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Michel Senellart AS ARTES DE GOVERNAR Traducdo de Paulo Neves editoralll34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, $92 Jardim Europa CEP 01455-000 So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda., (edigio brasileira), 2006 Les arts de gouwerner © Editions di Seu, Paris, 1995 ‘A OTOCGAIA DE QUAL QUER FOLHA DESTE LIVRO € ILEGAL, F CONFIGURA UMA APROPRIACAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMOSIAS DO AUTOR. Get owvrage, publié dans le cadre du programme de participation a la publication, bénéficie du soutien du Ministére francais des Affaires Etrangéres, de l'Ambassade de France au Brésil et de la Maison francaise de Rio de Janeiro. Este livro, publicado no ambito do programa de participagio & publica contou com 0 apoio do Ministério francés das Relagves Exteriores, da Embaixada da Franga no Brasil e da Maison frangaise do Rio de Jancico. Titulo originals Les arts de gouverner Capa, projeto grifico ¢ editoragio eletrGnica: Bracher & Malta Producio Grifica Revisio: Fabricio Corsaletti Marina Kater Ricardo Lisias 1" Edigdo - 2006 CIP - Brasil, Catalogagio-na-Fonte {Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Seollrt, Miche, 1983 sit [As ares de gorernar: do reine 0 coecio de govetne / Michel Sencar ado ‘Se Palo Neves — Sho Pao: Ed. 34, 2006 336 p. (Colegio TRANS) Isa 85-7326-346-X “Teadagio de: Les ars de gourerner 1. Filosofia, 1. Tilo, HL Sie emp. 140 INTRODUGAO Gulliver esta em Brobdingnag, o pais dos gigantes, onde seus companheiros de viagem 0 abandonaram apés uma violenta tempes- tade.! Fle logo se torna intimo do rei, homem justo, doce, tolerante, cujas virtudes, to pouco conformes a funcao real, Swift escusa pelo fato de que, vivendo inteiramente separado do resto do mundo, ele ignora os costumes das outras nagées. Espantado com tanta inocén- cia, Gulliver Ihe revela o poder terrivel da pélvora de canhao, propon- do ensinar a seus stiditos a maneira de construir os tubos de bronze ou de ferro que Ihe assegurariam uma dominagio absoluta em caso de sedigao. O rei, horrorizado com a descrigao de tais maquina, afasta essa idéia com repugnincia. Escriipulo bizarro, aos olhos de Gulliver, que somente a ignorancia explica, “esses povos no tendo ainda trans- formado a politica em arte (into a science), como 0 fizeram 0s euro- peus cujo espitito é mais susil” 2 Essa satira, escrita segundo as regras da narrativa utépica, nto se contenta em opor a virtude natural 4 corrupgao dos povos civiliza- dos, nem a harmonia de uma sociedade pacifica 4 violéncia dos Esta- dos europeus, palco de guerras permanentes. Nao é tanto a desordem das paixdes egoistas que ela condena, quanto uma técnica racional de exercicio do poder. A utopia swiftiana, diferentemente da de Thomas Morus, nao exorciza as ameagas de uma desrazao tiranica, mas, 20 contritio, as de uma razao que “transformou a politica em arte”. A arte de governar, e nao apenas os apetites desregeados dos principes, cis 0 que, para Swift, torna a politica nociva. * Viagens de Gulliver, part I 2 Ibid, cap. 7, pp. 240-3, Introducio n Em que consiste essa arte? Seguramente, ela nao se reduz a cién- cia da guerra. “Lembro-me de que, numa conversa que tive um dia com o rei, disse-Ihe casualmente que havia entre nés um grande niime- ro de volumes escritos sobre a arte de governar (the art of govern: ment), ¢ Sua Majestade, contra minha expectativa, emitiu uma opiniio muito desfavoravel sobre nosso espirito, acrescentando que despreza- va.e detestava todo mistério ¢ toda intriga nos procedimentos de um principe ou de um ministro de Estado.”> A arte de governar aparece, assim, ligada ao céleulo, A maquinagao, a praticas complicadas e ocul- tas: arcana imperii, mistérios ou segredos de Estado, para empregar 0 vocabulério do século XVIL. “Ble no podia compreender o que eu queria dizer por segredos de gabinete (secrets of State). Encerrava a cincia de governar (the knowledge of governing) dentro de limites muito estreitos, reduzindo-a ao senso comum, & razo, a dogura, 3 pronta decisio das questdes civise criminais ¢ a outras praticas seme- thantes ao alcance de todos, e que nao merecem ser mencionadas."4 Grandville, na edigo ilustrada das Viagens, desenhou um retrato de Maquiavel no meio desse texto. Com efeito, a arte de governar identificava-se naturalmente com 0 maquiavelismo estatal posto em pratica no século XVII sob o nome de raziio de Estado. Swift inscre- verse no grande movimento de rejeigio do absolutismo pelas Luzes, opondo a transparéncia dos mecanismos governamentais & opacida- de de um Estado retirado em sua transcendéncia. Mas sua critica co- loca em evidéncia um aspecto um tanto negligenciado do combate amtiabsolutista. Enquanto este & geralmente analisado pela histéria das {déias politicas em termos de fundamento e de direito — quais sio as condigdes de um poder legitimo face a0 arbitrério da dominagio? —, Swift toma como alvo as prOprias técnicas da acio politica. O que esta em causa ndo é tanto 0 governo como tipo de instituicao (a forma da soberania) mas 0 governo como modo de exercicio do poder sobera- no, Nio se trata portanto de substituir uma concepcio da soberania, baseada na forca e no diteito divino, por uma outra, de esséncia con- tratual, mas de contestar o pressuposto implicito de toda teoria da soberania: a idéia de que a condugao do Estado depende de uma arte especial. E.a separagao entre a esfera piblica e o mundo ordinatio dos 2 Ibid, pp. 243-4. * Ibid, p. 244. 2 As artes de governar assuntos humanos que Swift recusa, tornando a encerrar a atividade sgovernamental dentro dos limites do senso comum, de virtudes e de capacidades “ao aleance de todos”. Versio burguesa dessa posi todos podem governar. Versdo democratica, ao final do século, em sua formulacio mais radical: 0 governo ndo consiste em outra coisa se- no na participagio de todos na vida publica. Da critica liberal a0 pensamento republicano, certamente a saberania passou, progressiva- ‘mente, do rei a0 povo. Mas essa passagem foi acompanhada de um novo questionamento da arte do governo, a ponto de esta tiltima apa- recer como a antitese mesma da aco politica. Assim, a teotia do Es- tado 56 podia livrar-se do modelo absotutista se, além de subverter suas bases doutrinai sse também 0s métodos que ele forjou. “Todas as artes produziram suas maravilhas”, escrevia Saint-Just. “A arte de governar foi a tnica a produzir somente monstros.” Essa acusagao, no entanto, contém um paradoxo. Com efeito, a arte de governar no designa apenas os estratagemas de um poder sem escriipulos, que utiliza todos os recursos da forga. Ela é igualmente, até o século XVI, o conceito de uma pratica moral (e nao calculista ¢ O principe maquiaveliano ndo dirige mais, ele doming. Ele reina num mundo sem objetivos, entregue As relagdes de forca. Certamente é muito significativo, para o destino do pensamento moderno, que 0 momento em que a politica se torna uma técnica seja também aquele ‘em que 0 governo perde sua fungao diretiva para se concentrar intei- ramente sobre 0 poder. 3. 0 discurso da razdo de Estado que, durante um século e meio, repercutiu a onda de choque maquiaveliana, para amplificé-la ou amortecé-a, organiza-se igualmente (segundo linas de partilha com- plexas ¢ entrecruzadas) em torno da antitese governar-dominar. De- pendem da dominago os meios que permitem ao principe garantir sua propria seguranca, do governo aqueles pelo quais ele assegura a sal- vacio piblica. E verdade que entre uns e outros, na falta de um con- ceito rigoroso de Estado — como se vera mais adiante —, a fronteira é instavel. No entanto ela existe, uma ver que opée duas priticas da ragion di Stato. Quer eles denunciem seu carster ilus6rio, apresentem- ‘na como um artificio itil, um simples critério metodolégico ou uma istingo de principio, essa oposicao estrutura 0 discurso dos te6ricos da razio de Estado.4 Tem-se o costume de evocé-los como se eles per- guntassem: que parte obscura de dominago todo governe contém, ou CE. Tomas de Aquino, De regno, Il, 3:“[.-] Governar um ser & conduzi lo como convém ao fim requerido Assim, se diz que um navio é governado quan: do a habilidade do piloto 0 conduz sem danos ao porto pelo caminho certo”. CL, por exerplo, G.Frachetta, Discors dela ragione di Stato (1592), 53, que dstingue a verdadeirarazdo de Estado ou prudéacia civil, vera regola di ‘governo, ni separada das vistades morais eda eligio, ea razio de Estado apa- fente, que 6 considera o interesse de quem dela se serve; L Zuccoo, Dll agione ai Stato (1621), p28, para quem a razio de Estado dos bons governs zla pelo bbem dos que comandam e dos que obedecem (“a uns a honra, a outros olcto, a todos a seguranga”), enguanto a razio de Estado tirdnic 56 pensa na uilidade dos governants. ‘A nogao de “governo” a ‘oculta? Eles deveriam ser lidos a partir desta outra questo: 0 que é governar, se o exercicio do poder nao se reduz 4 dominagio? O que é ‘que, no poder, ndo estd ordenado para o simples desejo de poténcia? Questo inversa, mesmo se a pressupée, da de Maquiavel. Por isso no se poderia responder a ela voltando A nocio medieval de regimen, mas propondo uma nova definigéo de governo: arte de conciliar os inte- resses particulates, de conservar a forma da repablica ou de realizar a maior soma possivel de forgas. “governo”, portanto, nao é idéntico a dominagao. Ele tam- pouco deve ser limitado ao exercicio da soberania, segundo uma das acepgées freqiientes da palavra,* da qual tragarei sumariamente a gé- nese apés ter apresentado a nogo medieval de regimen. A.O REGIMEN MEDIEVAL E exato que a Idade Média ignorou 0 conceito de soberania? Certamente a maior parte dos autores medievais subordinam o poder temporal dos principes, se nao diretamente & autoridade espiritual da Igreja, ao menos a uma finalidade espiritual definida pela eclesiologia crista. Mas, também ai, alguns esclarecimentos se impdem. Em pri- meiro lugar, o conceito mesmo de “Idade Média” constitui um obsta- culo. Para nao dizer nada da prépria nogéo, forjada no Renascimento, de medium aevum,$ o rigor historico exige que se distingam trés gran- des perfodos: a alta dade Média (séculos VI a IX), a Idade Média _propriamente dita ou clissiea (séculos Xa XIll)¢ a [dade Média tar- SCE R, Derathé, Jean-Jacques Rousseau etl science politique de son toms, p. 385: “[o.] no fim do século XVI € na primeira metade do XVIUL, a palavea .governo é tomada como sinénimo de poder ou de autoridade piblica¢ significa 0 exercicio da soberania. Seria ess, ali, segundo alguns juristas contemporineos, sua significagio verdadeira ‘No sentido proprio e gera, ele designa o exercicio pelo soberano da autoridade publica; éa soberania posta em pritica’,escreve por cexemplo A. Esmein em seus Elements de droit consttutionnel franc et comparé (4"ed, Pars, 1906, p. 13)" CER Pernoud, Pour en fnir avec fe Moyen Age, p. 15-26: “foi em nome do principio humanista de imitago do mundo antigo que se ps entre parénte- ses, como uma ‘dade média’,intermediiria, dez séculos de historia. Hi muito abandonamos esse principio. Mas jf critcamos todas as suas implicagbes?™, 2 Reinar e governar dia (séculos XIV e XV). Falar da Idade Média como de uma toralida- ‘de homogénea traduz, na maioria das vezes, um parti pris de desco- nhecimento ou, o que dé no mesmo, uma concepgao ingémua da mo- dernidade racional. O mais lustre dos fil6sofos medievais, por exem- plo, Tomas de Aquino, no resume 0 pensamento da dade Média ‘mais do que Kant o pensamento moderno, mesmo que tanto um quan to 0 outro os dominem sob muitos aspectos. Em segundo lugar, 2 nogio de soberania, superioritas, foi objeto, mais cedo do que se pen- ‘a, de uma elaboragio juridica e institucional. Desde o inicio do sé- “culo XII, segundo os termos do papa Inocéncio Ill, o rei da Franga ‘nao reconhecia nenhum superior no plano temporal (*Cumt rex st- periorem in temporalibus minime recognoscat"Y’ — independéncia em relagio a0 império, por certo, nao em relacio a0 papa —, eos de Filipe o Belo (cujo violento conflito com o papado ninguém igno- ra), um século mais tarde, retomando a formula de um canonista,’ cunharam a férmula famosa: “O rei é imperador em seu reino”. ‘A Idade Média viu portanto formar-se uma teoria coerente & sélida da soberania real,” ainda que esta seja tardia, como o periodo ‘ao qual pertence. Durante varios séculos, a reflexio medieval sobre a Crigem, a natureza, 0 exercicio do poder desenvalveu-se em torno, no dos direitos vinculados a fungao soberana, mas dos deveres ligados 20 oficio do governo (regimen). A continuidade da instituigio monar- quica, desde os reis barbaros, nio deve ser motivo de engano. Histo- ricamente — no plano das representagdes que modelaram o pensa- mento politico — 0 governo precedeu 0 Estado. O ato de reger, em Gitado por G. de Lagande, La Naissance de esprit laique aw déclin du Moyen Age, 1, p. 150. * Alain (cerca de 1208): “O que dizemos do imperador pode se dito de todo rei e de todo principe independente (qui mul subest): cada tm, com efit, tem ‘tanto direito em seu reino quanto o imperador no mundo inteiro” (texto assna- lado por J. Rivitre, Le Problime de 'Eglise et de Etat au temps de Philippe de Bel, p. 428; citado por G. de Lagarde, ibid. p. 151). * CE. W, Ullmann, *The Development of the Medieval kdea of Sovereignty”; do mesmo, “Zur Entwicklung des Souverdnitatsbegriff im Spatmittelalter”s M. David, La Souveraineré et les Limite juridiques du pouvoir monarchigue du IX* ‘au XV" siécle; M. Wilks, The Problem of Sovereignty in the Later Middle Ages; H, Quaritsch, Souvernitit. Entstebumg und Entwicklung des Begnifs in Frank reich und Dewaschland vor 13. Jb. bis 1806. A nog de “governo™ B outros termos, foi definido, analisado ¢ codificado antes que fosse concebivel uma res publica compreendida nos limites de um territé- tio, Por isso é essencial nao ligar muito intimamente a problemati- zagao da atividade governamental 4 existéncia de urna estrutura esta- tal. A questo nao é 0 que ha nas regras medievais do governo que anuncia o Estado ou ja se assemelha a ele?, mas: como se constituiu progressivamente o Estado a partir de regras que a principio no eram feitas para ele? Os autores medievais sto acusados com freqiiéncia de terem ignorado tudo das préticas do governo porque negavam a rea- lidade do Estado. Seria preciso dizer, ao contrario, que foi sua con- ‘cepgio mesma do governo que os impediu por muito tempo de acei- taro fendmeno estatal. O regimen, entio, nao se inscrevia na perspec- tiva da poténcia, mas no horizonte da escatologia. A arte das artes, ars artium, para os Padres da lgreia, era 0 govern: animarum.}9 Por muito tempo, 0 governo dos reis no foi sendo um auxiliar bastante grosseiro, encarregado da manutengio da ordem € la disciplina dos corpos. Primeira regra, portanto: tentar pensar o governo medieval, no sentido politico do termo, néo sobre o fundo da auséncia de sobera- nia, mas a partir do regimen eclesidstico, o das almas ¢ aquele cujas condigoes a Igreja define para o rei. Mas as coisas se complicam pelo favo de que nerhum dos txmos habitus que ulizamos, dade 08. culo XVI ou XVII, para descrever o exercicio do poder — Estado, ovo, territério, por exemplo — existe ou ocupa o mesmo lugar io vocabulario medieval (assim, 0 status rei publicae significa, nao o Es- tado, mas o bom estado da coisa piblica, o bem comum, a propria res publica, que envolve uma definigio do populus,!! nao designan- do uma comunidade territorial antes do século XIII}, 0 que nos leva a uma segunda regra: reconstituir, por andlises precisas, 0 campo se- mantico de “governo” na Idade Média, no interior das relagées que ‘mantém entre si as nogdes de regimen, rex, regnum, status, populus etc, = além do risco-de erro retrospective — para no I mitar essa identificaco ao simples dominio politico, como se este for- masse um nivel distinto de realidade (isso s6 sera verdade no pensa- mento escoléstico, portanto bastante tardiamente), mas levando em © Ch. infra, p. 144 "Ch. infra, part I, pp. 27-30, nota 86. Py Reinar ¢ governar conta a rica polissemia de uina palavra que veicula um sentido espiri- tual, moral, pedagégico, técnico (aplicado, por extensio, & educagio ou & navegagio). Se quisermos compreender como o Estado emergiu 0s poucos da atividade governamental, nao basta descrever um pro- cesso de institucionalizasio crescente,ligado & centralizagao, ao for- talecimento dos aparelhos administrativo e militar, a homogeneizagao juridica; € preciso mostrar por que caminhos a prépria idéia de um governo politico se separou do conceito, nao politico, de regimen. Em ‘outros termos, analisar o Estado a partir do governo implica que se estude o regimen na diversdade de seus modos de exersicio. E, em “Sima, ponear'o uno a par do mGliplos mos rettainds #& ‘pensar o uno a partir do miltiplo, mas restituindo a este dlei- mo seu cariter de dispersio. Entre os numerosos textos em que circula o conceito fluido de regimen, uma pagina, hoje esquecida, de um autor florentino do sé- culo XII nos ajuda a dimensionar sua complexidade. Jodo de Viterbo, no primeito capitulo de seu Liber de regimine civitatum,™ pergunta, de fato — ele & um dos tinicos, na Idade Média, a colocar tio direta- mente a questio: “O que é o regimen?”. Ele propée oito definigies sucessivas, antes justapostas do que articuladas, numa desordem que pode nos parecer 0 sinal de um pensamento confuso, quando na ver- dade traduz a plurivocidade mesma do conceito, exposta sem um cui dado de hierarquizagio. Nenhum sentido prevalece sobre um outro, uma espécie de construgio piramidal cuja pedra de cumeeira seria 0 + Redigido por volta de 1238. Ct, W. Berges, Die Firstenspiegel des hohen send spiten Mitelalters, p. 70, sobre as relagbes do autor com odireito romano € sua concepsio do principe como “oficial da comunitas.. H. Kantorowicz, Toe ding’s Two Bodies, . 122 (tad. fp. 101), precisa que Jodo de Viterbo exercia a fango de juz imperial £ portanto um homem dale, no da Igeja ligado aos costumes romanos, que se exprime neste livro, 0 que explica alguns de seus as pectos modernos,“prémaquiavelianos”. Cf. cap. 45, “De luxuria evtanda p 241 by “ul se 0 governador da cidade nao pode viver castamente, que ele aja 20 ‘menos com precaugio. Com efeito, os que administram o Estado devem se mos tar se ostendere)suficientemente honestos para serem considerados como tas”. (Ostentatio enganadora, que revela a persistacia, certamente local 0 lado da éica religiosa dominante, de un esprit pagio que veremos afirmarse, na aurora do século XVI, na obca de Maquiavel Sobre a concepsio republicana do regimen, dda civitas e das virwdes do Podest desenvolvida por Joie de Viterbo, cf. Q. Skin~ ner, The Foundations of Moder Political Though, 1, pp. 34 ¢40, onde ele subli- nha a influéncia do autor sobre Li livres dou Tresor de Beunetto Latin (1230- 1294); M, Viol, From Politics to Reason of State, pp. 22-5. A nogiio de “governo” 2s poder estatal. Nao é ainda o “Estado” que estrutura a organizagio interna do governo.!3 (1) Regimen significa primeiramente a direcao (gubernatio) da cidade, como a do navio para 0 marinheiro: consiste na utilizagio dos imeios apropriados para conduzir a cidade, assim como 0 piloto se serve do leme e do mastro para manter sua rota, (2) Designa igualmen- te a agdo de conter (sustemtatio) os homens, como se freia um cavalo coma rédea para impedir que sua velocidade o lance num precipicio, (3) a justa medida (temperies) que devem se impor os que entram em ileraexcessiva [essa regra Se aplica particularmente aos yuizes), [) a moderacdo (moderatio), nao na acepgio precedente, mas enquanto ato de conduzi, dirigir o homem para afastd-lo do mal; também aqui o termo é empregado para a condugao do cavalo cuja marcha é regu- lada pela rédea. (5) Chama-se regimen, além disso, a guarda ou pro- tegio atenta (catstodia) da cidade (passagem do vocabulério nautico (ou eqiiestre da condugio ao militar da vigilancia, sem nenhuma co- notagio pastoral)," (6) a agao de reger ou dirigir (regere) — esta ai, segundo 0 autor que evoca a etimologia de Isidoro de Sevilha,'5 (7) 0 _governo, (8) enfim a administragao da cidade adit) nao enquanto érgio mas enquanto dignidade (honor. is). Pouco importa que essa enumeragio seja exaustiva ou nao. Ela ilustra a dificuldade de traduzir regimen pela simples palavra “gover- no”, jf que engloba formas miltiplas de aco, virtudes especificas e qualificagoes estatutérias. Agao de dirigit e de proteger a cidade, mas também de conduzir os homens controlando-os, corrigindo-os, repri- mindo-os, orientando-os; virtudes de vigilincia, ponderagao, controle de sis deveres ¢ privilégios ligados 4 magistratura. A menos que 0 “go- 33 Isso se explica, no caso, pelo republicanismo do autor. A definigio, her- ada de Cicero, do governante como representante da cidade opde-se i idéia de ‘um poder soberano que domnina o corpo social. Cf. M. Virol, op. cit, p. 25. 1 A custodia designa, na Escritura,ooficio principal do pastor: ef Jr. 31,10; Le2,. °5 Ch. infra, parte, cap. 1, A 15, Berges, op. cits. 71, vEnisso um indicio da secularizagto, correlativa do direito romano, da fungio governamental que nio mais se reduz aos deveres pessoais do principe. Convém antes reconhecer ai um sinal de republicanismo de Jodo de Viterbo, 26 Reinar e governar vverno” seja precisamente esse complexo de fungGes heterogéneas e so- lidérias cuja unidade s6 se percebe quando, separadas do aparelho exe- cutivo do Estado, elas parecem se manifestar numa total disparidade. O REGIMEN ANIMARUM © regimen, na ldade Média, $6 tardiamente adquire um sentido politico. Ele pertence inicialmente a0 vocabulério da direcdo espiritual. Sua anédlise mais completa encontra-se na Regra pastoral do papa Gre- gorio o Grande, composta por volta de 590, que fixou por varios sé- culos as condigdes éticas do “governo”. Fsse texto, de importincia capital no pensamento medieval,'” apéia-se em grande parte no segun- do Discurso teolégico de Gregorio de Nazianzal® (escrito em 362), ‘onde sio Tongamente desenvolvidas, na forma tradicional desde a €po- ca helenistica de uma comparagio com a arte médica, as regras prati- cas da arte das artes. [uu] Em verdade, parece-me que @ arte das artes (tech- né technén) e & ciéncia das ciéncias cabe conduzir 0 ser humano (anthropon agein), que é o mais diverso e o mais, complexo dos seres.!9 Eis ai coisa facil de compreender se se estabelece um paralelo entre a medicina das almas e os cuidados do corpo.”20 Armedicina das almas é, de longe, mais dificil de praticar que a dos corpos, em razio da natureza de seu objeto e dos recursos que la exige. Alem disso, ela é bem mais preciosa pelo objetivo que visa. PCF, H.Licbeschite, Mediaeval Humanism inthe Life ard Writings of Jobm of Salsbury, p- 38: "| fi Gregorio o Grande endo Santo Agostinho que criou 3 forma de pensameno da literatara politica medieval”. Sobre sua concepso do overo, ef. nf, parte Heap. 1, C. "Ck infra, pare I, eap.1,BeC. ¥ Cf. Gregério 0 Grande, op. cit 1, 1: “A arte de conduzir as almas (re _gimen animarum) é ate das ates", Sobre as implicages papas dessa f6r- ‘la quanto as arte ibeais, base do sistema cissico do ensino na antigidade tardia,cedusidas a uma simples propedéurica 20 estudo da Biblia, cf. P. Riché, De education antique Véducation chevaleresque, pp. 234. 2% Gregésio de Naxianza, Discours, pp. 10-1 ‘A nogao de “governo” 27 Em primeiro lugar, a alma, ao contririo do corpo, nao constitui uma matéria perecivel votada de qualquer modo a se decompor, mas uma substincia de origem divina, ligada ao elemento inferior e que busca, combatendo-o, recuperar a nobreza do céu. Ora, essa luta em- prega o livre-arbitrio (antexousion)*! humano. Portanto, a arte de conduzir as almas ndo tem por objeto as préprias almas, tal como a medicina do corpo se aplica ao organismo. Ela se exerce sobre a von- tade do homem na medida em que esta é 0 agente de sua libertacio, muito embora, por seus vinculos materiais, também seja um obstacul Dal vas dferengas quanto aos méiodos empregados.O médi co prescreve seus remédios com base num certo niimero de critérios .gerais (lugar, circunstancias, idade, momento etc.) e zela para que os desejos do doente nao se oponham ao regime imposto. Somente as veres, quando cauteriza ou opera, ele deve usar meios mais rudes. Fraca individualizagao: 0 médico trata uma doenga ¢ s6 leva em con- tao doente na medida em que, por negligéncia ou reticéncia, ele pode perturbar a eficdcia do tratamento; relativa docilidade: 0 paciente, que deseja curar-se, aceita na maioria das vezes os remédios indicados; rara violéncia, enfim, quando a necessidade o exige. Tudo é completamente diferente no governo das almas, onde a matéria sobre a qual se inter- vém nao permanece passiva, mas reage, furta-se, usa de sutilezas estratagemas, ¢ revolta-se contra os cuidados que lhe oferecem.2? A alma, em suma, é um doente que, escondendo de si mesmo sua doen- ga, ndo deseja recuperar a satide. A essa indocilidade nao é possivel responder pela coer¢do, pois, Gregério de Nazianza o repete com con- vicgao, “o que sofre violéncia retoma depressa, uma vez devolyido a si mesmo, seu estado primitivo”.23 O diretor de almas deve recorrer portanto apenas A persuasio. Ora, esta tiltima supée penetragio e discernimento, Penetragio: “[A medicina do corpo] pratica pouco a % Sobre essa nogio, ef. infra, parte Heap. 1, B. 2 Discours, p. 115: “Lo em nés, a inteligéncia e o egoismo, assim como nossa incapacidade e nossa recs de nos deixarmos vence feilmente, constiiem 19 maior obstaculo & virude. Uma espécie de mobilizagio se desencadeia contra (9s que vém em nosso auxilio™. ® Ibid. p. 111. Santo Agostinho serio primeito, na quercla antidonatista (inicio do século V), a preconizar a forga— disciplina — como meio de cura espi- ritual. CE. P. Brown, La vie de saint Augustin, p.279. 28 Reinar e governar andlise das profundezas, a maior parte de sua atividade concerne as aparéncias, enquanto nés empenhamos todos os nossos cuidados e 0 nosso zelo no estudo do homem que ests escondido no fundo do co- racii (peri ton krupton tes kardias anthropon) e combatemos un ini migo que trava contra nés uma luta ¢ uma guerra interiores”.”4 Dis- cernimento: pois, em razio da enorme diversidade dos homens, 0 re- médio que convém a um pode revelar-se nocivo a outro, Gregorio 0 Grande, referindo-se explicitamente a0 segundo Discurso de Gregorio de Nazianza, consagea toda a terceira parte de sua Regula a essa “psi- cologia” que o diretor de almas deve conhecer.?5 O objetivo, enfim, da terapéutica das almas ¢ incomparavelmente n medicina, jf que se trata nao simplesmente de conservar ou de reparar um estado natural precirio, mas de operar ‘uma transformagio completa pela qual a alma se despoja de tudo que 1ndo é ela e, reencontrando sua semelhanga divina, alcanca a beatitude, Tal como o definem os Discursos de Gregorio de Nazianza c, com algumas inflexdes agostinianas, a Regula pastoralis, 0 regimen eclesidstico designa portanto um governo nao violento dos homens ‘que, pelo controle de sua vida afetiva e moral,2® pelo conhecimento dos segredos de seu coragio e pelo emprego de uma pedagogia fi- namente individualizada, procura conduzi-los a perfeigio. Como se deu a passagem, em alguns séculos, desse governo doce, paciente € benevolente, a nogio de um regimen politico que recorre a forga para assegurar a boa ordem da sociedade crista? Esse € um dos problemas que coloca 0 desenvolvimento do Estado durante a primeira metade ™ Discours, p. 119. 