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GiRAssoy JULIO EMILIO BRAZ Felicidade nado tem cor 2 eDWGAO ILUSTRACOES ODILON MORAES: aenessto BLOG SO LIVRINHOS http:/fsolivinhos.blogspot com Para Ruth de Souza, ‘alguém que sempre me emociona. Sumario Redagao 6 Maria Mari "1 ‘Assim como somos 18 Branco é bom? 22 Me espera la fora! a7 Bronca a Em busca de Michael Jackson 34 Teimoso demais 37 Sobe e desce at Papo-cabeca 46 ‘Adeus, Fae! 58 Redacado A erince brinquedos era pequena. Pra falar a verdade, continua sendo. Quando todo mundo ficava quietinho, dava pra ouvir os meninos e ainda mais as meninas falando na sala ao lado, maior, cheia de mesas e cadeiras, onde, quase todos o¢ diac, clos vinham octudar. Eotudar. Apronder. Brin- car. Falar. Falar. Falar... Como falam as criangas!... Eles vinham de todos os lados. Com dinheiro. Sem di- nnheiro. Quietinho. Bagunceiro. Inteligente. Nem tanto assim. Menino lourinho. Menina pretinha. Menino com cara de chi- nés. Menina de bochechas vermethinhas iguaizinhas, igual- zinhas aquelas da minha vizinha. Tinha orianga de tudo quanto era jeito. Filho de feirante. Filha de professor Filhos de gente importante. Os quatro filnos espertos do contador. Uma criancada brincalhona e daquelas bem animadas. de dar gosto de se ver. Bom, é bem verdade que, de vez em quando, eles abusa- vam ¢ a dona Evangelina, santa mocinha na graciosidade ora severa, ora brincalhiona, de seus vinte € poucos anos, perdia a paciéncia. Nada de bater, claro, que ela nao era disso. Quando muito, ela gritava aqui, agitava 0 dedo ali, puxava os écu- los de aros redondos ¢ bem grandes para a frente e, de- pois, para tras. Minha nossa! Quando ela puxava aqueles éculos para trés... Ah, quan- do ela puxava aqueles 6culos para trés... Nem quero contar. Puxa, eu sinto saudade das caras e bocas da dona Evan- gelina. Pra falar a verdade, eu sinto saudade de todo mundo. E, de todo mundo. Nao acredita? Pois pode ir tratando de acreditar. Eu ndio esquego de ne- nhum. Cada rostinho. Cada jeitinho maroto de falar e de olhar. Mesmo as palavrinhas ruins que um ou outro me dizia de tempos em tempos serviram para me deixar com raiva ou para me fazer esquecer esse ou aquele. Nao é prame gabar nao, mas eu tenho um coragao bem grande pra compreen- der e pra aceitar certas coisas na vida. Tenho todo mundo aqui dentro, Cada rostinho. Cada nome! E tinha uns até bem engragados. Cada historinha! Sim, porque cada um deixou a sua por ld... entre as paredes daquela sala grande... la fora ou por aqui, presa num brinquedo, abando- nada numa roda solta de carrinho, no nome rabiscado na bar riga ou na ema de uma boneca.... Nao na minha, que eu ndo dava essa confianga toda.... e nem era tao requisitada assim, Bom, sendo sincera, mas sincera mesmo, até que eu tam- bém nao era Id muito procurada pelos meninos e meninas da sala grande. Sendo ainda mais sincera, eu ficava mais largadinha do que as minhas vizinhas, muitas vezes sozinha ou me apegando as poucas méos, aquelas maos bem pe- quenininhas, que vinham me procurar. Antigamente eu ficava um pouco chateada com isso: “O que as outras tém que eu no tenho?” Que coisa! A gente ia levando, e agora, pensando bem, mesmo aque- les rostinhos que nao me da- vam tanta atengao assim me face urna fala... Saudade danada! Volta e meia, estou pen- sando neles e, quando penso neles, lembro do Fael e da nossa aventurinha. Aventurinha ou aventu- razinha? Tem importancia? Pra mim, nao! Pra mim vai ser sempre aventurinha, aquela viagem pequenininha mas inesquect- vel para além das paredes co- lotidas de nossa salinha. Foi aquela redagao. E, foi sim. Comegou com aque- la redacdo que a dona Evangelina pediu pra to- dos fazerem. Sei que foi sem querer, que ela nao tinha a intengao de levar as coisas pra aquela diregao. Mas foi pra lé que o Fael levou a reda- (Ao dele. “O que eu quero ser quando crescer.” Eu lembro dela direitinho. Palavra apés palavra. Nao era grande. Eu nao ouvi tudo, 6 bem verdade, mas 0 resto nao devia ser muito diferente do que deu pra ouvir quan- do eu espichel 0 ouvido e ele disse... Eu queria ser branco. Se eu fosse branco, ia ser diferente. Todo mun- dh ia gostar da gente. Eu jé falet pro meu pai que 0 Michael Jackson sabe como a gente faz isso. Papai achou engragado. Amae também. Dis- se que 0 Michael Jackson é bobo e chato, mas eu ndo acho ele bobo @ chato, nao. Ele foi é sabido. Agora que ele 6 branco todo ‘mundo gosta dele. Nem im- plica com a gente. Ninguém diz coisa feia pra gente. Como 6 que a gente fica branco? Vou perguntar ao Cid ‘Bandalheira. Ele tem um programa na Radio Roda-Viva e sé toca Michael Jackson. Ele até jé deu 0 enderego do Michael Jackson pra gente, mas eu perdi. Vou pedir pra ele de novo. Eu quero ser branco. Todo mundo riu muito. Implicaram ainda mais com ele. A dona Evangelina ficou olhando pro Fael sem saber o que dizer © 0 que fazer. Ela mesma ficou com cara de culpada Porque costumava chamar o Fael de “escurinho”. Aposto que ela ja estava arrependida de ter pedido uma redacaio aos alunos. Dava pra ver pela cara dela também. E, nao parecia ser um assunto to preocupante assim. ‘Todo mundo riu muito € zombou ainda mais do Fael de- ois daquela redacao. Alguns chegaram até a ir mais lon- ge. Nao largavam do pé dele, implicando, mexendo, repe- tindo aqueles apelidos © aquelas brincadeiras que tanto aborreciam Fael. Fiquei com pena dele. Eu sabia muito bem 0 que ele estava sentindo. Fael era egrinho como eu. E, eu sabia muito bem pelo que ele esta- va passando. Também tinha ld meus problemas, coisas as- sim como pasear quasc 0 tempo inteiro comigo mestit4, 110 fundo da caixa grande, vendo aquelas maozinhas pegando as outras bonecas, as lourinhas e de bochechas vermelhi- has, deixando que eu ficasse mals e mais sozinha, pen- sando em como déi a solidao. Machucava. Sempre machueca ser deixado de lado. E, eu sabia muito bem o que ele sentia. 10 Maria Marié Quarce alguém me levou pra escola, eu lembro bem da cara da professora que me recebeu: — Uma boneca preta?! Onde Ja se viu boneca preta?! Eu fiquei muito aborrecida e até me deu vontade de dizer: Alto la! Prota, néo! “Negrinha” vé ld, mas. preta... ah, pre- tanao! A pessoa que tinha me levado ainda tentou argumentar, — Que 6 que tem? E eu também disse: EI O que 6 que tem? Boneca nao pode ser negra, nao? Tem que ser tudo lourinha? Por. qué? Mas nao adiantava. Duvido que aquela professora ou- visse @, se ouvisse, quem garante que ela saberia me dar uma resposta? — Nao sei nao... Ninguém gosta... ‘Acabou que ela também nao deu nenhuma boa resposta Pra pessoa que me levou pra escola... Fui pro fundo da caixa grande cheia de brinquedos. Rara- mente safa de la. De vez em quando, “para pegar um solzi- nho" — como costumava dizer a professora que tomava conta da sala de brinquedos —, eu era colocada numa prateleira, do lado de fora; talvez com a esperanga de que alguém me pegasse pra brincar. Algumas vezes dava certo; outras nao. Que fazer, nao é mesmo? 