiosas ou "6 Giovanni Levi, “Les usages de la biographie”, IN Annales Economies, Societes, Civilisations, 44 année, 1.6 nov /dez, 1989, pp.1325-26, sl produziram compilacdes que incluem vidas de religiosos ¢ leigos (homens e mulheres).'"" fato de as mulheres da Col6nia serem muitas vezes iletradas pode explicar em parte essa diferenga em relagio a Portugal. Porém, como os arquivos eclesidsticos ¢ das ordens religiosas no Brasil s6 muito recentemente comecaram a atrair a atengao dos historiadores, ¢ possivel que venha a piiblico uma produgiio de escritos femininos até o momento desconhecida. Mas, independente disso, da mesma forma como as portugucsas, clas fizeram uso da escrita para preservat a memiéria de suas instituigSes, mantendo em ordem os livros de assentos de suas comunidades. Consideragdes finais Quando iniciei a pesquisa para este estudo comparativo acreditava que o movimento de enclausuramento das mulheres havia se dado de forma bastante distinta na Metrépoie e na Coldnia devido ao fato de em Portugal existir uma longe tradigéo de vida religiosa institucional feminina e um sistema assistencial organizado desde fins do século XV, © qual contemplava também as mutheres, enquanto na América ambos os tipos de instituigdes foram, & excegéo de poucos, um fenémeno social posterior, algo que ocorreu somente quando a colonizagio jé estava avangada, principalmente no século XVII. No entanto, como sucede com freqtiéncia, a0 consultar a documentagzo me deparei com instituigéies muito semelhantes dos dois lados do ‘Atlantico, caleadas nos mesmos principios religiosos e assistenciais, e amparadas por valores morais similares que exigiam a protesio das mulheres em espagos privados ¢ fechados independente dos motivos das fundag6es, Os recolhimentos de cardter religioso que exerciam a fungdo de conventos, os quais tanto haviam chamado minha atengdo em estudo anterior sobre a vida religiosa feminina no Sudeste do Brasil, também existiram na Metropole. As diferengas se configuraram, portanto, muito mais em termos de grau do que de género, originadas por aspectos locais, mas principalmente devido a uma politica da Coroa em relagdo as mulheres do império luso-brasileiro. Para todas havia o beneplécito régio quando se tratava de dar protegio e asilo as desamparadas, sendo que 0s monarcas portugueses apoiaram, na maior parte das vezes, a "9 Ver por exemplo, Frei Nicolau de S40 José. Vida da serva de Deus madre Jacinta de $0 José, Rio de janeiro, Est, Das Artes Grifieas Mendes Junior, 1935; ver ainda, Domingos Loreto Couto. Desagravos do Brast! ¢ _glorias de Parnombuco, Recife, Fundagao Cultura, 1981 (1757). 2 fundagio de recolhimentos nos quais a honra feminina pudesse ser resguardada.'*' Mas 0 estado religioso tendia a ser privitégio das reindis e assim, devido a uma politica de povoamento dos novos territérios, motivada pela falta de mulheres brancas, dificultou-se a fundagdo de conventos na América. Na esséncia, porém, 0 mesmo tipo de vida ¢ de cultura religiosa feminina floresceu nas instituigdes de zeclusio femininas do Reino ¢ da Colénia. Sempre € claro, com mais intensidade em Portugal, onde encontraremos mais religiosas letradas do que no Brasil, mais misticas famosas ou processadas pela Inquisizdo. Nem poderia ser diferente, pois havia muito ais religiosas ¢ reclusas 14 do que aqui. Mas a questo excede 0 aspecto numérico. O caréter miltiplo das instituigdes americanas © @ contorno pouco delineado entre conventos recolhimentos também aparecem nos estabelecimentos da Metrépole, talvez, mais atenuados, porém sempre presentes, especialmente nos conventos em que as leigas conviviam com as religiosas e nos recolhimentos