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NO SILENCIO DO PENSAMENTO UNICO: INTELECTUAIS, MARXISMO E POLITICA NO BRASIL Francisco de Oliveira A formagio da sociedade brasileira inscreve-se na familia “francesa”, do ponto de vista do lugar e do papel dos intelectuais. Alias, isto € quase uma caracteristica da formacao das nagoes estruturadas por “capitalismos tardios”, que nao é o caso, evidentemente, da Franga. As sociedades dos “capitalismos tardios” se empenharam, entao, com lugarde destaque para 6s intelectuais, em promover, e acelerar, por todos os meios, processos identitarios que pudessem constituir os solos “nacionais”. © caso alemao. € bastante conhecido: o esforco dos hegelianos de esquerda em aus- cultarem os sinais da revolucao burguesa sempre frustrada é eloqiiente. Mesmo a cida critica de Marx, que também a seu modo buscou cimentar uma revolucao burguesa até o tempo da Gazeta Renana, nio diminui o fato de que contribuiram para criar um ambiente de discussao e inter- locugao da filosofia com a politica que fecundou esta tltima; a Italia apre- sentou também uma laboriosa interlocucao entre a produgao intelectual © politica, sobretudo ja no século xx com 0 didlogo entre liberais e mar- xistas, Piero Gobetti, Norberto Bobbio e Palmiro Togliati como emblemas, a sombra da inspiracao dos gigantes Benedetto Croce e Antonio Gramsci.! O caso russo é excepcional. O papel dos intelectuais na Revolucao de Outubro é inegavel e protagénico. Lenin, Trotski, Bukharin,? para citar os mais conhecidos, foram as liderancas de um novo paradigma re- voluciondrio, que inaugurouo ciclo das revolugées proletirias eantibur- guesas, e uma forma de relacao entre a intelectualidade e a politica que fez a historia da maior parte do século xx. Pode-se dizer que 0 “para- digma russo” dessa relacdo € t4o importante nessa historia quanto 0 “pa- radigma francés”, do qual, de certa forma, ele €.a continuidade eo desen- volvimento. Obteve-se, como resultado quase geral, € claro que nao por obra e 293 graca (exclusiva) das formulac6es intelectuais que tampouco estiveram alheias a elas, intensas transformagdes produtivo-sociais sem revolu- cées burguesas, seja dito sistemas fortemente autoritarios €, nos casos- limite, pesadamente totalitarios. Em todos esses casos, a intelectualidade desempenhou um papel de proa—conhece-se menos 0 do Japao—, os “intelectuais organicos” da teorizacdo gramsciana. Mesmo nos casos li- berais, a intelectualidade também desempenhou papel de igual relevo nas passagens das revolucdes burguesas, ainda que nao estivessem com- batendo sistemas fortemente ancorados em anteriores identidades € sujeigdes feudais. Nos Estados Unidos, os proprios “Founding Fathers” foram os teéricos e os ativistas do federalismo, permanecendo como referéncias classicas: Hamilton foi secretario do Tesouro e 0 pai da mo- derna teoria protecionista, e Madison chegou a Presidéncia dos Estados Unidos; John Jay, 0 terceiro da triade classica, foi o primeiro presidente da Suprema Corte norte-americana. Suas produgoes intelectuais tm uma forte marca nacionalista e sao menos interessadas no conflito de classes, mesmo porque sua revolucao liberal — a guerra da Indepen- dé@ncia — foi mais uma guerra de libertagao* O caso brasileiro inscreve-se, pois, como um caso “francés” no “ca- pitalismo tardio” periférico; ¢ tem alguns elementos do caso “russo”, sobretudo na critica as formacdes anteriores, inclusive a um suposto feu- dalismo. De fato, observando-se mais de perto, as duas grandes pas- sagens no século xrx, a abolicdo da escravatura e a reptiblica, contaram com intelectuais ja “modernos” na elaboracao ativa, com forte inter- vencao na politica. Nomes