2 Bases precetos no sio novos. les se inscrevem na tradio da arte et6- rica desde Aristételes. Cf Patto, Fedro, 271 ed, sobre o conhecimento das espé cies de almas como condicio da verdadeira psicagogia (a dialética); Arsteles, Ret6rica Le Il, para a andlise dos diferentes tipos de paixies e de caracteres. Ob- serva-se,porém, uma individualizaglo mais fina na pregagao crit que oobje- toda tarefa pastoral €a alma de cada ser humano. Cf. particularmente Gregorio de Nazianza, Discours, p. 127-8, que mostra como a preocupagio com 2 salv3- co da alma (soteria payebés) torna necesséria uma andlise sempre mais precisa das difereagas entre os descjos © 08 apetites (ais epithumiais kai taisormais) se tgundo os tpos de homens. 2 Discours, p. 115: *[.] examinare tratar os costumes, os sentimentos, vida, as idéias preconcebidas ¢ rado que em n6s pertence a0 mesmo dominio”, ‘A nosio de “governo” 2» da Idade Média. Proponho-me mostrar, neste livro, de que maneira a Iagreja, no podendo abster-se da coerio, adaptou-a a0s poucos ‘regras éticas do governo. Quase sacerdotalizagéo da espada, na falta “We poder desarmar 0 sacerdécio. Sinal dessa vontade constante: © acento posto sobre a exemplaridade do rei que, a exemplo do sacer- dote, deve “formar os outros para a virtude”.27 No século XII, a aparente dispersio que o texto de Joao de Vie terbo reflete deu lugar a um vocabulério mais homogénco. Conseqiién- cia, certamente, do progresso da instituigo monarquica, que se tor- nna o centro de um novo campo conceitual, mas também da organiza- lo efetuada pelos doatores escolsticos em seu esforgo para adaptar a Politica de Aristoteles, redescoberta por volta de 1260, s estrutu- ras da sociedade cristd. Assim, Gil de Roma, em seu monumental tra- tado sobre o governo dos principes (De zegimine principum, 1277- 1279),28 faz do regimen a prépria defi governar Nenhuma diferenca entre a ars regendi e a ars regnandi,2> a esstncia da realeza residindo, como se verd, em sua fungao diretiv Seria inexato, porém, apresentar 0 regimen como o simples exercicio do poder estabelecido, uma vez que, a0 contrério, € 0 regnum — no trfplice sentido de regime mondrquico, dignidade real e reino — que constitui a pratica do bom regimen, orientado para o bem comum, No século XIII ainda, o regnum decorre das exigéncias do regimen, e nio © inverso.%° Em vez de absorver 0 governo na forma abstrata da s0- berania, ele o impede de estabelecer-se em seu conceito, colocando a finalidade como critério da fungio.>! ® ibid. p. 108, 2 Ct. infra, pare I, cap. 4, B. % De regimine principum, I 3, 4, f. 98. 0 regnum, como se vers, no tem ainda um sentido eritorallaramen- remarcado, © Com efeto, se nio se pode conceber regimen que nao tenda para 0 bem 5 de uma republica e seu go- verno (governo)” 36 Bodin, alguns anos mais tarde, retoma essa distingo: “ [uu] hi muita diferenga entre o Estado e 0 governo, que é uma regea de policia que permanece intocével. Pois o Estado pode ser uma monarquia, e no entanto sera go- vernado popularmente se o principe participa das catego- thid., , 1,6, £2446. 3 Sobre o sentido do conccito de stato em Maguiave, ef. infra, parte Il, capa. % Republica et Magistrati di Venezia (ctado por F. Chabod, Scrtt sul Ri nascimento, p. 644). 2 Reinar e governar rias sociais, magistraturas, oficios ¢ aluguéis comuns a to- dos, sem levar em conta a nobreza, nem as riquezas, nem a vireude” 3? Q governo nio designa aqui, como em nossos dias, 0 drgio do executivo, mas uma certa maneira, para o poder soberano, de distr buir honrarias ¢ cargos em fungao de critérios estabelecidos pelo cos- fume. O principe nao exerce sua soberania sobre uma multidao de individuos preocupados apenas com sew interesse, Ele comanda um corpo vivo que possui uma meméria, E é esse jogo entre a vontade soberana ¢ os costumes da nagao que define o conceito de governo. Virrias diferengas sobressaem em relacéo ao governo maquia- veliano: 0 governo se manifesta sob a forma da doacéo, nao da dis- suasio, da coercio ou da repressio (“Pode acontecer também que a ‘monarquia seja governada aristocraticamente quando 0 principe doa tirulos ¢ beneficios somente aos nobres, ou apenas aos mais virtuosos, ‘ou 20s mais ricos”)s¥¥ ele tem por objeto a atribuigio dos cargos e das dignidades, nfo a utilizagio das armas ou a gestio das riquezas; ins- creve-se numa tipologia constitucional (monarquica, aristocritica, popular) ¢ nfo tem a ver com um célculo de seguranga; enfim, é re- gulado pelo costume e nao varia portanto segundo a necessiti. Distinguindo-se assim do Estado, isto é, da forma da soberania, esse governo nao tem o carter de uma pritica especifica. Ele designa ‘menos a maneira como se exerce a soberania do que os costumes — “regra de policia® que permanece intocével” — aos quais ela deve se conformar: seu limite fatual, em suma, e nao sua forga atual. Bodin reconhece porém uma certa autonomia da pratica gover- namental em relagio & fungéo soberana, Com efeito, segundo a for- % La République, U2, p34 % Ibid. (rifo meu) » A palavra, no século XVI, em sew aso mais ee sma de governo de um Estado (Amyot: “Ha tés espécies de policias, isto ¢, de govern das idades” — monarquia, oligarquia, democraca) ou o conjum das eis que o regem, ora um deteminado costume ov maveta de vver. CLE. Hue ‘et, Dictionnaire de a lange franaise du XVI sce, Paris, Didier, 6, 1965, P. 61. Bodin toma emprestado oconevto Cl. de Seyssl, La Monarchie de France (1519};6€.N. Robinstin, “The History of the Word politens in Early- Modern Europe”, p. 52. A nogio de “governo” 3 Politizacdo do regimen, portanto, sobre o eixo de uma teleologia moral.32 Um fio continuo, com efeito, liga a conduta de si, a admi nistragio doméstica e a diregio do Estado. O principe governa seu reino da mesma maneira que seus préprios desejos, sua mulher, seus filhos, seus domésticos: trata-se, em cada nivel, de conduzir uma mul- tido para o fim virtuoso que the corresponde. Simplesmente a difi- culdade aumenta com o mimero. O rei é aquele que, em sua ativida- de diretiva, tem que se haver nao s6 consigo mesmo e com sua fami- lia, mas com a maior multidao possivel.}} Por causa dessa relagao transitiva entre o governo de si, de sua casa e do reino, a aséo piib caé reduzida, na maioria das vezes, as regras éticas do comportamento privado. O reginten politico, todavia, nao se exerce sobre individuos 32 Esse fendmeno nao se verifica somente na tradigio teoldgico-flosdtica cident. Ele € observado igualmente no pensamento iskimico. O Regime do so- liério (Tadbir alsmutaicabbid) de ton Bajja (Avempace, séculos XI-XII) ofereee tum notivel exemplo. A obra comeca pelo exame da palavra tadbir, que significa conduta, dires20, manejo de um negScio, administracao, regime de um doente. Ibn Bajja a define como “a disposicio de diversas agSes tendo em vista um fim proposto”, sublinhando que, na maioria das vezes, emprepa-se esa palavra para definie um regime “em poténcia”. Assim, é preciso que a reflexdo intelectual se exerga sobre essas coisas em poténcia, pois a coordenagio ¢ sua fungao prépr Por outro lado, pode-se consider ais baixo € o de uma profissi0, o mais elevado, 0 da “casa” (economia) ¢ da cidade. Diz-se que Deus ‘rege 0 mundo apenas por analogia com a idéia geal ea mais clevada do regi- me. O vulgo empregs estas diversas significagées de mania equivoca, mas 0 f- \sofo vé nelas somente homénimos. A cidade perfeta seria consttuida pelo pe- ueno niimero dos que professam as doutrinas veridicase praticam as ages cor- reas, se eles chegassem a viver juntos. Enquanto a sociedade nio tiver adatado seus costumes, eles permanecermestranhos em sew meio de origem. O objetivo do livro é explicar 0 regime a ser seguido pelo solitrio para alcangar e conservar a perfeisio espiritual A in lugncia da palavea tadbir sobre o.so da palavea regimen ainda esti por ser estudada, a obra de Ibn Bajja ndo tendo sido conhecida dire- tamente pela escoléstica latina (ele foi resumido em hebraica apenas no sfculo XIV por Moisés de Narbona), mas por cages, empristimos e comentérios de ‘outros autores — em particular Ibn Rusd (AverrGis). Devo todas essas informa- Ges 3 generosa erudisdo de Dominique Urvoy. Sobre thn Bajja, cf. H. Corbin, Histoire de la philosophieislamique, pp. 317-25 (bela andlise do Regime do so- litério, pp. 321-5), 55 Cf. em Gil de Roma, op. cit IM, 1, 5,244, a defini do regrum como uma “confederagio de varias cidades”; ef igualmente Il, 1,1, f. 2381, a cam: ‘musitasregni como a forma mais elevada de comunidade politica A nogio de “governo” 3 do, pritica especifica do governo no interior do modelo juridico da soberania, mas recuo desta para uma concepgao patrimonial do po- der, baseada na guerra. b, Hompes E.com Hobbes que a evolugio conceitual iniciada no século XVI vai culminar numa articulagao clara entre poder soberano e governo. ‘Vé-se entdo delincar distintamente dois eixos de problematizacio: um, ascendente, da constituigao do soberano e outro, descendente, do exercicio do poder como office, duty ou business of the sovereign. Curiosamente, essa clarificasao conceitual é acompanhada em Hobbes de uma certa confusio de vocabulério, como se ele buscasse, sem conseguir inteiramente, escapar a antigas convengGes de lingua- gem. Em seu primeiro tratado politico, o De corpore politico," ele ainda utiliza a terminologia tradicional: “Tendo até o presente mostrado como 0 corpo po- tico se produz, e também como esse mesmo corpo pode ser destruido, falta-me dizer como ele pode ser preservado. Nao que eu tenha o propésito de tratar aqui em particular da arte de governar, mas apenas de propor alguns pontos gerais que essa bela arte deve utilizar e nos quais consiste o dever daquele ou daqueles que sao os soberanos”.45 A arte de governar diz respeito, nao & criagao do Estado, que obedecé a uma dupla Togica, passional —o medo da morte, que leva ‘0s homens a pér fim, por um pacto, a0 estado de natureza no qual reina a guerra de todos contra todos —e juridica — a transferéncia dos direitos de cada individuo contratante a pessoa do soberano —, mas & sua conservacio. Ela supée portanto a existéncia de um sobe- rano, isto é de um monarca estabelecido na plenitude de seu direito. (O governo é assim claramente delimitado em relagio & insttuigao do “Essa obra compreende o cinco sikimos capitlos da primeira parte eto 4 segunda parce dos Elements of Law que Hibbs seg em 1639-1640. 0 texto, dfundide em manuserito, 0} publicado sem o consetimento do autor em 1650. 45 De conpore politico, cap. 9, § 1, pp. 1623. ‘A nogdo de “gorerno” 35 poder. Enquanto, em Maquiavel, tomar o poder ¢ conservé-lo requer ‘os mesmos meios, de modo que seu exercicio na verdade correspon- ‘dea uma conquista permanente, em Hobbes, conservar o Estado (que nao se reduz mais a0 stato do principe, mas se identifica com 0 Com- ‘monwealth) faz parte dos deveres em relagio aos siditos que decor- rem do direito do soberano. Este monopoliza a forga e detém uma autoridade absoluta para permitir que os individuos que formam 0 corpo politico vivam em paz. Longe de o governo ser 0 conjunto dos, tos pelos quais se reforca indefinidamente poder, ele implica que esse poder jd seja tio elevado que nao se possa conceber um supe rior. O poder méximo nao constitui o objetivo do governo, mas sua condigao.46 Quais sao, entao, os fins da arte de governar? Hobbes os resu- ‘me pela maxima romana que ele cita ao longo de toda a sua obra: Salus populi suprema lex, a salvagdo do povo é a lei suprema, defi- nindo essa salvagio nfo apenas a preservagio de sua vida, mas, de maneira mais geral, seu proveito e seus interesses. Esse proveito, no plano temporal, consiste em quatro coisas: (1) a quantidade — é de- ver do soberano fazer multiplicar o povo estabelecendo boas normas nfo tolerando “esses vergonhosos acasalamentos contrarios a0 cos- tume da natureza, [..] a comunhao das mulheres entre si”,47 a po- liandria ete. —, (2) as comodidades da vida (liberdade ¢ prosperida- de), (3) a paz doméstica, (4) a defesa segura contra os inimigos exter- nos. Além de seu papel militar, vé-se que o governo esti essencialmente ligado a fungées de policia, no sentido de manutengao da ordem e de regulamentagiio dos costumes, mas sobretudo —e trata-se ai de uma dimensio nova da atividade do Estado, esbogada pelos primeiros te6- ricos mercantilistas*8 — de economia pablica.*? Fiquemos atentos as + Convém observa, no entamto, cirularidade da relagio entre soberania «governo: “Assim como ersas ages sto dever do soberano, elas existem para seu proveitoe seu intcrese. Pos afinalidade da arte ¢ o proveito,e quem governa em proveito des siditos governa em proveto do soberano” ibid. p. 163, gefo meu). ‘© coneeto de interes, ou provit, const o piv desse argument * Ibid., § 3,9. 164. “* CIP, Deyon, Le Mercantilisme; M. Senellart, Machiavélisme et raison a Baar, pp. 71s * Um exemplo da evolugio da palavra encomtra-se em L. Le Roy, Tra 36 Reinar e governar transformagées do vocabulério. Aparentemente, Hobbes permanece muito prdximo de Bodin, que identificava o governo com uma regra de policia, Na realidade, essas palavras adquiriram, no século XVI, uma significagio totalmente diferente. A policia-costume ou forma de governo que modificava, segundo priticas histbricas, o poder sobera- no, tarnou-se uma policia-regulamento ou ato de governo que mani- festa esse poder na transparéncia da lei. Essa policia deve certamente ser dissuasiva e repressiva, jf que tem por objeto garantir a paz. Mas ela no se contenta em proibir: & preciso também que facilite, pela manutengio dos caminhos, a circulagio das pessoas e das mercado- rias, que controle o abastecimento, empregue todas as forcas dispo- niveis, restrinja as despesas supérfluas etc. ‘Momento decisivo na histéria da arte de governar: ao fazer do bem-estar, da existéncia trangiiila e agradavel a finalidade da vida ivil, Hobbes —e com ele uma larga corrente de inspiragio utiitarista — deslocava a velha questo da ars regendi para um terreno em que ela seria suscetivel de receber uma solugio cientifica: a da economia ‘como espaco regulado pela harmonia dos interesses particulares,S° quer funcionem livremente 3 maneira de uma “mio invisivel” (A. Smith), quer se ajustem por dispositivos legistativos (Helvétius). Mas isso seré a tarefa do século XVI. Quanto a Hobbes, ele nio sai do quadro politico: é sempre em termos de soberania que analisa as pré- ‘Ticas do governo. Com efeito, se este se exerce sobre miltiplos obje- tos — populagio, costumes, mercadorias, transporte, trabalho, ju: ‘sa, guerra — e portanto exige, em sua aplicagio concreta, compe- téncias especificas, sua arte, no plano dos prinefpios, resume-se em uma férmula simples: a obediéncia dos stiditos. A arte de governar std inteiramente na capacidade de fazer-se obedecer. Essa fese, cons- Tantemente sublinhada por Hobbes, encontea uma ilustragio muito marcante no Leviatd (1651),5! quando ele afirma que a prosperidade duction d’Aristote Ml, 2, comentivi: “A palava policia (police, usada comu- ‘mente em francés para a taxagao dos viveres eo egulamento dos oicios por pat- te dos juires ou almotacs das cidades, decai, confundindo polcae economia pi- bea” (eiado por E. Huguet, o. city p. 62), 59 0 italiano G. Botero jf havia tragado 0 caminho nesse sentido, como smostreiem Machiavéliome et raison Eta cf. igualmente meu artigo *La raison Brat antimachiavélienne”, pp. 37-41. 51 Léviathan, cap. 30, p. 361. ‘A nogiio de “governo™ 37 de uma nacio no depende da forma de seu govern (no sentido aqui de regime, politeia): “A prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocratica ou democratica nao se deve ao sistema aris- tocrético ou demoeritico, mas a obedi E se o povo é florescente numa monarquia, nao é porque um énico homem tem 0 direito de regé-lo, mas porque as pessoas Ihe obedecem. Dafa inutilidade das mudangas de constituig40” que equivalem a des- truir 0 Estado, a exemplo das filhas de Pélias que despedagaram seu pai, a conselho de Medéia, e fizeram-no ferver para devolver-Ihe a ju- ventude.* Ora, a prosperidade, condigio da vida confortavel, € 0 principal objetivo, juntamente com a seguranga, que a arte de gover- nar persegue. £ muito notavel que a redugio desta diltima a pura for- ‘ma de comando sirva, num mesmo gesto, para recusar a questo do melhor regime, central no pensamento politico clissico. Sao duas tra- digées governamentais distintas, a da arte de bem governar e a da for- rma étima de governo, que vém fundir-se no conceito de uma sobe- rania que aspira, por sua investidura contratual, a uma obediéncia absoluta. Nos capitulos do De cive (1642) e do Leviatd dedicados aos de- veres do soberano, Hobbes nao utiliza mais a expressao arte de go- ‘vernar, embora retome a maxima Salus populi suprema lex.53 “Con- vvém distinguir”, ele escreve no De cive,* “entre 0 direito 0 exerct- cio da soberania”. E, explicando novamente que nao pretende entrar em detalhes (“nao & meu propésito descer as particularidades que se encontram nos governos de diversos principes, cujos direitos poderiam ser diferentes”), acrescenta: “Convém deixar isso aos politicos préti- cos que ensinam a condugao particular de cada espécie de repaiblica”. Frase instrutiva. Ela mostra, em primeiro lugar, que a redugao das, Ovidio, Metamorfoses, Il, 3-4. A comparagio er, parecesme, base tante correne.La Mothe Le Vayr, em sua Politique du prince, cap. 3,1X,p. 899, emprega-a no mesmo sentido antreformador. 5 Gf, Le Gitoyem, cap. 13, ¢ Léviathon, cap. 30. A salvagio, em 1642, é sempre definida, na perspectiva hedonista de Hobbes, como a conservagio de “uma vida tanto quanto possivel eiz® (Le Citoyen,cap. 13, § 4 p. 230). Mas ela abrange finalidades um pouco diferentes da lista inicial. Sobre 0s “quatro gne- ros de comodidades dos siditos” relacionados & vida presente (Seguranga exte- or, paz interior, enriqueciment,liberdade), ver 0 § 6, p. 231. Le Citoyen, cap. 13, § 1, pp. 228-9. 38 Reinar e governar ‘técnicas governamentais & simples vontade imperativa no procede, em Hobbes, da negacao de uma arte especifica de governar que tire suas regras da diversidade dos campos aos quais se aplica, mas se acha justificada pelo nivel no qual se mantém: o da teoria politica que for mula as leis gerais, eno o da politica pratica. Além disso, os preceitos do governo variam segundo os tipos de reptiblica: cada uma requer uma “condugio particular”. Idéia freqtientemente desenvolvida, no século XVI, por um certo niimero de te6ricos do Estado, de Clapmar a Chemnitz.** “A politica repousa sobre principios que si0 comuns a todos os Estados”, escreve por exemplo Amelot de la Houssaye, “e 1 razio de Estado sobre principios particulares, de modo que cada Estado tem sua razdo de Estado” 5 isto é, ele se conserva por meios, ordinarios ou excepcionais, apropriados a natureza de seu regime. A mudanga de vocabulério de Hobbes, que fora disso permanece muiro estével, em capitulos que apresentam uma grande simetria, parece-me pportanto sintomidtica: ela traduz.a passagem de uma problemitica tra- dicional da arte de governar, da qual poderiam se enunciar as mé- ximas comuns, a uma problemética nova da razdo de Estado — ex- press que Hobbes no entanto jamais emprega — determinada pela forma dos diferentes corpos politicos. Assim, é no plano da politica pratica que se juntam tecnologia e tipologia governamentais, fora do dominio cireunscrito, more geometrico, pela teoria da soberania. A fi- sica politica ainda é, para Hobbes, uma genealogia abstrata do direi- 10; ela nao desce, como o fara com Montesquieu, a anilise da mul- tiplicidade concreta das leis. Constata-se que se delineia, em Hobbes, uma dupla tendéncias uma que consiste em rebaixar o governo em relagao a soberania atra- vvés do imperativo de obediencia, « outra em separar Figorosamente se avel de fancionamento em termos de direito — poder de ditar a lei —e de exercicio — aplicagio a realidades particulares. A primeira corresponde a0 uso freqiiente, no final do século XVI € inicio do .XVVL, da nogao de governo como sindnimo de auroridade piblica. A segunda, ligada parcialmente ao discurso prudencial da razao de Es- 55 Ck. infra, parte I, cap. 2, B. Cf. igualmente meu artigo “¥ a-vil une théorieallemande de la raison d’Btat au XVIK sigele2”, pp. 275-93. 56 Commentare des dix premiers livres des Annales de Tacite, pret dicho. + A nogio de *gorerno” 39 tado, puxa a politica pratica para o lado da “economia”,57 no senti- do amplo de administracio das pessoas e dos bens, ¢ culmina na dis- tingdo, ainda pouco familiar a seus leitores, que Rousseau formulard: “Peco-vos distinguir claramente |...] a economia puiblica de que devo falar, ¢ que chamo govermo, da autoridade suprema que chamo sobe- rania; distingao que consiste em que uma tem o direito legislativo, ¢ ‘obriga em certos casos 0 corpo mesmo da nacio, enquanto a outra s6 tem poder executivo, e ndo pode obrigar sendo os particulares”.5# No inicio do século XVI, o governo se confundia com o Estado: stato € governo, em Maquiavel, so na maioria das vezes intercam- biaveis e designam o poder efetivo do principe. Reinar é governar, ¢ vice-versa. Na metade do século XVIT, as duas nogdes se separaram 57 ssa divisio & desctta por C. Schmitt, Der Léviathane in der Staatslehre des T. Hobbes (1938), como 0 ponto de equlibrio entre o momento pessoal da decisao soberana e o mecanicismo de uma concepsio do Estado como simples ‘miguina administrativa, Com 0 desenvolvimento da racionalizagio burocritica, a instincia deciséria desaparece em proveito de uma técnica impessoal de gover ‘no. O Leviat, prsioneiro do dispositive administrativo e impessoal que ele mes- mo engendrou, est, assim, condenado a morter. * Segundo M. Esmcin, op cit, pp. 22-3, fi cm conseqincia da termino- logia prépria a Rousseau, “correspondend a uma iéia sul e muito pouco exa- 1a", que 0s Franceses habitwaram-se “a ver no governo o poder executive ape- ras". Com elec, antes de Rousseau, explica R. Derathé, op. cit, p- 385, “0s irstaseescritores politicos nio estabelecem nenhurna difeenga entre o gover no € a soberania”, i que o poder executivo é uma parce desta do mesmo modo ‘que o pode: legslativo,o poder judiciério ou o dieito de fazer a guerra, © pot ‘que esses poderes, numa monargua, esto reunidos na pessoa do tei. Cl, Rowse seau, Lettres dertes de la montagne (1765), 1, in ures complites, ed. lade, tll, p. 176. Com hase na teora da vontade gral, somente 0 pode legslatvo, segundo Rousseau, confunde-se com o poder soberano.Eessencial, para 8 pro: Blematizagio moderna da art de governar, que distin real, eno mais ape- nas formal como em Hobbes, entre soberana egoverno eta ligada ao advexto da era democritca. Com efsto, a elativa autonomia da pritia governamental ‘em relagio ao poder soberano &conccbida, nfo sobre o fundo de obseutas esta tégias de gabinee (face ocslta do sol do Estado abscluro), mas na interior da te- Jaco complexa que a sociedade, por seus mecanismos de representacio cde ad- rministrag3o, mantém consigo mesma, Pacadaxo de um corpo que, agindo sobre simesmo, “jamais age imediatamente por si mesmo”. F esse jogo que inaugura a xa da Ofentchtet(publicidade) eencerta dfiiivamente, sem no entanto ei rina todos os seus residuos, 2 dos arcana ou mistéios do Estado (sobre essa ogo, of. fra, parte Il cap. 2}. 40 Reinar e governar uma da outra, inserindo-se num sistema de oposigdes bindrias: drei tofdeveres, teoria/pritica, constituigaio/conservagio etc. Chegou 0 mo- ‘mento em que se podera dizer, eventualmente, que o rei reina e nao governa. Situagio descrita por Hobbes: “Acontece com freqiiéncia que 6s reis [x] transferem a condugdo dos negécios a outros [w.-) porque julgam que estardo melhor em suas maos e que, contentando-se com a escolha de alguns ministros ¢ conselheiros fis, exercem através deles © poder soberano. E nessa conjuntura, na qual 0 direito ¢ 0 exercicio sio coisas separadas, 0 governo dos Estados muito se parece com 0 do mundo, em que Deus, primeito motor, geralmente deixa agit as causas segundas € ndo altera a ordem dos efeitos da natureza”.5? A autonomizagao da atividade governamental em relago & fungio so- berana poe em evidéncia, na cena politica, um novo personagem: 0 rinistro, encarregado de conduzir os negécios do Estado. Mas ela se inscreve igualmente no interior de uma cosmologia mecanicista, que representa um mundo sem finalidade e autogovernado pelo simples fancionamento de suas leis naturais C.AS TRES ETAPAS DA EVOLUCAO DO CONCEITO De uma maneira um tanto esquemética, pode-se distinguir trés ‘erapas na formagio do conceito de governo da Made Média ao sé- culo XVI. 1. Até o século XIL, segundo a concepcio ministerial do poder secular — o rei, ministro da Igreja —, 0 regimen precede o regnum. Este € confiado ao rei por Deus, através de seus coadjutores imedia- fos, para que, coagindo os corpos, ele coloque sua forca a servico do governo das almas. A realeza, entio, é um oficio que decorre de um “ever a camprir, subordinado & perspectiva religiosa da salvagio. Do onto de vista da historia do Estado, constata-se, com razao, que 0 politico € absorvido pelo espiritual. Na ética de uma histéria do “go- ‘verno”, € mais exaro dizer que as finalidades governamentais, espiri- tual (salvacdo das almas) ¢ temporal (disciplina dos corpos), condi- cionam a ética do Estado. Em vez da negacao do politico, é a fina- lizagio da forga que constitui o cardter original desse perfodo. Num 9 Le Citoyen, cap. 13, § 1, p-229. A nogio de “governo” a certo sentido, o rei governa mais do que reina, jé que seu titulo de- pende da retido de seus atos.6? 2. A partir do século XII, sob a dupla pressao do desenvolvimen- to das grandes monarguias edo movimento intlezual susctado pela redescoberta de Aristoteles, o reginten se confunde com 0 regnum. Relativa autonomizagio do politico em relacio ao espiritual, se qui “rem. Egultots precini, mas etamentee no imeror de ‘precario, mais exatamente, no interior de um mun- do harmonioso ¢ hierarquizado, entre a naturalidade do regntm e a finalidade do regimen. Bastaré que se rompa essa harmonia, na auro- ra do Renascimento, para que o regimen, separado de uma ordem dos fins, se enrole de certo modo em torno do regnum, fazendo da forca, centregue a si mesma, o principio de um crescimento indefinido da for- ‘ga. Esse momento em que 0 regimen se liberta de todo horizonte te- leolégico e adota como fim, numa espécie de dobra circular sobre si, a condigio de seu exercicio — o poder —, marca a passagem da arte ‘medieval de governar 4 tecnologia moderna do governo, que O prin- cipe de Maquiavel ilustra com brilho. Mas nao devemos nos enganar aqui: se Maquiavel rejeita 0 finalismo do regimen eristao, ele conti- nua a conceber o governo como idéntico ao stato, Reinar, para ele como para os escoldsticos, é governa, com a tnica diferenca de que da eficécia substitui o da justiga. A ruptura maquiaveliana é certamente decisiva, mas ela se inscreve num periodo de transicio, aberto pelo naturalismo aristotélico, entre a antiga doutrina dos Pa- ddres, em que a fungio governamental determinava os limites do po- der, €a teoria elaborada no século XVI, em que ela sera subordina- da A instituigo do poder soberano. 