em que mulheres leigas viviam como freiras! No caso dos Agores ¢ da Iiha da Madeira, onde a presenga de varios conventos destoa do resto das colénias, 0 fato se explica possivelmente pelo perfil das populagdes locais em que havia, como assinalou Isabel dos Guimaraes Sa, “um certo equilibrio entre o mimero de mulheres e homens” e onde se desenvolveram também “economias e sociedades semelhantes as européias”. / procurei neste estudo estabelecer a comparagdo entre dois polos do mundo ailntico portugués, Portugal ¢ América, com o cuidado, como bem alertou Leandro Kamal, “de ir apfoximando ¢ afastando os processes apenas para compreender melhor cada um"'*, mas ndo pude me furtar a buscar a unidade, pois, apesar dos limites da documentagdo, ela se projetou desde 0 inicio da pesquisa. Durante muito tempo a historiografia sobre a sociedade colonial buscou as especificidades das manifestagdes culturais © das relagdes sociais na América portuguesa, matizando a idéia da reprodugdo dos valores e da sociedade portuguesa nos trépicos. ‘A énfase geralmente recaiu nas mudangas, nas diferengas ou nas simbioses das praticas culturais. Entretanto, as permanéncias ¢ continuidades também afloram quando nos atemos a questées mais "1 Em Goa, como na Américe, fundaram-se primeiramente recolhimentos ¢ 6 depois o Convento de Santa Manica. mas mesmo assim no século XVII e antes do da Babi °° Cf Isabel das Guimaraes Sa. “Butte Maia ¢ Madalena: a mulher como sujeto ¢ objeto de caridade em Portal «nas coldnias (séeulos XVI e XVID", IN Actas do Congresso Internacional O Rasio Feminino da Expansco Portuguesa, Lisboa, Comisséo para a fgualdade das Mutheres, (994, vol, 1, p. 332, '53 Cf Leandro Karmal, Teatro de fé ~ representagda religiosa no Brasil ¢ no México do séeulo XVI, Sto Paulo, Huecitee, 1998, p. 23. 33 circunseritas e a segmentos especificos da sociedade, como é 0 caso das mulheres reclusas, dos motivos ¢ valores que as Jevaram aos claustros ¢ da cultura religiosa que construfram protegidas pelas muralhas dos conventos. Nesse sentido, a perspectiva comparativa nfo apenas traz novos ciementos para a compreensio da sociedade colonial como a evidencia. Lendo os mesmos livros devocionais ¢ edueadas na doutrina da Igreja, essas mulheres ~ leigas ou religiosas ~ externaram muitas vezes de forma semelhante 0 sentimento religioso que traziam dentro de si por meio de praticas devotas e experiéneias condicionadas bem mais pelo género e por uma cultura cristd milenar misogina do que pelo “viver em coldnias", como dizia Vithena.’* Certamente imprimiram nessas manifestagdes tracos individuais retirados do seu contato pessoal com a doutrina da Igreja, mas, como veremos nos ensaios seguintes, havia um forte ndicleo comum que a Jonga travessia do Atlintico e as condigdes de vida na América nao apagaram totalmente, Se, por uum lado, no interior dos claustros, elas consumiram a literatura religiosa pés-Trento, filtrada geralmente pela censura religiosa, por outro, imprimiram em seus escritos muito do que absorveram nos livros religiasos. Nos dois préximos capituios, com base em um estudo de caso sobre uma religiosa da América, teremos a oportunidade de avaiiar um pouco mais essas permanéncias e continuidades culturais com base na andlise de sua biblioteca “particular” ¢ dos igiu a seus confessores ¢ guias espirituais no interior da clausura do Recolhimento escritos que de Santa Teresa no Rio de Janeiro." "CE Luiz das Santos Vilhena, Recopilzedo de noticias soreropolitanas ¢ brasiticas contidas em XX cartas (7802), Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1921 9 Trata-se da furndadora da ordem carmelita no Brasil, madre Jacinta de