O livro ‘Freud e a Bíblia’ de Théo Pfrimmer, parece um
trabalho tipicamente alemão, extremamente exaustivo e analítico, apesar do original ser em francês. O autor divide o livro em duas partes distintas. Na primeira ele tenta relacionar a vida e a obra de Freud com essa possível influência forte e profunda da Bíblia, citando suas cartas e escritos e também outros estudiosos de Freud. Na Segunda, mostra as versões bíblicas que Freud usou, suas anotações nestas versões, e compara a cosmovisão freudiana (psicanalítica) com a cosmovisão bíblica, mostrando muitos pontos em comum.
Este trabalho tenta fazer uma série de pontuações, que
funcionaram como dispositivos desestabilizadores na leitura desse livro com relação a outros escritos que pensam também a ‘herança freudiana’ para uma melhor compreensão do humano. O retorno do recalcado ?
Há apenas duas citações em toda a obra de Freud em que
ele fala, numa da sua relação com o que chama de história bíblica
“Minha absorção precoce na história bíblica(quase ao
mesmo tempo em que aprendi a arte da leitura) teve, como reconheci bem mais tarde, um efeito durável na direção do meu interesse”(pg11)
e noutra, da fonte de onde tirou a maior parte das influências
que se espalharam por sua obra e que tiveram muita importância no seu imaginário desde criança - uma versão específica da Bíblia:
“Eu mesmo não tive mais sonho de angústia a bem dizer
há dezenas de anos. De meus sete ou oito anos, lembro- me de certo sonho, que submeti a interpretação cerca de trinta anos depois. Ele era muito movimentado, e me mostrava minha mãe bem-amada com um rosto de expressão particularmente tranquila e adormecida, sendo levada para o quarto e posta no leito por dois (ou três) personagens com bicos de pássaros. Despertei chorando e gritando, perturbando o sono dos meus pais. As figuras - com drapeados curiosos - anormalmente grandes, com bicos de pássaros, eu as tomara de empréstimo às ilustraçoes da Bíblia de Philiipson; creio que eram deuses com cabeça de gavião de um relevo tumular egípcio”(pg21)
Essas duas citações reúnem-se a quase quatrocentas
outras em que Freud cita textos bíblicos ‘espontaneamente e sem introdução’, já que estavam tão integrados em sua bagagem cultural que se imiscuem no próprio texto freudiano fazendo corpo com ele. Essa mesma Bíblia que Freud cita vai ser oferecida a ele por seu pai quando chega à maturidade completa, 35 anos, na tradição judaica. Quando lemos a dedicatória, chama a atenção o prenome hebreu de Freud: Schlomo, Salomão. É dificil não pensar na figura bíblica do rei que recebeu de Deus o presente da sabedoria - num sonho! - , e tornou-se o homem mais sábio do mundo. O mesmo Salomão que, segundo a tradição teria escrito o Qohelet (Eclesiastes) e o Cântico dos Cânticos. Sabemos que a aproximação um tanto pessimista de Freud em relação à existência humana - por exemplo, na constatação de que não estaria contida na criação uma intenção de que o homem seja feliz(pg. 328) - lembra muito o estilo e a maneira do Qohelet. E o Cântico dos Cânticos é o único livro bíblico explicitamente erótico, um canto de amor que trata da sexualidade e do desejo de maneira absolutamente natural. Essa identificação com o Salomão não é demonstrada nos escritos de Freud. Elas passam por Jacó, José e Moisés, principalmente, e parecem fazer parte integral de uma mitologia pessoal e de uma profunda auto-análise operacionalizada por Freud até o fim da vida:
“através do Jacó da Bíblia, Freud viveu seu próprio
combate edipiano, e o declínio de seu complexo chega ao fim quando, aos 82 anos, se identifica explicitamente com ele. É até possível que através do combate com aquele Jacó ele tenha podido perceber muitos elementos que estão na base de sua descoberta do complexo de Édipo. Existe algum personagem que simbolize melhor que outro esse problema fundamental?”(pg314)
Seguindo a trilha aberta por Pfrimmer citamos Harold Bloom,
em seu livro ‘Abaixo as Verdades Sagradas’: “Iahweh, em termos freudianos, teve de representar o anseio universal pelo pai, mas a própria internalização que Freud faz de Iahweh desagüou, ao fim e ao cabo, na mais judaica de suas forças psíquicas, o superego.”(pg182) Bloom é o autor/inventor do que chama de ‘angústia da influência’, que utiliza a mecânica freudiana do édipo para explicar porque sempre um poeta forte - um literato - precisa ‘matar’ em sua obra o precursor que o influenciou enormemente(seu pai simbólico), para que possa então estar livre para criar sua própria obra, livre da ‘lei do pai’. Parece então que o que se inventa e investe é uma novo monoteísmo: o pai, o édipo, o romance familiar como verdade universal que explica o inconsciente e o enclausura numa teoria - a freudiana.