3. A terceira etapa corresponde a instrumentalizagio do gover- ‘no que descrevi em Hobbes, mas que constitui um fendmeno geral nas grandes monarquias administrativas no século XVII. O governo nao ‘€ mais a razo de ser do poder public nem a forma mesma de sua manifestagao. Ele se torna uma funcio deste, essencial, sem diivida, mas distinta do aparelho solene da soberania. Diferentemente de M. Foucault,*! nao penso que a autonomizacao da arte governamental Segundo a formula de Isidoro de Sevilha, “rex a rete agendo” (ct. infra, pare I, cap. 1, A) © Ch. “La Gouvernementalité”, pp. 10-1, Foucault & verdade, explica que a nova arte de governar segundo a razio de Estado servis ao fortalecimento da a Reinar e governar no século XVII tenha-se feito em ruptura com a teoria juridica da so- berania. Foi antes no quadro estabelecido por esta que ela pode sepa- rar-se 20 mesmo tempo dos fins éticos do regimen (a soberania defi nindo um espaco politica regido por relacdes de comando e de obe- digncia em vista da manutengio da ordem, necessdria a seguranga} e da pura dindmica da escalada das forgas liberada por Maquiavel. O. governo nao é mais o vetor de um aperfeigoamento moral dos homens, nem a sede de uma lura permanente pela dominagio, A soberania nio ‘sc importa com os fins ultimos, ¢ é cla, doravante, que se torna 0 ob- jeto de disputa das rivalidades de poder. Dai uma redcfinigao das fi- “Taldades povemanventals,ndo em Tungio do bem Gomum au do in- ieresse do principe, mas das necessidades do Fstado, corpo vivo sub- metido & exigéncia, para sobreviver, de desenvolver ao maximo seus recursos materiais e humanos. Esse processo se traduz por um certo mimero de transformagoes: — O governo nio se exerce tanto sobre vontades, como 0 faz através da lei a autoridade soberana, quanto sobre quantidades:® populagio ativa ou inativa, riquezas, mercadorias, equipamentos ci- vis militares etc. E verdade que os homens, mesmo considerados sob seu aspecto de massa, ndo so uma matéria inerte. Sua sensibilidade instavel, mével, versétil obriga a multiplicar os signos ¢ os simulacros (“governar”, dizia Richelieu, “€ fazer acreditar”), de preferéncia 4 coergio. Mas seus humores entram doravante num calculo que os reduz, de certo modo, a puros fendmenos fisicas. Assim, Bacon, em seu Ensaio sobre os distirbios e as sedigées,°> recomendava aos “pas- tores do Estado” “conhecer bem os calendatios das tempestades do Estado, que sio em geral mais fortes quando as coisas esto em igual- dade, assim como as tempestades da natureza si0 mais fortes em tor- no do equindcio”. O antigo governo das almas e dos corpos é substi tuido, portanto, pelo governo das coisas. A questo nio é mais ado” soberania, esta constituindo, portanto,a seu ver, um quadro hist6rico a0 mesmo tempo que um obstdculo teérico, Ch, o texto de Fenelon que cto mais adiante (parte I, cap. 2, B) © Essai, XV, p69. + Base ponto foi muito bem salientado por M. Foucault, op. ct, p. 10.0 cexemplo no qual cle se apdia, porém, é bastante contestivel. Serd que se pode A nogio de “govern” 8 uso legitimo da forea, que os autores cristios colocavam, nem a de sua apropriagio exclusiva, que Maquiavel havia levantado. Ela reside ago- +a na utilizacao intensiva do conjunto das forgas disponiveis. Passa~ gem do dircito da forga a fisica das forcas. — Deslocamento, a seguir, da antiga concepgao do ministério para o problema do ministro. Quando competia ao principe governar, a reflexdio permanecia centrada sobre a natureza de seu oficio. Proce- dia ele do poder espiritual? Em que medida devia submeter-se a este? Quais eram suas obrigagdes? A estrita doutrina ministerial havia dado lugar, desde o século XI, a um reconhecimento progressivo da auto- nomia do poder real em suas fungSes seculares. Mas este s6 adquiriu sua plena independéncia ao revestir-se dos atributos da soberania. A partir do momento em que o principe representava o corpo politico do Estado mais do que fazia ele proprio esse corpo agir, a questio da escolha dos ministros tornou-se de primeira importan Maquiavel, em O principe, s6 lhe havia dedicado um capitulo bastante curto:% assunto secundério, de fato, uma vez que, contraria- mente idéia medieval de que os bons conselheiros faziam bom principe, os ministros, segundo Maquiavel, “[eram] bons ou nao con- forme a sabedoria do principe”. © problema do ministro transferia- se para 0 do julgamento do principe. Naudé concede-Ihe um lugar bem maior em suas Consideragdes politicas sobre os golpes de Esta- realmente considerar como uma novidade, ov como sinal de uma transformagao. decisva, a presenga da palavra coisas na defnisio do governo por G. de la Perriére (Le Miroir politique, 1555) que ele comenta longamente: "Governo € a correta Aisposigio das coisas, cujo encargo se assume para conduri-las a um fim adequa- do” (f.23r-v)? Com efcto, o autor acrescenta: “como descrever 0s filésofos mo- rais eredlogos", referindo-se&tradicio antiga e medieval. Além disso, ele faz sua Aefinigao ser precedida da frase: “Governo pressupde ordem, na medida em que sem ordem nio se pode devidamente governar”. E dificil nao perceber na formu- Ia de la Perriére um eco direto da célebre definigio agostiniana da paz (A cidade cde Deus, XIX, 13): “A paz de toda coisa &a trangiilidade que a ordem oferece, ‘ ordem nio ¢ sendo uma disposicio das coisas semethantes e dessemelhantes que atribui a cada uma o lugar que Ihe cabe (ordo est parium et disparivom rerum sua ‘exique loca tribuens dispositio” © Cap, 22: “Dos secretirios que os principes tém perto dees (De his quos «secrets principes habert)”. Gaudet traduia mais brevemente: “Dos ministros”, F importante notar que a funcio do ministro se inscreve ainda numa certa ¢cono- mia do segredo, “ Reinar e governar do (1639) — todo 0 quinto e tltimo capitulo —, mas permanece muito préximo de Maquiavel quando esereve que “[os ministros] dependem absolutamente da escolha que o principe pode fazer”.6° Reflexos da sabedoria do principe, eles sito de certo modo o instru- ‘mento pelo qual, exteriorizando-se, ela toma consciéncia de si mes- ma, A competéncia deles nao se exerce sobre objetos especificos. ‘Momento necessario da pura reflexividade da vontade soberana, eles servem apenas para reduzir a distancia entre a humanidade falivel do principe e sua decisio irrevogavel.©” Assim, o papel dos ministros néo se distingue do dos conselheiros, “servidores secretos ¢ ficis”.® F, Hobbes que separari rigorosamente suas fungdes especificas: “Um conselheito, se tem unicamente o direito (estando desprovido de todo comando e de toda jurisdigio) de dar pareceres, relacionados a ques- tes piiblicas dificeis, ao detentor do poder supremo, nao é um mi nistro piblico”.® A escolha dos ministros nao sera entao mais de- terminada, num fim deliberativo, pela simples relagio do principe com sua propria vontade, mas, segundo as exigéncias administrativas, pe- la relagio orginica do aparelho do Estado com o corpo da nacio. Objetivagao da fungo ministerial — relativa as finangas, aos assun- tos militares, 4 instrugdo do povo ete. — que corresponde & minis- terializagio da atividade governamental. No século XVII, os minis- tos € que irdo redefinir as regras da arte de governar. Considerations politiques sur les coups d'Etat, p. 153. | se 0 principe sejulga bastante forte, aurorizado, judicioso e capa para estar acima de seus conselheiros ¢ confidentes, € bom que tena trés ou qua- tro deles, porque, depois que eles tiverem opinado sobre algum incidente, ele po- der obter diversas propostas ou meios eexcolher aquila que julgar mais conve- jente de execurar. Mas se ele tiver um espirtofraco, se for pouco perspicazein- paz de escolher o melhor conselho e fazi-lo cumprir, é mais conveniente, sem daivida, que se confie a somente um conselheiro, que ele escolheri como o mais jdicioso e methor preparado de todos” (ibid, p. 153). Cl. as observagdes esclare- ‘cedoras de L. Marin em sua apresentagio, pp. 56-7. © Ibid p. 154, © Léviathan, cap. 23, xadusio fancesa do texto latino por F-Tecaud,p. 259, nota 47. O texto inglés é menos expliito. ‘A nogio de “governo” 45 Capitulo 2 AS ARTES DE GOVERNAR As artes de governar: esse plural indica que no buscamos des- cobrir uma esséncia, um prinefpio fundador do qual se pudesse dedu- zir um método de governo, Ele designa uma multiplicidade no ape- nas de artes, de técnicas, de sistemas de regras, de modelos de acio, mas também de definigoes do “governo™. Nada menos equivoco, co- ‘mo vimos, do que esse termo que remete a formas de relacao, tipos de instituigdo e eixos de finalidade muito diversos. © que nao impede ‘que se possa agrupar num género 0 conjunto dos textos, seja qual for sua forma literdria (didlogo, discurso, tratado, sermio, poema, carta _etc:}, que instruem o principe acerca do que ele deve SeaberTazr para dirigir bem seu Estado. Género antigo cuja tradicao remonta as civilizacbes do Egito © da Mesopotimia,” essa literatura é pouco es- tudada e no encontra geralmente lugar na hist6ria das idéias politi cas, menos porque, dirigida a principes, ela nao teria mais interesse numa cultura democrética do que em razio de sua orientagio moral. Desde Maquiavel, o tema da virtude do principe, objeto da “pare~ nética” régia, pertence a um mundo de ilusdes em que se misturam sem discernimento, como se cumprissem a mesma fungao, quimeras, figuras ideais e construgdes utpicas. ‘A “cigncia politica”, assim, teria tornado caduca a arte de go- vernar, como 0 provaria o apagamento progressivo dessa expressio em Hobbes. Ora, isso nao é verdade, Contrariamente ao esquema "CEP. Hador, “Furstenspiegel”, col. 556-64. 2A parenétca, ou partnese (do grego parainess: exortago, encorajamen- to, designa um ginero de discurso que exorta as agdes virtuosas, CE. Séneca, Car- tas a Luctlio, XV, 95,1, que traduz esse termo por “ensinamento de precetos” (pars praeceptiva philosophiae, ‘As attes de governar a historiogréfico convencional, que opde a nova racionalidade estatal dos séculos XVIe XVII ideologia medieval do bonum commune, a arte de governar nao foi substituida de um s6 golpe pela ciéncia do “Fstado, mas transformou-se gradualmente para infiltrar-se em sua ‘armagio, nela introduzindo, sob uma linguagem moderna, sedimen- ios discursivos as vezes muito antigos. Nem ruptura nem, obviamen- “Te, simples continuidade: € em termos de deslizamento, de deslocamen- to, de desmoronamento, 4 mancira dos gedlogos, que caberia descre- ver os estratos do discurso politico que vemos se formar a partir do século XVI. Usilizarei, por ora, uma outra metifora. Distinguem-se em. fisica dois regimes de escoamento dos fluidos: laminar (ou em lencol) e turbulento. O escoamento laminar efetua-se por deslizamento de camadas de fluido umas sobre as outras, com efeitos de viscosidade, enquanto o regime turbulento é caracterizado pela formagao de siste- ‘mas turbilhonares, as velocidades variando de maneira aleatéria. Tal- ver seria pertinente, por analogia (¢ portanto sem pretender nenhu- 1ma utilizagao rigorosa dos conceitos), distinguir, na historia das idéias, politicas, periodos de escoamento laminar, em que vemos sobreporem- se superficies discursivas homogéneas — assim, no século XIl, as do humanismo platonizante e do direito civil romano, ou, no século XU, as do agostinismo e do aristotelismo —, com uma maior ou menor resisténcia viscosa, e periodos de regime turbulento, marcados por ‘uma brusca aceleragdo, em que os fluxos discursivos perdem sua in- dividualidade, decompdem-se ¢ misturam-se entre si— assim, apés a perturbagio maquiaveliana, as polémicas dos séculos XVI e XVII em torno da ragion di Stato. A mecinica dos fluidos aplicada, como me- téfora experimental, as correntes de pensamento permitiria, desse mo- do, escapar is periodizagdes estereotipadas nas quais a anzlise se em- bota, ¢ considerar 0 discurso, no como uma superficie sobre a qual se projetam grandes sombras iméveis, mas como um verdadeiro es- paco de circulagio. Em virtade dessa hipétese, procurarei mostrar que linhas de in- clinagio conduzem dos Espelhos dos principes (Specula principum) ‘medievais as maximas de Estado do século XVI, no interior do géne- ro das artes de governar. Como se passou de uma ética do regimen inscrita na relagio especular do principe com seu modelo perfeito, a ‘uma técnica governamental determinada pelos interesses do Estado? ‘Veremos que entre uma e outra a Figura do Principe maquiaveliano representa menos um corte brutal do que uma transicio, forte ¢ sur- 48 Reinar e governar preendente, sem diivida, derrubando clichés e convengées, mas atra- vés da qual se prolonga uma antiqiissima pedagogia régia, a0 mes- imo tempo que nela emerge uma consciéncia nova das condigdes da agi politica. O principe: nio livro fundador, manifesto de uma ci cia nascente, mas texto de articulagio entre a literatura dos Espelhos €08 manuais de Estado, Para que se possa formar no século XVI uma Sem contestar a continuidade do género, o fato é que a imagem do espelho desempenha, na representacdo dos deveres do principe, um papel especifico que convém analisar mais de perto, Encontramo-la ja em Cicero,* a propésito da escolha do melhor dirigente: 3 P, Hadot, art. citado, col. $56. * De re publica, I, 42, 69, p. 46. Esse lvro, que Santo Agostinho cita com freqitnca, fi perdido na Idade Média e redescoberto no inicio do século XIX. As artes de governar 49 “Lélio entdo: Adivinho ja de que dever ¢ de que fun- 40 vais encarregar esse homem, de quem cu desejaria ou- virte falar. [Cipiao:] Nao imporei a ele muito mais do que isto, disse 0 Africano, {pois ela compreende mais ou menos to- do o resto): cumpre que ele jamais cesse de instruir-se e de observar-se a si mesmo (a seipso instituendo contemplan- doque), que inspire aos outros 0 desejo de imiti-lo (ad imi- tationem sui vocet alios) e, pelo brilho (splendore) de sua alma e de sua vida, oferega-se a si mesmo como um espe- Iho (sicut speculum) a seus concidadios”. O governante, aqui, ndo contempla num espelho 0 modelo ao. qual deve se esforgar por se assemelhar. Ele serve de espelho para os homens que conduz, Ele é esse espelho gracas & claridade que dele ir- radia. Com efcito, é a virtude que governa diretamente através daquele que, pelo estudo e o exame de si, aprenden a se governar, de tal sorte ‘que “apresenta sua vida a scus concidadaos como uma lei (swam vitam ut legem praefert suis civibus)”5 Lei viva: essa figura, que tem sua 05 autores medievais a partir do século XII. Ela tornara a dar ao tema da exemplaridade do rei, que séculos de ética monastica haviam re- duzido a uma estrita disciplina da carne, um lugar central na econo- mia do governo, ligando a fungao diretiva do principe ao brilho de sua visibilidade, “E deveis saber que o rei deve resplender ¢ reluzir entre todos e sobre todos 0s outros por virtude, por sabedoria e por graca, assemelhar-se a Deus de alguma maneira”, escreve, entre tantos ou- tros, o dominicano Jacques de Cessoles (século XTV),6 comparando o-rei a um espelho cuja pureza se refletesobreanacio. (O principe-espelho pressupde espelho do principe. Séneca, no De clementia composto para o jovem Nero, utiliza a imagem do spe- cculiem nesse segundo sentido, 5 Cl. LK, Born, “Animate Law in the Republic and the Laws of Cicero”, p. 133, © De ludo seacchorum (Le jew des exches moralisé), fo. S ss. (ctado por D.M. Bel, ‘dda éthique de la royauté,p. 89). so Reinar e governar “Empreendi escrever sobre a cleméncia, Nero César, para desempenhar de certo modo a funcao de espelho € encaminhar-te, oferecendo-te tua imagem, a vohipia maior que hd no mundo.”? Os espelhos, com efeito, foram inventados para permitir ao ho- mem conhecer-se.® Mas hd, nesse tratado, uma perfeita circularidade ‘entre o principe, o espelho e o modelo de virtude que ele reflete. Este no é senio o proprio Nero (*ninguém te busca um modelo [exem- lar] fora de ti mesmo”), convidado a contemplar nao o espetaculo de seus vicios ou de suas fraquezas para cortigi-las, ou o retrato de tum imperador ideal para imit-lo, mas sua propria exceléncia. Para que serve, entdo, exorté-lo mansuetude se cle ja possui essa virtude ‘no mais alto grau? Para transformar essa disposigdo natural em pra- tica refleti * Quero te fazer tio familiares quanto posstvel os atos € as palavras que te honram, a fim de que o gesto de hoje, simples movimento instintivo (quod mune natura et impetus est), se torne uma maneira de ser consciente e desejada (fiat judicivm)” 10 Pode-se ver nessa atitude apenas uma forma sutil de adulagio. Séneca, porém, defende-se.!™ Acorrentando Nero a perfeigdo de sua natureza, ele quer obrigé-Io nao simplesmente a permanecer ele mes- mo, mas a demonstrar, através de sua conduta, suas qualidades ina- tas: “Situagiio ingrata, em verdade, se essa bondade que ostentas fos- se apenas uma aparéncia fingida”.1? Nero deve mostrar sua virtude, * De clementia,1, 1, p-2- * Citado por P. Courcelle, Connais-ti a * De clementia, 6p. 4 40 thi, 1,2, p. 8. Sobre esse tema, ef. Cartas a Lucio, Il, 16, 6: tranformar ‘um impetus em habitus anima "Cl. De Clementi, I, 2, p. 8: *Gostaria mais de te chocar com verdades do que te agradar com lisonjas” (maxima de Agrippa). © Bids 1, 6, p.4. mdm. p49. Asartes de governar 3 a fim de demonstrar sua perfei¢do natural. Assim, o espelho the é es- tendido para que, exercitando-se em permanecer o mesmo, ele corr- ja seus impulsos — de célera, por exemplo — pelo simples desejo de continuar a assemelhar-se. A célera, com efeito, altera os tracos pelo enfeamento da alma}? Muito bem conhecido dos autores medievais, 0 De clementia constitui talvez a origem da expresso “espelho do principe”. A ima- ‘gem reaparece no século VT sob a pena de Alcuino, um dos princi- pais astesfos do renascimento carolfagio, em seu tratado De virtutibus et vitiis (799/800) enderegado ao conde Wibo de Bretanha. Apés ter escrito 0 combate das virtudes dos vicios que domina constante- ‘mente a vida humana — tese corrente da literatura patristica — e ter exortado Wibo a manter a paz, “terror dos inimigos visiveise invisi- veis", entre os que observam os preceitos divinos, Alcuino expde em conclusio o objetivo de seu livro: “Redigi estes conselhos, carissimo filho, em poucas palavras, conforme teu desejo, a fim de que os tenhas todo dia sob os olhos como um pequeno manual (manualem li- bellum) no qual possas examinar-te e conhecer o que deves fazer ou evitar (quid cavere, vel quid agere)” 15 A obra desempenha portanto o papel de um espelho moral, mes- ‘mo se a palavra nao é empregada. Mas Alcuino escreve alhures que, zna Sagrada Escritura, “o homem pode examinar-se a si mesmo como num espelho (quasi in quodam speculo)”.1® © exame de si implica pportanto a imagem de um espelho que permita a cada um saber o que cle é (qualis sit) ¢ Ihe mostre 0 que cle deve ser (quo tendat).'? Instru- ‘mento tanto de autoconhecimento quanto de purificacao. Ele ndo ser- ‘ve mais, como em Séneca, para ligar o principe & sua propria perfei ‘elo, mas para dar-lhe os meios de corrigir suas imperfeigdes; nao mais, Ch infra, pare cap. 3, A 1 De vitutbus et vitis, 617 C. ibid, 638, 16 De letionis studi, PL 101, 616 C. 1 hid. 2 Reinar e gavernar o encaminha, pela contemplagao de sua prépria imagem, 4 volipia, ‘mas, por uma meditagio catértica, & beatitude celeste. Jonas d’Orléans, que leu os tratados de Alcuino, emprega termos idénticos no De institwtione regia (831), 0 mais representativo dos Espelhos dos principes carolingios. O lugar em que o faz nao é sem importéncia, }& que se trata do capitulo em que explica o que é 0 reie quais sao seus deveres. Depois de varias citagdes biblicas, entre as quais a do Deuteronémio (17, 14-20), éintroduzido um longo trecho de uma obra andnima que ele atribui a Sd0 Cipriano, o De duadecim abusivis saeculi.'® Essa passagem, intitulada “Rex iniquus” (O rei injusto}, conhecerd até o século XIII uma fortuna excepcional. Cons- titui um dos t6picos da tradigao dos Fiirstenspiegel. Assim, ¢ interes- sante que seja apresentada “como uma espécie de espelho”: Inserimos neste opiisculo, fruto de nossa peque- rez, algumas palavras de Sio Cipriano, mértir de Cristo, ue oferecemos a vossa serenidade (o bispo Jonas dirige-se 40 rei da Aquitanial a fim de que as tenha ao alcance da mao, as leia eas medite com freqiiéncia. Em suas palavras, contemplai incessantemente, como num espelho (quasi in quodam speculo), o que deveis ser, fazer ou evitar” 19 Oespelho adquire assim a fungdo de um manual familiar do qual convém servir-se todo dia, tendo em vista conduzir-se (quid agere, quid cavere) e modificar-se (quid esse). Ele nao se inscreve numa re- lagao narcisica consigo mesmo, mas numa prética ascética. Remete aquele que governa os outros & necessidade de governar-se a si mes-_ mo para conformar-se, nao 4 exceléncia de sua natureza, como 0 Nero do De clementia, mas a eminéncia de seu off O sentido da palavra esté fixado € evoluird pouco. A partir do século XIII, porém, assiste-se a uma proliferagio de Espelhos de todo ‘mais de 250 até o século XVII. Espelhos instrutivos que visam a en- riquecer 0 conhecimento — como o Speculum majus de Vicente de 4 Ver bibliografa: Pseudo- Cipriano. De insttutione regia, p. 140. 2 Speculum, Mirror and Looking-las. ‘As artes de governar 33 Beauvais (cerca de 1256), que retine em sua monumental arquitetura todo o saber da época ¢ acerca do qual Emile Male dizia que os ca- pitulos estavam transcritos na fachada das catedrais, 0 Speculum: ju- diciale (1271) de Guilherme Durand de Mende, coletinea de direito candnico, © Mirror of the World (1481) de William Caxton, modelo dos Espelhos enciclopédicos ingleses ou espelhos exemplares1 que so guias de vida moral e espiritual, apresentando catdlogos de virtu- des e de vicios opostos ou de exempla edificantes (Speculum christiani, Speculum conscientiae, Speculum peccatoris ete.). Em que categor dispor os Espelhos dos Principes? E verdade que eles se dirigem pes- soalmente ao principe, a quem expoem regras de conduta e exemplos de virtude. Mas, & diferenca dos Specula carolingios que enunciavam os deveres do principe em relagio A Igceja ¢ a0 povo cristio, eles ten- dem cada vez mais a levar em conta as exigéncias concretas da res publica. Antes do século XII, o principe governava homens (o “povo de Deus”); com a formagio das monarquias territoriais, ele governa ‘um regnum. A matéria sobre a qual se exerce o poder nao é mais, como veremos, o corpo mesmo de seus siiditos, mas 0 corpo poll _do reino, Daf o cardter instrutivo mais acentuado de um certo mime- 10 de Espelhos dos principes, que conservam todavia sua fungio exem- plar. Assim, 0 Liber de informatione principum anénimo do final do século XIII foi impresso em 1517, em sua tradugo francesa, com 0 titulo de Miroir exemplaire et tris fructueuse instruction [..] du régime et gouvernement des rois, princes et grands seigneurs qui sont (Espe- lho exemplar e proveitosissima instrucio (...) do regime e governo dos reis, principes e grande senhores que sao]. Convém notar que 0 género dos Specula praticamente nao faz nenhum uso, nem literdrio nem doutrinal, da rica simbélica do espe- Iho desenvolvida, desde os primeiros séculos, pelos misticos e os ted- logos.”2 Trata-se de duas tradi¢des distintas que raramente interferem. Um Filipe de Méziéces (1327-14053 — que escreve em seu Songe du vieil pélerin Sonho do velho peregrina] que, “pela virtude do espe- tho que fala moralmente, assim como A luz do sol se vem planamen- Jaramente] as coisas criadas em geral neste mundo”, assim tam- 2 Sobre essa dstingi, ef. DS, 10, art. “Miroir, col. 1292. 2 Ibid, col, 1295-1301 23C£.D. M, Bell, Etude sur “Le Songe du viel paterin™ SA Reinace governar ‘bém cada um vé claramente seus defeitos “sem reverberagao como em. relagao ao sol” — € uma excecio. Nenhum autor pés em cena, como cle, numa espécie de coreogratia solar, a Rainha Verdade e suas Da- mas (Paz, Misericérida e Justiga), cada uma segurando um espelho, em volta do principe que clas iniciam nos segredos de seu oficio.2 Assim, convém limitar o termo speculum, se 0 aplicamos & arte de governar, a seu sentido historico de manual, guia de conduta, inscre~ vendo-se certamente numa estrutura analégica do ser que permite es- tabelecer correspondéncias entre o visivel eo invisivel, mas pobre em ressonincias metaféricas. B_OS ESPELHOS POLITICOS NO SECULO XVI Um indicio interessante da evolucao do género aparece num au- tor menor do século XVI, j4 evocado, Guitherme de la Perriére. Ele explica em seu prefacio por que “quis dar & [sua] presente obra 0 ti- tulo de Espelbo politico”. A primeira razio “éque, assim como num espelho aquele que nele se mira e olha nao vé tio-somente sua face mas vé por linha reflexa a maior parte da sala ou quarto onde estiver, do mesmo modo todo administrador politico que se quiser mirar no presente espelho (ndo de cristal, de prata, de vidro ou de ao, mas de papel) poderd ver aqui, resumido e sumaria- mente agregado, tudo que the €necessario ver para exercer bem ¢ devidamente seu oficio, sem dar-se 0 trabalho de fo- thear varios autores gregose latinos que dfusamenteesre- vveram sobre isso” A metéfora, desenvolvida desta vez.com certo preciosismo, con= tém um elemento novo: a sala ou quarto onde est aquele que se mira. ‘Despelho nao reflete, em virtude de simetrias analogicas, aidealidade de um modelo transcendente, mas, por um fenémeno puramente fisi co, a imagem do lugar onde se esta. Essa irrupsao do espago na rela- 2% Ibid. p. 121. 2% Le Miroir politique, t. 11 Asamtes de governar 38 ¢a0 especular do principe com seu oficio é, sem davida, um fendme- ‘ho notavel. Ela reflete a emergéncia do territério como dominio con- ccreto, geogeaficamente estruturado (contrariamente ao conceito pu- ramente juridico do regnum medieval) do exercicio do poder. A “fa- ce” do principe se inscreve dentro de coordenadas espaciais com as quais ela forma um todo, Essa é, talvez, a primeira ligdo do texto. Evi- temos porém forgar sua interpretagao. O que o espelho mostra nao é tanto a realidade de um pais, em sua diversidade material,2® quanto tuma sintese do que escreveram “varios autores gregos ¢ latinos” so- bre a cigncia do governo. O Espelho politico é um compendisem para uso dos “administradores politicos”, aos quais falta tempo para “fo- thear” os livros eruditos. Um manual, portanto, que oferece aos go- vernadores?? a representacao de uma repiiblica bem ordenada. Sob esse aspecto, ele situa-se na continuidade dos espelhos medievais, a cuja tradigdo, para citar Vicente de Beauvais,2* faz explicitamente referencia. a, O LIVRO SECRETO DO PRINCIPE E entre os tedricos da ragion di Stato que a ruptura com a for- ‘ma antiga do speculum se realiza com clareza. Nao que seja abolida 4 fungio instrutiva do espelho, mas este se acha de certo modo divi- dlido no interior de si mesmo, mostrando ao principe no apenas o que cle deve fazer e como deve aparecer, mas igualmente o qui - -cessirio esconder. O espelho nao oferece mais 0 puro brilho de sua superficie. Ele se abre, em profundidade, para um ponto obscuro: © livro secreto do principe, que contém o inventario dos recursos e das forcas de seu Estado, Na Idade Média, os autores de Specula citavam freqiientemente este versfculo do Deuteronémio 17, no qual viam um resumo de suas exortagdes: “[O rei] deverd escrever num rolo, para % Tal como buscari cella, por exemplo, Le Miroir des Francois de Ni colas de Montland (1581), que marca, segundo a expresso de D. Reynié ("Le regard souverain”, p. 44), “0 iniio da preocupagio exearstiea”. Mas no se ta- ta, propriamente falando, de umn manual do principe. ® *Govenador pode ser chamado todo monarca, imperador, rei, principe, senhor, magistrado, prelado, juiz e semelhante” (Le Miroir politique, f. 23). 