Sdo José (1715-1768). s4 2. Jacinta de Sao José: a biblioteca de uma mistica na América portuguesa Desde os primeiros séculos da colonizagao, 0 projeto tridentino de evangelizagio ¢ de homogeneizacdo das praticas religiosas somou-se aos demais objetivos dos portugueses na ‘América, procurando controlar ¢ normatizar a vida dos colonos. A literatura religiosa pode ser considerada como uma das formas utilizadas pela lareja para atingir as populagées ¢ divulgar a moral ¢ a doutrina crista, juntamente com outros dispositivos de controle, tais como: a confissio, os sermbes, as visitas pastorais ¢ inclusive as devassas eclesidsticas. Infelizmente pouco se sabe sobre a histbria dos livros de devogao no Brasil Colonial. Uma forma de ampliar o seu conhecimento é 0 estudo de bibliotecas particulares, sendo que estas, por sua vez, também tem sido pouco exploradas. Existem estudos sobre certas bibliotecas coloniais no século XVIII, nas quais, os livros de cardter religioso encontravam-se presentes. Porém, tais obras nao foram abjeto especifico de andlise, uma vez que o que interessava geralmente ressaltar nesses trabalhos era o vinculo de seus proprietérios com o movimento iluminista ¢ a presenga de obras proibidas pela Coroa, devido a questées politicas.' A partir de uma lista de livros antigos, existente no Convento das carmelitas do Rio de Janciro, é possivel desvendar alguns aspectos da literatura religiosa que circulava na América portuguesa e o que possiveimente liam as mulheres reclusas que viveram nesta instituigao entre © final do século XVHI € 0 inicio do XIX# Porém, o que despertou o interesse pelo estudo dessa biblioteca setecentista foi o fato dela ter sido iniciada, em meados do século XVIIL, pela fundadora do convento, madre Jacinta de Sao 1 Yejase por exemplo Eduardo Frielro, 0 diabo na tisraria da eénego, Belo Horizonte, Ed, Wataia, 1957 ¢ Luiz Carlos Villaita, "O diabo na livraria dos inconfidentes"tN Adauto Novaes (org) Tempo e Histéria, S30 Paulo, Companhia das Letras/ Secretar da Cultura,1992; a recente tese de doutoramento de Luiz Carios Vilalta waz grande contribuigdo para o estudo da censure praticas de letras, inclusive dos livros religiosos na memépole ena colénia, bem como sobre bibliotecas particulares na America portuguesa. Cf Reformisma lustrado, Consura e Praticas de Leitura: Uses da Livro na América Portuguesa, USP, Sao Paulo, 1999. 3 Gf. Arquive do Convento de Santa Teresa ~ Rio de Janziro, “Lista des Livros Antizes do Convento”, (exemplar tmsmuserito), Esta lista de livros fbi elaboraca reeentemente pelas religiosas da casa, Os livros mats artigos ‘catam do século XVI ¢ os mais recentes, foram editados no final do século XIX. 55 José, que por sua vez era uma mulher mistica ¢ visiondria, denunciada @ Inquisigo de Lisboa como falséria, pelo bispo do Rio de Janeito, Dom Anténio do Desterro,, em 1753. Inferessa, portanto, neste estudo, investigar que tipo de obras se encontravam a disposigio das reclusas de Santa Teresa ¢, principalmente, quais as obras que pertenceram a Jacinta ¢ deram crigem & biblioteca do convento, pois € provavel que elas nos revelem clementos sobre sua personalidade, suas experiéncias misticas, além do perfil que procurou imprimir a0 estabelecimento. Mas antes de analisarmos, 0 que poderiamos chamar de a “biblioteca” de Jacinta, cabem alguns comentarios seja sobre sua vida e sobre o estabelecimento que fundou. A vida de Jacinta Madre Jacinta de $.José é considerada a fundadora do setor feminino da ordem do Carmelo no Brasil, numa época em que a Coroa portuguesa dificultava ao maximo a criagao de conventos para as mulheres coloniais., ao contririo do que sucedia com