1 Nao podemos obrigar ninguém a brincar com a gente. Eu me conformava —alids, eu sempre me conformo—e espe- rava. Ficava ali, quietinha, os olhos sempre esperancosos, brilhantes de ansiedade sempre que alguém — menino ou ‘menina, tanto fazia— se aproximava e procurava algum brin- quedo na caixa. Me leva! Me leva! Eu pedia, mas qual nada, ninguém ouvial Eu acabei virando a "boneca preta” com quem ninguém ou muito pouca gente queria brincar. Aquela que ficava abvarndo- nada no fundo da caixa ou num canto de uma das prateleiras. Nao tenho certeza, nao, mas acho que foi isso que fez 0 Fael se interessar por mim. Sabe, eu acho que posso até dizer que tenho certeza. E, tenho sim. Foi todo aquele abandono em que viviamos — eu na prate- leira, e ele, no fundo da sala grande — que nos aproximou. Ele era um menino triste. Nao é brincadeira, ndo. Fael era um negrinho meio magrinho, de olhos grandes e labios gros- ‘808 ¢ vermelhos. Por causa dos olhos grandes e muito bran- cos alguns garotos — principalmente 0 Romaozinho — o chamavam de “Zoiéo". Outro apelido entre os tantos com que ele era obrigado a conviver. Quanto mais ele reclamava e ficava aborracido, mais eles repetiam: “Zoido!” “Nega “Pelét” “Picolé de asfalto!” (Porque ele era bem pretinho mesmo.) “Macaco!” (Esse dofa de verdade, e somente o Romdozinho gostava de usé-lo, porque era um menino danado de malvado.) 2 “anut” E um monte de outros apelidos, sempre mexendo algo que Fael reclamava muito. Fael vivia reclamando que era negro e que, por isso, ninguém brincava com ele. O que ele nao notava ea que nao eram os outros, mas principal mente ele que se afastava, que se importava muito com o fato de ser negro. Havia outros — outros nao tao negros quanto ele e que gostavam de dizer que eram “mulatinhos”, “escurinhos”, ‘pardinhos” e outtos “inhos” até engragados —, mae aponas ole reclamava, apenas ele encontrava dificil dade em brincar e se divertir com os colegas. So que ele ndo notava. Mesmo quando estava jogando bola com os outros garo- tos (2 como ele gostava de jogar bola!), bastava alguém gri- tar um daqueles apelidos que o Rafael (esse era o nome dele) ia encolhendo, murchan- do, murchando, até desapa- recer pelos cantos. 6 Ele acabava na salinha dos brinquedos, olhando pra mim. Depois de algum tempo, depois que ele comecou a se sen- tircomo um velho conhecido ou a perceber que eu era uma boa ouvinte (no tinha mesmo nada pra se fazer naquela sala além de esperar que alguém aparecesse para brincar com a gente), Fael também passou a falar. Quer dizer, re- clamava mais do que falava. Dizia que nao gostava de ser preto. Repetia os apelidos de que nao gostava e pelos quais todo mundo gastava da chamé-io Dizia que nao entendia por que Romaozinho implicava com ele daquela maneira e, quando estava mais revoltado, che- gava a chamé-lo de “paraiba chato”. Eu cheguei a pensar em Ihe dizer uma ou duas palavri- nhas sobre algo chamado “preconceito”, mas deixei pra ld, pois ele nao ia ouvir mesmo. Como eu disse, sempre fui uma boa ouvinte e ficava la, assim, como quem nao queria nada. Bem, na verdade, os outros é que nao queriam nada comigo, entéo eu ouvia. Coitado do Fael! Tinha vezes em que eu achava que ele vivia fazendo tem- pestade em copo d’agua, mas daqueles copos bem peque- nos e para tempestades bem exageradas. Outras vezes, no entanto, eu chegava & concluséo de que ele tinha um pouco de razao. Nés, as bonecas de pano bem pretinhas, temos um senso de observagaio bem agucado. © Romaozinho gostava de mexer com ele, talvez porque Fael se aborrecia muito quando 0 incomodavam. Nao era s6 pelo prazer de vé-lo chateado, mas também porque Fael jo- ‘gava bola melhor e era sempre chamado para jogar, enquanto 4 © Romaozinho tinha que ficar insistindo para entrar num ou outro time. Mas tinha uma outra coisa ainda: Fael aprendia depressa, escrevia direitinho e, por isso, vivia recebendo elogios da dona Evangelina. Era por grandes e pequenos motivos. Era Por tantos grandes e pequenos motives. Volta @ meia, Fael aparecia um pouco mais triste. Eu jé sabia e, se nao sabia, pelo menos suspeitava o que tinha acontecico, Tinha sido 0 Romaozinho. Q Romaozinho e o apelido. E, capelido o deixava daquele jeito. Amuado, abatido, mais escondidinho no fundo da sala de brinquedos. Abracado as pemas, 0 queixo apoiado nos joelhos, aquela vontade dana- a de forte de chorar. Uma raiva ainda mais forte quando uma lagrima escorria dos olhos. Ele nao gostava daquele apelido. Carvao! De todos, era o que Fae! mais odiava. Eu vivia tentando consolé-o: Liga nao, bobo! Apelido é coisa de gente mal-educada! Carvao? O que 6 que tem ser carvéo? Carvao nao aquece? Quem no gosta de um calorzinho de vez em quando, as- sim... assim... Assim quando fica muito frio? Quem? Quem? Larga mao de ser bobo, $6! Vocé no vé que, quanto mais voos se importar com um apelido, mais eles vao ficar dizen- do e repetindo 0 bendito apelido? ‘Quem diz que ele me ouvia? Por isso e por nenhum outro motivo, os outros meninos — e algumas meninas também — mexiam tanto com o Fael. 15 Tinha 0 Birisco, comprido e magro como um macarréo, 0 Japa, um baixinho que eta nissei e ficava muito doido quan- do 0 chamavam de “Japa”, ¢ 0 Pitaluga, um gordo enorme que nem ligava quando o chamavam de “Rolha-de-Pogo”. Eles mexiam mais. Eles implicavam sempre. Apenas 0 Cera néo mexia ou implicava com 0 Fael. Pra falara verdade, ole era outra vitima das brincadeiras e impli- cancias dos autros meninos e meninas, e eu acho que era isso que os tornava amigos. ‘O nome do Gera cra Geraldo, mas na csoola ninguém © ‘conhecia por outro nome que nao fosse Cera. Era “Cera” Porque 0 Geraldo nao gostava de tomar banho, e alguns meninos um dia chegaram dizendo que ele andava com os ouvidos cheios de cera. Ele brigou, reclamou, ¢ 0 inevitével aconteceu. O apelido pegou. O fato de serem vitimas de seus apelidos deve ter aproxi- mado os dois, e nem um nem o outro tinham muitos amigos além de si mesmos ou um ao outro. Além de mim, 0 Fael no conversava com outras pessoas. Ndo tanto quanto conver- sava comigo e com o Cera. Era ele, 0 Cera e eu, mas apenas eles dois falavam. Cla- ro, apenas 0 Fael conversava comigo. Bem que ele tentou ‘convencer 0 Cera a fazer o mesmo, mas quem diz que 0 Cera topou? “Falar com uma boneca, Fael? Té doido? Boneca é coisa de menina? Eu sou homer!" Bom, ndo fazia diferenga. Eu sé ouvia e, quando falava, era Fael que nao ouvia. A gente se entendia assim mesmo. Era até bom que fosse assim. 4Jé pensou se ele pudesse me ouvir? 16 ‘Acho que Fael no gostaria. Ele ia ouvir que eu o achava ‘meio bobo por se preocupar tanto com a cor da pele ¢ ia ouvir ainda mais algumas coisinhas. Que nada! Eu no ia ter coragem. A quem vocé esta querendo enganar, Maria Mario? Eu no ia ter coragem de magoar aquele coracaozinho tao confuso e téo machucado. Nao ia mesmo. Por isso, eu preferia ouvir. Fazia bem pra mim e pra ele. Pelo menos a gente nda ficava sazinho. 