2 Ch. infra parte I, cap. 3, C. 56 Reinare governar seu uso, uma c6pia desta Lei [dada por Deus a Israel] [..]. Ela nao 0 deixards ele a lerd todos os dias de sua vida [...”29 Na segunda me- tade do século XVI, 0 livro do Estado substitui, no centro do manual do principe, o liveo da lei divina. Scipione Ammirato p6s em evidéncia, num capitulo de seus Dis- corsi sopra C. Tacito (1594), a ligagio entre essa eserita secreta e os registros feitos pelos mercadores. Prova, entre outras, do papel decisi- ‘vo desempenhado pelo desenvolvimento do comércio, no final da Tda- de Média, na transformagdo das maneiras de pensar: a passagem de ‘uma racionalidade dirigida a um fim para uma racionalidade calcula- dora efetuou-se no terreno da economia antes do da pratica politica.2° “Os ricos mercadores tém um livro, que eles chamam 6 livro secreto. Esse livro nao deve chegar 4s méos de to- dos 0s empregados da loja, somente o dono o conserva jun- toasi, enele faz.a lista de todos os seus negécios, € 0 resu- mo ¢ a anilise de todos os seus recursos e capacidades. [...] [Um principe deve fazer o mesmo com seu Estado.” O imperador Augusto, de acordo com Sueténio, teria assim man- tido secretamente o computo de todas as forgas do povo romano. “Compreendendo bem em seu divino entendimento ‘quanto o fardo que tinha em seus ombros era pesado e im- portante, © que Ihe era necessirio ser prudente e avisado ‘pata manter tio grande maquina, [ele] escreveu de seu pré- rio punho (ndo querendo confiar essa tarefa & suficiéncia € 20 discernimento de um outro) um livro do Estado, que 2% Ct. infra, pare, ap. 2, C. °° Cf. H, Maker, In Namen des States, pp. 133-4, para uma ahorda- ‘gem geral da questo, Sobre a escrta dos mercadores, cf i Mouton, col. *Crlisaions e sie” 9, 1967; particule a parte : *AMforeset place de Phomme dans le monde: fortuna, raion, prdenza™. Ob- servag6es interessantes de J.-l. Fournel e J~Cl, Zancarini em sua introduce aos Avertissements politiques de Guichardin [Guicciardini], pp. 11-7. Discors sopra C. Taito, ta fr Mell, livro I, 5° discus, p. 28. As artes de governar 7 depois de sua morte foi apresentado a Tibério, livro esse ‘que continha todas as riquezas piblicas, 0 nimero dos ci- dadios e confederados que portavam armas, o niimero das, galeras, dos reinos e provincias submetidas a0 Império, os tributos, os pedgins, 0s gastos necessrios eas doases ou liberalidades.” Tal é 0 verdadeiro espelho do principe — “Aprende, principes, ‘com o maior prfncipe que jamais existiu no mundo, em que livro vos deveis mirar € contemplar”: aquele no qual, olhando-se, ele vé no seu modelo ideal, mas os detalhes de suas forgas reais. Enquanto cespelho medieval remetia indefinidamente o principe ao principe, atta vés de sua imagem transfigurada, é na materialidade mesma do Es- tado, doravante, que o principe aprende a se conhecer. Q cogito prin- sco nio é mais mediatizado por um imperativo de perfeigao (“co- “hece tuas Teaquezas para cresceres ein virtude”), mas pela simples consideragao do poder (“conhece tuas forgas para aumentares tua Tominagioy h, Da €t1Ca A ESTATISTICA ‘Com a mutagao do espetho do principe em livro do Estado, a. contabilidade das forcas substitui o catalogo das virtudes. Mudanga capital, certamente, na evolagao dos manuais de governo, O mais im- portante, porém, nio reside na transigao de uma visio moral para uma visio politica das coisas, mas no apagamento progressive do princi pe em provcito do Estado,,Em Ammirato, o Estado j4 no mais se redux 20 stato do principe. Ele é descrito como uma “grande maqi 1na” cujos elementos é necessario conhecer. Governar nao é tanto sub. ‘meter 0s desejos dos individuos quanto controlar forgas coletivas (re- cursos, populagao, armas, aliados). Dois géneros de obras vao entao se desenvolver: um que faz do conhecimento dos homens a condigio dda ago politica, o outro que incorpora esse conhecimento a0 conjunto ° Thid.,p.29. . A. Cholkier, citando a mesma passagem em seu Thesaurus politicorum aphorismorim, Moguntiae (1613), acrescenta que 0 imperador Ale~ ‘xandre Severo (+235) ¢, nos tempos modemos, Cosme de Medicis (t 1464) man- ‘inham igualmente um Rationarizon ou Arcanum libra: (eR. de Mattei I pro: blema della “Ragion di Stato” nelle della controriforma, p47) 38 Reinar ¢ governar do saber requerido para dirigir 0 Estado. De um lado, uma psicolo- gia cada vez mais sutil a servico da habilidade principesca e, de ma- neira mais geral, dos jogos da ambicio, dos guais O artesdo da for- tuna de Francis Bacon oferece um brilhante exemplo.>3 De outro, uma sociologia cada vez mais exaustiva a servigo da administracao publi: ca: nela os homens nao sfio mais considerados como objetos de pai xdes e de comportamentos rivais que criam um estado permanente de Inventirio quanticativo. “Sabei, escreve Fénelon ao delfim,*4 o mimero de ho- ‘mens que compéem vossa nagio, quantos homens, quantas rulheress quantos lavradores, quantos artesios, quantos médicos, quantos comerciantes; quantos padres ¢ religiosos, ‘quantos nobres e militares. O que se diria de um pastor que no soubesse 0 mimero de seu rebanho? £ facil a um rei saber 0 mimero de seu povo: basta que o queira Ele deve Saber se ha suficientes lavradores; se ha, proporcionalmen- te, 0 mesmo tanto de artesios, de médicos, de militares a camgodoEsad.” SSS ‘A essa contagem sistematica acrescenta-se 0 exame minucioso dos caracteres regionais, dos costumes ¢ dos procedimentos locais: 3 Raber fortunge. Esse texto, que teve virias edigBes em francts no século XVI, éna verdade extraldo do De dignitate ct angmentis scientiaruo (1605, trad. lat. 1623), livzo Il (Do progresso e da promogao dos saberes, pp. 246-70). Ox preceitos da “arte de fazer fortune” slo de dois tipos: geraise partculares. Os preceitos gerais consistem em conhecer bem a si mesmo ¢conhecer bem os outros. Esse ikimo ponto implica que se conhega a personalidade deles (para tanto, € preciso “informar-se sobre o carSter, as pretensbes, os projetos, as fraquezas ¢ os defeitos daqueles com quem temos de lidar, sobre as pessoas nas quais se apéiam, ‘de quem obtém sua autoridade, por qual lado sio mais acessiveis e © que mais hes atrai” etc, mas também suas 266es, pois os homens mudam com ela. Esses dois, tipos de investigacio s4o, para os preceitos gerais, © que a premissa menos, nos raciocinios priticos,€ para a maior. Bacon define seis maneiras de conhecer os hhomens: 1) pelo aspecto e os tragos de seu rosto, 2) por suas palavras, 3) por suas agdes, 4) por suas inclines, 5) por seus projetos, 6) pelo relato de outrem (cto de acordo com a tradugio francesa de 1685). Examen de conscience sur les devoire dela royauté, p. 87. Asartes de governar 9 “Ele deve conhecer a indole dos habirantes de suas diferentes provincias, seus principais costumes, suas fran- quias, seu comércio e as leis de seus diversos traficos den- tro e fora do Feino. Deve conhecer os diversos tribunais estabelecidos em cada provincia, os direitos dos impostos, 105 abusos desses impostos etc.”. Ha uma grande diferenga entre 0 homem observado pelos téc- nicos da habilidade principesca e aquele estudado pela cigncia do Es- tado: o primeiro individualiza-se a partir de uma natureza imutavel que. diversidade das circunstancias, sem alteré-la, modifica; 0 segun- do distribui-se em massas ou categorias ativas sobre o fundo, nao de uma natureza universal, mas de uma multiplicidade concreta mode- lada pela histéria. Pode-se perguntar, obviamente, se um e outro de- correm de uma antropologia comum no discurso tedrico da sobera- nia no século XVII. O fato notavel na transformagio sofrida pela literatura dos es- pelhos — reflexo da relagdo do principe com a substancia mesma de seu poder — consiste na rapida expansao dos livros do Estado ou, como se did depois de Politanus,?5 de estatistica, em detrimento dos manuais de instrugio do principe. A partir da segunda metade do culo XVI, os dados materiais cujo registro secreto Ammirato aconse- Ihava ao principe so metodicamente recolhidos, descritos ¢ publica- os. 0 italiano F. Sansovino foi certamente o primeiro, em 1567, em seu liveo Del governo et administratione di diversi regni et republiche, a fazer a descrigio cifrada das riquezas dos Estados, de sua popula- ‘go, de seu comércio, de sua industria e de suas finangas. Os traba- thos desse género passaram a ser numerosos a partir do final do sé- culo XVI Entre os mais célebres, as Relazioni wniversali (1592)°7 ‘de G, Botero, autor do primeiro tratado sobre a razo de Estado, ofe- 2 Microscopium statisticim quo sts Impert Romano-Germanic repre semtatur(cetea de 1672}. % Sobre a histia da palavra“estattca” eda disciplinacorrespondente, além dat eeferéncias citadas por D. Reynié, at. citado, cf. M. Rassem e J Stag Staistik und Staatseschreibung in der Newz © CE F. Chabod, “Giovanni Botero", Seri sul Rinasfinento, pp. 326+ 51; A. Albonico, “Le Relation! universali di G. Boero”, in A. E. Baldini (ed), Botero eta “ragion di Stato”, pp. 167-88. 0 Reinar e governar vezes reed recem um duplo interesse. Esse volumoso manual, vé tado, no qual se apresenta um quadro de todos os Estados do mun- do, mostra, com efeito, como a arte de governar se destocou, em um século, da prudéncia habil do principe para a ciéncia, por mais rudi ‘mentar que esta ainda seja, das condigoes gerais de vida dos Estados. Mas ele testemunha igualmente que a emergéncia de uma nova ra- cionalidade governamental, irredutivel is regras éticas do regimen, deu-se ndo contra Maquiavel (0 que equivaleria a confundir sua obra com o efeito de escandalo produzido por O principe), mas no sentido de um certo antimaquiiavelismo,*8 menos preocupado em reconciliar a moral ¢ a politica do que em afirmar, face & pura légica dos apeti- tes de poder, a positividade do funcionamento do Estado. Maquiavel, parodiando o género dos specula, havia substituido as virtudes do principe ideal por uma prudéncia habil, feita de cal- culo e de instinto. © modelo do bom governo, desde entao, nao devia ais ser buscado na contemplagao de um arquétipo, mas na obser- vagio de tipos historicos irredutiveis a uma figura tnica. Explosao da imagem do principe numa multiplicidade de atitudes politicas que correspondem i mudanca perpétwa das ciseunstincias. O espelho, as- sim, ao mesmo tempo em que apresentava os exemplos a seguir ou a evitar, devolvia ao principe o reflexo das escolhas possiveis que cle tinha de fazer. Ele o ligava néo mais as normas de uma perfeigao in- temporal, mas contingéncia de sua situacao presente. Todavia, 20 inscrever a ago principesca na imanéncia historica, Maquiavel nao rompia completamente a relacao circular do principe ao principe ali- mentada pelos Specula. Se ee rejeitava todo modelo transcendente, era para realcar a transcendéncia do principe em relacio ao resto dos homens. Gabriel Naudé — um dos mais puros maquiavelianos do século XVII —sublinhou isso muito bem em sua Bibliografia politica: 05 principes nao querem receber exemplos se cles nif vém de seus semelhantes. Fis por que Ihes sera muito Stil ainda exercitar-se dligentemente na leitura dos historia dores que escreveram as vidas dos mais valentes e dos mais ilustres principes, e considerar, na vida de Carlos Quinto Cf, M, Senellarr, “La raison d’at antimachiavélienne”, act. citado, p. 37-38. As artes de governar a narrada por Alfonso Ulloa, as virtudes de um grande impe- rador; descobrir, na vida de Lufs XI de Filipe de Commynes € [na] de P. Marthieu, as suilezas ¢ os ardis do Estado, [..] e, de maneira geral, buscar em todos os outros autores se- melhantes essas virtudes sobre cuja imagem e sobre cuja idéia possam posteriormente formar suas ages [...]"29 Por essa transferéncia de transcendéncia para a pessoa do prin- cipe, a arte de governar segundo fins morais transmuda-se em misté- rios do Estado (arcana imperii). Seja qual for 0 ganho de eficécia, sub- siste a antiga concepeio do governo, elaborada por Plato, que iden- tifica a politica com a ciéneia ou a competéncia de um sé. Em contrapartida, € um género de obras totalmente gue resulta dos livros do Estado do século XVI. Neles o principe no aprende mais a conhecer a si mesmo na meditacio solitéria dos cél- culos habeis dos rigores necessdrios que sua posi¢ao implica. Fle aparece como uma das pecas da grande maquina do Estado que s6 pode comandar submetendo-se ao mecanismo de conjunto. A forga das coisas suplanta os jogos humanos da forga. Foi certamente Mon- tesquieu, em sua andlise sistemdtica das “indimeras coisas” com as, quais as leis mantém inumerdveis relagdes, que mostrou, da maneira mais decisiva, como a arte do principe devia doravante dar lugar a uma ciéncia geral do Estado: “Essa obra, ele escreve a propésito de O espirito das leis, nfo seria init & educagio dos jovens principes e tal- ver Ihes valesse mais do que vagas exortagées a bem gover- narem, a serem grandes principes, a fazerem seus siditos felizes; 0 que seria 0 mesmo que exortar a resolver diffceis, problemas de geometra um homem que nio conhecesse as rimeiras proposigdes de Euclides” As “vagas exortagdes” dos manuais edificantes, Montesquieu ndo opde o realismo incisivo de Maquiavel. Ao contrério, “come- 9 Bibliograpbie politique, pp. 106-7, * Mes pensés, 200°, in “Dossier de I Esprit des lois", Eueres completes, 1.2,p. 1040 a Reina e governar amos a nos curar do maquiavelismo, ¢ dele nos curaremos a cada dia” 4" £ num mesmo movimento que a fisica social, como ciéncia das coisas da qual depende a vida dos Estados, dispensa o principe vi tuoso eo principe habil. Entao, mas somente entdo, rompe-se a ant ga estrutura especular na qual se refletia a politica, 41 De Fesprit des lois, XX1, 20, p. 641. As antes de governar 63 Segunda parte I VISIBILIDADE Corrigir Capiculo 1 AETIMOLOGIA DO NOME REI Para compreender 0 que os autores medievais entenderam por regimen, & preciso remontar aos s€culos, entre a queda de Roma (476) € a restauragao imperial de Carlos Magno, em que os Padres da Igre- ja elaboraram uma doutrina original da fungao régia. De fato, na au- ia de estruturas de Estado fortes, face multiplicidade dos reinos barbaros, a Igreja operou uma inversao espantosa. Em ver de exortar 6s reis a governarem com justiga, sabedoria e bondade, moderando assim o poder, oriundo da violéncia, pela dogura de seu exercicio, ela faz do “governo” —do ato de regere, dirigir — a condigdo mesma da realeza (regnum). Em outros termos, o governo justo nao constitui 0 limite do poder régio, ee o fundamenta. Pratica instituinte ¢ nao, co- mo ela sera a partir da construgio dos Estados monarquicos, exe- ccutiva, Por isso 0 governo, que nao procede do regnum mas 0 prece- de, aparece aqui, de certo modo, no estado puro. A. REINAR, REGER, BEM AGIR A FORMULA, JORO DE SEVILHA A doutrina patristica é resumida por uma célebre fSrmula de Isidoro de Sevitha (560-636) que encontramos em todos os Specula carolingios e que serd citada com freqiiéncia ainda depois do século Xl: “O rei é chamado assim por ‘reger’ (rex a regendo), isto é, por “agit corretamente’ (recte agendo)”.' Sorrit dessa etimologia, pouco 1 Etymologiae, IX, 3, p. 121; Sententiae, I, 48, 7, col. 719, paca a segun- da parte da citagio. Notar-se a conotacio moral, nas Sententiae, do verbo re _gere, Eis aqui o texto das Etimologias: “A palavra reino (regnum) vem de rei (a ‘A etimologia do nome ret ° normativa, seria desconhecer o papel da etimologia na Idade Média como forma de pensamento* € a influéncia considerivel, até 0 século XIV, da obra de Isidoro. Erymos logos: a etimologia, parte da grama- tica, nao visa tanto a reconstituir filiagGes quanto a desvelar o senti- do auténtico das palavras, Remontando a origem, no se percorre uma historia, descobre-se uma verdade escondida sob a rede complexa das combinagies lexicais, que se pode novamente manifestar em suas mil tiplas dimensdes éticas e ontoligicas.> A etimologia restitui aos vocd- bulos gastos pelo uso sua forga (vis) primitiva. Ela reajusta a lingua- gem & ordem das coisas. Daf a importincia filoséfica do trabalho de Isidoro. Oriundo de uma poderosa familia de Cartagena, o bispo de Sevilha empreende constituir uma enciclopédia do saber antigo, to- mando 0 caminho que vai dos verba as res. Gigantesca compilagio que ficou inacabada, Mas, por seu cardter excepcional, essa obra, que procurava efetuar uma sintese da cultura greco-romana ¢ do pensa- mento cristo, conheceu uma extraordindria irradiagio. “E 0 livro fundamental da [dade Média. Nao somente fixou de maneira valida, regibus). Com efsito, do mesmo modo que rei tirado de reger (a regendo),reino tirado de ri” (op. cit, p. 119). Obtémse assim a sequéncia: regere — rex — regrnum. sidoro prossee: “Re éirado de regr. Do mesmo mado que sacerdo te (sacerdos) vem de santifica (sanctificando}, ci vem de reger. Ora no se rege se nose corrige (now autem rest, qui nor corrigit) (bid p. 121) Segundo ce ‘mento capital: equivalenciaestabeecida entre regere corigere. “Quem age com, retidio (rectefaciendo), conserva o nome de rei, quem peca, perde-o” (bid. A ctimotogia aqui nao escarece mais apenas a fungio, ela fixa um critério de legiti- rmidade. Texto mais ou menos idéntico nas Sentongas. CE M. Reydelet, La Roya 16 dans (a littérature latine de Sidoine Apoltnir a Isidore de Séville, pp. 24 sobre as raizs germinica (kur-ingaz, radical kun signiticando a eagay a fami- Ii) latina (rex) do nome ee: “[.] 08 nomes rei, em germinico e em ltim, re- ferem-se a nodes muito diferentes, De um lado, 0 acento reeai sobre os lagos de samgue, sobre a pertenga a uma raga ea uma nagio, De outro, predomina a idéia, da exatidio no eumprimento do dever ¢ dos rtos” (p. 26). Ct. igualmente ibid, 1p. 575-8, aanilise da etimologia de lsidoro, 2 Acxpres lati, 602. 3 CE. M, Reydellet, op. cit, p- 24: “[No século VI a gramética tende a ror- ‘arse 0 instrumento exclusiva do pensamento, dando ao nome uma fungio de revelagio dos seres”. Ede E. R. Curtis, La Littérature européenne et le Moyen Age 7 Visibilidade € por oito séculos, a totalidade do saber humano, como também de- tetminou todo um modo de pensamento."* A anélise etimol6gica recorre a diferentes métodos: ex causa {a palavra, isto & a coisa que ela designa, é explicada por sua “razio de ser”), ex origine (ela é explicada por sua origem material: assim honto, ‘0 homem, vem de humus, a terra), ex contraris etc. A etimologia do nome rex é obtida ex causa,® prova de que, segundo Isidoro, é de fato © governo que faz 0 rei. Todavia, se a tradigio Ihe atribui a paterni- dade, ele nao 0 inventor dessa etimologia. SANTO AGOSTINHO Para encontrar sua origem, € preciso voltar a Santo Agostinho.S Este, baseando-se em Cicero,’ opde dois tipos de governo através da antitese regere — dominari um egrado pela disciplina e a benevolén- ia, 0 outro arrastado pelo orgulho e o gosto do luxo. E € nesse con- texto que ele propde a etimologia famosa, reges a regendo.8 Mas en- ‘quanto, em Cicero, o dever de regere, associado ao nome rei, aplica- vva-se & pessoa mesma do governante e a seus stiditos, Agostinho faz ‘que ele sofra uma dupla transformagio, De um lado, limita-o a0 go- E.R, Curtis, ibid. 5 Fa ainda aceta no sculo XV, como o estemunha a Suna gramma- tials valde notablis, quae Cathoicon nominate de Johannes Balls (crea de 1298), impresta em Mainz, em 1460: “Reto, Bs, x, etm: cori, gubernat, administra. E ctr regerequast ecteagere test eymologa 1 Et ut dict Papin, ropes a regen des” FH, Anton (Firstenopiegl snd Herecherethos pp. 384-7) indica algumas passages na Iteratura antiga dat quae Agotinho pide we lmbrar: Cicer, De Fins Il, 75: "(reco enim apellabitur rex [persona sapiens] quam Tar- {inns qui ec se nec son regere port; Horio, Epil, ly 1, $960: “fe 3 peri ndentes ex er att“ rect facias™ (sdoro, pmol, IX, 3, 121, fz aldo ese proverb. a nota 171 de M. Reydel, op ct); Astin, Tecbnopacgnion, VI, : “Qui cet facet, non gui ominatur et rex", Aparece sui a opoigfo decisiva para os autres cists, ene rece faceree dominai ‘Mas io clemenrosesparsos que ndo formam uma Erica coeente da fang ria, CC igualmente M. Replies, op. cit, 9.530, nota 182. * Deve publica, U, 31. 5 La Cit de Dieu, V, 12. a A etimologia do nome vverno de siz regere é dominar a propria carne.? De outro, em relagio 0s siditos, explicita-o pelo termo corrigere: regere & entio agir so: bre a vida dos outros, corrigindo-os.!° Se é verdade que Agostinho nao elaborou uma doutrina politica propriamente dita, definindo o lugar do Estado no interior da ordem universal — nfo entrarei no debate aque divide os historiadores sobre esse ponto!! —, sua contribuigao & teoria cristé do governo foi fundamental. De acordo com os Padres da Igreja, com efeito, que interpretavam a Biblia através da filosofia estéica do direito natural,'? é por causa do pecado que os homens, livres e iguais no estado de inocéncia (status innocentiae), haviamn cai- do na servidio. Deus quis, escreve Agostinho,! que o ser raci feito & sua imagem apenas comandasse (donrinari) as criatura! nais; que comandasse os rebanhos, no o homem. Por isso os primei- 10s justos foram instituidos pastores de rebanhos e nao reis de homens. A dominagio do homem sobre o homem tem sua origem no pecado,!* ‘castigo imposto por Deus, mas também conseqiiéncia necesséria da desordem introduzida no mundo pela culpabilidade humana, B. FUNDAMENTOS TEOLOGICOS DA COERGAQ. A importncia decisiva do “momento agostiniano” na elabora- <0 crista das relagdes de poder e de obediéncia requer que o exami- nemos com atencio. Com efeito, Agostinho nao reuniu simplesmen- te, de uma forma magistral, o ensinamento tradicional dos primeiros + Reges autem dicit, qui earnem suam regunt” (Adbotationes rt Job, 36. "© +[..] rex a rogendo dicitur. Non autem regit, qui non coreigit” (Enar- rationes in Pszlnos, Sl. XLIV, 17, Corp. christ, $. L. XXXVI, p. $05). Ch Ambrosiaste, Com, in epit. ad Romanos XIII, 3: “Principes hos reges dit, qui propter corrigendam vitamn et prohibenda adversa creantur, dei habentes imagi rem, wt sub uno sing cetei”, A qualifcagio do rei como “imagem de Deus” sera cexaminada mais adiante (cf. cap. 3, ©) Bibliografia muito completa it H. Ancon, op. cit, p.47, nota 10 Cf. Carlyle, A History of Mediaeval Political Theory in the West. 2, pp. 4-6. 1 La Cité de Diew, XIX, 15. 144 primeiea causa da servidio & portanto o pecado” (ibid) n Visibilidade Padres. Ele o reorientou profundamente, efetuando um gito que cons- tirai certamente um dos acontecimentos maiores do pensamento oci- dental. Por suas repercussées longinquas na obra de um Arnauld ou de um Pascal, no niicleo mesmo dessa época calculista ou mecanicista em que se organiza o pensamento moderno, todos sabemos que ele poe fem jogo uma concepgao da geaga, bondade gratuita de Deus, ¢ da salvagio. Como se articulam, um 20 outro, o pecado e o Estado? Essa questo nos reconduz aquém da histéria, aquele ponto fatal em que @ ato do primeiro homem ps em risco o futuro da espécie humana. na dramaturgia do pecado original, e na grandiosa encenagio agos- tiniana da sedugao, do sexo e da morte, que devemos buscar os fun damentos de sua teologia politica. Elaine Pagels mostrou bem os desafios do grande debate susci tado, na Igreja primitiva, pela interpretagio do Génesis.!5 Muito es- tranhamente aos nossos olhos, comentar 0 episédio do Jardim do Eden significava nao apenas compreender o passado humano mas definir a conduta dos cristaos em sua época. Desafio moral: que comporta- mento sexual adotar no seio de uma sociedade que autoriza o divér- cio, a homossexualidade e a prostituigao? Celibato ou casamento, con- tinéncia ou moderagao? Desafio politico: que atitude escolher face a0 Estado romano perseguidor? Obediéncia, insubmissio, retirada do mundo? Enquanto, para numerosos Padres, a liberdade sob todas as suas formas (em relagio a autoridade es praticas sexuais dominan- tes, mas também a seus préprios desejos) era a mensagem essencial do Evangelho, esse ensinamento mudou brutalmente com Agostinho: 0 pecado original, “tentativa orgulhosa de Adio de estabelecer seu pr6- prio governo auténomo”,!6 marca o comego da servido do homem. Desde a queda, sua vontade é escrava, impotente para comandar a ‘carne, Dai a necessidade da coergao. A justificativa agostiniana de um poder repressivo inscreve-se numa visio global da degradacio do gé- nero humano. Talvez se tenha esquecido, porém, que essa sombria Jeitura da histéria a partir do pecado original, transformada no n- leo da tradigio crista ocidental, constituiu no séeulo TV uma espan- tosa mutagao do discurso teoldgico. 15 Ch *La politique du Paradis: POccident, le sexe et le péché"; Adam, Eve et le Serpent. " Ciado por E, Pages, “La politique du Paradis: POccident, le sexe et le péché”, p. 128, A eximologia do nome tei 2B a. O LIVRE GOVERNO DE SI Muitos cristaos, nos trés primeiros séculos, acreditavam que, pela virtude do batismo, era restaurada a liberdade descrita no Génesis (1-3) e que eles tinham assim recuperado a capacidade de governar a si mesmos alienada pelo pecado. Iniitil, portanto, submeter-se aos po- deres exteriores. Face A tirania do Império pagio, eles concebiam a Igreja como uma nova sociedade de individuos autonomos, regrando sua vida por uma disciplina pessoal e nao sob a coergao. “A reivindi- cagao de autexousia!? — a liberdade moral de governar a si mesmo —era virtualmente sindnimo de ‘Evangelho’."!* Essa ligagdo entre o livre-arbitrio e o dominio de si jd havia sido estabelecida pelos filésofos greco-romanos. Assim, na tradigao est6i- ca, Epicteto perguntava: “O que é que torna o homem livre de todo entrave e mestre de si mesmo (autexousion)?”.!? Nem a riqueza, nem © poder, mas a ciéncia da vida (episteme tox bion)29 que consiste em s6 querer o que depende de si, em outras palavras, o julgamento atri- buido a Deus. Ao desejar somente 0 ato de sua vontade, € accitando a ordem das coisas desejada por Deus, o sibio subtrai-se a toda do- minacao. Ele é seu préprio mestre, jé que nenhum mestre tem poder sobre ele?! E pela identificagao do poder ao querer — esses dois ter- A esse feminino uilizado bastante curiosamente por E. Pagels(certamente comm base no radical exousia poder, faculdade) convém preferie a forma neutra, ‘muito mais corrente, 10 autexousion. Freqigncia atestada por E. A. Sophocles, Greek Lexikon of the Roman and Byzantine Periods, Nova York, 1900. Cf. a principal fonte na literatura patristica, Origenes, Tratado dos prineipos, Ml l, 6° tratado, “Sobre olivre-arbitrio” (Peri autexousion), SC n° 268, 1980. Esse tra- ado & a exposi¢do mais completa sobre a questio que a antigiidade tardia nos transmitiu. Basilio e Gregétio de Nazianea citaram-no quase inteiramente na Filocalia, ™ B, Pagels, Adame, Bve et le Serpent, p. 159. } Bntvetions, IV, 1, 62. 2 Thid., 645 ef igvalmente 1, 118. 