as ordens masculinas que desde cedo marcaram sua presenga no territério brasileiro e participatam intensamente do processo de colonizagto. © que chama a atengdo na vida ¢ na obra de Madre Jacinta nfo & apenas o fato de ter conseguido reverter esse quadro desfavorével para as mulheres de sua época, mas a forma como enfrentou as autoridades ectesidsticas que se opunham ao seu projeto de fundar um convento carmelita no Rio de Janeiro ¢ a habilidade que demonstrou em escapar das malhas da Inquisi¢ao. Em nenhum momento das inquirigdes as quais foi submetida, Jacinta mencionou suas visdes ou axtases, embora desde menina, acreditasse “ver” §. Teresa, “sua amiga ¢ protetora” e tivesse locugdes com Deus, como relatou a seus confessores © escreveu em suas “contas de conseiéncia®.' Tudo leva a erer, portanto, que soube separar, como fizera Santa Terese ¢ outros misticos, a vide ativa da vida contemplativa. 3 Sobre a fundagdo do recothimento ¢ a vida de madre Jacinta veja-se: Leila Mezan Algranti, Honradas & davotas: mulheres da colénia - (estudo sobre a condicao feminina através dos conventas ¢ recothimentos do ‘sudeste), Rio de Janeiro, José Olympio/EDUNB,1993,pp.17:22 ¢ pp.95:100 ; Baltazar da Silva Lisboa, Anais to Rio de Janeira, Rio de Janeiro, Imprensa Estadval,tomo Vil,cap V.,1835, pp. 378-516. 4 Frei Nieaiau de Sto José, Vida da serva de Deus madre Jacinua de Sao José ~ furdadora do Convento de Santa Teresa no Rio de Janeiro, RI, Est. Artes Graficas Mendes Junior, 1935. 56 A historia de Jacinta se confunde com a histéria da fundacdo do convento de Santa Teresa no Rio de Janeiro, sendo impossivel dissocié-las. Jacinta nasceu em 1715, no Rio de Janeito, numa familia abastada, tendo sido educada de acordo com sua condigao social, frequientando a escola paroquial. Sabia ler e escrever, o que no era comum mesmo entre as mulheres de clite da época . Desde menina usava cilicios sob a roupa, aplicava diseiplinas em scu corpo ¢ manifestou o desejo de ser religiosa, 0 que na época significava partir para Portugal, ja que sO havia um ianico convento no Brasil: 9 Convento do Desterro na Bahia. Seu projeto de se tornar religiosa acabou sendo adiado as vésperas de sua viagem devido A uma queda na qual se machueou bastante. Passado algum tempo, cla se refugion numa chacara distante do centro do Rio, completamente alheia ao contato com 0 mundo. A fama de Jacinta e de sua irma Francisca, as quais viviam reclusas e da caridade, rapidamente se espalhou pela cidade e conquistou 0 governador Gomes Freire de Andrade, que a partir de entin, tomou-se seu protetor . Foi ele quem construin um novo prédio quando o numero de jovens que se juntaram a Jacinta aumentou significativamente e a protegeu contra as investidas do bispo, tanto no Rio como posteriormente em Lisboa, quando as acusagdes do Bispo chegaram a corte © motivo das desavengas entre Jacinta ¢ Dom Anténio do Desterro estava relacionato a ordem religiosa 4 qual o convento deveria se submeter. Devota de Santa Teresa, Jacinta sonhava em ser carmelita, enquanto © bispo considerava a regra carmelitana muito austera e desaconselhavel para o clima ¢ demais condigdes brasileiras, sugerindo ao monarca que se fundasse um convento de clarissas. Quando a autorizagiio régia chegou, apés longa espera, designava a fundagao de um convento franciscano. Inconformada com a deciséo e sem solicitar autorizagiio do prelado, Jacinta partiu para Lisboa, a fim de pleitear diretamente junto ao rei a t80 desejada licenga para um convento carmelita. Assim que soube da partida de Jacinta, obispo reuniu um grande material sobre ela ¢ 0 enviou a0 Tribunal do Santo Oficio em Lisboa, inclusive uma eépia dos seus escritos de consciéneia, que continham revelagdes sobre as experiéncias misticas ¢ visées, violando de certa forma, o sacramento da confissio, pois conseguiu que © confessor de Jacinta os confiasse a seu poder.’ 