7 Assim como somos Fras cover om quando falava da familia. Pra dizer a ver- dade, mas verdade verdadeira mesmo, ele falava muito da familia Nao sei se devia ficar contando essas coisas por af, mas ele no pediu siléncio, nao disse nada sobre eu contar ou no para 0s outros. Ah, ele no se importa, nao... Bom, como eu estava dizendo, Fael tinha uma familia pe- quena. Era ele, a mae e o pai. Nem av ou av6 ele tinha. Era 36 08 trés. Fael era filho Unico e os pais se preocupavam muito com le, ainda mais com 0 fato de ele ser um menino que prefe- fia ficar sozinho. E, eles também tinham reparado, que pai que 6 pai repara logo, logo essas coisas, mesmo trabalhan- do tanto como os dois trabalhavam, Eles eram feirantes. O pai e a me do Fael. Os dois ti nham uma grande barraca de frutas. “A maior da feira’, como garantia Fasl, com orgulho. Dona Juliana era grande. Nao gorda, apenas “grande”, como dizia 0 Fael antes que eu comegasse a acrescentar muitos quilos & imagem de sua mae. Tinha um sorriso largo @ de dentes muito brancos e brilhantes. Os labios grossos ‘como 0 do pai dele, seu Gilberto — 0 Gil da Banana, Mais apelido pra aborrecer o Fael. Ele fechava a cara quando os amigos do pai o tratavam por outro apelido, um 18 apelide gostoso e carinhoso, mas que, por razbes que to- dos nés conhecemos, o deixava tremendamen ie ite contraria- do. Que apelido? tie Ba-na-ni-nha! Uai, ele néo era o fiho do Banana? © seu Gilberto, esse sim, era grande Grande, gordo e sempre mais gordo, e de maos enormes. Sorria fécil e sortia fran- co. Muita gente no bairro o conhecia la televisao. Nao, ele nunca trabalhou na novela das oito. Mas. aparecia na televiséo, principaimente no Car aval, pois 0 seu Gilberto, orgue tho da sua rua, era o diretor de bateria da escola de samba mais famosa do baitro, 19 Eu também dou os meus gingados e requebrados por aqui mesmo, dentro da caixa, com os outros brinquedos, e sei reconhecer um bom sambista quando vejo um. E 0 seu Gik berto, ou 0 Gil da Banana, era sambista dos bons. Mesmo com aquele tamanho todo, o homem sambava tanto ou mais do que a dona Juliana. O qué? Vocés pen- saram que ela nao ia? la, sambava e participava de tudo na escola De vez em quando, ouvindo Fael falar dos dois daquela maneira orqulhosa, mas com o rostinho triste. eu néio con- seguia entender como pais to alegres podiam ter um filho 120 jururu. Era em tals horas que eu ficava morrendo de raiva de mim mesma por no conseguir me comunicar com ele. Puxa, eu queria perguntar tanta coisa... Como nao dava, eu ficava ouvindo. Ouvindo e sentindo pena dele. Os pais também tinham notado a tristeza interminavel do Fael, e ele me disse que jé tinha ouvido os dois conversando sobre arranjar um irmaozinho pra ele. —Como 6 que eles vao fazer isso, Maria? — perguntou 0 Fael com a cara mais inocente do mundo. Pronto! Eu sabia que ia sobrar pra mim Voce nao sabe que é teio ficar ouvindo a conversa des ou- tos, menino?, desconversei. Bobagem, ele ndo ouviu mesmo. Ele no se entusiasmou muito com a idéia de ter um ir- mao. Acho que, mesmo com toda a atencao, os pais dele no perceberam que o problema dele nao era solidéo. A mae dele de vez em quando percebia alguma coisa, que mae é bicho danado de observador. 20 Ela estranhava nunca ter sido chamada para uma reuniao de pais e professores na escola. Fael nunca avisava quando ja ter reuniao, Reclamava de nao conhecer outros amigos do Fael além do Cera. Fael nao tinha. Sentia que Fael nao ‘gostava muito quando ela encontrava um tempinho e ia leva lo @ escola. Fael se aborrecia porque os outros meninos & meninas riam deles e até diziam coisas feias sobre ela. Dona Juliana comegou a fazer perguntas que Fael nao respondia ou no respondia direito. Eu fico meio sem jeito de dizer que 0 Fae! muitas vezes mentia. Ela néio era boba, Néo dizia nada, mas sentia que tinha algu- ma coisa errada, Perguntava com cuidado, assim como quem ‘no quer nada, s6 de vez em quando, pra nao assustar ou aborrecer. Perguntava também ao Cera, mas o Cera, medroso como a prépria descontianga, fugia ou fingia. Nao dizia nada. Certa manha, sentado com a mae, Fael perguntou: — Por que a gente 6 assim, mae? Ela no entendeu: —Assim como, Fael? —Tao preto... Dona Juliana apenas sorriu: — U6, eu nao sei... Por qué? — Ara, mae, porque ninguém gosta da yente quando a gente 6 tao preto assim. Todo mundo fica dizendo coisas @ mexendo com a gente... Ora, filho, eu. — Asenhora gosta de ser preta, mie? Fae! acabou vindo reclamar comigo: — Sabe que ela nem respondeu... Por que ela no res- pondeu, Maria? 21 Branco é bom? Fac tateva muito quando vinha a sala dos brinquedos e ‘enquanto mexia e remexia a caixa atrés de mim. Falava de tudo. Reclamava de todo mundo. ; Era fulano que continuava assim. Era beltrano que pedia aceado. Havia ainda o eicrano quo... E bla-bla-bla-blal! Titi! : Quanta rectamagao! Ele s6 nao reclamava do Cid Ban- dalheira. 5 —Sabe, Maria, ele tem um programa na Rédio Roda-Viva que 86 toca musica legal! Pois &, quando ele comecava a falar do tal Cid Banda- Iheira, nao parava mais. Nao tinha jeito. Era Cid Bandalhei- ra pra la, Cid Bandalheira pra cd. Fael nao tinha mais ne- nhum outro assunto. — 0 Cid Bandalheira sabe das coisas — garantia. E de tudo 0 que 0 Cid Bandalheira sabia nao havia nada que mais, interessasse ao Fael do que 0 enderego do Michael Jackson. — Ele tem, voce sabia? E como poderia deixar de saber? Fael nao falava de outra coisa. Principalmente depois que tomou a decisao de se tornar branco. — Ser branco é bom — garantia, — Quando eu for bran- co, ninguém vai mais implicar comigo. Eu quero ver o Roméo- zinho me chamar de “Carvao" quando eu for branco. 22. Pra ele, 0 Cid Bandalheira ia ajudé-lo. —Ele sabe 0 enderego do Mi- chael Jackson e, quando a gen- te pedir, ele vai dar. Af nés va~ ‘mos la, perguntamos ao Michael Jackson como foi que ele fez € nés dois ficamos branquinhos, branquinhos. Legal, ndo é, Maria? Nao gostei, nao. Ser branco 6 bom? Por que ser branco 6 bom? E, se ser branco é bom, por que ser negro também nao pode ser bom? Faz diferenga? Que diferenca? Ser gente néo é melhor? Sei nao. Eundo tinha nada contra ser branca, mas eu era pretinha e gostava. Ain- da gosto. O dificil mesmo era por isso na cabecinha dura do Fael. E se ele ficasse branco mesmo? Eu queria ver a cara dele se 0 Romaozinho comecas- se a chamé-lo de “branco azedo”, “leitinho”, “branquelo” 24 oulras branouras menos engra- gadas e mais bobas. Ele ia ficar com a cara vermetha de raival Ou branca de indignacao? E se a formula magica nao fosse de boa qualidade e, em vez de ficar branquinho, ele ficasse ‘um pouco amarelinho como o Japa? Sua mie v reconheceria? E 0 Romaozinho? ‘Ah, podem ter certeza de que ele ia chamar o Fael de China ou Japa mesmo. Bom, na verdade, ia brincar mais um pouco e chama- lo de “Fujiro Nakombi" ou “Tesujo Akueka’. Nao ia ter esse problema se a formula magica do Michael Jackson © deixasse um pouco vermelhinho. Fomaozinho certamente ia pensar mais um pouco e ia passar a chamé-lo de Indio", “Aritana?, "Raoni” ou “Bugro”. ‘Agora, se 0 Fael ficasse assim, digamos, com um jeitéo um pouco nordestino, o Romaozinho nao ia ter cara de chamé-lo de “Paraiba”, pois de Paraiba os outros ja o chamavam e ele nao gostava. Talvez se 0 Fael ficasse azul. Nao, no. Azul também nao ia ser legal. Verde? E, verde até que nao ia ser uma md escolha. Nao? E, verde € cor ecolégica, cor da esperanga... Mas e se comegassem a cha- ma lo de “Grama”? Agrama também é verde. Capim também. Pimento. Liméo. Eu sempre gostei da cor laran- ja, mas néo ia dar certo, nao. Jam chamé-lo de “Laranja” E 1osa. Nao... acho que rosa ele no ja topar, nao. la dizer que ¢ cor de menina. Vo- cs sabem como esses meni- nos s40 preocupados com cores, nado 6 mesmo? Roxo? Azul-cobalto? Azul-da-pris- sia? Azul-marinho (nao, ndo, iam chama-lo de “Peixe”)? Ambar? Coral? Grena? Hum, nao vai ser facil. E por essas e outras que eu no entendia por que era tao bom ser branco. E, se ser branco era bom, azul nao seria ainda melhor? Afinal de contas, azul é a cor do céue 0 céu era a primeira coisa que eu via quando abriam a tampa da caixa de brin- quedos. O céu é lindo... Eu andava pensando em aconselha-lo (se ole pudesse me ouvir, claro) a se transformar num camaleéo, daqueles que mudam de cor conforme 0 lugar onde esta. Nao seria ma ideéia Ja pensou? ‘Quando o Romaazinho comecasse a falar ou a chamé-lo de "Carvao", cheio de maldade e ma intengao, bastava es- talar 0 dedo, piscar um dos olhos, dar uma rebolada ou saltar numa perna s6 (a escolha seria dele, ou podia se fazer uma eleicao rdpida entre os interessados ou preocu- pados com a sua cor) e zés! Um azul-satisfeito, um verde- agradavel, um amarelo-aventura, um vermelho-trabalno, um grend-juventino... ou, melhor ainda: um monte de cores es- palhadas pelo corpo. Ah, mas que beleza! Ser branco é bom? Que nada! Bom mesmo é ser de um monte de cores! Me espera la fora! que eram. Até eu, uma boneca geralmente cal- mae educada, senti vontade de ser huma- na por um ou dois minutinhos para dar umas bolachas naquele linguarudo. Maldade, pura maldade. — Vocé no acha que ta exage- rando, Romaozinho? — perguntou Birisco. © Japa concordou. 