Psicanálise e a necessidade de um politeísmo
“O que Freud e os primeiros analistas descobrem é o
domínio das livres sínteses onde tudo é possível, as conexões sem fim, as disjunções sem exclusão, as conjunções sem especificidade, os objetos parciais e os fluxos(...)É tudo isso que será perdido, ao menos singularmente comprometido, com a instalação de Édipo soberano. A livre associação, em lugar de abrir-se sobre as conexões polívocas, fecha-se em um impasse de univocidade(...)Toda a produção desejante é esmagada, submetida às exigências da representação(...)Como se Freud tivesse recuado diante desse mundo de produção selvagem e de desejo explosivo, e quisesse colocar um pouco de ordem aí, uma ordem tornada clássica do velho teatro grego(...)Édipo é o desvio idealista.(Anti- Édipo pg 74-6)”
Talvez o que precisemos seja do ‘elohim’ - deuses, no plural -
do início do Gênesis ou das teofanias ininteligiíveis do Antigo Testamento, como em Ezequiel, onde o Deus aparece num aspecto terrível de rodas dentro de rodas com olhos por todos os lados girando. Um outro imaginário em torno do Deus, que resgate uma potência do desejo e da subjetividade. E parece que Freud cai vítima do segundo mandamento - ‘não farás para ti imagem’ - quando estrutura todo edifício da psicanálise em torno do complexo de Édipo. Representar o inconsciente é perder a riqueza e a complexidade e a multiplicidade de caminhos que a subjetividade humana pode tomar, essa a crítica de Deleuze e Guattari na citação acima.
Baudrillard concorda com o Anti-Édipo, demonstrando que ao
desistir de estudar a maneira como se processa a sedução, um tema estranho e escorregadio, Freud descobre o Édipo: “Pois, para a psicanálise, o pior é isto: o inconsciente seduz, seduz por seus sonhos, seduz por seu conceito, seduz visto que ‘fala’ e que tem vontade de falar(...)Sejamos analistas por um instante e digamos que se trata da desforra de um recalque original, o recalque da sedução, que está na origem da emergência da psicanálise como ‘ciência’, no trabalho do próprio Freud(...)a sedução...é uma espécie de objeto perdido da psicanálise. ‘É clássico considerar o abandono da teoria da sedução por Freud(1897) como um passo decisivo no advento da teoria psicanalítica’(Vocabulaire de la psychanalyse, Laplanche/Pontalis) (...)A sedução é negada como forma perigosa cuja eventualidade pode ser mortal para o desenvolvimento e a coerência do edifício posterior.” (Baudrillard/Da Sedução pg 63-5)
O espaço do caótico, do assignificante, do ininterpretável, do
imprevisível é lançado fora, mas talvez seja ele que nos faça mais humanos.
A palavra profética e o futuro da psicanálise
Nada em torno dessas críticas faz com que se desconsidere
aqui a genialidade de Freud e sua descoberta do psi e do inconsciente. Apenas tenta demonstrar as possibilidades de outras leituras de Freud e do fenômeno psíquico. Como deixa ver nessa citação de um rodapé do livro de Pfrimmer, talvez Freud estivesse mais consciente do que nós e todos os seus discípulos, do caráter provisório e operacional da teoria psicanalítica: “A psicanálise não é um sistema como os da filosofia, que partem de conceitos de base nitidamente definidos, procuram com sua ajuda compreender o conjunto do mundo, e depois, uma vez acabados, não tem mais lugar para novas descobertas e melhores conhecimentos. Ela se prende mais aos fatos de seu campo de trabalho, procura resolver os problemas mais próximos da observação, avança tateando, graças à experiência, está sempre inacabada, sempre pronta a deslocar os acentos de suas teorias ou modificá-las. Como a física ou a química, admite que seus conceitos mais importantes sejam pouco claros, seus postulados provisórios, e espera que se definam com mais precisão graças ao trabalho futuro”(1923a,229;254;trad.A) (pg14)
Depois dessa consideração do mestre, podemos nos sentir
mais livres para experimentar com a teoria e a prática psicanalítica. Hoje, o universo psi tem feito hibridações com a física contemporânea - teoria do caos, com a biologia contemporânea - autopoiese, com a matemática contemporânea - teoria dos sistemas, etc. Tudo isso para se colocar melhor uma outra conceituação de inconsciente e subjetividade.
Essas experimentações e teorias são a própria realização do
significado que Freud dá para psicanálise na citação acima. É isso que entusiasma e faz com que se queira participar desse universo, onde podemos entrar em contato com toda a virtualidade do humano.
“Não é a verdade ou a realidade que importa, mas a
construção mútua do real, o ‘multiverso’ de Maturana e Varela.(...) Uma psicoterapia de sucesso significa não que o terapeuta teve razão mas que a construção que ele edificou com os membros do sistema terapêutico é operatória(...)Não há uma solução possível, mas múltiplas soluções ligadas à inter-relação entre os membros do sistema terapêutico.” (Moni Elkaim - Se você me ama não me ame/pg 98)
Alfred Adler e psicologia individual no novo milénio: Estratégias, princípios e modelos operacionais na base do pensamento do fundador da Psicologia Individual