5 Escrito de conscigncia, carta ou conta de conscincia ¢ uma conitssto por escito dirigida ao confessor ¢ guias espirituais, geralmente redigida a pedido dos mesmos para orientagdo espiritual. As cartas de eonsciéncia que Jacinta enviow a seu guia espiritual Indio Manuel Mascarenhas ~ vigério da Candelaria ~ encontram-se no 9 Os documentos relativos a Jacinta na Inquisigdo de Lisboa datam na sua maior parte de 1753, ano de sua viagem. Porém, uma carta de seu proprio punho datada de 1752 e dirigida ao Santo Oficio, leva a crer que, Jacinta tinha conhecimento de acusagées anteriores, pois procurava, ‘esclarecer sobre suas intengGes de fundar um convento. ‘ As denuncias de Dom Anténio do Desterro contra Jacintayse basearam em trés pontos: falta de humildade, desobediéneia ao prelado ¢ vaidade. A acusagdo ¢ urn detalhado relato sobre 6 que o bispo ouviu e observou, durante sete anos, no Rio de Janeiro e em seus encontros pore ‘atarem da fundagdo do convento. Refere-se com freqiéncia a fama de santa que pairava sobre Jacinta, “pois se contavam dela prodigios, visdes, revelagdes ¢ locugdes de Deus ¢ essas cousas publicavam os mesmos padres que a acompanharam para a corte”. Afirma ainda, ao ler os esctitos de consciéncia: achei no haver aquela virtude sdlida na dita Jacinta de Séo José .. tendo recomendado a seu confessor, um doutissimo padre da Cia de Jesus, Cristovao Cordeiro, que a instruisse no caminho da humildade, modestia mansidio ¢ obdigncia, porque as revelagdes, vises © locugdes que no se tem estes fundamentos, o mais provavel € serem do Demonio, ou da imaginago... Mas, segundo o bispo, ela tinha ..alguma falsidade com as acreditar pois nas mesinas cartas (eseritos) se mostra jjulgar e dizer... sem duvidar que todas sao de Deus acreditando-as sem escriputo quando sabemos que as almas mais devotas e purificadas engana com mais asticia 0 deménio e que oficialmente créem ¢ se capacitam das tais revelagoes duvidando sempre delas por se lhes parecerem indignas destes beneficios de Deus (...) 0 que nao tem a mesma Jacinta, pois antes desta nas contas ¢ de consciéncia) que dé, assevera per si mesma a verdade das ditas visées pelo que também nos parece haver nela algum amor proprio ¢ satisfagdo da sua virtude tanto assim que enumerando-the seu diretor (espiritual) o temor que deveria ter nas tais locugdes ¢ revelagdes o estranhou fortemente estimulando-se pelo que nunea mais The mandou dar parte e procurando que se néo_comunicasse, mostrando nisso a0 nosso parecer pouca humildade, falta de obediéneia ¢ alguma vvaidade ou satisfagao de amor prdprio; nesta divida nos parece se deve dar parte a0 Santo Oficio deste procedimento e dos ditos escritos pela mesma Jacinta de 5. José... para que ele julgue & averigue com a circunspecyo que costuma a sua fundo da Inquisigdo de Lisboa no ANTT, processo 4423. Cabe observar que no se trata de um processo, mas dde uma deruncia composta de vérios documentos para comprovar as acusagaes feitas pelo bispo do Rio de ‘Janeiro, Jacinta no foi processada pela Inquisi¢Ho, Agradepo 2 Francisco Bethencourt por me ter alcrtado desde 1 inicio da pesquisa para o teor desse documento, ¢ a (ara Lis Carvalho Souza por me ajudar a localizé-o na Tome do Tombs. % CE Arquive Nacional da Torre do Tombo (doravante) ANTT, Inquisi¢go de Lisboa, processo 4423, 58 legitimidade que nés nem podemos averiguar nem discemir: isto € 0 que nos parece em verdade do que assinamos esta carta.” Em uma, bispo do Rio de Janeiro colocava em diivida as visdes de Jacinta e procurava dessa forma, estabelecer um clima de desconfianga sugerindo que ela seria uma falséria ¢ que procurava fama e poder como findadora e priora de um convento feminino.