0 Pita- luga concordou: —Isso jé é maldade! Quem diz que o Romaozinho se importou? (ra cas jancias da sata dos brinquedos se abre para a quadta. Eu gosto. Durante toda a manna 0 sol entra por tla, junto com o barulho gostoso dos meninos @ meninas brineando ou jogando qualquer coisa. Nao importa 0 qué, 0 barulho & sempre o mesmo. Gosto daquele barulho © da- quela janola, pois 6 quase sempre através dela que cu volo 0 Fael jogat. le joga bem. Mas bern mesmo! Parece até um Pelé bal xinho e cabecudo, driblando pra la, pra cd, fazendo com a bola o que bem entende. Puxa, como ele joga! Faol era o melhor entre todos os meninos, e alguns deles, como 0 Roméozinho, nao gostavam nem um pouco. Mats nao perdiam uma oportunidade de implicar com ele semPre que Fael errava alguma coisa no jogo. Acho que todos ieee vam mais preocupados em encontrar um erro do Fael do que em jogar. ‘Quase sempre se contentavam apenas em implicar, feP& tindo aqueles apelidos que tanto aborreriam Fael. Eu nao sei por qué, mas naquela manha o RomAozinho achou a4 era pouco @ abusou. ‘Ah, mas abusou mesmo! Gomegou a inventar nomes novos. Uns até bem feios. AL uns deles nem os outros, tao implicantes quanto © Romao- sino, tiveram coragem de repetir, de t4o feias e maldosos ar Nem ligou. Continuou implican- do. Repetindo aqueles apeli- dos ruins. Dizendo boba- gens até mesmo quando Fael fazia um gol. Ele queria mesmo era im- plicar. Eu senti que aquele jogo nao ia acabar bem, e real- mente nao acabou. Teve uma hora lA, nao sei quando, 0 Fael chutou, e a bola, em vez de it na dirego do gol, saiu pro ou- tro lado. Foio su- ficiente pro Ro- maozinho. —TA como pé torto, nego burro? — gritou. © Fael se virou com tanta raiva que eu tapei os olhos com as maos pra nao ver © soco na cara do Romaozinho. Me desequilibrei ¢ cai de volta no fundo da caixa de brinquedos, de onde continuei ‘ouvindo os gritos dos meninos e meninas incentivando os dois brigdes. Briga feia. Briga que s6 acabou quando a voz forte e severa do diretor da escola calou os gritos dos meni- nos e meninas. 29 Nao sei o que aconteceu, mas deu pra imaginar. Fael e Romaozinho brigando com muita raiva um do ou- to. Os outros gritando e cercando os dois pra ver quem ga- nhava a briga. A voz do diretor misturando-se as de dona Evangelina e de outros meninos e meninas. Confusao. Naquele dia, eu fiquei pensando em Fael. Aquele menino me deixava sempre tao preocupada... —Me espera ld fora! — gritou Romaozinho. Depois disso, eu ouvi alguns passos se aproximando da caixa de brinque- dos ¢ a tampa desceu, lé no alto, fechando-me novamente no siléncio @ na escuridao. Bronca Foectfeou un bom tempo sem aparecer na sala dos brin- quedos. Sumiu. Eu quase nao sala da caixa. $6 de vez em quando aparecia alguém e brincava comigo. Eu, que vivia es- perando por esses momentos, nao cheguei ame entusiasmar ilo. Brincava sé por brincar, porque linha sido feita pra isso. Fiquoi esperando. Mais do que isso, fiquei muito triste. Eu nunca tinha experimentado isso antes, nem mesmo quando vivia abandonada no fundo da caixa de brinquedos, endo gostei. A tristeza doi Faell Ele apareceu algum tempo depois. Eu sabia que era Fael porque sé ele levantava a tampa da caixa de uma vez e estendia as maos diretamente pro cantinho da escuridao do fundo, onde eu geralmente ficava a espera de carinho, de um instante de atengao. Meu coragao bateu mais depressa e bem forte, cheio de emocao. Eu pulei, esperneei e gritei, como gritei. Faell Faell Faell! Ouvir, ouvir, ele nao ouviu, mas tenho cd comigo que pelo menos sentiu como eu fiquei feliz ao vé-lo, Quis perguntar um monte de coisas, mas ele falou antes, contando tudo 0 que tinha acontecido. Tanto ele quanto 0 Romaozinho foram suspensos. No teve jeito, pois o diretor precisava dar o exemplo pra nao haver mais confusao ou briga no colégio. 31 Fael foi pra casa com aviso na cadereta. Dona Juliana foi chamada na diregao. Ouviu coisas, falou coisas, levou Fael pra casa sem dizer uma sé palavra. Nao sentia raiva, mas dava pra ver sua decepao. Seu Gilberto, este sim, falou demais. Bater ele nao bateu, Pois nao gostava disso, nao. Mas falou, e Fael disse que muitas vezes era até melhor apanhar em vez de ouvir aque- la bronea téo grande que parecia até sermao. Ele nao bateu mas se aborreceu. Falou e deu bronca. Dis- 80 que Facl nao devia ter brigado e criado confusdo. Fael bem que tentou falar e explicar a situagao, mas ele nao del- xou. Continuou falando e dizendo coisas que deixaram Fae! muito triste. — Em preto todo mundo presta mais atengéio — recla- mou seu Gilberto, — Quando vocé faz uma coisa boa ou correta, néo fez mais do que a sua obrigagao. Quando erra, mesmo que erre pouco, todo mundo diz que nés somos assim mesmo, que n&o merecemos confianca @ que nao temos educagao. Fael nao concordava e tentou dizer. Seu Gilberto nao dei- Xou. Ficou falando — eu que nao o conhecia ja me aborre- cia. Como falava aquele homem! Falava muito e sé besteira. Parecia ter veraonha de si mesmo. Pediu muito. Exigiu mais. Fael, pelos pedidos © conse- Ihos, tinha que ser a prépria imagem da perfeicao. Por qué? Tinha que ser gentil e educado. Quando nao pudesse aju- ar, ficasse calado pra ninguém dizer que era burro. Do jeito que falou, ¢ do tanto que falou — e, se no falou, pelo me- nos pensou —, Fael tinha que virar anjo de procissao. 82 Dé pra entender? Pior quo, depois de tanta bronca e de tantas ordens terminagdes, seu Gilberto ainda achou pouco e se aborrer ‘quando Fael, jf cansado e muito contrariado, desabafou: — Se eu fosse branco nao tinha que ouvir nada disso! ‘Seu Gilberto se espantou: —Como 6 que €? — Ninguém cobra nada de um menino branco! — 0 que é isso, Fael? Eu vou procurar 0 Cid Bandalheira, Fle vai me dar 0 enderego do Michael Jackson, e 0 Michael Jackson vai me ensinar a ficar branqui- nnho como ele. Fael contou que 0 pai dele nao fa~ lou mais nada depois disso. Pare- ce que ele ficou meio sem jeito ‘ou sem saber exatamente ‘que dizer. —Meu pai disse que eu estava dizendo boba- gem, mas eu nao li- guei, ndo! — garan- tiu Fael, cheio de determinagao, — Eu vou ficar bran- co como 0 Michael Jackson! Vou sim! q Em busca de Michael Jackson E, estranhei. Assim que a tampa da caixa de brinquedos levantou — de uma s6 vez, como somente Fael fazia — eu do vi o azul-brilhante do céu pela manha e sim um monte de estrelas cintilantes. Um raio de luar iluminou o rosto de Fael © que ole estava tazendo ali? Como tinha entrado na escola? Eu ainda tinha um monte de perguntas na cabega, mas elas perderam a importancia quando Fael estendeu as maos na minha diregao e me pegou: — Nés vamos encontrar 0 Michael Jackson, Maria. Como?! —O Cid Bandalheira tem um programa de noite na Ré- dio Roda-Viva. A gente vai la e pega 0 enderego do Michael Jackson com ele. Adianta dizer que eu protestei? Pois bem, eu protestei. Reclamei que era muito tarde. Que pessoalmente eu achava aquela histéria uma grande boba- gem — igualzinho 2o pai dele. Cheguei até a perguntar se ele sabia que o Michael Jackson morava num pais razoavel- mente distante chamado Estados Unidos da América. Voo8s acham que ele me ouviu? Vooas acreditam mesmo que ele deu alguma atengao ao que eu dizia? Vocés pensam que deu alguma importéncia aos meus argumentos? 