como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Ben- jamin Constant, José do Patrocinio e Castro Alves compunhama linha de frente nos embates ideolégicos, e, sutilmente, por tras, como era de seu feitio, Machado de Assis fez os tipos ideais das elites imperiais, vergas- tando nas suas cronicas didrias da vida da capital do Império as condu- tas, os habitos, os caracteres das classes dominantes e seus represen- tantes politicos, de que resultaram os magnificos romances da fase dita “madura" de Machado. ‘A Repiiblica Velha nao foi, como geralmente se pensa, um periodo nulo de intervencao dos intelectuais na politica. O proprio Rui, que ja se havia afirmado como “intelectual organico” das causas abolicionista € republicana no Império, ascende a vice-chefe do governo provisério com Deodoro e a pasta da Fazenda, Concorre por trés vezes 4 Presidén- cia da Republica, e sera, talvez, o iltimo intelectual liberal importante na hist6ria brasileira moderna. O “principe dos poetas brasileiros”, o par- nasiano Olavo Bilac, lidera movimentos em favor da vacina obrigatoria edo recrutamento compulsério. 294 Em causa, a modernizacao do Estado brasileiro, que tera nos pen- sadores chamados autoritarios, Oliveira Vianna, Alberto Torres e Fran- cisco Campos, os elaboradores de um paradigma de interpretacao da for- macao da nagao classicamente autoritario, cujas ressonancias ainda se ouvem no senso comum sobre o homem brasileiro ea sociedade que ele construiu. Tais pensadores foram politicos ativos, intervindo na cons- trucao de instituigdes republicanas, propondo em geral modelos anti- democraticos, Foram, por exemplo, os grandes redatores da legislacao do trabalho e das leis de excegado que Vargas adotara na transigao da economia. Se suas chaves eram nitidamente autoritérias, nao eram, entretanto, anacr6nicas, pois o que tematizavam e procuravam corrigir era o nanismo do Estado brasileiro, diante de uma economia que se tor- nava crescentemente mercantil, com instituiges fracas que, para eles, representavam o risco da anarquia clnica.* Operiodo que se inaugura coma Revolucao de 1930 sera riquissimo na renovacao da interpretagao do Brasil e nas relagdes dos intelectuais com a politica. Os trés grandes autores da gerac4o, Freyre, Buarque de Holanda e Prado Jtinior, reviram pelo avesso a interpretacio dos autoritarios, abrindo novas perspectivas também para a politica. A valo- rizacdo das herancas constitutivas, ibérica, negra e indigena, tera notavel capacidades para 0 dialogo, para a plasticidade das relagdes sociais, e, na chave do Caio Prado Junior, para a decifragao do enigma de uma economia cujo princi pal produto de exportacao, o café, se tornava a primeira do comércio mundial, mas permanecia se reproduzindo por uma combinacdo novo- velho que se revelaria fatal. Fundavam-se os pilares do que depois seria trabalhado pela teoria do subdesenvolvimento.* Até a politica institucional os tentou: Gilberto Freyre foi deputado a Constituinte ¢ ajudou a fundar dois partidos, ideologicamente antipo- das: a Esquerda Socialista, da qual saiu depois o Partido Socialista Brasileiro (ao qual o mestre de Apipucos nao aderiu), ea ubN — Uniao Democratica Nacional, que ficou como o partido da direita brasileira até © golpe militar de 1964. Caio Prado Janior foi deputado estadual em S40 Paulo, pelo Partido Comunista, até a cassacao do registro do velho Par- tiddo em 1947. Sérgio Buarque de Holanda foi membro do Partido Socia- lista Brasileiro de antes de 1964 e depois, junto com Mario Pedrosa e Antonio Candido, entre outros, um dos intelectuais mais importantes do Partido dos Trabalhadores. Os “intelectuais organicos” pululavam, abrindo novas perspectivas, arejando-se com as tendéncias mais contempordneas, as