* Os documentos enviados por Dom Antdnio chegaram a Inquisigdo de Lisboa junto com uma “conta” de vida, que Jacinta enviou ao proprio bispo nag qual narra episédios de sua vida, seu desejo ¢ misséo de ser carmelita, visdes, éxtases, além de observagdes sobre clas.” Mas s¢ 0 bispo possuia aliados no Reino, Jacinta também contava com protetores, dentre eles 0 governador do Rio de Janeiro." Informada de que havia sido denunciada, escreveu ao Santo Oficio, dizendo que foram feitas denuncias sobre ela e que se encontrava em Lisboa, a fim de tratar da flindagtio do convento. Nessa carta de 1754 oferecia sua versio sobre os acontecimentos e sobre as desavengas com o bispo."! Embora um pouco descontinues, os documentos existentes no arquivo da Inquisigfio de Lisboa e no Arquivo Ultramarine indicam que Jacinta foi inquirida por um experiente padre da Congregagaio do Oratério ~ Padre Jotio Col — e que no revelou suas vis6es, nem mesmo quando questionada se teria tido alguma experiéncia mistica."” O inquiridor, por outto lado, nao poderia the falar abertamente sobre suas visdes, scm correr 0 risco de dar a entender que havia recebido tido suas contas de consciéucia, revelando assim, quem a havia denunciado. Cabe lembrar que todo o sistema sobre o qual se apoiava o Tribunal da Inquisig¢ao baseava-se no anonimato das testemunhas. 7 ANTT Inquisigdo de Lisboa, carta de 22/12/1753, Processo 4423 ® Nos Cademnos do Promotor de 1747 aparece a seguinte anotagfo sobre a retrada das folhas 76 a 83: " No ano de 1754, em 30 do més de maio se tiraram desse cademo os papeis pertencentes & Jacinta de Sto José, mora rf do Rio de Janeiro, pata se juntarem ao seu sumnério"Cf, ANNT, fundo Inquisigdo de Lisboa, Cademo do Promotor Livro 301. Agradeco a M.Beatriz N da Silva esta referencia. © CE Conta de consciéncia de Jacinta de Sto José, Inquisigdo de Lisboa, ANTT, processo 4423 " Arquive do Convento de Santa Teresa ~ RJ, Cavta de Gomes Freire de Andrade ao Conselho Ultramarino, 17-2- 1755, ser indicagto de cota do Arquivo Histérico Ultramarino (copia datilografada). "NTT, lnquisieao de Lisboo, carta de Jacinta 1754, Prosesso 4423 © Neo foi possivel confirmar em que insténcia Jacinta foi inquiride, pois o documento transcrito e existente n0 Arquivo do Convento de Santa Teresa nao traz a indieardo, Nos decumentos da denuncia contra Jacinta mt Inquisigio de Lisboa, nao constam inquirigtes. 59 Entre dois fogos cruzados — as denuncias do bispo ¢ a protegdo de Gomes Freire de ‘Andrade que no parava de enviar carlas 4 Lisboa acusando o bispo ¢ defendendo Jacinta - O padre Col, preferiu nao processar Jacinta, ¢ ela foi autorizada a voitar para Brasil com a licenga de D, José I para fundar um convento carmelita."" O inguizidor, entretanto, proibiu Jacinta de ser 1a abadessa ¢ fundadora do convento, punindo-a dessa forma, pela falta de humildade © desobediéncia, atributos que nfo poderiam faltar a uma seligiosa, Sugeriu assim, que fossem enviadas religiosas carmelitas portuguesas para implantar a nova vida conventual. Por outro lado, impediu que D. Antnio mitigasse a regra do carmelo, que era 0 que ele pretendia, caso Jacinta no fosse processada e conseguisse a autorizagéo para fundar um convento carmelita. Com uma sentenga saloménica, evidencia-se a dificuldade que 0 Padre Col teve em examinar Jacinta, tanto tempo apés suas visbes e também sua desconfianga para com as atitudes do bispo.'