34 Nem ouviu. Pradizera verdade, mesmo — essa eterna barreira | tica sempre a nos separar! Pensel qué os meus esforgos e a grande resistencia em entrar na mochila que ele trazia pen- durada nas costas — uma hora eu pren- dia 0 pé de propésito numa alga, noutra ‘eu me agarrava ao ziper, prendia minhas incontéveis trancinhas aqui ou ali — pu- desse Ihe dar algum tempo pra pen- sar melhor. Que nada! Ele queria mesmo que eu fosse junto. — Nos dois vamos ft- car branquinhos, voos vai ver — garantia, en- quanto se esforgava para me enfiar na mochila, talvez pra me conven- cer a colaborar com aquela aventurinha. — ‘Ai todo mundo vai que- rer brinear contigo! N&o posso negar que a proposta mexeu comigo. ‘Afinal de contas, quem n&o gosta de ser querido @ pro- curado, nao é mesmo? No entanto... ficar branca?!?! Sabe, eu me assustei. Me assustei mesmo. Logo eu, que vivia meio triste, recla- mando do meu abandono e invejando as outras bonecas branquinhas e lourinhas que sempre eram mais procuradas pra brinear. Eu... branca?! De repente, eu jd nao sabia se me preocupava tanto as- sim com 0 fato de ser pretinha como a noite. Mais: de um momenta para o outro, eu vi coma a minha preocupacio era boba Ser a menos procurada no era téo ruim assim. Nao, ndo era. Eu era a mais conservada de todas as bonecas da cai- xa de brinquedos. Verdade! Enquanto a maioria ja tinha ido pro hospital das bonecas pra uma reforma (muitas nem vol- taram), eu estava ali, bonitona como sempre, rebolativa e sorridente como ganhador da loteria. Além do mais, eu sem- pre podia me gabar diante das outras de que, quando al- guém vinha brincar comigo, vinha porque gostava, porque no ligava pra cor da minha pele, porque me achava interes- sante e outras coisinhas que deixavam as outras bonecas morrendo de inveja. Nao, no era tao ruim assim ser uma boneca pretinha. Nao, eu ndo queria ser uma boneca branquinha e lourinha. ‘Nao! Me larga! Me solta! Estou muito satisfeita com a minha cor! Sou pretinha e sou feliz! Sou pretinha e sou. Nao adiantou nada. Ele nem me ouviu. Fechou a mochila ‘comigo dentro e saiu da escola bem depressa. 36 Teimoso demais Oo garoto, vocé sabia que sequestro é crime? Fiz a mesma pergunta varias vezes pro Fael, mas nao sei se ele ouviu. Também nao sabia se nas leis dos humanos tinha alguma coisa sobre seqiiestro de bonecas. Pelo sim, polo nao, cu continuava gritando enquanto Fael andava de- pressa e a mochila pendurada nas suas costas balangava de um lado para 0 outro comigo dentro. Euja estava completamente zonza. Via trés e cumprimen- tava quatro, pra depois descobrir que estava enganada @ havia cinco comigo dentro da mochila. Cai em cima de uma revista com a foto do Michael Jack- son na capa. Rolei sobre um calendério onde estavam onome 0 enderego da Radio Roda-Viva. Nela também tinha a foto de um grandalhdo, téo negro quanto eu, usando uns éculos de aros muito finos e com fones nos ouvidos. O sortiso dele era tao grande quanto o brilho do sol pela manha, e a frase embaixo da foto no deixava diivida: modéstia nao era uma das virludes daquele que eu descobri ser o famoso e to falado Cid Bandalheira. “O maior pé-de-valsa do planeta”, estava escrito. ‘Acho que fizemos uma curva em algum lugar, pois rolei de novo e cai em cima de um retrato preso numa moldura cinti lante onde se via Fael entre 0 pai e a mae, Mais sorrisos. Depois de algum tempo caindo pra ld e pra ca, finalmente consegui colocar a cabega pra fora da mochila. 37 Nossa, que susto! Acidade estava em torno - ‘de nds, carros indo e vindo, apressados, buzinando, fre- ando, sumindo nas ruas muito iluminadas. Vi uns ca- minhdes. Onibus também — nés entramos num de- les e viajamos um tempao antee de desembarcar noutra rua ainda maior mais movimentada. Pra todo lugar que a gente ia se via era exa- 0, gente, mui- ta gente. Gente demais. Mais gente apressada. Gente correndo. Gente se empurrando. Gen- te gritando e gente — hum — xingando. Espero que vocé sai- ba pra onde esté indo, Fael, pois eu estou morrendo de medo! Fael parecia saber o que estava fazendo. Desde que saimos da escola — ele pulou o muro pra entrar e fez o mesmo pra sair —, nao tirava os fones dos ouvidos. Deu pra ouvir um pouquinho. Era o programa do Cid Bandalheira (“Agitando a galera a noite inteiral’, prometia ele, tocando umas muisicas barulhen- tas e numa lingua que nao era a minha. Samba que é bom e que faz a Maria Marié cair no gingado, nada! Pode?). “Voc danca melhor do que eu", ele perguntava, enquanto passos estalavam num piso que devia estar bem limpinho. “Entéo ouve essa!” E colocava outra daquelas mUisicas barulhentas. Haja ouvidos! Enquanto nés dois iamos de um lado para 0 outro da cida- de atrés daquele homem barulhento e gargalhante (puxa, ‘como ele rial), eu ficava pensando nos pais de Fael. ‘Sera que ja sabiam que ele tinha fugido de casa? (O que estariam fazendo? O que estariam pensando? ‘Menino teimoso! Ele no ouvia ninguém. Bastava cismar com alguma coi- sa pra correr atrés dela como um doido. Que coisa! ‘A gente andava e andava. Tinha hora que, com aquela masica barulhenta nos ouvidos, impaciente, eu perguntava: A gente nao esta perdido, nao 6, “broderzinho"? Ou: A gente vai acabar branco é de susto, com todos esses carros @ nossa vol... Aaaaiil Viu aquele? Viu aquele? Quase pega agente! (Ou também: , Fael, vamos deixar de brincadeira e voltar logo pra casa, vamos? Estd muito frio aqui dentro, viu? 39, Querendo ou nao, continuei naquela aventurinha pela ci- dade. Depois do dnibus, pegamos 0 metro — sempre com o Cid Bandalheira em nossos ouvidos ("Relou, creize pipou, camom, camom, dence, dence’... Eta lingua danadal) —e, depois, trocamos de metré pegamos outro dnibus depois que deixamos aquele metrd. Eu ja estava achando que o tal do Cid Bandalheira transmitia aquele programa barulhento direto dos Estados Unidos, de tao longe que era a Radio Roda-Viva. Das duas uma: ou era isso, ou nés dois estéva- mos pordidinhos, perdidinhos. 