• Massacres consensuais desenvolvem-se na sombra de uma
declaração geral de culpabilidade. • Em nome de uma pretensa criminalidade potencial, assassina-se o inocente • Este inocente foi tratado intelectualmente e semanticamente como portador de assassinato futuro • Assim legitima-se uma violência que se apresenta como preventiva. • Estes componentes encontram-se na violência sacrifical. LÓGICA AMARGA DO SACRIFÍCIO
• Se a desumanidade divide-se entre o palco e a arquibancada, é
porque atores e espectadores possuem referências comuns. • Estas referências têm a ver com o pensamento sacrifical. • A diferença entre atores e espectadores: – Os atores reivindicam o que fazem – Os espectadores não querem reconhecer que sua presença é uma forma de participação: permitindo o que eles condenam, poderiam aparecer como os patrocinadores implícitos que teriam contratado, para suas obras, a mais brutal das terceirizações. SACRIFÍCIO E SIMBOLIZAÇÃO
• Todas as culturas perguntam: é possível realizar o sacrifício sem
sacrificar alguém? A fronteira encontra-se entre a representação materializada que inclui a destruição de um corpo e o processo de simbolização que permite uma superação radical do rito. • A história mostra que o sacrifício embora tendo desenvolvido um discurso metafísico conserva a cumplicidade com o jogo político e talvez mascare uma poderosa tentativa de dominação. • Existe uma também fronteira entre a representação materializada e os processos de simbolização, quer dizer entre o sacrifício humano efetivo e os processos de substituição simbólica que permitem não destruir uma vida humana e abrem um novo espaço de interioridade. • Saindo de uma concepção do conhecimento segundo a qual a observação não presta contas ao engajamento, a análise dos sistemas de dominação só tem sentido se ela gera uma dinâmica de contestação. TEZCATLIPOCA
• Na cultura azteca, o jovem que sobe as escadas, sem escolta e
quebrando uma flauta a cada degrau, é o deus Tezcatlipoca; trata- se de um auto-sacrifício divino porque o jovem não representa a divindade: é a divindade. • Arranca-se o coração de Tezcatlipoca porque ele o doa, como faz todos os anos reatualizando o sacrifício primordial do qual o mito faz memória. • O sacrifício marca o apogeu de todo um trabalho semântico: há um ano, o jovem, escolhido de preferência entre os prisioneiros de guerra, é declarado não ser mais ele mesmo mas deus e é tratado como tal. • Não importa o que ele pensa mas como ele coopera segundo as aparências tornando-se a nova identidade que ele foi convencido a assumir: não se trata de representar um papel. Aliás ele sobe sozinho as escadas! • O ritual acaba sendo sua própria testemunha: confirma que o mito tinha razão! NA GRÉCIA ANTIGA • O animal escolhido como vítima é conduzido para o altar; com água esguichada e uma chuva de grãos ele mexe a cabeça de esquerda para a direita, sinal de consentimento. • O sacrifício diz que o boi concorda e que a vítima não vê nenhum inconveniente a ser destruída: os sacrificadores podem imolá-la tranqüilamente. Não têm nada a temer e não são culpados. • O consentimento do animal dá para eles o suplemento de inocência de que eles poderiam precisar. Proclama a vitória do rito e valida o mito de origem. Este consentimento é a pedra angular da cerimonia. • Não existe um gesto que não seja controlado pelo pensamento; não existe uma palavra ritual que não seja sustentada por uma visão do mundo. No decorrer de sua realização, o sacrifício desenvolve uma teoria. • A destruição que ele pratica, ele a teoriza para melhor inocentá-la. O SACRIFÍCIO MESTRE DO DISCURSO • O sacrifício é o elemento pelo qual o poder do discurso impõe à realidade de dobrar-se a todas suas exigências. • O sacrifício é meio usado pelo pensamento para estabelecer com a realidade uma relação de dominação. • Além do que ela figura explicitamente, a vítima é construída como uma metáfora do conjunto da realidade. • A dominação física que o sacrifício organiza sobre a vítima figura a dominação ideológica que o pensamento sacrifical desenvolve sobre a totalidade da assistência. • O consentimento da vítima ocupa um lugar de destaque, pedra angular do consenso que é a condição fundamental do poder ideológico do sacrifício. • A palavra foi confiscada da vítima azteca: o mestre do discurso é reconhecido pela sua vontade implacável de permanecer o único dono da situação. • A marca do pensamento sacrifical é apresentar sua coerência interna como substituindo a consistência orgânica do ser vivo. Esta é a violência da ideologia: pretender-se mais viva do que a própria vida. A VÍTIMA... • A destruição ritual equivale a uma fundação. • A palavra que acompanha o processo não só justifica como produz sentido: recompõe em tempo real um outro corpo pelo corpo teórico do discurso. • A vítima do sacrifício, as vezes, grita! Este grito é a expressão da consistência orgânica que é rasgada. É a marca da recusa da coerência retórica cuja violência ele denuncia. • A harmonia do canto ou do discurso mantém a declaração segundo a qual o mundo é colocado em ordem pelo rito que assegura sua perenidade. O grito é um acidente de percurso que marca ao máximo uma falta de preparo da vítima. • A destruição ritualista considera como repreensível toda tentativa de desestabilização por se tomar em consideração o sofrimento. • Adormecer o sofrimento para manter a ilusão do consenso pode ser o papel das drogas usadas para adormecer as vítimas. O SACRIFICADOR
• Sua mão não treme: o preparo ideológico eliminou todo risco de
interferência emocional. • O sacrificador permanece concentrado sobre os significados, os raciocínios e as articulações retóricas. • Sua mão acompanha o discurso e não deixa que outro conjunto de referências atrapalhe. • O sofrimento da vítima não lhe diz nada: algo foi destruído dentro dele, em nome de um discurso sobre o mundo, para que ele possa destruir o corpo de outra pessoa em nome do mesmo discurso. • A ausência de tremedeira provém da destruição prévia de seu próprio corpo emocional e esta mutilação interna projeta-se na própria vítima. • A reificação do corpo da vítima parece ser a conseqüência do trabalho que a ideologia realizou, produzindo indiferença em relação ao sofrimento humano. O BODE EXPIATÓRIO: 3 ETAPAS
• Transferência do mal: instrumentalização. Por procedimentos de
cunho mágico, transfere-se uma patologia que afeta a comunidade para um corpo estranho ou designado como tal, que se matava ou expulsava. • Transferência da culpa: papel a ser desempenhado. Se expulsava a pessoa que se tinha designado como carregando a culpa. Um progresso aconteceu: depois de um certo tempo, ele podia voltar. Um ulterior desenvolvimento levou a passar do rito para o teatro. • Transferência da culpabilidade: destruição do outro enquanto outro e diferente. Ataca a natureza do outro. A violência de novo está presente porque precisa destruir o culpado: não existe substituição. A tendência é que a violência se especialize em massacres em grande escala. Assim como o sacrifício tradicional construía a vítima utilizada, assim a prática dos massacres constrói- se sobre uma prévia construção ideológica.