* Porém, um tratamento tio ameno, para com uma mulher suspeita de visionéria, néo corresponde ao que conhecemos hoje sobre os pracessos inquisitoriais. Talvez os tempos fossem outros, ¢ a Inquisigio tivesse perdido um pouco de sua forga. Talvez, no interessasse mais aos inguisidores suspeitas como as que pairavam sobre Jacinta, ou quem sabe as provas fossem mesmo inswficientes. Muito provavelmente, entretanto, a protegio de Gomes Freire © suas acusagdes sobre Dom Anténio foram armas poderosas para pouparem Jacinta de um processo. Afinal, Gomes Freire era um militar de carreira, com vasta experiéncia nos dominios ultramarinos ¢ tido em alta conta pelo monarca, principalmente naquele momento em que se negociavam as novas fronteiras com a Espanha na América, ¢ Gomes Freire desempenhava importante papel militar no extremo sul daquele continente. © bispo do Rio de Janeiro, porém, no acatou a ordem régia, ¢ adiou indefinidamente os “votes solenes” de Jacinta e de suas companheiras. Somente apés a morte dos dois protagonistas principais dessa longa disputa, (Jacinta e D. Antonio) é que ocorreu ~ em 1781 — a primeira profissdo solene no convento de Santa Teresa. Por outro lado, as carmelitas portuguesas, que deveriam ser enviadas para fundarem 0 novo carmelo brasileiro, nunca chegaram, ¢ Jacinta, © Arquivo do Convento de Santa Teresa (ACST-RN, copia datilografada do oficio do Padre Col para o ministro 0 Ultraraar, 20-6-1755, O Original encontra-se no Arquivo Histérico Ultramarino de Lisboa, mas 2 cépia que ime foi cedida pelas religiosas do convento de Santa Teresa ndo traz qualquer referéncia, ao contrario do que contece com outras cépias de documentos existentes tio arquivo do convento. “dem. «0 embora morresse sem reaiizar seu sonho de ser uma carmelita, passou & histéria como a fundadora da ordem no Brasil. Tendo surgido em meados do século XVIII como um simples recolhimento de vida teligiosa devido a devogao de Jacinta, o estabelecimento conseguiu se tornar convento no final daquele século, enquanto outras instituig6es do mesmo tipo tiveram seus pedidos negados pelo Conselho Ultramarino. O convento sobrevive até hoje como reduto de uma vida contemplativa, sendo @ meméria de Jacinta venerada, e suas visdes © gracas recebidas transmitidas de geragdo em geracio Os fendmenos paranormais de sua fundadora, como as manifestagdes ocorridas no momento de sua morte atestam para essas mulheres devotas, assim como para suas antiges companheiras de clausura, que Jacinta era uma representante tipica do que se chamava na época de visionismo, como se sabe através de estudos sobre mulheres misticas ¢ sobre a literatura visiondria da Idade Média e Moderna. Cabe destacar, porém, que jumtamente com a autorizagdo régia para a fundagio do convento carmelita, Jacinta trouxe de Portugal, alguns livros para sie para instruir as futuras religiosas. Afinal, uma carmelita jamais poderia esquecer a adverténcia de Santa Teresa presente nas Constituigdes do Carmelo: “Cuide a priora para que haja bons livros... porque ¢ to importante pare o sustento da alma como o comer para 0 corpo”."* Uma vez conhecidos alguns aspectos significativos da vida de Jacinta vejamos o que nos diz a biblioteca que ela organizou em seu convento, pois como esclareceu Robert Darnton, 0 inventirio de uma biblioteca pode servir para delinear o perfil de seu proprietario ¢ o estudo de bibliotecas particulares “tem a vantagem de ligar 0 que se lia, com quem lia”."” A posse de livros A relagio de Jacinta com Santa Teresa ia além da devogiio intensa ¢ do desejo de acatar seus conselhos. Ela nfo so “via” e “conversava” com a santa, como aigumas de suas visées 15 Veja-se por exemplo: Elizabeth Perrot, Medieval women's visionary literature, Oxford, University Press, 1986 ¢ Jean Franco, "Writers in spite of themselves - the mystical nuns of seventeenth century Mexico"IN Plotting ‘women ~ gender and representation in Mexico, NY, Columbia University Press, 1988. 