40 Sobe e desce AA esvic Rods-viva FM (0 que seré que & “FM? Feia e Maluca? Fazemos Maluquices?) ficava num prédio bem alto no centro daquela cidade muito grande, luminosa e baru- Ihenta, Nao foi dificil chegar lé — quer dizer, depois que a yenile Uescobriu que pegou 0 énibus que nao dovia ter pega- do, depois que nos disseram que entramos & toa no metr6 e, ainda por cima, pegamos o destino errado, foi facil. Todo mundo sabia onde ficava a Radio Roda-Viva FM (For- te Mesmo??) Facil, pode acreditar. Diticil foi entrar. Logo que a gente parou na entrada do prédio e empurrou aquela porta todinna de vidro, quem diz que ela abriu? Esta- va fechada. Apareceu um homem enorme e mal-encarado, dentro de um uniforme de guarda. — 0 que vocé quer, garoto? Nao ta vendo que ta fecha- do? — Eu queria ver o Cid Bandalheira — respondeu o Fael, um pouoo assustado. — Como 6 que é? — O tal guarda ficou aborrecido. Quanta falta de paciéncia! — Eu queria falar com o Cid Bandalheira, mogo... —Vocé e a cidade inteira, garoto! — E importante, mogo! a — Vai embora, garoto! — Mas mogo... — Por acaso os seus pais sabem que o senhor esta na rua uma hora dessas, saber? Fael se apavorou. E se o guarda saisse © pegasse ele? E se 0 pegasse e ligasse pra seus pais? Hum, que grande confuséo! Fael saiu de perto da porta de vidro e fingiu que ia embora pra casa, mas nao foi. Bastou © guarda se afastar da porta, pra ele voltar e ficar olhando. Olhando e esperando. Olhan- do e pensando numa manei- ra de entrar na radio. Ele qua- se enlouqueceu quando, ain- da com os fones do radio nos ouvidos, ouviu o Cid Bandathei ra tocar uma miisica do novo disco do Michael Jackson, Entender. entender, ele nao en- tendia, Eu mesma, que sempre me considerei uma boneca muito inteli- gente e letrada, entendia pouco ou quase nada. Que lingua mais danada! Mas sabe de uma coisa? Era dificil ficar parada ouvindo aquela musica. Pode crer, gente, rebolei mais que minhoca na areia quent! Volta e meia o guarda nos via. Fazia cara feia e ficava lina porta, gritando ameacas e... minha nossa! Gritando palavrdes. Sujeito desbocado! Fae! — teimoso como ele s6 — se afastava, ia até a es- quina e logo voltava. Mas quem diz que entrava? Nada, A porta no abria nem por decreto e, quando abria, o guar- da logo mostrava a cara @, assim que nos via, fechava do pressa, Eu ja estava vendo a hora que ele ia sair de lé e dar uma corrida na gente. Pior que a raiva dele 86 a teimosia do Fael, que queria Porque queria vere falar com o tal do Cid Bandalheira. Nada parecia desanimar aquele garoto. Ele era teimoso, determi- nado toda vida. Voltava. Voltava sempre Tantas vezes ele voltou que acabou encontrando uma ‘maneira de entrar. © Fael era muito esperto, muito mesmo. Algumas pessoas estavam saindo — umas sorrindo, ou- tras se despedindo do guarda, que tinha aberto a porta pra elas —@ 0 Fael se misturou aquela gente. Mas nao entrou de frente, que ele nao era bobo e sabia que o guarda notaria. Entrou de costas, fingindo que conversava com as pessoas, rindo, agitando as mos, e, brincalhdo como ele s6, até se despediu do guarda: —Até amanha, Carléo! Quando 0 guarda percebeu, tentou agarrar o Fael, que depressinha escorregou pelo meio daquelas maozonas ¢ cor- eu, Correu como nunca tinha corrido antes. 43 —Volta aqui, menino! — Ele veio atrds de nés. Sacudida pra todo lado, misturando-me com aque- las bugigangas todas que © Fael carregava na mo- chila, ainda pus a cabega pia fora e arrisquei uma olhada. Nossa,‘a cara dele estava de meter 10-papao. Assustava defunto & é,assombracao ne a0 Trouxinha, protetor de todas = ‘as bonecas espevitadas! Fael que eu/pensava que ia cair. Jd ndobastava | ser jogada pra todo lado e ser amassada pelas. revistas, golpeada pelo calendario com a cara do Cid Bandalheira ou passar a noite inteira me 44 esquivando de perigosos biscoitos de chocolate. Tinha que rolar escada abaixo dentro daquela mochila. ‘Nunca uma boneca sofreu tanto quanto eu naquela noite, Entramos e saimos de algumas salas. Fael passou por baixo de duas ou trés mesas. Saltou de uma pra outra. Fo- Ihas de papel rodopiavam a nossa volta. Pior do que a mi- nha situacao, s6 a do Fael, que nem sabia pra onde estava indo. Teve uma hora que 0 guarda chegou até a aleanga-to. Agarrando a mochila, gritou, triunfante: — Ah, te pegueil Dei-the uma mordida no dedao e ele largou, gritando. Nes- se mesmo instante, ele escorregou e se esparramou de cos- tas no chao. Senti-me vingada: Viu seu boca-suja? Isso é pra vocé aprender a ter modos na frente de uma dama! Quando olhei para a frente, apavorei-me. Gritei feito lou- ca. Fael acabava de trombar com uma porta, que se escan- carou barulhentamente, mas nao antes de eu ler Estlidio A Fael tropegou e caiu de brugos, € continuou escorregando por uns bons metros naquele chao liso. Paramos bem na frente de um homem grandalhao, que sorria pra nés, senta- do numa cadeira de rodas téo grande quanto ele. ‘Cid Bandalheira! gritamos quase ao mesmo tempo, um, ‘espantado que 0 outro. Ele sorriu pra gente e balangou a cabeca, garantindo: — Em came € osso, garoto! Papo-cabeca Gis daquele tal Cid Bandalheira logo que pus os olhos nele. Devia ser 0 sorriso, aquele sorriso de sol entrando na caixa de brinquedo logo que a tampa era levantada pela manha. Ou seria 0 seu jeitéo de acenar uma das maos enormes e sacudi-la tranqiilizadoramente para o quarda quando este entrou no estudio querendo nos levar pra fora a tapas? Nao sei. O que sei é que gostei daquele Cid. Parecia—e depois eu vi que era mesmo — um cara muito legal — Pode deixar, Carléio — disse ele no momento em que o guarda (aquele desbocado!) tentou arrancar o Fael de suas maos. Envolvendo os ombros do Fael com um dos bragos, olhou para o guarda e garantiu: — Ele é meu convidado de hoje. Como 0 guarda fez cara de quem nao acreditou, o Cid sorriu para o Fael e concluiu: — Vocé estd atrasado, nao 6, garotéo? —Mas seu Cid... — © que, Garlao? Ele nao estava na lista que te passer? —Na verdade... nao. —Abh, eu devo ter esquecido. Dé pra vocé colocar e tudo ficar numa boa? — Dé... dé sim. — © guarda ainda olhou pra gente com cara de poucos amigos, mas 0 que ele podia fazer? O tal Cid tinha colocado sua asa protetora — aquele bragao enorme 46 —sobre a gente e 0 quarda nao via jeito de tirar nés dois dali de baixo. uma bela careta para o guarda quando a porta se fe- chou ards dele. Logo em seguida, 0 Cid colocou outra misi- a pra tocar e, virando-se para o Fael, perguntou: — Entéo, garoto? Eu salvei sua pele. Agora me conta sua historia, Fael olhou pra ele meio sem jeito e, depois de um segun- do de siléncio, perguntou: — O senhor 6 mesmo 0 Gid Bandalhaira? Cid sorriu, — Quer ver a minha carteira de identidade? — No... mas... —Mas 0 qué? Vocé ainda néo esté acreditando? —E. —Por que nao? — A gente ouve o senhor no radio e... quer dizer... — Fael olhava, embaragado, para a cadeira de rodas do Cid. — O que 6 que tom? — Cid percebeu e perguniou:— Ea cadeira de rodas? —E... eu pensei... eu pensei... — JA sei, jd sei. Vooé ouve o programa pelo radio, ouve 0 sapateado e pensou que ia chegar aqui e encontrar um ma- luce dancando as misicas que toca, no 680? — Ficou decepcionado? —Bem.. — Nao se preocupa, no, garoto. A maioria das pessoas também fica. Claro, eu no posso dancar, mas a cadeira no tirou.o meu gosto pela misica, Alids, a cadeira nao tirou nada. a7 Vocé pensa o qué? Mesmo aqui em cima dela, eu ainda ar- Fisco os meus passinhos. Sou o maior dangarino sobre r0- as do planeta. Pode crer, pode crer... Fael ia fazer uma pergunta, mas 0 Cid sacudiu a mao, pedindo para ele esperar. Tinha acabado a musica e o Cid precisava falar alguma coisa antes de tocar outra. E ele dis- se alguma coisa parecida com: “Aqui é 0 Cid Bandalheira, ¢ a cidade treme inteira quando uve 0 meu som! Vamos ld, galera. Se liga no meu som. Manca comigo esta musiquinha espertissima.” E apertou um dos muitos botdes que o rodeavam. Logo a gente ouviu 0 som de pés égeis sapateando em algum lugar bem longe da cadeira de rodas. Cid notou que 0 Fael ficou