41.Cr. bid. IV, 1, 152, oexemplo de Didgenes: “Didgenes cra live. De que smancira? Nao que rivessenascido de pais lives [., mas porque o era cle pré prio, porque hava reecado tudo que podia cer poder sobre ee e porque ninguém tinha meio de aproximar-se dele, nem lugar onde pegi-lo para reduzi-lo a es 74 Visibiidade ‘mos, veremos, esto no centro da doutrina agostiniana — que se ins- tituia realeza daquele que se basta a si2? Os doutores da lereja ndo podiam evidentemente apoiar esse ideal de autarcia individual, no qual viam a expresso de um orgulho desmedido. Eles deslocaram portanto 0 autexousion da sabedoria pa- i para o terreno religioso, substituindo a ascese do sabio, sua disci plina atlética,23 pela eficdcia regeneradora do batismo. Com isso, 0 modelo do dominio de si nao era mais Sécrates ou Didgenes, figuras solitérias ¢ excepcionais, mas Adio, o primeito homem em que a hu- ‘manidade inteira jé estava contida, ¢ cuja falta a agua batismal havi apagado.?4 Novo paradigma de extrema importdncia: ao substituir 0 homem sozinho (Sécrates, Didgenes) pelo primeiro homem, nao se trocava um modelo singular por um outro; passava-se de uma prati- a individual da liberdade, fundada na ascese racional, a sua reapro- riacao coletiva gracas & agdo sacramental. As implicagdes politicas disso sio evidentes: enquanto a “ciéncia da vida” estéica conduzia a uma relativa indiferenca em relagio as questies coletivas 25 a “fonte de vida” crista serviu de principio a uma reorganizagao radical da vida social, Segundo que regras, em que condigdes os homens podem le- var uma vida auténoma? A formula restrita do monasticismo, expe- rimentada no Oriente desde o século IIT sob uma forma anacorética e depois comunitaria — somente alguns podem por em pratica 0 apelo do Cristo & vida perfeita —, constituiu a primeira resposta a essa as- piracdo. Ela foi estendida a Igreja inteira, no final do século IV, por 2 Tomando a seguir o exemplo de Sécrates, Epicteto sublinha que a atta edo fildsofo, ainda que tvesse mulher, filhos, amigas, para, 6 “a de um homer que vive 56" (ibid, 162} Gh. ibid, 113; 4, 125 6, 1617 (ligado com meleré, cuidado, prt ? Interessar-se por si era “acender a luz da razi0, vase culhar sua alma para reencontrar a efigie que Deus impri 33 iu nela”. Certamente é justificado ver na obrigacio reiterada do dever conhe- cer-se uma heranga do preceito socritico, mesmo se af se misturam influéncias biblicas, * mas importa para 0 nosso assunto fazer sobres- sair uma diferenca essencial: além de sua dimensio mistica, em Gre~ gério € seus sucessores, a procura dentro de si da semelhanca divina, votada a permanecer imperfeita até a morte, fez 0s crist@os tomarem consciéncia de que formavam, no mundo, uma comunidade de um tipo absolutamente novo. Nao apenas, 0 que é evidente, por suas cren- «gas e suas regras de vida, mas porque, fundada na soberania do livre- arbitrio, s6 ela era capaz. de governar-se a si mesma. Assim, Joao Criséstomo (cerca de 354 a 407),35 reconhecendo que a coercio imperial, rornada necesséria pelos efeitos do pecado, era a condigao da ordem ¢ da paz —o mal (violencia, injustica) servindo de remédio ao mal (a guerra de todos contra todos}*® —, acrescenta- ‘va que 2 forca era imitil em relagio aos cristios: “Os que vivem se~ gundo a religido nao tém necessidade de que magistrados 05 corri- jam”.27 Ao temor que rege as relagdes humanas na comunidade pol tica opie-se a livre escolha na Igreja. Nao que ela forme uma comu- nidade perfeita, mas a desordem, se nela ocorrer, deve ser corrigida, sem violéncia, pela persuasio: Ress des cours pp. 146-7. id Sobre platonismo dos padres capadécios que comentam o vrsiculo do Deuteronémio, 15, proseke seautou (acim: atendetbt ips, “aplicactea times smo", ef. P. Courcelle, op ct tI, ppe 101-11 35 Nomeado patriarca de Constantinopla em 397, suas posigdes nio-con- formistas tornaram-no indesejavel a0 poder civil eceigioso, Foi deposto em 403 ‘emorren no exilio, Sobre sua concepsio do Estado e do governo espiriual, ef. E agels, Adame, Eve et le Serpent, pp. 161-7. 236+, se reirais da cidade seus magistrados, nossa vida cai abaixo da dos aniimais selvagens: os homens se dilaceram e se devoram entre si” (citado por E. Pagels, Adams, Eve et le Serpent, p. 163). © Citado por EPagels ibid, p. 164. A etimologia do nome rei ” “Nao somos os donos absolutos de vossa fé, nao co- mandamos como déspotas, meus bem-amados; somos so- mente encarregados do ministério da palavra, e ndo inves- tidos de um poder exterior; cumprimos 0 oficio dos conse- Iheiros que persuadem, ¢ no o de magistrados que emitem sentengas. O homem que aconselha diz. seu pensamento, sem forgar em nada seu ouvinte € deixando-o senhor de fazer de sua palavra 0 que quiser”.3 Por essa distingdo entre o poder exterior ¢ 0 ministério da pala- vvra falada, Jodo Criséstomo nao delimira apenas 0 dominio da jutis- i0 imperial, tragando os contornos de uma sociedade auténoma, constituida de iguais, livres e mestres de si mesmos, e sobre cuja von- tade se apéia o governo. Ele formula, em termos que fardo fortuna durante toda a Idade Média, 0 prinefpio da separagao dos poderes € da superioridade do espiritual sobre o temporal: “Ao rei foram con- fiados 0s corpos, ao sacerdote as almas”.°? Mas, enquanto esta tilti- ma tese sera retomada, a partir do século VII, no quadro de uma ecle- siologia fortemente marcada de agostinismo, a primeira, a0 conte se distancia claramente do pensamento de Agostinho. Condigao de uma vida mondstica voltada para a perfeigio em Gregorio de Nissa, principio de uma disting2o dos poderes que esta- © Ibid pp 165-6. Bis as duas passagens importantes da IV" Homilia sobre Ovias, Jn illud “Vidi Dominum”: *|..] uma coisa € 0 dominio da realeza, outra, 0 dominio do sacerdote. Mas este é maior do que aquele. Pois ndo so as aparéncias que ma- sifestam um rei no sto tampoucoas pedras preciosas fixadas sobre ee e 0 ouro {que o cerca que devem indicar que ele €0 rei. Com efeito, o rei recebew a inctim- bbéncia de administraras coisas da terra enquanto os ditetos do sacerdote so estar belecidos no alto. Tudo que destigares na terra serd destigado no eéu’ (Me. 18,18), Ao rei io confiadas as coisas deste mundo, a mim as coisas celestes. Quando digo ‘a mim, digo ao sacerdote” (4, 37-65, p. 163; passagem mais ou menos idéntica it YV, 1, 53-66, pp. 183-5). “Aa rei foram confiadas os corpos, ao sacerdate a8 al- mass 0 rei perdos 0 salde das divides, o sacerdote, 0 saldo dos pecados, Aquele cobriga (anankacei, este exorta (parahalei) {uJ Aguele dispoe de armas vsives, este, de armas espitituais; aquee faz a guerra aos barbaros, eu, a guerta contra os deménios. Este é um poder maior (arché). Fis por que o rei curva a cabega sob as _mios do sacerdote,e por roda parte, no Antigo Testamento, ram os sacerdotes ‘que ungiam os reis” (5, 13-21, p. 165). 78 Visi lidade belece, quanto a conducio das almas, a autonomia da sociedade cris- 14 segundo Joao Criséstomo, 0 autexousion dos Padres gtegos, in- troduzido como liberum arbitrium na lingua latina, tornou-se com Pelégio"® o fundamento de uma reforma radical da Igreja. Conven- cido de que a remissio dos pecados pelo batismo significava para 0 cristéo, se 0 quisesse, a possibilidade de recuperar sua plena liberda- de de ago, convencido de que ela the permitia, portanto, sempre es- colher entre o bem e 0 mal e realizar sem coergiio a lei divina, Pelé transpondo para o cristianismo 0 ideal ético estéico, exaltava a api dio natural do homem & autonomia, No é em virtude de uma el ‘cio especial, mas por natureza, que os homens eram capazes de im- pecantia — viver sem pecado. Bastava um esforco de vontade para res- tabelecer no presente a inocéncia pura de Adao ¢ Eva. A redengio trazida pelo Cristo completava-se na restauragio do paraiso terrestre. Naturalismo racional, otimista e voluncarista, no qual alguns tenta- ram ver uma prefiguracio do pensamento das Luzes.*! Talvez o pela sanismo, que devemos cuidar para nao ajustar muito apressadamente 8 nossas categorias modernas, tenha sido uma das grandes opcoes, reduzida ao silencio durante séculos, do pensamento ocidental. Sua derrota foi obra de Santo Agostinho, que empreendeu contra Peligio, « depois contra seu discipulo Juliano de Eclanum,* um combate ex- ‘remamente Aspero. Nele assistimos, de certo modo, a0 nascimento do pecado original. 4 Nascido na Ilanda eestabeecido em Roma, onde levava como leigo uma vida de asceta ele fone da cidade em 410 apes a invasio de Alario e refugia-se ta Africa depoisna Palestina. A peeeigo, a eu ver, era uma obrigago para todo cist, cele consderava absueda aida de um pecado orignal que immpedisse homens de progredir por si mesmon. Varia vers condenada, de 411 2418, s0b pressio de Santo Agostinho, sua doutrina constituia primeira heresia do Ox dente cristo, Nio se sabe o que sucedeu a Peigio, condenado & proscrigio,ap6s ter sido expuso de Constantinopl, Sobre o “cas Peigio", ck P. Brown, oP city pp. 403-33, 41. C£.B. Plongeron, “Favel dire que la Délaration des droits de Phommme de 1789 ren 3 'Occident toute sa valeur péagienne?", i L, Hamon (di), Du jansénisme a la lait. Les entretiens d'Auserve, Pais, Maison des sciences de homme, 1987, p. 22 CLP, Brown, op. city pp. 453-73. A ctimologia do nome re , b. A VIRADA AGOSTINIANA: A REVOLTA DA CARNE A interpretagao agostiniana do pecado original ¢ exposta, da maneira mais impressionante, nos livros XIII e XIV da Cidade de Deus. Partindo do problema da morte, punigio do pecado de Adio, Agostinho procura mostrar contra os filésofos platénicos que o mal, para a alma, nao reside no corpo, mas na carne corrompida. Ele dis tingue entio, seguindo $0 Paulo (1 Co. 15,42 ss.) um corpo animal ‘© um corpo espiritual.*3 com esse corpo incorruptivel — nao puro «espirito, mas carne espiritual*# — que ressuscitardo 0s justos, mortos em seu corpo animal. Assim, o mistério da regeneragao pelo batismo 6 seré cumprido apés a morte, pela graca do perdao concedido aos, eleitos.*5 Tendo estabelecido desse modo que a carne nao é mé em si mesma,46 que ela nao é portanto a causa do pecado original, mas que sua corrupgi0, a0 contratio, resulta da desobediéncia de Adio, Agos- tinho € conduzido a expor, com um surpreendente realismo, o contfli- to da vontade e da libido, chave de sua critica do livre-arbite Reconstituamos as principais etapas dessa anélise. Primeiro é preciso recoloci-la em seu quadro tanatologico, jd que é entre 0 pri- meiro pecado ¢ a condenacao & morte do homem que a serviddo se- xual encontra sua significagao. 1. A pluralidade das mortes. Segundo Agostinho, nao ha sma ‘morte, mas varias, O que separa a vida terrestre da imortalidade nao €o limite claro e definido da morte fisica, mas uma sucessio de m tes que precedem e seguem o instante no qual se extingue a sensi © La Cité de Diew, Xill, 23, 590, p. 321. + Ibid., XU, 20, $84, p, 309, * Tbid., XUM, 23, 591, p. 323, Sobre a eficdcia seletiva da. raga cf. XIN, 15, $74, p. 287; XIV, 1,3, p. 349; XIV, 26, 54°55, p. 461. “© Cé nora 37, pp. 525-6, “Corpo animal ecorpo espiritual”. Ese argumen- to édirigido contra Origenes e seus discipulos capadécios, para quem as “tinicas de pele” dadas a Ado antes de sua expulsio do Paraiso (Gin, 3,21) eram 0 corpo decarne. Ao condenar a carne apis 0 pecado, Agostinho a inocenta portanto an tes deste, ¢ pode-se dizer, paradoxalmente, que ele reabilta a carne, como subs tncia material, contra o 6dio do corpo comum aos rigoristascristios e gnésticos, ‘aio que levou um Origenes, de acordo com Eusébio, 3 autocastragio. Cf. E.R. Dodds, Paiens et Chrétiens dans un age d'angoisse, Paris, La Pensée sauvage, 1979, p45, 80 dade vital. A primeira morte divide-se, ela propria, em diversas for- mas: a alma privada de Deus, 0 corpo privado da alma. “A alma morre quando Deus a abandona, assim como 0 corpo quando a alma o dei xa.47 Uma e outra constituem a morte do homem todo,** que no é ainda a morte toral. Quanto a segunda morte, anunciada no Apo- calipse (2,11; 21,8), ela consiste nos tormentos eternos do inferno. Duas mortes, portanto, que correspondem na verdade a quatro espé- cies de morte, a morte completa s6 atingindo os que morrem em esta- do de pecado, no as criangas batizadas ou os marties.!° Estamos muito longe, aqui, das consideragées estéicas sobre a presenga permanente da morte na vida, cada ato da vida nos aproxi- mando de seu termo. Viver, escrevia Séneca, comegar a morrer. Ji Agostinho, fazendo explodir o conceito de morte, afirma que a mor- te, que é 0 contrario da vida (corporal), converteu-se em meio de pas- sar para a vida (eterna). Morrer € comegar a viver, com a condigio de que se tenha previamente vivido na obediéncia 3 lei divina. Assim, ‘enquanto para o pecador a vida se desenrola entre duas mortes, a da alma abandonada por Deus ea vindoura dos suplicios infernais, para © justo a morte nao é senao uma passagem entre duas vidas, a da al- ma disposta por Deus na condigo mortal ea outra, eterna, do corpo espiritual ressuscitado. Punigao infligida aos primeiros homens, a morte — que contém entio todas as mortesS! — transformou-se em natureza para seus descendentes, Assim se estabelece uma ligago seminal entre a morte © 0 sexo, Com efeito, & porque 0 género humano jé estava todo em Adio® — “todos estivamos nesse homem tinicos [..] ana- tureza seminal (natura seminalis) da qual deviamos sait”? — que, por nossa vez, embora nao tendo pecado, estamos condenados a morrer. 233 4 La Cité de Dien, XI, 2, $87, p. 281 * tid © Cf abid, XM, 38 $9 1bid, XML, 4,561, p. 261 Ibid, XM, 12, 571, pp. 281-3. 5 fbi, XII, 3, $59, p. 257. Ibid, XIN, 14,572, p. 285, Aerimologia do nome 81 Mas é também porque a geragdo, doravante, mesmo nos lacos do ca- samento, ndo pode se efetuar sem a concupiscéncia da came: “Por isso as criangas nascidas, no do bem que faz a bondade do casamento, ‘mas do mal da concupiscéncia, da qual 0 casamento faz certamente ‘um bom uso, mas que mesmo assim envergonha esse casamento, 0 diabo as retém na culpabilidade”. Com efeito, ainda que os esposos sejam castos, “a verdade € que, quando se chega a obra da geragio, esse préprio comércio carnal, licito ¢ honesto, no pode existic sem 0 ardor da paixo para que possa realizar-se o que depende da razao e no da paixio”.°° Dar a vida, portanto, equivale a transmitir a mor- te. Estranha contradigdo, sintoma dessa circularidade conflituosa do sexo que esta no centro da critica agostiniana do livre-arbitrio: 0 sexo, pelo qual o homem se reproduz, 6 0 agente mesmo da reproducao do pecado. Em outros termos, é no ato sexual, que nao foi a causa mas, traz.a marca da queda, que se perpetua 0 pecado original. 2. A invengao do pecado original. “Nao fui eu que imaginei o pecado original”, protesta Agostinho em resposta a Juliano de Ecla- num, “A f€ catélica cré nele desde seus comesos.”5® Alega como pro va 0 costume, que remonta aos tempos apostélicos, de batizar as criancinhas. Mas ele se apéia também em fontes escriturais, pa cularmente num versiculo de Sao Paulo, do qual faz. a base inexpug- navel de sua teoria da queda e que ele cita incansavelmente em seus escritos antipelagianos: “Por um s6 homem o pecado entrou no mun- do, ¢ pelo pecado a morte, ¢ assim ele passou a todos os homens, por aquele em quem todos pecaram |...]”.57 Essa frase, que estabelece uma ligagao causal entre a falta de um s6 e 0 pecado de todos, possui aos, olhos de Agostinho uma autoridade indiscutivel. Ele préprio sublinha Brubescunt Sobre esse pudor, enabenscentia, ligado 20 movimento ponténeo dos membeos genta e que constitu, para Agostinho, a prove da rupcio da natureza humana pelo pecado de Adio cf. cidade de Deus, XIV, 16- 26, da gual falarei mas diane. 5 De mupris et concupisconta (418-419), 1, XXIV, 27, BA 23, pp. 115-7 % tbid, (parte composta em 420-421), XM, p. 25, p. 201 57 Rom 5,12; ef. Carta a Hilério (414), IL, 115 De natura et gratia (415), VII, 9; XLE, 48 ete De muptis et coneupiscentia, 1, 1; H, 3 Il, 83 V, 15; VIL, 20; XXI, 37 exes Contra duas epistulas Pelagianorwm (420-421), 1V, IV, 7,BA23. 2 Visibilidade ‘0 quanto sua concepcio do pecado original é intimamente solidéria dela.5® Ora, seus contemporineos liam o versiculo paulino de uma maneira muito diferente, Nao somente os discipulos de Pelégio que, negando a transmissao hereditéria do pecado de Adio, reduziam este 2.um mau exemplo que nao teria acarretado nenhuma corrupgio is- remediavel, mas igualmente os Padres da Igreja. Essa divergéncia deve- se a causas gramaticais, Assim, € preciso examinar a passagem mais de perto, em suas versdes grega ¢ latina. ‘0 texto da Vulgata diz: “|...| pelo pecado a morte (entrou no mundo}, € assim a morte passou a todos os homens, j4 que (it quo) todos pecaram”, Isso corresponde claramente ao texto grego e signi= ficava, tanto para um Joao Criséstomo quanto para a maior parte dos cristdos, que os homens, depois de Adio, haviam sido tocados pela ‘morte porque todos haviam pecado. Propagacio mimética da falta, e ‘ndo contaminagio genética. Quanto a Agostinho, ele se ervia de uma cépia ligeiramente defeituosa, na qual faltava a repeticio da palavra morte. Por isso ele dava como sujeito a pertransiit (“passou”), 0 pe cado mesmo. Mas, tendo consultado 0 grego, ele percebera que it quo, traduzindo eph’o, nio podia se relacionar ao feminino amartia (pe- cado) e explicava com isso 0 relativo como remetendo a Adio, “em quem: todos pecaram” 5? “Se nessas palavras do Apéstolo (in quo omnes pecca- verunt) nao se pode compreender: um pecado no qual todos pecaram, porque em grego, do qual a epistola foi traduzida, a palavra pecado é do género feminino, resta compreender que nesse primeiro homem todos pecaram, porque todos estavam nele® quando ele pecou; donde se segue que a0 rascermos contraimos um pecado que no pode ser apaga- do, a nio ser por um nove nascimento." 5 De muptiis et concepiscentia, I, 3, p. 151. ® Cl. BA 21, nota 71, pp. 636-7: “Le sens de Rom, Vy I Adam, Bve et le Serpent, p. 172. © Grifo me. E, Pagels, ! Contra dus ep. Pelag., IV, 1V, 7, pp. $65-7. Agostinho apéia sua inter- pretagio sobre a auroridade de Santo Hilrio (= em realidade, Ambrosiaster, AD Rom. V, 1 ‘no qual, isto 6, em Ado, todos pecaram’s€ ‘A etimologia do nome ret 33 Para os cristaos ¢ 0s judeus, 0 pecado de Adao havia submetido a humanidade ao reinado da morte. Para Agostinho, ele havia in- troduzido na série infinita das geragdes 0 germe de uma corrupgio definitiva, destruindo a liberdade da escolha moral de que gozara 0 primeiro homem® e entregando-o a tirania da carne. O estado de concupiscéncia — na qual todos sao engendrados —, tal é 0 verdadei- +0 castigo imposto aos descendentes de Adio, por causa de sua deso- bedigncia. 3. Coneupiscéncia e servidao. Foi da vontade, com efeito, e no da carne, que se originou o pecado.6 Mas a culpabilidade transmi- tida por Adio A sucesso dos homens é acompanhada de uma sur- preendente inversio. Enquanto no paraiso a carne foi corrompida pela falta da vontade, doravante é por causa da corrupcao da carne que a vontade € impotente. Adao pecou por ter querido 0 que ele no po- dia ser — viver segundo ele mesmo, desligado de toda obediéncia —, 0s homens esto votadas a0 mal por nao poderem o que eles querem. ‘Ao separar-se de Deus, a vontade, longe de adquirir seu proprio do- minio, caiu na servidao. Nao que cla fosse simplesmente dominada crescent: ‘manifesto que todos pecaram em Ado como em uma mass: pois, tendo ele préprio sido corrompido pelo pecado, todos os que ele engendon si submeddos em su nascimenro a0 peado™ (id, p. 567). Reposta em seu coo texto, porém a citagio do Ambrosiaster€ contatia& tese de Agostino: os ho- mens herdaram de Adio pena de seu pecado, a morte corporal, nioa falta pro- priamente, a morte da alma Cl ibid. nota 43, pp. 817-24. © A liberdade de Adio sendo defnida por Agostinho como “liberta har bend plenam cum immortaltate justi” (iberdade de posui, cor a imor- talidade plenitade da justia), Conia dus es Peli Il, 4p, 319. E nesce sentido que *aliberdade perce pelo Pecado”, sem que of Saparssido do génerohumano (iid). Mas es bran abi conser apesar da pera da lidert nfo consist, na verdad, sento ma adesto ‘oluniria a0 mal “Jes wootade que € lve ara os aos rus, poraie tem razr como mal se ela nda é livte para as bows ages, €porave no fi liberta- tix” — pla graga do Cristo, O exerccio da vontade boa 86 ¢ possve aquele que reccheu sem merito anterior, a graga veedadeicae gratuita que vem do alto” (ibid, M7,» 327). Cf, por exemplo, De nuptiis et concupiscentia Il, XXVIIL, 48, pp. 25. 5, onde Agostinho explica como “uma vontade mé pode sair de um ser bon vontade de um ser procedente do nada, que, quando se afasta de Deus, recai na pura negatividade para a qual, por sua origem, ela tende permanentemente. Cf La Cité de Diew, XU, 6-10. 84 Visibilidade por uma forca superior, a imagem do conffito cléssico entre a razdo € as paixdes, mas — experiéncia absolutamente inédita na culrura an- tiga — porque ela se achava dividida contra si mesma, querendo ¢ incapaz. de querer." “Nao fago 0 bem que quero e cometo o mal que ‘no quero” (Rom. 7,19). Agostinho vé nessas palavras de Sao Paulo, que se aplicavam aos pagios desprovidos da graca do batismo,65 a expresso do tormento interior experimentado pelos préprios cristZos. Aos pelagianos que afirmavam que cada tum, se quiser, pode atingir a perfeigio, cle responde que os homens nio fazem 0 que eles querem. Sua vontade depara-se com uma resisténcia inerente ao ato mesmo de ‘querer, como se the faltasse, para efetuar-se, a vontade de querer. “De ‘onde vem esse estranho prodigio (rtonstrimt)? [+] A alma ordena & alma, isto é, a ela mesma, querer, ¢ cla nao age.”*6 Prodigio, mons- truosidade, certamente, para os contemporincos de Agostinho, liga- dos a0 ideal antigo do dominio de si no qual coincidem 0 querer e 0 poder, mas no para quem conhece as causas da infirmitas humana. Por isso Agostinho recusa espantar-se com isso: “Essa vontade divi- ida que quer pela metade, e pela metade ndo quer, nio é de maneira alguma um prodigio: € uma doenga da alma”®” cujo sintoma geral, ‘que ele descreve com uma precisio clinica, consiste na insubmissio dos Srgios sexuais. No paraiso, o homem ¢ a mulher foram criados para engendrar “sem a presenga da vergonhosa libido”, os drgiios da gerasio obe- © CEH, Atonde, La Crise dela culture, cap. IV: “O que & a liberdade?", pp. 205-6, que vé na prablemétics agostniana da “ardente luta” no interior da ‘propria alma o momento em que a liberdade, eonceito exclusivamente politico na ntigiidade, foi experimentada na soiléo completa e pide assim entrar na hist ria da filosofia. © Cf. P. Gorday, Principles of Patrstic Exegesis: Romans 9-11 in Origen, Jobn Chrysostom and Augustine, E. Mellen Press, 1983; E, Pagels, Adame, Eve et 1e Serpent, . 169; “La Politique du Paradis", p. 132. Comparar, no entanto, com Paulo, Ga, 5317, sobre a iberdade ers: “A carne apetececontea 0 epiito © 0 ‘speito contra a care; hi entre ees antagonism, de modo que aio fazes © que desjaiis™ Confessions, VI, 9,21, PUF, p. 193, © Ibid p. 194, La Cité de Dieu, XIV, 23, p. 445. Cf. Contra llianuon (421), 1V, 11, 575 Contra duas ep. Pelag. XVI, 4. A etimologia do nome rei 85 decendo as ordens da vontade. Que ha de impossivel nisso?, escreve Santo Agostinho. Nao movemos nossos outros membros quando ‘queremos? E no conhecemos certos homens, dotados de uma cons- tituigio diferente dos demais, capazes de realizar com seus corpos atos ‘quase inacreditiveis?®° Se em nossos dias, portanto, em homens que vvivem na carne corrompida, “o corpo demonstra uma obediéncia admiravel por meio de estados e movimentos estranhos a seu comportamento na- tural, por que ndo acreditarfamos que antes do pecado [+] ‘0s membros humanos, para propagar a raga, teriam podi- do obedecer & vontade humana sem a menor voliipia?”.”? Tendo demonstrado por inducio a verossimilhanga de uma se- xualidade sem libido em Adio e Eva, e dissociado assim o sexo, fei para a reprodugio, da concupiscéncia, pura desordem dos sentidos, ‘Agostinho pode explicar por que o ideal adémico de um perfeito do- io de si é doravante inacessivel ao homem: é que este experimen- ta dentro de si, queica ou nao, a atividade da libido”! que se revela pela excitagao dos érgéos. Contrariamente a interpretagao origenia- na,” 0 pecado nao encerrou o homem na materialidade do corpo. Fle transformou 0 corpo décil de Adio em uma carne rebelde. © H44 uns que mexem as orclhas,seja uma des, seja as duas, Outros, sem mover a cabeca, abaixam sua cabelera inteira sobre a testa e levantam como que- rem. Alguns, 2p6s terem ingerido de uma forma inveross{mil os mais diversos ‘objetos, por uma leve pressZo sobre o estOmago reiram intactos, como de um sco, fs que eles querem. Outros imitam e reproduzem tio perfeitamente 0 grite dos pa sar0s, dos animais eas diversas vozes humanas que nos equivocariamos se ndo 0s vissemos. (Et.)" (La Cité de Dieu, XIV, 24, 51, p. 453.) % Ibid., p. 49S. Cf. Comara duas ep. Plag., 1, XVII, 34, as diferentes hip reses propostas nos pelagianos. 7 Para a nile detalhada dessa nogio (éuiizada por Cicero), ef. La Cité de Dieu, XIV, 15-16, pp. 423-7: “esse terme desiga gealmente todo deseo. {..] Enretanto, quando se fala de libido sem nomear 0 objeto desejado, persis ‘quase sempre na exciacio das partes vergonhosas do corpo, Esse dejo nfo se contents de apoderar-se do corpo inteiro [ele agita homem todo, u rmisturando as paixdes da alma ¢ 05 apettescarnais pata provocar essa voip, a maior de todas entre as do corpo 7CL. supra, p. 80, nota 46, Sobre a iterpretagfo rigeniana das “tnicas 86 Visibilidade “Foi com esse combate que nascemos, tirando da pri- meira falta um germe de morte e suportando em nossos membros os assaltos da carne.”73 ‘Ao entrar dese modo em conflito consigo mesmo, Adio nao perdeu sua capacidade de autonomia, Para Agostinho, ao contrério, € por ter pretendido ser auténomo que ele foi punido. Sua verdadeira sléria, com efeito, consistia na obediéncia, néo na liberdade. Ele man- dava em si mesmo somente na medida em que respeitasse manda- ‘mento divino. A ordem dada por Deus —a proibigao, facil de obser- var, de uma Gnica espécie de alimento entre outras — nao tinha por finalidade sendo ensinar-Ihe “a pura e simples obediéncia, que é a srande virtude da criatura racional”,7# Adio, em suma, era livee en- quanto accitava sua sujeigio. Sua falta foi ter acreditado que o prin- cipio de seu dominio de si residia em sua prépria vontade. Sua que- da, a partir de entdo, foi o efeito natural de sua insubmissio. Em ver, de tornar-se plenamente seu mestre, “ao entrar em desacordo consi- ‘go mesmo” ele caiu em uma dura servidao, Segundo uma férmula que Agostinho repete incansavelmente: “Que pena foi infligida & desobe- iéncia, sendo a desobediéncia mesma?”,’5 Dafa vergonha que sentiram Adio ¢ Eva & visio de seus mem- bros vergonhosos que antes nio 0 eram. “Que significa o fato de que, apés terem colhido 0 alimento proibido, quando a transgressio do preceito foi cumprida, o olhar deles se volta para esses membros? Que fendmeno novo, deles ignorado, percebem ai, que forga sua atengao? [..] Nao é que ambos, ele num movimento a des- coberto, ela numa sensago oculta, experimentaram entio, a0 contririo de um controle da vontade, a desobedigneia esses membros sobre os quais, de todo modo, como sobre de pele”, cf PF, Beatrice, “Le niche di pelle. Amtiche lettre di Gen, 3, 21" i La tradizione dell enkrateia, Arti del Colloquio interazionale Milano, 20-23 aprile 1982, Roma, 1985, pp. 433-84, 3 La Cité de Diew, XI, 13, p. 283. > Ibid, 20, ppe 309-115 ef. XIV, 15. 