1 itpud El'Area de Trés Llaves, cronica del Monasterio de Carmelita Descalzas de $ an.José, 1690-1990, Santiago, Cochrane S. A., 1989, p. 81 6 apresentayam semelhancas com as visdes imaginarias de Santa Teresa, sugerindo que Jacinta Jera, ov ouvira em detalhes, no apenas a vida ¢ obra de Teresa de Avila, mas também os eseritos de outros misticos da Igreja. Um breve langar de olhos na lista dos livros antigos do Convento de Santa Teresa revela a presenga de varias obras misticas, eseritos doutrinais e vidas de santos; enfim, toda sorte de publicagdes vinculadas ao renascimento religioso que antecedeu 20 Concilio de Trento ( 1545-1563) e que também o sucedeu. Apds o concilie, um grande nimero de publicagdes de caréter mistico ¢ religioso inundou a Europa, especialmente aquelas destinadas a promover a devogdo ¢ a orientagao dos figis. Ao longo dos séculos subseqiientes, novas obras de carter semelhante foram escritas somando-se as imimeras reedigdes de titulos consagrados pela Igreja catélica. Escritos no espirito da Reforma Catélica, tais livros foram Tidos ou ouvidos de forma distinta por um amplo e variado piblico. Em Portugal, esse movimento editorial se fez sentir de forma expressiva durante os séculos XVI, XVII e XVIII, através do estimulo a tradugdes de obras escritas em linguas estrangeiras, O fato da literatura devocionista ¢ das bibliotecas portuguesas terem sido ainda pouco estudadas, impede uma avaliagZo precisa do impacto que esses livros e sua leitura tiveram nas populagdes locais do ultramat. No caso do Brasil, especificamente, sabemos apenas que a presenga de obras religiosas, no fim do periods colonial, era significativa nas bibliotecas particulares, nas listas de livreiros e nos pedidos de remessas de livros de Portugal para a Coldnia."” A existéncia de muitos desses livros na livraria de convento de Jacinta ¢ indicative de que obras recentes ¢ ou centendrias aportaram nos ¢laustros femininos setecentistas brasileiros a fim de proporcionarem instrugio e conforto as religiosas.” Nao se sabe ao certo como cssas obras do século XVI e XVII, reeditadas no XVHI, chegeram ao carmelo do Rio de Janeiro, nem quando deram entrada na biblioteca. O que CE Robert Damton, @ bei de Lamourete - midia cultura e revolugdo, tad., SP, Comparinia das Letras, 1990, p.l42, Na prisima parte voltremos a tater de vida de Tacinta a partir de seus escrites “sutobiogrificos”. 18 Sobre a literatura religiosa em Portugal ver: fosé Sebastito das Silva Dias, Correntes de pensamento religiose fom Portugal (séeulos XVI a XVIN), Coimbea, Faitora Universidade de Coimbra, tomo I, 1960 € Antologia de tespirituais portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional’Cesa da Moeds, 1994 » CE ANTT, Real Mesa Censéria, caixa 153. ™ Vejase também a fista de livros do Recolhimento de Santa Teresa em So Paulo no Arquivo da Céria Metropolitana da $80 Paulo, “Iovensirios de bens do Recolhimento de Santa Teresa ( N&o catalogado). Para uma analise sobre as duas bibliotecas femininas carmelitas na América portuguesa ver meu estudo “Os Livros ide devogio e a religiosa perfeita (normatizagio e praticas religiosas nos recolhimentas femininos do Brasil Colonialy" IN’ Maria Beatriz Nizza da Silva (coord.) Cultura portuguesa na terra de Santa Cruz, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, pp, 109-124 2

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