olhando pra ele e pra cadeira; piscou um oho, sorrindo. Em seguida, sem que a gente es- erase, ergueu a cadeira e, equilibrando-a nas duas rodas grandes, rodopiou ¢ assobiou, tal como fazia pelo radio. Em seguida, sempre em duas rodas, balangou pra Ié e pra cA, tornou a rodopiar e, diante da nossa cara de bobos, garga- thou, dizendo: —Eisso ai, galeral Colocou outra musica pra tocar. —Mas voos ainda nao me disse o que esta fazendo aqui, sgaroto — lembrou ele, titando os fones dos ouvidos e colo- cando sobre a mesa. Fael ainda olhava pra ele meio abobalhado, surpreso. —Bem, eu... — Vooé quer alguma coisa, néo quer? Fael sacudiu a cabeca afirmativamente e Cid perguntou: — Vamos ld, entéo: 0 que é? 48 — Eu queria 0 enderego do Michael Jackson — respon- deu Fael. —Mesmo? E pra qué? — Eu queria saber como ele fez pra ficar branco. — Pra qué? Nao me diz que vocé também ta querendo ficar branco... t8? —é... Cid Bandalheira calou-se por um instante, pensativo, olhan- do fixamente para o Fael. — Por qué? — UB, ser branco 6 bom! — Quem disse? — Ninguém: — Entdo como vocé sabe que ser branco é bom? — Quando eu for branco ninguém mais vai me chamar de “Carvao”. Cid sorriu, cheio de compreensao. = tile 6 disso que eles te chamam? — perguntou. —E vocé ndo gosta. — E claro que nao! Cid tornou a sorrr. —E claro... entdo é por isso que vocé quer o enderego do Michael Jackson? —Ninguém mais vai me chamar de “Carvao” quando eu for branco. —E, no vai, nao. Talvez te chamem de “Branco Azedo”, mas de "Carvao" nunca mais. Fael olhou para Cid, surpreso. — Branco azedo? 60 — Ou “Branquelo”, se voos preferir. — Nao... — Pode ser “Leitinho” também. Eu tinha um amigo que odiava esse apelido. —Verdade? — Claro. Fui eu mesmo que pus 0 apelido nele! — Voc8?! — U6, ele vivia me chamando de “Boneco de Piche". —Eal? — Volta e meia a gente arahava dando soco na cara um do outro por causa disso. Ele dizia que proto era burro, que preto era ladrao, que preto era isso e aquilo. Eu dizia que ‘todo portugués era porco e nao gostava de tomar banho. A ima dele usava uns éculos de lentes muito grossas e eu implicava com ela, chamando-a de “Ceguinha”. Mexia com ‘mae dele chamando ela de “Maria Preta’. — Maria Preta?! — O pai dele vendia carvao, de modo que eles andavam sempre sujos. Mao suja, cara suja. Tudo sujo. Mas o que deixava 0 Leite doido de raiva era quando a gente chamava ele de “Portuga’. Coisa de crianga mesmo! Preconceito bobo! — Precon-o-qué? —Preconceito. —O que € preconceito? — Sao algumas bobagens que a gente pensa e diz pras pessoas. — Hem? — Coisas como as que eu dizia para o meu amigo Leite ‘ou como as que eu ainda ougo quando alguém olha pra mim © pensa que S6 porque eu no posso andar, também nao 51 posso fazer coisas como viver, trabalhar ou até dangar com a minha cadeirinha de rodas modemona. Preconceito também 6 achar que bom é aquilo que as pessoas dizem que é bom nao 0 que nés achamos que é. Preconceito é acreditar que ‘somos 0 que as pessoas dizem da gente ou pra gente. Pre- conceito 6 assim: eu digo pra vocé e vocé diz pra mim. E aquela coisa que eu penso e vooé acaba acreditando que verdade. Conta pra outro, que conta pra outro, ¢ logo aquela 6 uma grande verdade, pois j4 néo pertence a mim, mas a todo mundo... Cid sorriu para Fael com carinho @ eu me apaixonei mais um pouquinho por aquele sorriso. — Nao sei 52 se vocé entendeu bem, mas, de qualquer forma, jé que vooe veio aqui atrés do endereco do Michael Jackson pra ele te ensinar direitinho como ficar branco, eu vou pegar... — O senhor também nao quer ficar.. —... branco? Eu? Pra qué? — ES. — Eu vou ficar mais sabido? —Bem... ; —Ah, ja sei: mais bonito. € isso? Eu vou ficar mais bonitao? — Vou falar todas as linguas do mundo? — Vou tocar guitarra como o Jimmy Hendrix? Nao, como o Jimmy nao da. Ele era negro. th, garoto, por que mesmo que eu tenho de ficar branco? Fael ficou olhando pra ele calado, sem saber o que dizer. © Cid riu de se arreganhar. Piscou um olho para ele. —Te peguei nessa, hem, garoto? — E-e-eu nao sei... — disse Fael, meio confuso. — Diz ai, garoto: vocé ta a fim de ficar branco apenas por causa do apelido? ae —Mas e se alguém te botar um apelido novo quando vocé ficar branco? Eu nao conheco ninguém que faz a gente virar japonés. no. Nem indio. Bom, é bem verdade que. se vooé estiver interessado em ficar verde ou amarelo, eu conheco 08 pintores que por um precinho razoavel até que te pintam todinho. Nao, mas ai vai aparecer sempre um engracadinho pra te colocar outro apelido, nao é mesmo? —E ai, garoto? O que a gente vai fazer? —Sabe, Cid... —Eu sei, garoto. Sei que nao ¢ facil agentar as implican- cias, mas sabe de outa coisa? Pior do que o apelide é 0 medo, a vergonha ou a raiva que a gente sente dele, ou vocé acha que eu gosto de ser chamado de “Aleijadinho"? —E 0 que voce faz? — Bom, quando eu tinha a sua idade, eu dava uns socos aqui ali. Mas no adiantou muito, porque eu tomava outros '80C0s aqui e ali e 0 apelido continuava. Depois, eu comecei ‘pdr apelicios nos outros. A coisa que mais aborrece as pes- soas que poem apelidos nos outros é que os outros ponham apelidos nelas. Adiantou um pouquinho, mas ainda tinha uns que continuavam me perturbando com aquela historia de Boneco de Piche... 54 —Eai? —Ai eu deixei pra ld. Fazer 0 qué? —E o apelido? — Sabe que eu nao sei? Um dia eu notei que ninguém mais me chamava de Boneco de Piche... Os olhinhos do Fael britharam de interesse. —=E? Cid sorriu, divertido. — Chamavam de Cid, Cid Bandalheira, porque eu fazia muita bagunga na sala. Fae! desanimou-se novamente. —Puxa... —Ah, mas desse eu gostei. Gostei tanto que fiquei com ele pra mim, como o Pelé ficou com o dele. — £7! — Pergunta pra ele. — Eu? — Claro! Eu também tenho 0 enderego dele em algum lugar por aqui. E bem verdade que 0 endereco dele fica em Nova York, mas jé que vooé vai mesmo pros Estados Unidos atras da formula de branqueamento do Michael Jackson, Pode dar uma passadinha e... —Cid. — Que foi, garoto? — Cid sorriu. Aclu que ele, como eu, ja sabia 0 que 0 Fael ia dizer, mas nem ele nem eu deixamos © Fael notar. — Sabe aquele enderego do Michael Jackson?.... — Claro, eu ja vou pegar. Assim que eu puser outra musi- ca aqui, eu. — Nao, nao. 55 —Hem? —Néo ¢ isso. — Nao é 0 qué? Fael sorriu, um pouco constrangido. — 6, Cid, sera que vocé vai ficar chateado se eu nao pe- gar... nao pegar. —Pegar o qué? —0 enderego do Michael Jackson... — tornou a sort. — Vooé fica? Bem... Cid Bandalheira amarrou um pouco a cara pra fazer suspense, mas depois se desmanchou num gran- de sortiso de satistagao, concluindo: — acho que nao. —Puxa, Cid, voce é um cara bem legal... — Vocé também, garoto, vocé também. 58 Bom, t4 tudo muito bom, té tudo muito bem, mas eu acho isso tudo uma grande injusti¢a. O tal de Cid — aquela sim- patia de sorriso — abracou o Fael, o Fael abracou ele... O Cid fez um cafuné na cabega do Fae! — até deixou ele colo- car aqueles fones enormes nos ouvidos — e aproveitou pra avisar aos pais do Fael pelo radio onde ele estava, que 0 Cid era danado de esperto. O Fael teve o direito de colocar va- rias miisicas das suas preferidas pra tocar. O Cid deu um beijinho na cabega do Fael quando ele comegou a cochilar no seu colo @ o Fael disse que naa ia mais esquecd-lo Té legal, td legal, ta legal... mas e eu? Em todo aquele papo até animado entre os dois, ninguém se lembrou de mim. © Cid, aquele ingrato, nem olhou pra mim quando eu consegui colocar a cabega pra fora da mo- chila e acenei pra ele. No me perguntou se eu queria ouvir uma musiquinha. Vocé quer ouvir alguma coisa especial, Maria Maid? Bebe alguma coisa? Um catezinho? Que tal um licor? Comer? Que tal um misto-quente com fritas? Nada. Depois eu é que sou feita de pano... Quanta insensibilidade! 