75 Ibid XIV, 15, p. 421. A etimologia do nome 87 ‘8 outros, deveriam ter exercido sua dominagio ao sabor de sua vontade? Experiéncia bem merecida, jé que eles mes- _mos nao haviam obedecido a seu senhor.”76 ‘A vergonha (pudor) suscitada pelo despertar no homem da libi- do indica, nao a descoberta de sua nudez, mas a perda de seu poder sobre seus Srgos sexuais. Incapacidade de obedecer-se a si mesmo, da qual a libido é 0 sin- toma; tal é, para Agostinho, a condigdo decaida do homem que jus- tifica 0 uso da coergio. Adio, no paraiso, vivia como queria na me- dida em que, querendo o que Deus ordenava, comandava seu proprio corpo. Por ter acreditado que o efeito do querer prendia-se & vontade mesma, ¢ nao a harmonia da ordem na qual ela se inscreve, ele per- deu, nao cerramente sua faculdade de querer, mas o poder de fazer 0 que ele quer. “© homem nao vive mais como ele quer.”77 Impossivel coincidéncia de si consigo — somente 0 justo o conseguira, no outro mundo, uma vez liberto da morte, do erro ¢ do sofrimento — que carrera uma inversao das relagdes entre poder ¢ vontade. © poder ndo é mais a conseqiiéncia de uma vontade que obedece, mas 0 meio de coagi-la a obedecer. Se bastava a Ado querer o bem para exercer seu poder, é preciso que os homens submetam-se a um poder para serem capazes de bem querer. Desse modo Agostinho apaga o limite, tio rigorosamente tracado por Jodo Criséstomo, entre a autoridade espiritual ¢ a coercao secular. Os cristios nao formam uma comuni- dade a parte que, sob a condueio do bispo, dependeria apenas do zgoverno da palavra. Como o resto dos homens, eles sio passiveis de ‘coergao fisica, Disciplina: essa palavra adquire, em Agostinho, um sentido novo, Nao designa mais o ensinamento pelo qual se perpetua uum modo de vida tradicional, mas “um processo essencialmente ati- vo de severidade educativa”,® que recorre a forga para permitir a obra da persuasio. O Estado, enquanto érgio de repressio, tem portanto seu papel a desempenhar na disciplina apostélica. 7 Contra duas ep. Plag., 1, XVI, pp. 373-5: ef. La Cité de Diew, XIV, 17, pp. 427-9, 7 Lux Cité de Diewy XIV, 24, p. 455. 7%, Brown, op. city p.279. 88 Visbilidade Foi essa concepsao do governo como instrumento de disciplina ‘em vista da salvagao, subordinando a violéncia a pregagao, que se imps nos séculos seguintes contra a aspiragao dos primeiros cristaos uma vida auténoma, O modelo da guerra e da conquista, através do qual a antigdidade havia analisado as relagoes de poder — seja para delimitar o espago da cidade, regido pela lei, no interior de um mun- do hostil, seja para legitimar, no seio da cidade, a divisdo entre mes- tres e escravos —, foi substituido pelo da disciplina. Deslocamento da ‘guerra para o plano moral: esta deixava de ser um fendmeno do mun- do, inscrito nas relagdes permanentes entre os homens. Ela encontra- va set nticleo na divisio do homem consigo mesmo. Por isso a solu- ‘io nesse estado de conflito nao era politica, mas terapéutica, O Es- tado tinha por tarefa combater 0 mal que fazia de cada homem um inimigo pata sie para outrem, Para além do endurecimento que 0 pensamento agostiniano representa, o encontro, através da doutrina da concupiscéncia, da medicina das almas com a disciplina dos c ‘pos constitui certamente sua contribuigao mais inovadora na histéria do governo. Fa partir dela que a Igreja, que opunha inicialmente 0 regimen & dominago, pade pensar, em termos de violéncia necessé- ria, as condigdes de um regimen cristo. Primeira de todas: a trans- formagao do rei guerreiro em ministro do sacerdécio. Esta, no entan- to, supde uma outra etapa doutrinal que consiste na invengao, por Gregério o Grande, do conceito de rector. C.O RECTOR CRISTAO SEGUNDO GREGORIO 0 GRANDE Como escreve H. Liebeschiitz, “foi Gregorio o Grande, € nao Santo Agostinho, que criou a forma de pensamento da literatura po- litica medieval”.79 Se a importincia de Agostino é reconhecida, ain- dda que de maneira puramente negativa, pelos historiadores do pen- samento politico, nenhum, entretanto, concede a Gregério 0 menor lugar. Isso se deve certamente a duas razdes simples. Gregorio ndo escreveu nenhum tratado de carater politico: sua obra consiste, es- sencialmente, em comentarios biblicos, meditagées morais e prescri- % Mediaeval Humanism inthe Life and Works of fobs of Salsbury, p. 35. mologia do nome rei 39 ges pastorais.*” Mas, sobretudo, ele € considerado como o inven- tor da concepgio ministerial do poder secular, ou seja, da doutrina que subordina o poder civil & autoridade espiritual, denominada por HX. Arquillire de “agostinismo politico”.81 Com ele se realizaria, ‘em suma, a negacio do politico na qual a Idade Média, por muito tempo, teria se encerrado. E por seu caraver antipolitico que ele teria deixado uma profunda marca na teoria governamental dos séculos posteriores. Essa interpretagio, que tende a fazer de Gregério o Grande um campetio da teocracia, suscita indiscutivelmente sérias teservas.*? Con- sideremos porém, provisoriamente, que ela oferece um quadro geral aceitavel. Com efeito, 0 problema aqui nao é saber em que medida Gregorio na realidade levou em conta a autonomia dos reinos em re- lacdo a Igreja, mas antes mostrar qual foi sua verdadeira contribui- Gao a hist6ria do conceito de governo. Ora, esta conheceu, por sua riginalidade, uma etapa decisiva: Gregério foi o primeiro, desde a queda do Império do Ocidente, ocorrida em 476, a elaborar uma teo- ria crist3 do regimen. Sua experiéncia de pastor e de administrador 0 levou a redefinie, com grande sagacidades as regras da bona admi- © Comentirio sobre o Primeiro Livro dos Reis; Diélogos: Homilias sobre 12s evangellos: Homilias sobre Ezequiel; Morais sobre J; Regra Pastoral. CE. re- feréncias i Régle pastoraley ti, p. 9. "Ck L’Augustinisme politique, p. 124, sobre a atitude de Gregétio em re- lagZo ao imperador bizantino, e sobretudo pp. 131-41, em relagio aos teis me rovingios: “[. a confiar aos eis uma miss religisa, ele conferia a insttuiglo régia um cariter que devia [.-] absorver aos poucos sua independéncia e seu di- reito naturas. [1 A realeza era orientada, por iss0 mesmo, para uma sucigio 8 aucoridade da Tera” (p. 141). Ck. igualmente p. 120: “[.] Gregério o Grande ‘nos parece a testemunha mais representativa da transi¢fo do pensamento agos tiniano ao que chamamos 0 agostnismeo politico”. ® CEM. Reydellet, op ct, p. 463, nota 70, ep. 472: “Ninguém mais dis tante que ele da idéia de opor oespicituale 0 temporal; ninguém & menos que ele fo precursor de Gregério VII"sef. igualmente p. 478: “Fazer dee [..| um apéstolo daquilo que P. M. Arcari[Idée esentimenti cap. Vi] chamou ‘a total substituigio do Estado pela Igreja’é puro anacronismo. Certamente © pensamento de Grego rio € influenciado, em parte, por sua fungao e sua situagio. Mas ela 0 € também pela vontade de dar uma resposta 3 questio que o mundo de seu tempo coloca, ddominado pela consolidacio dos regna e pela ruina consecutiva da vocagio uni versal do Império”, 30 Visibilidade nistratio regiminis.§3 Doutrina que nao pretendia a no constitui, sob muitos aspectos, um verdadeiro comego. Oriundo de uma familia senatorial, Gregério (cerca de 540 a 6604), que havia recebido a educagio de um jovem aristocrata, foi pre- tor de Roma antes de fundar, por ocasiio da morte de seu pai ¢ gra- gas a venda dos bens familiares, varios mosteiros na Sicilia ¢ em Roma. Arrancado pelo papa a sua vida ascética, foi enviado como rnincio (apocrisiério*) a Constantinopla, onde permaneceu seis anos (579-585), Ao retornar, eleito abade de seu mosteiro romano, foi con- tra sua vontade que obteve, em 590, 0 cargo pontificio.** O titulo de “papa”, entio, nao possui a significacdo que tera mais tarde. Primus inter pares quanto a autoridade espiritual, Gregorio nao é muito mais, do que 0 bispo de Roma, juridicamente dependente ainda de Cons- tantinopla, mas ameagada pelos lombardos. Esse isolamento, numa Italia desconjuntada, confere 20 papa “uma posi¢ao de quase sobe- rania temporal”,®5 nao sobre um Império cristo que ainda nao existe, ‘mas sobre sua cidade, Assim se misturam, em sua fungio, preocupa- ‘Ges espirituais e seculares que no permitem opor, como se faz com freqiiéncia, administracdo episcopal e poder politico. A cura ani- ‘marum &, no sentido forte do termo, uma tarefa de governo. Dai o imenso interesse que oferece a Regra pastoral, escrita por Gregorio ‘em 591, na qual, descrevendo seu estado de espirito face a0 cargo que recebeu, ele explica, em quatro livros, quais regras devem presidir a0 exercicio do ministério pastoral. Esse texto, que conheceu uma vas- tissima difusio, constitui a certido de nascimento de uma figura iné- dita, mas prometida a um rico futuro, na teoria do governo: a do rector cristao, Esse termo era de uso freqiiente no vocabulitio juridico impe- rial, no qual designava 0 governador de uma provincia. Do mesmo modo, ele era seguidamente empregado, no século VI, como sindni- de, mas que ® Morales, XVI, 26, PL 76, col. 374 * No império bizantino, o oficial encarzegado de levar as respostas do iat perador. (N. do T.) 1 Base resumo serve-se muito de M, Banniaed, Gendse eulturele de Eu rope, pp. 150-1 5M, Reydellet, op. city p. 444. ‘A ecimologia do nome tei a mo de rex ou de dominus.66 Mas encontramo-lo muito raramente aplicado ao titular de uma fungao eclesiastica. Ora, Gregorio utiliza- fo mais de quarenta vezes, no segundo livro da Regra, no lugar de pas- tor ¢ de sacerdos.87 Surpreendente apropriagio de um conceito estra- nho, até entéo, ao vocabulério pastoral, que levanta dois problemas distintos. Primeiro, de que maneira Gregério foi levado a deslocar esse termo do campo politico a0 campo religioso, para designar 0 epis- copus? Segundo, pode-se inferir da ambivaléncia da palavra rector que a Regra foi escrita “tanto para os reis quanto para 0s prelados”?88 Guia de conduta pastoral, nao seria ela, de maneira mais geral, 0 p meiro Espetho dos governantes da época merovingia? O estudo das fontes de Gregério permite responder bastante fa- cilmente & primeira questio.8® Com efeito, sabe-se que, embora se inspire abundantemente em sua riquissima cultura, Gregério s6 faz referéncia ao segundo Discurso de Gregério de Nazianza:™ este il mo, que a principio havia evitado o cargo episcopal, procurava just ficar-se mostrando as servidées e as altas qualidades que ele implica. Hi portanto uma evidente contiauidade entre esse argumento e o da Regra. Ora, Gregério, muito provavelmente, nao lia em grego. E atra- vés da tradugio latina de Rufino?! que ele conkecia a homilia do na- ianzeno. Pode-se observar, a partir de numerosos exemplos, o papel ddesse intermediério entre os dois Gregérios.°2 Mas o importante, para ‘nosso propésito, reside no fato de que Rufino traduz frequentemnente por rector formas diversas do verbo archein ou do nome arché. Ha SCE R.A, Markus, “Gregory the Great's Rector and his Genesis”, p. 138. © CEB, judi, Inteoducio & Rigle pastoral, p. 63 MM Reydellet, op. cit, p. 463. ' Sou devedor, plas explicagdes que seguem, ao excelente artigo jf citado ‘de R. A. Markus; ef. igualmente B, Judie, op. cit, pp. 26-2, para um inventério completo das fonts pregase latinas da Regra Ch. supra, parte I, cap. 1, pp. 27-30, % Rufino, Apologetica, CSEL, t. 46, Viena, 1910; sobre esse autor, trad tor igualmente de Origenes, e que foi vitima, na tradicio ulterior, da condenacio deste por Justiniano em $53, ef. G, Bardy, artigo “Rufino”, DTC, 1939, col. 153- 160. CEB. Judie, op. ct, p. 32. 2 Visibilidade aqui bem mais do que um simples acontecimento lexical. Com efcito, a palavra rector arzasta consigo, na versio rufiniana, todo um com- plexo de idéias que formam a eclesiologia de Gregério de Nazianza. Num de seus Discursos, o Padre grego retoma o tema paulino da Tgreja como “corpo do Cristo”, mas fazendo-o sofrer uma inflexio muito significativa. Enquanto Sio Paulo escreve: “Foi ele [0 Cristo] que deu 4 uns ser apéstolos, a outros ser profetas, ou evangelistas, ou entio pastores e doutores [..., tendo em vista a construgao do Corpo do Cristo” (Ef 411-12), insistindo assim, ao mesmo tempo, na diferen- ciagio funcional ena solidariedade orginica necessarias a0 bom fun- cionamento da koinomia crista,°® Gregorio de Nazianza enfatiza a subordinagao dos membros inferiores do corpo as partes motoras.°4 ‘A imagem do corpo mistico do Cristo vé-se assim reinterpretada por Gregorio num sentido platOnico: a diferenciagao das fungdes proce- de nao da difuso dos dons do Espirito dentro da Igreja,°5 mas da submissio do corpo a alma, ou da alma a razio,%® segundo o modelo cde uma hierarquia natural. Os rectores (isto &, 05 pastores e doutores da epistola de Sao Paulo) comandam, e todos os demais Ihes devem. obediéncia, “A mulkiplicidade dos ministérios paulinos é reduzida a dois: 0s governantes ¢ os governados, sua relagio figurada no lugar comum filoséfico do superior que controla o inferior em virtude de uma diferenga de natureza. Por um passe de magica, certamente ins- tintivo, Gregorio de Nazianza reduziu a ecclesia polimorfa de SA0 Paulo a um simples modelo ‘politico’.”97 Esse texto, é verdade, ndo é citado na Regra pastoral.?* Mas R. |A. Markus estabeleceu que certas passagens das Moralia in Tob, nas °3CE.igualmente 1 Co, 12,12-30;sobre o conceit paulino de koinomia, que significa “comunhio” e *comunidade”, ef asexplicagdes muito esclarecedoras de 5. Breton, Sui Paul, Paris, PUB, col, “Philosophies”, 1988, pp. 95-101 * Discurso 3, eadugdo de Rufino citada por R. A. Markus, at. cit, p. 140 {8 ocorréncias de rector si grifadas por mim CLI Co. 12411. R.A, Markus, p. 1405 el Plato, Republique, VI, 431 a, p. 183; IX, 590 ce pp. 3545, 27R.A, Markus, pp. 14041 °* CE, no-entanto, as aproximagies que B. Judie sugere, op. cit, p. 31, €om, 2,6, 113-17 €3, 10, 135-42, A-etimologia do nome rei 93 ‘quais Gregério examina a representagio organolégica da Igeeja, con- tinham indiscutivelmente vestigios dele.?? Com isso, ndo apenas 0 conceito de rector, aplicado aos bispos, provém da traducao de Ru ‘no, mas sobrerudo, por sua origem nazianzena, ele introduz, uma di mensio autoritéria na doutrina do governo pastoral. Despolitizaga0, aparentemente, de um termo que designava até entio os derentores do poder civil; politizagio, em realidade, da funcao episcopal. O deslo- ‘camento semdntico da palavra corresponde ao desmoronamento das estruturas administrativas do mundo imperial. Mas ele permite tam- bbém conciliar a dogura do pastor, que vela pela salvacao dos figis, com © rigor da disciplina agostiniana, Dai — mudanca decisiva no pen- samento medieval — um novo esquema de organizagao da socieda- de, hierarquicamente dividida em ordens. Santo Agostinho havia di tinguido trés categorias de cristdos, segundo um critério sexual! pregadores, castos ¢ casados. Foi numa de suas Homilias sobre Eze- quiel,"” posteriores & Regra, que Greg6rio introduziu pela primeira vex a nogio de ordo a propésito dessas categorias, criando assim o modelo erfuncional a partir do qual se pensara a sociedade feudal,!02 mas desde as Moralia ele afirmava que a Igreja, imagem do mundo, € composta de ordines'03 — ordens que se reduzem a dois grupos principais: de um lado 0 leigos, de outro 0s rectores, Compreende-se assim por que a Regra, se foi redigida a inten- io dos bispos, pOde ser considerada muito cedo como um manual para 0 uso dos reis. No final do século IX, Alfredo o Grande, rei de ‘Wessex, fez dela uma traducdo em velho inglés! que enviou a seus Dispos: surpreendente inversdo dos papéis que ilustra a solidariedade das fungies “reitorais”. Um século antes, Aleuino estabelecia um pa- ® Morales, XIX, 14, 23; XXM, 22, $3; cf, art. citado, pp. 139-40, 109 CE. G. Folie, “Les trois categories de chrévens. Note sur 'emploi du mot raepositus”, L’Avnée théologique augustinienne 49-50, 1954, pp. 77-96; F.Cha- tillon, “Tria genera hominum”, Revue du Moyen Age latin 10, 1958. 1011, 4, 5-6, $C, n® 360, pp. 193-7. 1°2 CE. G. Duby, Les Trois Ordres ow L'imaginaire du féodalisme, p. 106. "9 CE. XL, 12, 20 — 13, 215 1V, 30, 59 — 31, 61 '©* Hierdeboe (Shepherd's Book}, ed. H. Sweet, Londres, 1871-18725 ef. B Jodi, op. cit, p. 100, 94 Visibiidade ralelo entre a obra de Gregério, guia dos bispos, ¢ seu préprio trata- do De virtutibus et vitis, enderegado ao conde Guy.!9 Essa referén- cia, esereve B. Judic, permitiu “um deslocamento no uso da prépria Pastoral do speculum destinado ao bispo para o speculum destinado 0 principe”. !9 Depois de Alcuino, com efeito, ela aparece citada em ‘numerosos Espelhos dos principes: a Via regia de Smaragde de Saint- Mihiel, 0 De institutione regia de Jonas d'Orléans, 0 De rectoribus christianis de Sedulius Scotus, 0 De regis persona et regio ministerio de Hinemar de Reims etc.1°7 Na verdade, era a segunda parte do Ti vr0, sobre a conduta exigida quando se chega ao regimen — tendo Gregério insistido inicialmente sobre a “pesada responsabilidade de governar (pondus regiminis)” "8 —, que melhor se prestava & exorta- ‘gao moral dos principes.'°? Em particular, 0 jogo de palavras, retoma- do de Agostinho, non pracesse sed prodesse — “nao comandar, mas ser til” 10 —, rornou-se um lugar-comum do género. Duas razdes cexplicam facilmente essa leitura “politica” da Regra. Ela decorria pi meiramente do fato de que 0 papa, depois de Gregorio de Nazianza, havia definido a imagem do pastor num quadro conceitual de origem politica. Mas a extensibilidade do conceito de rector deve-se igualmen- te —e isso o distingue de Santo Agostinho — a indiferenga de Gre- . Enquanto Agostinho PL 101, col. 613-638. 4 B, Judie, op cits p95. 10” bid, pp. 96-100. 1 Régle pastorate 1,3, pp. 136-40. 409 As parts Ile IV consttuer um manual de pregagio —o rector eclesis- tco rendo, acima de tudo, um praedicator (ef. B. Judi, op. cit, pp. 64-70) — que no concerne ao dirigente secular. 110... 08 que drigem (praesent) devem ter presente no pensamento, nd0 a autoridade que seu posto confere, mas a igualdade de sua condido, € ndo se ‘egoziae por comandar 0s homens, mas por ser-Ihes til (nec praesse se hominis ‘guudeant, sed prodesse) (Il, 14-47, p. 204). C, Agostinho, Sermo 340, PL 38, cal. 1484, e outros locas citados por B. Judie, op eit, p. 47, nota 2; f igualmente Gregorio 0 Grande, Morales, XXI, 15, PL 76, col. 203. A formula verifica-setam- bém na Regra de Sio Bento (64, 8). Cf. Y. Congae, “Quelques expressions tra- ditionnelles du service chrétien", L’Episeopat et rEglise universlle, Paris, 1962, pp. 101-5 (0 topos praeesse-prodesse). A etimologia do nome rei 95 buscava ancorar as instituigies de coergao civil na condicio decaida do homem, Gregério s6 se preocupa com as implicagdes morais do governo,1!! Essa atitude resulta certamente da evolugio das condi- g0es historicas. “Greg6rio”, escreve M. Reydellet, “inaugura o tercei- ro periodo da politica crista desde o fim das perseguigdes:'" 0 pri- meio havia sido o das construgées da época constantino-teodosiana (século IV}, bascado na colaboragao entre a Igreja ¢ 0 Império; 0 se sgundo, 0 das invasdes ¢ do fim do Império do Ocidente {século V) — Agostinho morren, recordemo-lo, em 430 —, que viu as Igrejas lo- cais recolherem-se em si mesmas. O terceito, inaugurado no final do século Vi, era aquele em que a Iereja cobrira 0 mundo. Nao havia mais lugar, em seu seio, para uma autoridade secular.’!3 Dai uma representagio nova da sociedade humana. Apds a queda do Impé a cristianizagio do Estado fora transferida a um futuro indefinido. Agostinho, entao, quis mostrar a distancia insuperavel entre a cidade celeste —a dos homens que vivem segundo a lei de Deus —e a cida- de terrestre dominada pelo amor de si.!14 Somente o juizo final se- pararia essas duas cidades inextricavelmente misturadas no mundo. Acessa visio conflituosa, Gregério sobrepde “uma concepcio eésmi- ca que faz da sociedade humana a imagem da sociedade celeste”.115 Contrariamente & cidade de Deus, em movimento através da hist ria, a sociedade cris’, reflexo de uma ordem imutavel, instala-se as- sim na imobilidade. “Com Gregério, a fungio de modelo, a idéia do 48 CER. A. Markus, “Gregory the Great on Kings: Rulers and Preachers im the Commentary om I Kings", p. 16. NEM, Reydele, op. ct, p. 467. 118 bid, p. 467: “Entre um rei e um bispo que trabalham pela salvasio de seus ‘siditos’, no hd mais aquele fosso intransponivel que separava o bispo admi- nistador de uma Igrcia locale 0 imperador representante de Deus junto a Igreia tuniversal”s cf igualmente as citagies de Gregério, Comentdrio sobre 0 Primeiro Livro dos Reis, 2, 59, 3, 137, i R. A. Markus, “Gregory the Great on Kings", p18. 8 La Cité de Diew, XIV, 28, p. 465: “Dois amores fizeram das cidade: © amor de si até 0 desprezo de Deus, a cidade terrestre; 0 amor de Deus até 0 desprezo de si, a Cidade celeste. Uma se glorifica nela mesma, a outra no Sen Uma pede sua gléria aos homens; para a outra, Deus, tstermunha da conscién- «ia, ésua maior gliria”, 5M, Reydellet, op ets, p. 493, nota 164. 96 Visibilidade bom governo passou do Império ao Paraiso; ela remontou da terra em diregao ao Céu.”""6 Deslocamento que leva a uma interiorizagao das regras do governo: nao se trata mais simplesmente de assegurar Fungdes de disciplina, mas, através da humildade exigida pelo justo exercicio do regimen, de chegar & mais alta virtude. Os reis tém vo- cago a santidade.'” Desse modo, juntam-se, sem se confundir, 0 oficio do pastor das almas e 0 do guardiao dos corpos. 6 Ibid, p. 494, 7 A realeza metaférica dos santos corresponde, em Gregorio, a santida- de prometida a0s tes justo. CE sobze esse ponto M. Reydellet, ibid, p. 467 € pp. 479 35, 97 Capitulo 2 REI SABIO E REI PIEDOSO A. A FIGURA CINICO-ESTOICA DO REI SABIO. Ao inscrever desde o principio a fungao régia na ordem ética — rex a recte agendo —, Isidoro de Sevitha nao faria senao servir-se do modelo cinico-est6ico do rei sabio, de origem socrética.! Ha uma ten- déncia de 36 estudé-lo através de sua transposigo platénica na figu- +a sublimada do rei-filésofo. Ora, este iltimo, formado por uma lon- ga e dificil aprendizagem de contemplar as Idéias, das quais retira, a fim de nela fazer reinar a harmonia, a ciéncia do governo da Cidade, dispde dos homens segundo as regras de um saber superior. Muito diferente € o rei sibio, que governa pelo exemplo de suas virrudes. Modelo vivo mais do que monarca esclarecido. F com esse titulo que SGcrates € designado por Epicteto como o mestre do governo dos ho- mens (anthropon arché) numa passagem importante dos Discursos” ‘em que demonstra a um magistrado a inanidade de seu poder: “— Mas posso langar na prisdo quem eu quero, — Como podes lancar uma pedra. — Mas posso mandar espancar quem eu quero. — Como podes espancar um asno. Nao ¢ isso gover- nar homens (anthropon arché)”. Primeira indicagao capital: o governo dos homens nada tem a ver com a ago violenta que se pode exercer sobre as coisas (uma pedra, ‘um animal). ' CEP, Hador, “Furstenspiege!", col. 620; M. Reydellet, op. cit p. 577. 2 Enretiens Il, 7, 33-36, p. 3. Rei sabio e rei piedoso 99 “Governa-nos como seres racionais (logikon emon) mostrando-nos 0 que ¢ itil, e seguiremos. Mostra-nos 0 que é prejudicial, e nos afastaremos disso." Segunda indicagio: & na medida em que é dotado de razio que 1 homem € suscetivel de ser governado. De que maneira? Nao por discursos que buscam persuadir, mas pelo exemplo que desperta 0 desejo de imitar. Deiknumi, mostrar, tem primeiramente 0 sentido de “fazer ver”, “produzir & luz”. “Trata de tomar-nos imitadores fervorosos de tua pes- soa, como Sécrates o fez em relagdo a sua. Ele sim é que guiava os homens como homens (os anthropon archon), pois os dispunha a submeter-Ihe seus desejos, suas aversbes, suas propensées, suas repulsas.” © verdadeiro poder, assim, nao se exprime pela interdigao € a ameaga, ele se manifesta sob a forma da incitagio moral. “Faz isto, nao faz aquilo, caso contrério langar-te-ci na prisio’: ndo é assim que se governam seres racionais.. Mas deste modo: ‘Faz isto conforme Zeus 0 ordenou, caso, contrario sofreras um castigo, um prejuizo’. Que prejuizo? Nenhum outro sendo 0 de nao ter cumprido teu dever. Des- truirds em tio homem fie, sibio, moderado.” £ na relagao que o homem enquanto homem (artthropos) man- ‘tém com sua natureza racional que adquire validade a obrigagao, vetor da agao governamental. Somente o sibio é rei porque, dominando a si mesmo, ele inspi- + n0s outros o desejo de imité-lo. A etimologia agostiniana do nome rex, que Isidoro de Sevilha condensa, apenas reatualiza essa antiga concepcdo? Aparentemente sim, se nos ativermos as virtudes do prin- cipe (domfnio de si, justiga, cleméncia) que pertencem & ética indi- vidual. Parece-me, porém, que ela envolve relagdes de poder muito diferentes. 100 Visibilidade B. CONDUZIR OS HOMENS E COAGIR OS CORPOS: 1.0 governo do sibi sue-se de toda forma de dominagio porque ele considera os homens nio como coisas, mas como seres racionais. Dito de outro modo, a condugiio dos homens difere essen- Imente do dominio que se pode exercer sobre a matéria ou os seres iracionais, Essa distingio desaparece entre os Padres. O pecado, como vimos, fez o homem cair em servidao. Mas, depois da vinda do Cris- to, dois poderes partiham sua dirego:* a Igreja, encarregada do cui- dado das almas, e 0 Estado (a potestas imperial ou real), responsavel pelo controle dos corpos. Divisio das tarefas que parece ter sido for- rmulada pela primeira vez por Joio Cris6stomo,, reafirmada por Agos- tinho® e acentuada, com firmeza magistral, por Gregorio o Grande: “Dado que [os reis} se impdem pelo temor aos que vivem no vicio, eles dominam, pode-se dizer, néo homens, ‘mas animais brutos, pois é preciso inspirar medo aos ani- ‘mais para manté-los na obediéncia”.” Nao €0 homem enquanto homem, mas o homem rebaixado pe- los impulsos de sua carne a condigio do animal, que é 0 objeto do governo régio e determina as modalidades de seu exercicio. “Cl. papa Gelisio, De anathematis vinculo, no final do século V: “0 Cristo [.}, consciente da fragilidade humana, quis que as aucoridades encarrega- das de prover & salvagio dos fis fossem equilibradas por uma prudente prescti- io, Ele distinguin assim os deveres de cada poder" (PI. 59, col. 108-1089). Cf. a carta VIII a0 imperador Anasticio, PL 59, col. 42: “Hii duas coisas que regem principalmente este mundo: a autoridade (auctoritas) sagrada dos pontifices, de im lado 0 poder (potestas} dos rei, de outeo™. Declaracio capital para a hist6= sia das relagBes entre o sacerdécio e os paderes seculares. $ Ao ee foram confiados os corposs a0 sacerdote a alas” (In illad* Vidi Dominum” (Isai VI,1] Homil, IW, 4). CE supra, p78, nota 39 ‘Ci. Expositioquarumdam propositionum ex epistola ad Romanos, PL 35, col, 2083-2084. 7 Morales, XXI, 23, PL 76, cl. 204. Convém liga essa frase tese central —c original — de Gregério, segundo qual aquele que comands domina mais 1s vicios que seus irmaos. A necessiria dominacdo dos vicios nfo exclu a igual- dade dos homens. Cf. M. Reydeller, op. cit pp. 466 ¢ 473-4. Rei sibio rei piedoso 101 “Os principes do século, escreve Isidoro de Sevilha, no seriam necessérios se nao impusessem pelo terror da isciplina (per diseiplinae terrorem) 0 que os sacerdotes si0 incapazes de fazer prevalecer pela prédica (per dactrinae sermonem)."8 2. Um outro trago essencial do sibio, modelo do verdadeiro rei, segundo a tradicao cinico-estéica, é que ele dedica seu tempo a vigiar (08 outros (episkopein). Epicteto insiste sobre essa funcio quando ex- plica por que o Cinico, se quiser assegurar sua missio, deve guardar © celibato,” Citando Homero (Iliada, Il, 25), ele o compara a um rei ue se entrega sem reservas aos assuntos piblicos. Observar 0 que fa- zem os homens, como vive sua vida, quais seus cuidados, 0 que ne- sligenciam, “fazer uma visita de inspec3o como um médico e tomar © pulso de todo o mundo”,"° prescrever o remédio que convém a cada um, tal 6a realeza (basileia) do Cinco." Episkopos:'? o que exerce sta vigilancia sobre todos os homens, visando assegurar-Ihes a saide da alma. Sabemos que esse papel, na partilha dos poderes efetuada pela Igreja, nao coube ao rei, mas ao bispo. A significagao etimolégica do titulo de episcopus € freatientemente lembrada até o século VIL. As- sim Agostinho escteve, comentando a frase de So Paulo, “aquele que aspira ao cargo episcopal deseja uma nobre funcio” (1 Ti. 3, 1): “Fle quis explicar, assim, 0 que € o episcopado: que essa palavra indica um cargo, nao uma honraria. Com efei- to, essa é uma palavra grega derivada do fato de que aque- le que é encarregado de outros zela por eles, isto & tem cuidado por eles (superintendit, curam scilicet conum ge- rens), pois skopos quer dizer cuidado (intentio); para epis- kopein poderiamos portanto dizer em latim, se quisésse- * Sententia, I, $1, col. 723; ef. I, 48, 7; Etymologiae, IX, 3,4, p. 121. ° Enretions, WM, 22, 69, p. 80. °° oid., , 22,73, p. 80. bid. 22, 75, p. 81. "Ch. ibid. IL, 22, 72, p. 81: 0 episkopountes 102 Visibitidade mos, superintendere, zelar por; assim sendo, aquele que ‘quer comandar sem se devotar (qui pracesse dilexerit, non prodesse)'s nio deve pensar em ser um bispa”.14 Na metade do século VIL, na Irlanda, o redator andnimo do De duodecim abusivis saeculi escteve que “episcopus € um nome grego que se traduz por speculator (aquele que observa, que vigia)”. E ele especifica as tarefas respectivas do bispo e do rei: “Convém portanto que 0 bispo, estabelecido como 0 observador de todos, seja particularmente atento 20s peca~ dos; ¢, apés té-los observado, que os corrija, se puder, pela palavra e pela agio. Se ndo puder, segundo a regra do Evan- gelho, que se afaste dos autores dos crimes”.15 E entdo, quando a palavra sacerdotal fracassa, que 0 principe intervém pelo terror. Na mesma época, na Espanha visigética, 0s bis- pos reunidos no 8 coneilio de Toledo atribuem-se a fungio dos olhos {officia oculorum) no corpo mistico da Igreja."® E alguns anos mais tarde, no 16° concilio de 693, eles se comprometem, agindo como dignos vigias (more dignorum speculatorum), a conduzir 0 navio da Igreja sem danos até o porto da salvagio final.” ito significativo que seja utilizada aqui, em relagio ao off- io episcopal, a metéfora do navio. Essa velha imagem platénica, apli- cada ao reino, se tomar corrente a partir do século XII. No século VII, ninguém pensaria em comparar o rei a um piloto, nem mesmo a uum vigia. Certamente porque nao existe Estado propriamente dito a dirigir. A tinica sociedade em movimento rumo a um objetivo — pelo ‘menos para os que trabalham na formacao de uma consciéncia co- "Ct. supra, p. 98, nota 110, La Cité de Dieu, XIX, 19, 388, p. 137. Cf.C, Mohrmann, “Episcopus- speculator™, it Enude sur le latin dex ebrtiens,t 4, Paris, 1977, pp. 231-52. 15 Peeudo-Ciptiano, De duodecim abueivis saeculi, Geadus X, PL 6, col 1086, PL 84, col. 422; ef. E. Ewig, “Zum christlichen Knigspedanken im Frilhe mitelakter”, p. 35. # tid, col. $31, Rei sibio e rei piedoso 103 letiva — 4 Igreja, Mas sobretudo porque ndo compete ao rei sondar © horizonte nem abrir os olhos em torno dele. Seu papel: proteger, dissuadir, ameagar, castigar, Toda a sua esséncia resume-se em sua forga e no bom uso que faz dela. Ble é um brago que a Igreja quer décil. Por isso, em virtude dessa fungio puramente instrumental, a imagem que dele oferecem os textos dessa época permanece to som- bria, tio severa ¢ desprovida de brilho. No século VII, é a0 bispo, speculator ommnitum, que se referem as duas grandes metaforas, naval e pastoral, pelas quais se representara, cinco séculos mais tarde, 0 governo régio. As causas desse deslocamen- to sio miiltiplas e as examinarei mais adiante. Por ora retenhamos que, 0 isidoriana de regere, que compreende recte agere (agit ccorretamente}, se regere (governar-se) e corrigere (corrigir), nao entra o ato de dirigere (conduzir, guiar, quer se trate de um navio ou de um rebanho). Face 20 rei terrivel que coage os corpos, 6 0 bispo que zela pelo governo das almas. A antiga idéia de governo dos homens en- quanto homens (anthropon arché) & assim pela segunda vez rompida. 3. 0 sabio, enfim, segundo Epicteto, s6 pode exercer sua reale- za sea parte dominante de sua alma (to egemonikon) é mais pura que o-sol.!® Ea pureza de sua consciéncia que substitui, nele, as armas € 0s soldados utilizados pelos tiranos, ainda que eles préprios sejam ‘mau, para castigar os culpados. O direito que ele se atribui de corri- Bir os outros se baseia ndo numa relacdo violenta de dominagio, mas na tranqiilidade que encontra em seu coragao, porque seus pensamen- tos so os de um amigo dos deuses. Submetendo-se ao controle de seu julgamento, liberto das paixdes, ele participa do governo de Zeus.19 Assim, nao teme falar com toda a liberdade (parresiazestai) a0s ho- mens. O dominio do sabio sobre si mesmo ndo apenas nao exige um combate a cada instante, pois demonstra 0 poder de sua razo sobre seus desejos, como também se manifesta, associando-o a soberania divina, por uma fala livre e sem rodeios (parresia). Acontece algo bem diferente com o rector cristdo. Se ele detém ‘uma autoridade sobre seus siditos, submetidos corporalmente ao po- der da espada, é na medida em que é capaz.de reger seu préprio cor- po. O governo de si, do qual deve mostrar o exemplo, nao consiste Butretiens, Il, 22, 93, p. 84. "Cf ibid, I, 22, 95. 108 Visibilidade ‘mais na serena hegemonia da alma racional e na transparéncia de um ‘pensamento em paz consigo mesmo, mas numa luta permanente con- tra 0s impulsos da carne, Ao contrétio do sabio que adormece com 0 coracéo puro, ele trava uma guerra sem descanso, noite e dia, no in- terior de si mesmo. Relagio inversa entre a exemplaridade e a funcao: © sébio € apto a dirigir os outros porque sabe conduzir-se a si mes- ‘mo, a0 paso que o rei justo é obrigado a dominar-se porque é encar- regado da disciplina dos corpos. Gregério Grande, mais uma vez, cexprime isso com um surpreendente vigor: “Eles merecem ser cha- mados reis, os que sabem reger bem os movimentos de seus mem- bros”? e que reprimem tados os “movimentos insensatos (stultos motus)”?! da carne: o apetite da luxtiria, o ardor da cupidez, 0 dese- jo de gloria, a tentagao da inveja, 0 fogo da célera.2? Essas palavras serio retomadas literalmente pelo abade Smaragde de Saint-Mihiel, autor de uma célebre Via regia 23 Encontramos uma formula equiva lente sob a pena do monge Angelom, quando escreve ao imperador Lotério: “Os que sabem ditigir e escrutar ndo apenas os reinos terres- tres, mas seu pr6prio corpo ou os movimentos de sua carne, so ver- dadeiramente seis” 24 © governo de si ndo tem portanto © mesmo sentido na ascese cinico-estGica dos desejos e na disciplina crista da carne. Longe de cchegar & autonomia que permite ao sabio ocupar-se dos homens com a benevoléncia de um deus ¢ falar-Ihes francamente, 0 ri isidoriano & firmemente instado a lembrar que, a despeito da elevagao de seu car- 0, € um homem semelhante aos outros, sujeito, por esse motivo, & regra comum ensinada pela Igreja. (© ensinamento dos Padres, disperso em tratados, cartas, ser- mes, comentérios, foi reunido nos séculos VIII IX pelos autores carolingios no interior da doutrina, original e coerente, do ministécio * Morales, VI, 56, PL 75, col. 963. 2" Ibid, col. 966. 2 Morales, XXVI, 28, PL 76, col. 381 2 Commentaria in Regulam Sancti Benedict, PL 102, col. 696. > Cf,H, Anton, ibid, pp. 35546, Rei sabio e rei piedoso, 105 1régio (ministerium regis)25 Esta é bem conhecida. Corresponde a0 ‘momento em que se firma o que se convencionou chamar, com H_-X. Arquilliére, 0 “agostinismo politico”: absorgao do direito natural do Estado na justiga cristd,26 subordinagéo do poder secular a autorida- de sacerdotal, A realeza, que jd se exeria dentro da Tpreja, é doravante conferida pela Igreja. Torna-se um oficio. ‘Aparentemente, a0 humilhar o rei por ndo poder dispensé-lo, essa concepgio tenderia a arruinar o prestigio dele. Foi o inverso que se produziu: cla contribuiu para fortalecé-lo consideravelmente a0 investi-lo de uma dimensio sacral, mas sobretudo — e esse ponto é capital — ela dissociou o rei de seu corpo natural, impetuoso € vio- lento, para ligé-lo, pela graga da ungao, a um corpo metamorfoseado, radiante de uma vida nova.2” Numa historia orientada pela idéia de soberania, que avalia 0 progresso da instituicio monarquica por sua independéncia em relagéo A Igteja, esse perfodo marca um novo re- uo, até mesmo o apogeu de uma perigosa confusdo entre as socie- dades civil e reigiosa. Em troca, numa histéria dos modos de gover- no, que observa como se articulam finalidades especificas a formas de representagio, ele constitui um limiar decisivo. Ea partir dele que governo, que consistia, para o rei, em corrigir, julgar e proteger, vai implicar a tarefa de conduzir igualmente seu povo. Passagem da cor- rectio a directio que ja se esboga bastante nitidamente com Alcuino.”* Certamente essa diregao permanece apontada, no rector carolingio, para a salvacdo das almas (dirigere ad viam: salutis|. Mas a veremos infleti-se progressivamente — através do conceito de salus publica, por exemplo, que Jodo de Salisbury emprega num duplo sentido so- teriolégico e politico?” — para as finalidades terrestres. *5 Ch supra, p. 90, nota 81. 2 Cf, as belas anilises de W. Ullmann, The Carolingian Renaissance and the Idea of Kingship, lecture IV: “The rebirth of the ruler”, pp. 71-110. PGE. H. Anton, op. city pp. 106-7. 28 Ch infra, cap. 3, B. 2 Cf. Jonas d'Orléan, op. ct, cap. 3, p. 139 “Quatenus ita agendo sanc- ‘orum regum [..] post hanc peregrinationem consors eficiarar”. Poi com Gregé- oo Grande que apareceu o tema da santificagio pelo exereicio do poder. Cf. se- ‘ra, p. 97, nora 117, 106 Visibilidade C. A CIENCIA DO PRINCIPE. A ausincia de uma arte especifica de governar na doutrina do ministério régio verifica-se através de uma questo cuja importancia, ainda limitada, haverd de crescer a partir do século XII: 0 que deve saber o principe? Embora seu papel scia manejar a espada e adminis- trar a justica, os Specula jamais tratam da ciéncia das armas e, na maioria das vezes, somente abordam a pritica judiciaria sob o Angu- lo das virtudes pessoais — piedade, misericérdia, humildade —neces- sérias ao principe no cumprimento de seu oficio. As competéncias uerreira e juridica, que pertenicem ao “século”, nfo entram no cam- po da problematizagao clerical, preocupada apenas com a salvagao das almas. Bem governar € agir de tal modo, para o principe, que ele nio tema prestar contas de seus atos a Deus € possa ser admitido, apés a em desta vida, na comunidade dos reis santos.” A Vida de Roberto o Piedoso — o filho de Hugo Capeto —, redigida em cerca de 1033 por Helgaud de Fleury, ilustra com nitidez essa concepgio sacerdotal: “Desejamos empreender a vida desse rei ‘to eminente”, ele escreve, “modelo para as geracdes futuras, prae- sentibus ot futwris imitabilem.”>! Uma “vida”, na perspectiva da lectio monéstica, no éa trajetoria singular de uma existencia, mas uma série de atos exemplares. Assim, a biografia ndo tem por objeto explicar 0 {que um homem se tornou nem contar o que ele fez, mas apresenta-lo como modelo, Rex imitabilis: a vida de Roberto deve portanto servir de espelho a seus sucessores. Em que merece ele ser imitado? “Pois assim as almas desamparadas compreenderio o valor dessas obras de caridade, de humildade e de misericérdia sem as quais ninguém po- deria chegar ao reino dos céus.”52 Roberto é imitdvel nao por suas qualidades politicas, mas pelas virtudes cristas as quais a eminéncia de seu cargo confere um brilho incomparivels “Nesse dominio, ele brilhou com tal esplendor que, desde o santissimo rei e profeta Davi, rninguém 0 igualou, sobretudo na santa humildade”.*3 O resto, isto 2 Vie de Rober le Pics, profi, p. 58 shi hid bid. § 30, p. 138: “historiographisrelinguimus”. Ct as observagbes de G.Duby, Le Dimanche de Bowvines, p. 17, prop6sito da gesta Philippi Augusti Rei sibio rei piedoso 107 6, seus combates no século, suas vitbrias sobre o inimigo e suas con- guistas, Helgaud abandona aos cronistas.** Se o qualifica de sapien- tissimus litterarum, “sapientissimo nas letras”,* € porque ele fora instrufdo nas artes liberais “de tal modo que em todas as coisas pode agradar ao Deus todo-poderoso por suas santas qualidades”.* Consistindo os deveres do rei num verdadeiro programa de san- tidade, cle deve acima de tudo meditar sobre as Escrituras, coletanea inesgotavel, para quem sabe lé-a, de exemplos e de maximas de gover- no. Algumas explicagbes so necessérias, aqui, para compreender a utilizagao politica que foi feita da Biblia durante a alta Idade Média.>7 a. A BIBLIA COMO FONTE DA CIENCIA REGIA Em primeiro lugar, ela era lida na tcadugdo latina efetuada por So Jerdnimo no final do século IV, a Vulgata latina. Existia, portan- to, apenas um tinico texto — fato capital para a elaborago do voca- bulério, pois o latim da Vulgata era o praticado pela classe romana culta do século TV, tomando seus conceitos da lingua dos magistra- dos ¢ dos administradores. Assim, a palavra divina era recebida atra- vvés do filtro cultural romano. Por isso, de uma certa maneira, pode- se dizer que a Biblia foi um dos instrumentos, se nao o principal, da continuidade de Roma até a renovatio carolingia.. ‘composta por Guilherme o Bretio, no inicio do século XII: “O empreendimento historiogrifico passa das maos mondstieas as de um letrado, e de uma abadia [Saint-Denis] casa mesma do rei. Sinal da irmeza de um poder que se separa 208 ppoucos das celebragies ltirgicas e comeca a secularizarse. Prova também desse deslocamento é importincia dada as armas no proprio relato. O monge Helgaud, autor de uma vida do rei Roberto 0 Piedoso, s6 havia se interessado, cento e cin- aitenta anos antes, pelas preces, caridades, peregrinagBes e milagres; deixara a outros o cuidado de contar as guercas.J4 Guilherme o Bretio nao faz peaticamen te outra coisa send conti-las”. » Ibid, § 3, p. 60. 35 bi. 8 CW. Ullmann, “The Bible and the Principles of Gover dle Ages”. ¥ Cf, a acertada expresso de M. Banniard, Gentse culture de "Europe, . 75:0 cristianismo [que] foi em seu comego uma religio contra o Estado |] acabou por sera teligiio do Estado”. 108 Visibiidade ‘Além disso, longe de sustentar um discurso de revolta, reivin« cando contra Roma os direitos perdidos de Jerusalém, a Biblia achou- se desde muito cedo ligada a exaltacio do poder imperial. No momen- to.em que comecava a circular a Vulgata, com efeito, o cristianismo tornara-se religito do Estado.** Constantino (306-337), 0 primeiro imperador convertido, considerado como “sagrado” a exemplo de seus predecessores, jd havia dado ensejo a formulagio de uma teolo- gia politica crists. Eusébio de Cesaréia, num panegirico pronunciado em sua presenca, declarava “E [do Logos divino] e através dele que o imperador, ‘o bem-amado de Deus, recebe ¢ assume a imagem da supre ma realeza, ¢ assim governa e segura ria mao, a exemplo de seu Senor, o bastio de todos os assuntos deste mundo. [..] Deus é 0 modelo do poder régio”.2? Ao oferecer desse modo, em abono da antiga concepgdo hiero- ctética,*® uma justificativa teolégica do poder imperial, a Tgreja renun- ciava a seu papel profético e era levada, ainda que ao prego de vio- lentos desacordos com o Estado, a defender a ordem estabelecida, De- pois de Teodésio (379-395), que estendeu a todo o Império a interdi- io do culto pagio, a representagio do imperador como imagem na terra do Pantokrator divino impés-se com magnificéncia, a ideologia imperial constituindo de certo modo a edpia do arquétipo biblico, Enfim, enquanto tomava forma o césaro-papismo bizantino, a decomposigio do sistema imperial no Ocidente favoreceu um vasto movimento de promosio do episcopado. Observa-se, a partir do sé- culo V, que as grandes familias senatoriais voltam-se cada ver. mais para a carreira eclesidstica, 4 qual trazem sua experiéncia de legisla- 5 Triakontaeritos,discurso pronuaciado em hoasa de Constantino, em 336, plo 30” aniversirio de sua sagragio,I-6, I-45; tra, e citado por Cl. Le- pelley, L'Empire romain el te chrstonisme, pp. 104-5. Sobre as caracteristias dessa tcoogia politica, cf. p. 106. 2° “0 cardterreligiaso do poder imperial, noglo pag por exceléncia, sub- sist sem a menor diminuigio. Essa € primeira e uma das mais impressionantes, contradighes do império cristo” (ibid, p. 72, Ch, supra, pp. 90-1. Rei sabio e rei piedoso. 109 dores e de administradores.*1 Se acrescentarmos a esses diferentes fa- tores 0 recuo erescente da cultura profana em favor do estudo da Bi blia nos séculos VI e VII, é bastante ficil compreender por que as Bs- crituras desempenhacam um papel central na reflexao politica da alta Idade Média. Modelos mais freqiientemente citados: Davi, cuja humildade de- vem imitar, segundo Isidoro, todos os que querem fazer bom uso do poder régio, Salomao, por sua proverbial sabedoria, J6 (embora no tenha sido rei) tipo de dirigente piedoso: “As palavras de J6 mostram como ele governou seus stiditos com tanto cuidado quanto conduziu sua propria vida”."? A ars regendi subjectos, a arte de ditigir siiditos, encontra em J6, “pé do manco, olho do cego” (J6 29,15), seu mestre biblico mais edificante. No século XI ainda, Joao de Salisbury es- creverd que J6 encarna, por sua justiga, a regea do governo, formula regnandi.' ‘Mas, ao lado dessas figuras tio seguidamente evocadas — Carlos Magno, antes de seu coroamento, era designado como um novo Davi, ¢ vimos a comparagio aplicada a Roberto o Piedoso —, um texto ‘ocupa um lugar especial nos manuais de instrugo dos principes. Tra- ta-se da passagem do Deuteronbmio (17, 14-20), a lei dada por Deus a0 povo de Israel em seu retorno do Egito, sobre a eleigao do rei. Apés varios mandamentos, 0 texto prescreve seu préprio modo de usar: “Quando ele subir ao trono real, [0 rei] devera escre- ver num rolo, para seu uso, uma cépia desta Lei, sob o dit tado dos sacerdotes levitas. Ela nfo o abandonard; ele a ler todos os dias de sua vida para aprender a temer Javé, seu Deus, guardando todas as palavras desta Lei, assim como estas regras a aplicar” (18-19). Auténtico cédigo régio formulado por Deus, esse pequeno tex- to apresenta todas as caracteristicas de um espelho, no sentido ale *' Somtentiae, IM, 49, 1, col. 720. 2 Carmen de Timone comite,v.23-243citado por H. Anton, op. ct, p.433, ‘nota 383: “lab quoque dicea ferunt, quanto moderamine vitam4 Quanta et sub: jects rexeri arte, sam" + Policraticus, V, 6, $50 a 26,11, p. 300, 110 Visibilidade ‘orico € técnico: mostra ao rei o que ele deve fazer, ao mesmo tempo fem que resume seus deveres em algumas finhas faceis de conservar perto de sie de meditar a cada dia.* Nao é por acaso, portanto, que cle seja a primeira autoridade citada por Jonas d’Orléans para er nar a0 rei o que ele deve procurar ser ¢ evitar (qualis esse vel quid cavere).45 Espelho, igualmente, de todos os espelhos futuros, jé que define sua forma, seu uso e sua finalidade: brevidade, leitura cotidia- na, temor de Deus. Por isso ele condensa, para alguns autores, a cién- cia do principe. Assim o poeta anglo-saxio Cathwulf escreve a Carlos Magno (75): € preciso que tenhas em maos sob a forma de enquiridio, que significa um manual, alei de teu Deus; que © leias todos os dias de tua vida a fim de seres penetrado pela sabedoria ¢ as letras seculares, como o foram Davi, Salomao ¢ todos os outros reis.""6 b, SIGNIFCAGAO POLITICA DO DEUTERONOMIO, 17,14-20 Esse texto ¢ importante por duas razdes. Em primeiro lugar, a realeza sempre apresentou, na historia de Israel, um carter proble- matico, Apés 0 cativeiro no Egito ¢ as primeiras conquistas sob a con- dugio de Josué, o povo de Isracl fora dirigido por juizes*” diretamen- te designados por Deus. Periodo confuso, violento, marcado pela in- fidelidade recorrente lei divina, a adesio a cultos pagios, a disper- so das tribos. “Naquele tempo, nao havia rei em Israel ¢ cada um “+ "Mas que ele ndo multiplique seus cavalos, ¢ no reconduza o pov 20 Egito para aumentar sua cavalaria, pois Javé vos diss: ‘Jamais retornarcis por esse caminho’. Que nio multiplique o niimero de suas mulheres, © que poderia Aesviar seu coragio. Que nao multiplique em excesso sua prata e seu ouro” (16- 17), Segue a passagem citada anteriormente (18-9). “Assim ele evitard orgulhar- seacima de seus iemios endo se afastard dessas prescrigBes, nem digcita nem 3 cesquerda. Sob essa condigio ele teri, ele e seus filhos, longos dias sobre o trono de Israel” (20). "8 CE, De institutione regia, cap. 3, p. 139. “6 Citado por H. Anton, op. cits p. 76. “7 CE. J22, 16-18, sobre sua instcuigo por Javé. Ente os principais: Geded0 (ibid, 6-8), Sansto, Samuel. Rei sibio e rei piedoso a faria o que the agradava.”** Quando Samuel envelheceu, 0 povo pe- du um rei que 0 regesse como as outras nagdes. “Satisfaz. tudo que 0 povo pede, diz Javé a Samuel, ois nio foi ati que eles rejeitaram, foi a mim, néo queren= do mais que eu reinasse (regnem) sobre eles." Tudo que cles me fizeram desde 0 dia em que os tirei do Egito até agora —abandonaram-me e serviram deuses estrangeiros®° =, cles o fazem a ti também.”51 Como essas linhas foram o objeto de inumeraveis comenté na Idade Média, é necessario perceber claramente suas articulagdes cessenciais. 1) £ 0 povo que exige um rei, e nao Deus que lhe propée. 2) desejo de ter um rei procede da vontade de Israel de ser um povo ‘como 05 outros, ¢ portanto do esquecimento de sua identidade, 3) Esse desejo se inscreve, 0 texto biblico € muito claro sobre esse ponto, na ‘continuidade de uma revolta contra Deus: “Eles nd querem mais que cu reine sobre eles”. £ por um mesmo movimento que o povo de Is- rael se volta para o culto de Baal ¢ reclama um rei de rei, pore tanto, no € de esséncia judaica, mas tomada das monarquias orien- tais. 4) Deus todavia consente nela, apds ter advertido seu povo, pela boca de Samuel, sobre o direito do rei (jus regis) que vai reinar sobre cle. Convém reler essa descricio, pois é em relacio a ela que a lei do Deuteronémio adquirira toda a sua significagao, opondo a figura bi- do rei justo ao tirano oriental: “Ele tomar vossos filhos e os destinara as tropas de seus carros e a seus cavalos ¢ eles correrio diante de seu carro. Ele os empregard como chefes de mil e como chefes de cinquenta; os fara lavrar sua lavoura, colher sua colhei- * roid, 2125 CE. ibid, 8,22-23: “Os isracitas disseram a Gedeo: “Reina sobre nds (dominare), ca, ten Filho e teu neto |... Mas GedeZo respondeu-lhes: ‘No sou ‘eu que reinare sobre vis (non donninabor vestris), nem meu filho tampouco, pois 6 Javé que einara (dominabitur) sobre vés"™. 29 Baal e Astarté Cf. tid, 2,135 1 Sam, 73-4. 51 Sam, 87-8 m2 Visibilidade ta, fabricar suas armas de guerra ¢ os apetrechos de seus carros. Tomara vossas filhas como perfumistas, cozinhei- ras ¢ padeiras. Tomar o melhor de vossos campos, vossas vinhas e vossos olivais e o dard a seus oficiais. Sobre vos- sas culturas ¢ vossas vinhas cobraré o dizimo e o dard a seus, oficiais. Os melhores de vossos servidores, de vossas servas, de-vossos bois e de vossos jumentos, ele os tomaré ¢ os faré trabalhar para ele. Cobrara o ditimo sobre vossos rebanhos € vs mesmos tornar-vos-eis seus escravos” 5? Através desse retrato de um rei que se apropria dos homens, das terras, dos animais, cobra uma taxa sobre tudo, em seu proveito, € trata seus stiditos como escravos, delineia-se uma imagem da opres- ‘io que nao ha de variar muito até as célebres paginas de Montesquieu sobre 0 despotismo otomano. A antitese, desenvolvida pelo Padres ctistdos, entre o regimen ea dominatio tem aqui sua origem e é es- foi contra uma concepeao patrimonial da domina- 40 que se constituiu o modelo biblico do rei protetor. A realeza, além disso, no est fundada na vontade divina, mas resulta de uma con- cessio de Deus ao desejo das tribos de Israel.5¥ Dispensatio justificada pelo estado de pecado no qual vivem os homens, que substituiu 0 es- tado de inocéncia em que Deus exercia diretamente sua soberania. Mas cla implica que a realeza é condicional. © reginten real nao abo- le 0 regimen divino; a0 contrario, permanece-lhe submisso. “Se nio obedeceis a Javé, se vos revoltais contra suas ordens, entéo a mio de Javé pesara sobre v6s ¢ vosso rei.” O temor de Deus constitui o prin- cipio da legitimidade régia. 0 Deuterondmio, assim, estabelece os limites da forca secular: ela € um mal, tornado necessério pela corrupgi0, mas que no foi imposto por Deus. Ao contrario, foram os proprios homens que 0 exigiram. O afastamento de Deus engendra o desejo de um mestre. Toda a doutrina eclesiastica da alta Idade Média reside nessa idéia, ‘mas com uma diferenga: 0 desejo do povo de Israel tornou-se necessi- * Ibid, 11-48. 30 faro éfortememte subtinhado pouco antes da designago de Saul como rei. Ch. 1 Sam. 10, 17-19. Ibid, 12,15. Rei sabio ere piedoso 13 dade de faro. Conseqiiéncia, sem diivida nenhuma, do pensamento agostiniano. Mas o texto ja autorizava essa leitura. A incapacidade de submeter-se ao regain divino trai um desejo que, sem confessar-se, chama um mestre. Ao declarar que queria um rei, © povo biblico re- vvelou a aspiragio obscura de todo desejo A coercio. “Pedis um rei, mas obtereis um mestre, explica em substincia Samuel. E portanto um mestre que quereis, uma vez que, sabendo-o, perseverais em vosso desejo.” A recusa de obedecer a Deus, longe de constituir um ato li- bertador, manifesta uma necessidade cega de serviddo, Na medida em que se prefere o desejo a lei, abre-se © caminho a transgressio de toda Ici, justificando desse modo o estabelecimento da coergao. Por isso esta deve submeter-se & lei divina para no degenerar em tirania. Assim, a dispensatio concedida por Deus nao reside tanto na autorizacao de eleger um rei quanto na imposi¢io de uma lei que o impeca de agir como um déspota. A regra universal segundo a qual os reis se com- portam como mestres, o Deuteronéntio opie a excegio, consentida a seu povo por Deus, de uma realeza vinculada a uma obrigagio de jus- tiga. O rei, que tem por tarefa proteger seus stiditos, 0s protege em iro Iugar, na medida em que reina com justiga, dos e nicos do proprio desejo deles. Mal necessério, por certo, para evitar aquele, mais temivel, da escravidio.55 A segunda razio, ao lado de sua fungio fundadora e prescritiva, pela qual esse texto desempenha um papel importante na ética medie- val da realeza, esta relacionada ao uso estruturador que dele fardo os Espethos dos principes a partir do século XII. No Policraticus, com efeito, Joao de Salisbury, opondo-se aos que afirmam que “o princi- pe est totalmente liberto das leis (legibus solutus)”. nao se contenta- 14 de lembrar ao principe a obrigacao de Ié-lo cotidianamente “a fim de aprender a temer a Deus", mas ira propor uma ampla leitura ale- 55 Com base no mesmo esquema, a Igreja accitou, durante séculos, o poder régio como um remédio ao estado de pecado. Seo desejo do povo hebres tornou: se necessidade, € que ele reproduzia a falta de Adio que havia pretendido, por orgulho, governar a si mesmo. Re-situado assim na perspectiva do pecado origi- ral, o desc de ter um rei—a fim de igualar em poder as outras nagées — ape- nas exprime a revoea permanente do desejo humano. A realeza é concedida no porque os homens, ao desejarem-na, cortem o ico de sere reduzidos A esceavi «io, mas simplesmente porque, desejando sempre, eles jd s8o eseravos de suas paixdes, a4 Visibilidade rica que constitui oassunto de vérios capitulos.