87 Adeus, Fael a ee Eu acordei quando os pais de Fae! entraram no esttidio € encontraram Fael dormindo no colo de Cid Bandalheira. — O que aconteceu? O que 0 meu filhinho esta fa- zendo aqui e a uma hora dessas? — preocupou- se dona Juliana, —Depois eu conto—cochichou Cid, passan- do 0 Fael para os bragos que ela estendia, alta, em sua diregao. — Mas pode crer que eu gostei muito da conversa. Juliana olhou para Gilberto, 0 fiho nos bragos, e sorriu, agradecida. — Obrigado por tudo, Cid — agradeceu ela. — Nao tem de qué, dona Ju- liana. —Os dois comegavam a salt, quando ele os cha- mou. — Isso aqui é do Fael — disse, entre- gando a mochila para Gilberto. ‘Saimos os quatro de volta & cidade grande, baruthenta ¢ Fepentinamente mais luminosa. Fiquei acenando para o Cid de uma fresta da mochila mesmo depois que a porta do e+ {dio se fechou e ficou entre nés. Estava completamente apai xonada. Até hoje guardo a foto dele que encontrei na mochila, O Fael sempre podia conseguir outra, mas eu néo. A vida sem- pre é muito dificil pra uma bonequinha de pano, e conseguir uma coisa dessas exige mais esforco do que eu ando dis- posta a fazer ultimamente. Sabe, é a notoriedade. Depois que voltei pra escola, a vida nunca mais foi a mes- ma pra mim. De um momento para o outro, todos os outros brinquedos queriam a minha companhia, cercavam-me de carinhos e atencdes, mas, principalmente, de perguntas, grandes interrogagdes. Todo mundo queria conversar com a boneca seqiiestrada. Ouvircoi- ‘sas, narrativas fantasticas de minha aventurinha pelo mundo grandioso dos humanos com seus barulhos e luzes in- terminaveis, 60 Até entre as criancas as coisas mudaram, e muito. Eu nao ficava mais quietinha no tundo da caixa de brinquedos. Bas- tava alguma crianca parar de brincar comigo e me largar no fundo da caixa, que vinha outra brincar e conversar, fazer coisinhas que eu ja tinha esquecido como era. Brincar de casinha. Dar comidinha. Trocar e trocar roupi: nhas. ‘Que coisa mais maravilhosa! Virei uma celebridade dentro e fora da caixa de brinque- dos. Aagitagao eta tamanha que teve um dia que eu preci- sei rodar a baiana para que toda aquela gente me deixas- se em paz. Escondi-me bem Id no fundo e foi dificil me tirarem de Id. Fael ainda continuou aparecendo de tempos em tempos pra um papinho. Cada vez menos. Sabe como é, nao? Ele também pegou um pouquinho da minha notoriedade. Nao como seqiestrador da Maria Marid, mas como o garoto que tinha feito um programa com 0 Cid Bandalheira ou como 0 amigo do peito do maior disc-jéquei da cidade. Nao se falou em outta coisa naquela escola durante um bom tempo. Todo mundo queria conversar com ele, saber mais ¢ também para ficar amigo de alguém to famoso— a maioria, um bando de interesseiros —, alguns até descobri- ram que o Fael era um cara bem legal Fael fez novos amigos e se tornou ainda mais amigo do Cera, que amigo de verdade mesmo — tanto pra ele quanto pra mim — era o Cera. Fael foi aparecendo cada vez menos. Quando aparecia, do falava mais no apelido. Nem no apelide nem no Romao- zinho. Deixou pra ld aquele desejo de ficar branco. eo Fael tinha outros papos. Falava das provas e das notas boas... do time de futebol que a escola estava formando pra disputar o Intercolegial. Falava do pai e da mae. Certa vez falou até de uma certa Inés, muito engragadinha, que tinha acabado de entrar para a sua turma. Ele estava dando uma atengéio danada para aquela tal de Inés. Morti de citimes. Fael sumiu. Fael cresceu. Fael, vi ontem de maos dadas com a Inés. ‘Adeus, Facl. AUTOR E OBRA (© proconceito 6 mais velho do que a consciacia ¢ do.que a intelgéncia, Invariaveimente nasce da ignordncia, do modo e da incomproenséo. Desde sf minha infncia om vias favolas do io de Janeiro —apesar de minerodenascimonto, vivo desde os. |_| Y ‘nco anos or essas bandas que amo de paao—SHNM VN =, eu encontel esse tipo de coisa (nego, pobre, favelago.. essa comiinacao pode fazer com aue o preconosto crave unhas aiadas na ganta 2, mesmo agora, aos 9¢ anos, anda doi indigna. Como sou de pavio cu, ‘ncign perigosament). Como & que um homem do 34 anos, macaco velho de longascorridas @ batanas pela vida (i jomaleito, boy, emprogado do supermarcado © geren- te de rtiica, antes de comecar a eseraver, a para os idos de 1980), faa para falar de preconcato — racial, social ou econdmico, tanto faz, pois no ‘undo, no fundo, tudo 6 igual, 6 sempre preconceto — e, principalmente, para crangas? No comago fof, Para se absolutamentesincoo, 0 primero ive que serovi sobre o tema foi recusado pola eitora, Talvez tenha sido por 80 awe resolv fincarpé e veneer o desefio— esse é 0 trago mais forte de minha personaldade. Eu sou tinhoso. Pensa, maluta, esquenta as células cnzon tas, ola pra vide, de repente, “nao mas que de fepente” lembroi de uma antiga matéia de um telejomel num dos Natas de minna exstenen, Ela falava de uma creche da Febem, em Séo Paul, onde 2s cfangastnham muitos brinquedos com que se divert, Falando dos varios brinquedos, uma das assistentes soviais mencionou casvalmente uma cera baneca negra {ue fcava sompre no fundo de uma grando caixa de brinquedos © com & {ual nem mesmo as crangas nogras gostavam do brincar A jomalista flou ‘de preconcato. A assistente socal sentiu@ insinuagao e tratou logo do mi dar de assunto.Tude cou por isso mesmo. CCompreendo seu ombaraco. Als, quem no ficaria embaragado se de tepente se visse confontado com uma fealidade ao dura et tite? © preconceito aparece na gente mulio antes do que imaginamasefalo na gente com a maior sem-cerménia do mundo, pos muita vezes eu tambem ‘me surpreendo responsével por algum tipo de preconceito Ele esta por a, saibam todos. E quasoinovitivol. como lidar com ola? Sei J escrevide tudo um pouco: historias em cuadtinhos, bosaivros, prog ‘mas de humor para Os TrapaihCes, ra TV Globo, eaté novela para o Parag 4 conheci genie demais.Algumas realmente chegaram a mim com ‘thes choos de precanceies (0, ainda por cima, sou gordo © uso Souls ‘malo ou quor mais?). Por isso, om a autordade do mulas pauladas des tipo, acho que a gente bem que poder comerar pensando no assure, rindo dessa bobagem ou do medo que ele provoca. ‘Nao tenho respestas prontas. 80s tolos as tém em quantdade. Ah, sm. ‘08 to'0s@ 08 preconceltuosos. Eu pret nao saber de nada e aprender todos. Ali, Sou um excelente autodata. Pretto sempre falar do poueo au ‘conego para aqueles que poriem me ajudar a conhecer mais. E conversa {do que crlamos conseianea, 6 cwindo que descabrimos inteigancia. E Tango que voncomes 0 modo © aignorancia, lio Ero Braz GiRAsSOY FELICIDADE NAO TEM COR | Gente € gente! Nao importa a raga ou a cor! E todos devem ter seu lugar neste mundo. Vocé € negro, branco, amarelo, marrom ou core-rosa? Voce gostaria de trocar de cor? Ficar, quem sabe, vermelho, laranja, verdinho? Foi isso que Fael resolveu fazer: mudar de cor para acabar com as gozacdes do Romaozinho. Maria Mari mio gostou nem um pouco da idéia. Mas quem dava ouvidos a clas

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