%® Assim ele explica por exemplo, a ordem de “no multiplicar seus cavalos” (Dt. 17,16): para além do sentido literal, estes tltimos designam tudo que é neces- sirio para a hoa manutengio de uma casa. Se o necessario consist, portanto, numa certa quantidade legitima — o stil, segundo 0 en- sinamento de Cicero,*” nao pode exceder os limites razoaveis do ho- resto —, disso resulta que o rei nao apenas no deve muliplicar os cies, aves de rapina, animais ferozes e outros monstros da natureza, ‘mas também deve extirpar os atores, mimicos, bufées, prostitutas € ‘outros monstros humanos.°® Percebe-se a extensio que Joao de Sa- lisbury dé 4 frase biblica, desdobrando suas significages por um ar- ‘gumento (se é preciso limitar o necessdrio, com muito mais razo deve- se banir 0 supérfluo) apoiado na filosofia (0 autor cita igualmente Aistételes e Plato). Mas o essencial, para o nosso propésito, nao esta nessa mistura de rigor religioso e de sabedoria antiga que caracteri- za 0 “Renascimento” do século XII.5? Certamente ela exprime uma transformacio profunda do campo cultural, da qual surgirio os con- tornos de um certo racionalismo politico. Falaremos disso mais adian- te. O fato notavel a assinalar desde agora é a continuidade, por bai- xo das rupturas produzidas pelo impulso humanista, que a utilizagio do Deuteronémio 17 como matriz do discurso clerical sobre a reale- za estabelece, Essa estrutura permite agrupar num mesmo conjunto doutrinal varios grandes Specula do sécalo Xlll: 0 De bono regintine principis de Hélinand de Froidmont, 0 Eraditio regumt et principum de Guibert de Tournai, 0 inicio do 7° livro do Speculum doctrinale de Vicente de Beauvais, o Liber de informatione principum anénimo (entre os ‘quais existe, como iremos mostrar,*® uma evidente concatenagio tex- tual), que servirio para moldar a ideologia da monarquia francesa. Portanto ela constitui, depois de Joao de Salisbury, um esquema de % Policraticus, WV, 4-7. % De offcis, M3. 5 Policraticus, W, 4, $19 ¢ 19-28, ¢.1, p. 245, Sobre essa designagao, cf o liveo clisico de Ch. H. Haskins, The Re- rnissance ofthe Twelfth Contry (1927). © Ch infra cap. Rei sibio rei piedoso 1s propaganda no qual seria interessante observar em detalhe como ele concilia, através de seu desenvolvimento alegérico, as exigéncias no- vvas da gestio do Estado territorial com a ética sacerdotal da realeza ministerial. Assim, a ciéncia do principe, nos séculos XII e XIII, certamente se enriquecerd de toda uma experiencia secular gragas a0 fortalecimen- 10 do poder do Estado, & revivescéncia da histéria edo direito e, num plano mais geral, a uma preocupacio crescente em habitar 0 mundo de maneira duravel. A figura do rex sapiens sera substituida aos pou- cos pela do rex litteratus, instruido nao apenas nas Escrituras mas também nas disciplinas profanas.6! Mas essa complexificagio néo ‘acarretard por si mesma nenhum enfraquecimento do magistério ecle- sidstico. E no interior do quadro da lei divina, tal como o enuncia 0 Deuterondmio, e nao a partir da realidade concreta das coisas, que continuaré a se refletir 0 saber régio. Serd preciso a sibita emergén- Ora, esse discurso dirige-se, precisamente, a Henrique II. Portanto, longe de a descrigao, por Joao de Salisbury, da res publica como organismo natural marcar uma ruptura com a dou- trina do ministério régio — que fazia do poder secular a conseqiién- cia do pecado —, ela se inscreve na continuidade da disciplina ecle- slistica.* Era preciso ter separado o oficio real dos lagos de sangue, pela graca que a ungio confere, para abolir © homem sanguinrio no i. A verdadeira ruptura que dé origem, no pleno sentido da palavra, ‘a um novo corpo régio suscetivel de representar a comunidade intei- ra, € a ruptura com o sangue. Assim, o texto de Pedro de Blois, no qual sc misturam nas imprecacées de Henrique o sangue que o liga a seus filhos,> 0 de sua propria natureza impetuosa ¢ 0 que ele reclama para obter vinganca, consticui um documento de transigio entre a antiga ética religiosa eo “naturalismo” do século XI. Para compreender a célera de Henrique Il, é preciso situar no- vamente suas afirmagoes em seu contexto. Durante sua luta contra © arcebispo Thomas Becket, assassinado em 1170 em sua catedral,§ Henrique quisera retirar a primazia da ctiria de Canterbury, da qual um dos privilégios cra o dircito exclusivo de sagrar os reis da Ingla- > Policraticus, IV, 2, 515 27-29, 1, p. 318. * CEJ. M. Wallace-Hadsil, “The Via regia of the Carolingian Age”, p. 36: “Lou 4 Igeeja no reduzie a realeza a0 simples papel de lacaio da hierarquia, ela a fortaleceu a0 liberar 0 oficio da pessoa de seu detenter”, 5 Contra sanguinem meum’, ele escreve a propésito de seus filhos em 1173. Cf. A Thiesry, Histoire de la conguite de lAngletere, 2, p. 469. Sobre ese conflito, ef. 0 resumo, severo em relagio 30 pelado, mas ¢ clarecedor, de Ch, Peti-Dutli, La Monarchie féadale en France etn Angleterre (XXIIF sie), pp. 146-50; para mais dealhes, sob um outro ponto de visa, R.Foreile L'Elise et la Royuté on Angleterre sous Henr It Plenzagendt (11 1189), pp. 213-62. 120 Visibilidade terra, Para tanto, ele fizera coroar rei seu filho mais velho, Henrique, pelas maos do arcebispo de York, sem no entanto abdicar. Com isso havia dois reis na Inglaterra, o rex senior e 0 rex junior, 0 velho € 0 jovem Henrique. Essa situago manteve-se alguns anos, Mas em 1173, com 0 apoio do rei da Franca que declarou que “o velho rei estava morto a partir do dia em que seu filho portasse a coroa”, jovem Henrique reivindicou 0 pleno exercicio da realeza. A essa insurreigio aliaram-se, um ano mais tarde, seus dois irmaos Godofredo e Ricar- do, Preliidio de uma guerra que ia durar cerca de quinze anos, mar- cada por reconciliagdes, mudancas de alianga eo jogo feroz das riva- lidades fratricidas. E provavel que a cena relatada por Pedro de Blois tenha ocorrido apés a revolta conjunta dos trés irmaos. “Eduquei ¢ fiz crescer meus filhos, mas eles me rejeitaram, lamenta-se Henrique, ‘meus amigos e meus familiares ergueram-se contra mim.”? O abade de Bonnevale desempenha, junto ao rei, o papel de pas- tor (officiuin optimi pastoris), tal como o define, na mesma época, Hugo de Fleury: “Ele deve esforcar-se, quanto puder, para desviar do povo a célera do principe e rogar a Deus, noite e dia, pela salvacio de ambos” 8 Ira (célera): 0 clamor do sangue. A firia sanguinaria de Henrique ser progressivamente substituida pela misericérdia do pe- nitente. Por isso esse opiisculo ocupa, na tradic3o dos Specula,? um lugar especial. Nao espelho estitico, mas relato de uma conversio ani- ‘mi, de uma transformagio interior pela qual, renunciando a vinganga, © rei despoja-se de sua natureza brutal para assumir, na submissio & lei, 0 “esplendor de sua dignidade®."? Pode-se distinguirtrés etapas na progressito do dislogos 1) Hen rique cobte de maldigGes seus adversarios e faz valer os direitos te veis de sua célera (975-979); 2) 0 abade o exorta paciéncia e & hue smildade (9794-981C); 3) mostra-Ihe o caminho da peniténcia (981D- 988). "Ch. Is 155136, 8 Tractatus de regia potestate et sacerdotal dignitate, p. 47. CE. W. Berges, op. cit, p. 294: “um interessante precursor dos Espethos ddos principes inglesesulceriores, em que Pedro combate © ponto de vista ‘natura lista’ do rei” °° Policraticus, V, 7, $28 d 26-27, 1, p. 261. © esplendor da dignidade pablica aa 1. Henrique invoca o Deus das vingangas (Deus ultionum) "1 con- tra aqueles, fillhos e amigos, que 0 trairam, ¢ 05 vota ao fogo eterno. “Como assim?", diz-Ihe 0 abade. “Que percurbacio é essa de teu es- pitito? Nao podes pedie vinganca dos atos do homem, imagem de Deus. Os males que sofres, é o Senhor que te os envia.” E ele 0 com- ppara a Davi, fugindo de Jerusalém para escapar ao exército de seu fi- tho Absalao, e perseguido pelas imprecagdes de Semei: "Vai-te, vai-te ‘embora, homem de sangue” (2 Sam. 16,7-8) — alusio transparente a0 assassinato de Thomas Becket. Davi ordenou que deixassem Semei maldizer, porque Deus 0 havia enviado. Em virtude desse paralelismo (0 presente sendo lido através das categorias da historia biblica), con- vvém que Henrique I, novo Davi, imite sua submissao. Imitator Davi tal era, sabemos, um dos titulos dos reis carolingios. Mas Henrique obstina-se. © Antigo Testamento nio mostra que a vinganca e a maldigao foram freqiientemente permitidas? “Olho por olho, dente por dente?”, responde o abade. “Certamente, mas essa lei era feita para os judeus, que tinham a cabega dura,!? e, além disso, dizia respeito apenas a defesa dos corpos (tutela corporm), no & salvagao das almas. Tu pertences a0 povo da Nova Alianga. Sa0 por- tanto 0s preceitos do Cristo que deves seguir: nio odeies teu inimigo, ‘mas ama-o, reza por aquele que te persegue.” A imitagao de Davi nao basta, portanto, Sua virtude era a de um homem que vivia sob a lei. Henrique, vivendo sob a graca,'3 deve imitar a misericérdia do Cris- to. Entre 2 lei do talido e a lei da caridade aprofunda-se assim uma diferenga historica que vai permitir que a imagem real se separe pro- _gressivamente do modelo do Velho Testamento. O rei, entdo, da uma resposta surpreendente: “Embora possas encontrar no Evangelho ou noutra Escritura, ndo encontro em meu proprio coragio o que me faga servir meu perseguidor ou amar meu inimigo: isso de- pende de uma vida mais perfeita (vitae perfectioris). Veio que 05 cordeiros e as pombas, quando ficam em célera en- "Cr. S193 "2 Populus ile Judaeorum durae cervics erat.” 2 Sobee a distingdo sub lege, sub gratia, cf. Agostinho, De doctrina chris- tiana, XVI, 25, PL 34, col. 48, m2 Visibilidade tte si, dio livre curso a seu humor, batendo com seus cor- nos ow suas plumas. E quanto a mim? nao seria licito (non licebit) encoletizar-me, quando a célera é uma forga natu- ral da alma? © que me foi permitido (permissum est) pela nnatureza nio me parece iliito: sou, por natureza, filo da <élera, Como entio nao me encolerizaria? Deus mesmo cla- ramente se encoleriza”."4 0 furor de Henrique expande-se em sua violéneia selvagem, aquém de toda moralidade. Mas uma razio justifica essa forga irra~ cional: ele tem o direto de ficar em edlera porque a natureza o fez co- lérico, Momento excepcional na literatura dos Espelhos dos principes: certamente jamais a distancia entre a personalidade real de um rei e sua figura ideal foi tio dramaticamente posta em evidéncia. A distin- io histérica, formulada pelo abade, entre a lei de vinganga e a lei do amor, Henrique opde a irredutibilidade ontolégica da lei da natureza a lei da perfeigio. “Fé muita diferenga entre a maneira como se vive € aquela como se deveria viver”, escrevera Maquiavel!S para persua- di o principe novo a agir em funcio, no das regras morais, mas da necessiti criada pela maldade humana. Um fio continuo parece ligar, através de Henrique Il, 0 imoralismo do Principe a apologia da natu- reza (physis) por Cilicles, no Gorgias de Plato, contra a justia con- vencional.!® Alguns nao deixariam de ver ai o sobressalto perpéruo de uma natureza “recalcada” contra a pressao das interdicoes. Mas preferivel evitar esse tipo de generalidades. Célicles opunha a aris- tocracia natural dos fortes & multidao dos fracos: 0 nonios, segundo ele, era uma invengio do maior mimero para dominar os melhores. Henrique nao denuncia na lei cristd o instrumento de uma fraqueza sgregiria. Ao contritio, ela exige uma forca de alma superior: expres- sto de uma vida mais perfeita, nao de uma vitalidade inferior. Nao ‘nos apressemos portanto em estabelecer analogias faceis. A histéria das ideias serve-se de caminhos cujo trasado requer topografias pre- cisas. Ora, 0 didlogo de Henrique com o abade, se ele ceproduz pala- vras reais, é obra de um letrado. Ele obedece, em sua rigorosa cons- Dialogus intr regertan 978 D979 A. 1 Le Prince, cap. 15. *S Gorgias, 481 b-506 b, O esplendor da dignidade piblica 13 truco, a um projeto didatico: a edificagio moral do principe. Por au- daciosa que seja, a f6rmula do monarca, declarando licito 0 que vem da nacureza, inscreve-se no velho debate sobre o fundamento natural ‘ou convencional do poder politico. Ela encontra seu sentido no con- fico, especificamente cristio, entre a carne € a graga. A expresso “filho da célera” (filius irae), com efeito, € tomada de Sao Paulo.'” Descrevendo a morte do homem no pecado, 0 apés- tolo exalta a graga que o faz reviver.'® Henrique Il esté morto por causa do crime que cometeu'? — morto espiritualmente enquanto “filho da c6lera”, mas também juridicamente, j4 que seu filho, com o apoio de Luis VIL, contesta-Ihe a coroa. Se quiser reaver a vida, é pr iso que, mortificando sua carne, ele se abra a acio da graca que é espirito de misericérdia, Assim, constitui-se em torno do rei uma per- feita circularidade carismatica: ele s6 pode reconquistar seu titulo ju- ridico, obtido gratia Dei, concedendo graca, isto é, perdoando seus adversérios. A graga régia chama a geaga divina, Portanto, o progra- ma de peniténcia que o abade propde a Henrique nao é, em suma, seno um método “sobre-natural” de reconquista do poder.2° Por "Ef 2, 3: “Nes todos, aliés, fomos outrora como esses, vivendo segundo nossas cobigas carnais,servindo os caprichos da carne e dos pensamentos culpa- veis, de modo que éramos por natureza votados 4 célera como todos os demais”. 1 Ibid, 4-5: *Mas Deus, que é rico em misericérdia, por causa do grande amor com que nos amou, quando estavamos morcos em consequncia de nossas faltas, nos fez reviver com 0 Cristo — € por graga que fostes salvos”. Se cle nfo ondenou a exccugio do primaz de Canterbury, foi sua e6lera contea cle que impelin seus cavaliras aa erime. Henrique I reconhece na carta due esereveu a0 papa, em 1171, para explica esse ato: “Quis itu ram contra illo duu conceperars (so meu, mea cavsarm huie maleficiopraestisse, Deo teste; graviter sum tuthatus” (Recueil des historiens de la France . XVI, p. 40; A. Thicery, op. ct, t-2, p. 458, doc. n° 4) 2 £ bio que sso no &enunciado explctamente.O abade fz valer aos clhos de Henrique apenas a perspeciva de recanquistar 0 reino celeste (979 B), CCertamente a ameaga “dos sofrimentos perpétuoscinsuportéveis do inferno” (979 A)era entfo um argumeato a0 qual ninguém, nem mesmo Henrique, permanecia insensive. Mas nio hi dvida que seu deseo de recuperar o favor divino procede desua vontade de defender otrano. CE. 985 B “Numerosasveres enti em mighas oragiese em mina provagdes (neessiarbus)abter 0 favor de Deus (gratin Ded), mas jamais soube retéla ou conserv-la Assim, gostaria de aprender com tua satidade, Pade, de que mancira poeta fazé-o". Alem disso, éprovavel que a Visibilidade isso, apesar de suas reticéncias, o rei iré curvar-se. Extraordindria de- monstragao, no do conflito entre os poderes espiritual e secular, mas antes do enredamento, no pensamento medieval, do teol6gico e do politico. “E preciso, assim, que violentes teu coracio, conver- tendo o édio em graca, a inimizade em amor. [..] Mostra~ te misericordioso para com teu préximo, se queres encon- trar misericérdia em Deus.”2! 2. Mais do que uma transagao, recorrendo a um célculo de van- tagens e de riscos, éa formula de um contrato que o abade expe, lem- brando a frase da ora¢io dominical: “Perdoai-nos nossas dividas as- sim como perdoamos aos nossos devedores” (Mt. 6, 12) 22 “Fagamos um pacto ¢ um acordo com Deus. [..] AS- sim como te comportares em relagio a teu inimigo, ele se ‘comportard em relagao a ti, ele que, de escravo e de ini 0, fez de ti, por seu sangue, seu filho ¢ seu amigo.”23 Homem da Nova Alianga, Henrique esta ligado a Deus no por um simples dever de obediéncia, mas por um contrato de misericér- dia, A lei do amor no pressupde uma natureza amante. Ela tira sua “obrigagio de uma relagao juridica estabelecida entre o homem e Deus pelo sacrificio da cruz. Dispositivo contratual que, sem exigir uma aptidao a vida perfeita, oferece, numa linguagem conforme as regras do direito feudal, um meio de passagem da natureza a graca. ‘esse texto, que termina com um apelo a cuzada —o que permite datar sua com: posigio hastante precisamente em 1187 —, constitua uma des pecas de um dis- positivo de propaganda e condense, para produzir seu efito, acontecimentos ocor- ridos numa quinzena de anos. No momento em que Jerusalém eafa em poder de Saladino, 0s dois primeiros filhos de Henrique ji estavam mortes, um em 1183, 0 ‘outro em 1185, 21 Dialogus inter regent... 979 AB. 2° Cf Me. 6, 14-15, onde a estetura contratual do perdio &claramente su blinhads, 2 Dialogues inter regentiny 979 CD. csplendor da digaidade piblica ws Henrique Hl, no entanto, ainda resiste. A exortagao pastoral ele ‘opde desta vez um argumento tirado da necessidade da luta. Pode-se perdoar aquele que nos fez. mal, mas ndo aquele que continua a nos atacar. Pois entio a misericérdia seria vista como um sinal de fraque- za, de imporéncia ¢ de falta de coragem. Objecio estratégica: as exi- géncias da guerra sio incompativeis com os preceitos da caridade. Perdoar é aceitar ser vencido, O abade 56 percebe cegueira nessa luci- dez pragmatica: “Aquele que chamas teu inimigo é na verdade inimi- g0 dele proprio. Ao odiar-te, ele mara a si mesmo. [..] Se 4queres entio vingar-te de teu inimigo, entrega-te inteira- mente a Deus e confia nele”.24 Negacio radical do caréter politico da realeza, se admitirmos que a distingdo entre amigos ¢ inimigos € um dos critérios essenciais da politica.2* Falsa guerra, inimigo ilus6rio, combates intteis: o abade retira toda realidade ao terreno mesmo da agio politica. O Didlogo constitu certamente um documento tinico na Idade Média, pela for- a das teses que ele atica (e que s6 tornario a se defrontar, com essa aspereza, no século XVI): de um lado, a legitimagao da violencia na competicao pelo poder; de outro, sua subordinagao a um fim moral superior. Pois nao éa violéncia enquanto tal que 0 abade condena,?* mas, através dela, a afirmagao brutal de um desejo de dominacio. Sua leicura celigiosa do acontecimento o impede de ver as questdes politi ‘cas de soberania nele envolvidas e que, na concepgio ministerial do poder, procedem da simples vontade de dominar. Talvez em nenhu- ma outra parte como nesse texto se exprime tio nitidamente a pro- funda hostilidade da Igeeja as forgas que iam provocar, dentro de al- guns séculos, a formagio do Estado. Este no tem razao de ser, jé que Deus é 0 tinico soberano. Por isso 0 abade, invocando os exemplos do Antigo Testamento, lembra a0 rei seu dever de humildade. % bid., 981 A-B. 2 Cf, C. Schmitt, La Notion de politique (1932); H. Meier, Carl Sebwnit, Léo Strauss et la Notion de politique, pp. 15-6, 36 passim. 25 Como o prova seu apelo a ibertar esusalém pela forgas fpr, pp. 124 5, n0t2 20. 126 Visibilidade 3. Escrito edificante, nao disputa te6rica, 0 Didlogo atinge en- to a terceira etapa de sua progressio: a da conversio moral do rei, que se manifesta primeiramente por sinais de docilidade, depois por um ato de contri¢ao. Nessa Glkima parte sobressaem alguns tragos de tum modo de vida régio que, por seu carver publico e agitado, rom- peu com a ética monéstica dos séculos carolingios e dificilmente se deixa regrar segundo normas religiosas.. “Como nao posso encontrar em meu coragio a pa- ciéncia ea humildade (3s quais me exortas}, diz Henrique I, falas ete fatigas em vao, se nio me mostras por que meios oso obter essas virtudes e conservé-las."27 ‘Momento decisivo da aprendizagem de uma técnica para operar ‘a passagem da vida segundo a natureza a vida segundo a graca. Esse método compoe-se de trés elementos: exercicio espiritual, confissio, ato de peniténcia. exercicio espiritual visa a provocar a devogao por uma evo- cacio ordenada de imagens fortes. Consiste 1) em rememorar “a ori- ‘gem imunda e vil” do homem, a brevidade de sua vida, as dores, 08, sofrimentos eos perigos aos quais ela & exposta, seu “fim horrivel”, 2) em fixar a atengio sobre o dia rerrivel do julgamento, a célera do juiz supremo, o rio ardente e os tormentos inumeraveis do inferno, 3) em implorar pela oragio a ajuda de Deus. A reagao de Henrique, nesse ponto, mostra 0 quanto estamos distantes, na pratica do governo, do ideal isidoriano do rei piedoso: “Por que me falas de oracdo, padre? Nao percebes que minhas ocupagGes ¢ solicitagdes sao tantas que mal tenho tempo de dizer um Pai Nosso na missa? que mal consigo. tomar félego por uma hora, de dia ou de noite?” 28 © argumento, em sua trivialidade, exprime algo mais do que o humor impaciente do monarca. Ele traduz a emergéncia, em torno do rei, de uma nova estrutura burocritica de governo: a corte. “Nao se 2 Dialogus inter regen, 981 D. % ibid. 932 B, © esplendor da dignidade pblica ny deve tomar corte”, escreve J. Le Goff, “no sentido senhorial que 0 termo terd a partir do século XVI. A curia 6 0 lugar do aparelho go- imental e administrativo de um rei feudal em via de desenvolver vércio, que 86 ied acentuay do homem de Estado.39 Percebe-se entio muito distintamente a extrema reticéncia — a vergonha, diz, Henrique IF! — da aristocracia feudal em curvar-se & disciplina da confissio, reforgada pela Igreja ao longo de todo 0 sé- culo Xl. Valores guerreiros contra espirito de penitncia. Ao trans- formar o grito de célera do rei em reconhecimento de culpabilidade —“Peccavi supra modum, pequei acima de toda medida”? —, 0 abade pde em pratica a nova estratégia da Igreja frente a uma classe dominante oriunda da violéncia. Nao basta mais, como o preconiza- ‘vam os Specula carolingios, ler todo dia a lei divina,33 doravante & preciso dizer suas faltas e, “estando] a vida dos homens de guerra 2% *Reteato do rei ideal”, p. 75. Rica andise da formacio da conte inlesa {nh Petit Dural, op. cit, pp. 69-70, 114-5, 127-87. Cf. em particular pp. 128- 9: Da cunia Regis, na Inglaterra originaram-se, com uma velocidade desigual, ‘uma administragio eum parlamento politico. A época de Henrique It ede seus filhos, o Parlamentoceté apenas em germe, mas a adminirtagio nasce © 08 crv- «08 especializam muito mais eedo do que na Franga, A corte, porém, nfo moda de natureza, [.] No meio dessa multdao de servidores, doméstco,saltimban- cos charlataes vigarstas que Pero de Blois nos descreve (Ep. XIV) distnguem se cotidianamente os parents e amigos pessoas do rei, os ofa de sua casa, os specialists dos escritrios edo tribunal Ea Curia em sua forma restita” (a Caria fem sua forma extensa sendo consiuida além dos familiares, pelos vassals dig- nitécoseclesisticos que vim cumprir 0 dever de auda ede conselna). » Lembremos que os quatro gneros de exerccios praticados pelos “ho mens de perfeigio” cram a Ieitura, a meditagio, a oragio ¢ a contemplagio. A incompatibilidade entre os dois génetos de vida, medicativo e eurial, constitui 0 tema cenral do Policratcus de Joo de Salisbury (f nf) 3 Fa os que enrubescem (erubescut) de confesar seus pecados” (985 C) Muito eprincipalmente os cavaleiros, enrubescem de faze peniténca dante de ‘outem:; pata alguns, com eeito essa atte € vista como um sna de hipoc ou de timideze fata de coragem” (86 C. % Ibid, 987 C. 33 Joao de Salisbury insstré ainda sobre essa obrigasio (op. cit, IV, 6) 128 Visibilidade (nilitu) intciramente mergulhada no pecado”,** ligar permanen- temente seus atos & obrigagio da confissio ¢ da reparagao peniten- cial, Fortalecimento da direc3o das almas que busca um equilibrio & ircupgao das forgas estatais. Certamente essa atitude pastoral (esse esforgo, melhor, de pas- toralizagio de uma sociedade fragmentada, tendendo a constituir-se «em campo de forgas antagénicas) opde-se ao desenvolvimento de es- truturas politicas no seio da Ecclesia. Mais do que isso, a0 condenar fem termos morais a luta pelo poder, reduzida & simples dimensio do pecado, ela retira da acao politica o substrato objetivo sem o qual esta nfo teria razao de ser. Seria um erro, porém, ver nisso apenas um exemplo do confronto perpétuo entre politica e religifo. A reacio re- ligiosa ao crescimento das monarquias guerreiras nao foi somente um obstaculo & estatizagio, cla também favoreceu o progresso desta. Foi da dialética entre o jogo brutal da dominagio e as regeas morais do regimen que surgiu progressivamente a idéia do “Estado” como po- der piiblico. Foi a partir dela igualmente que a “politica”, enquanto iéncia prética, tornou-se pensével na cultura teolégica medieval. O século XVI descobriré a impoténcia da virtude face ao reinado da for- ‘¢a.35 Com isso perderd algumas ilusoes alimentadas, a moda antiga, pela literatura humanista. Mas é que ele ji havia cessado de crer no papel da graca. O regimen medieval s6 ¢ concebivel numa economia salvadora da graca que reabilira a natureza (ou a completa, de acor- do com os escolasticos) para petmitir o acesso a uma vida mais per- feita. A moralizagéo da forga, da qual os Espelhos dos principes ofe- recem uma ilustragao com freqiiéncia estereotipada, nao deve ser com- preendida sob a forma de um sistema rigido de limites ¢ de interdi- ‘$6es, mas sob a forma dindmica de uma metamorfose. Pelo exercicio ‘que Ihe € prescrito (leitura, exame de consciéncia, confissdo, penitén- cia), © principe € chamado a morrer em sua navureza de carne para renascer na pura dignidade de seu oficio. Morte e renascimento® rea- lizando-se na tensao de uma dualidade insuperavel entre a pessoa pri- vada do principe e sua dignidade publica. & Dialogues inter regen... 987 C- Ch fra, pare I, cap. 1 36 CF. W, Ullmann, op. cit splendor da dignidade pablica 129 Todos os Espelhos dos principes, na Idade Média, condenarao a c6lera, na maioria das vezes retomando as palavras mestnas de Sé- neca, Assim, para dar apenas um exemplo, o Liber de informatione principums (cerca de 1300), que cita abundantemente o fil6sofo, exorta © principe a suportar e perdoar as ofensas, como Davi em relagio a Semei.%” A célera, que chama a vinganga, opée-se portanto a pacién- cia, O arrebatamento colérico exprime menos um excesso vital do que uma auséncia de virtude. Figura extrema da impaciéncia, ela propria no sendo sendo 0 efeito de um excessivo amor de si. Pode-se anali- sar essa exorcizagio da célera como o imperativo de uma cultura cle- tical que em breve sera substituida, com a afirmagao dos Estados, por uma doutrina régia da majestade. Isso seria desconhecer a dialética rigorosa da superioritas e da bumilitas, fundada na distingdo do off- cio e da pessoa, que vimos atravessar a literatura patristica desde Santo Agostinho, e que tornou possivel o retorno, no seio do pensamento cristao, do conceito romano de digetitas (dignidade).}* Mas seria igual- mente subestimar a importancia da parénese religiosa na formagao do ethos politico moderno. Nos séculos XVI e XVII, com efeito, os escritores politicos ain- da convidarao o principe a dominar sua célera, mas nao mais por es- pirito de humildade, e sim por uma questio de habilidade. Giovanni Botero® escreve que “nada é mais necessério Aquele que trata de ques- tes importantes de paz e de guerra do que ser discreto”. O principe deve portanto ser capaz, para cumprir sua fungao, de simular € de dissimular.* “E, como nada é mais contrério & dissimulagdo que 0 esforgo e a violéncia da ira, cumpre que o principe modere sobretudo essa paixio.”*! Do mesmo modo, Torquato Acetto, em seu livro Da honesta dissirmelacao (1641), dedica um capitulo inteiro a esse tema: 5 Liber de informatione principum, 1,33, 44 > Gh supra, p. 121, nota 10. » Ct. supra, parte I, cap. 2, pp. 60-1. “9 Eese tema 6 anterior a Maguiavel, como 0 testemunha, por exemplo, © ‘Monnus, vel de Principe de L. B. Alberti (cerca de 1447}: cf. 0 prefacio de P. Lau- Fens, pp. 2546. 4' Della ragion di Stato, I, 7, p. 77-79v. 130 Visibilidade

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