vezes em chaves ainda autoritarias, na caracteristica combinagao da longa “via influéncia na aposta democratica, pela afirmacao das 295 passiva” brasileira. Villa-Lobos na misica quis ensinar o Brasil inteiro a cantar afinadamente, Niemeyer-Lucio Costa, na arquitetura e urbanis- mo, apostaram na forga do espago para a construgao de um novo pais sociedade,’ Capanema, apoiado em Anisio Teixeira e Fernando de Azevedo, na educagao como chave do progresso; muito mais tarde, j4 fora do Estado Novo, Darci Ribeiro e Florestan Fernandes. Na passagem da economia de base agraria para a urbano-industrial, a figura de Celso Furtado ganha o maior relevo. Talvez sua influéncia se equipare A de Oliveira Vianna e 0 grupo principal de sua geracdo. Até porque seu tema foio mesmo dos autoritrios: o nanismo do Estado, sua incapacidade para regular uma economia que ganhava em complexi- dade, ¢ ja numa chave democritica, a mesma solucdo: o planejamento como método do Estado. Furtado est entre os intelectuais brasileiros que mais dialogaram com a politica, escapando dos fortes carimbos ideoldgicos, Embora seja arriscado pespegar-Ihe um termo que geral- mente recebe conotagdes ideolégicas negativas de defesa de interesses de classe, pode-se dizer que Furtado foi o “intelectual organico"-mor do desenvolvimentismo. Serviu sob trés presidentes antes do golpe de 1964 evoltou a ser ministro, da Cultura, no governo Sarney.* O marxismo foi tardio na formacao dos intelectuais brasileiros, mesmo na universidade — que também no Brasil é tardia —, onde en- trou de fato apenas nos anos 60-70 do século passado. A interlocucdo do marxismo com a politica € praticamente automatica, quase indeclinavel, pela presenga de um partido comunista, que se formou, como quase em todos os lados, numa confluéncia de relagoes entre trabalhadores e inte- lectuais, e, no caso brasileiro, também dos militares do Exército. O mar- xismo brasileiro, com os militares, foi contaminado, desde a entrada de Prestes e outros, pelo positivismo, ¢ evidentemente pelo nacionalismo, cuja estruturagao ideolégica mais acabada ocorreu apenas nos trabalhos do set,’ instituicao cujo objetivo explicito era a formulacao de uma dou- trina nacionalista; nomes como Ignacio Rangel, Ewaldo Correia Lima, Roland Corbisier, Alvaro Vieira Pinto e, no principio, Helio Jaguaribe, realizaram um enorme esforco intelectual para ir além do doutrinarismo e alcancar patamares de alta teorizacao. A predominancia do partido Tusso ou Soviético no movimento comunista internacional levou a que a doutrina quase geral dos pcs se convertesse no que Marcuse chamou de “marxismo soviético”, em que as raz6es do Estado soviético ditaram mui- to da tatica e da estratégia revoluciondrias do universo comunista. No caso brasileiro, a combinacao dessas orientacOes internas coma externa —a soviética—, coma clandestinidade a que 0 partido foi forcadoa par- tir de 1935, estiolou a producao tedrica comunista. No principio 0 Par- 296 tido insistiu na centralidade da classe operaria, para depois se deslocar para o tema da revolucao burguesa como porta de passagem obrigatoria para uma revolucao proletaria. A guerra fria levou a producao marxista do Partido a concentrar-se no tema do imperialismo, uma notavel aqui- si¢ao para orepertério brasileiro, mas que, do ponto de vista de uma teo- ria do capitalismo na periferia, na verdade pouco ultrapassou os umbrais do nacionalismo, e, posteriormente, com a hegemonia do pensamento da cePaL, a orientagao ea producdo tebrica comunista no Brasil terminou sendo um mixde cepalismo e nacionalismo. O cepalismo justificou teo- ricamente a orientacao politica reformista, 0 Estado como demiurgo de uma burguesia até antiindustrial. Nas etapas stalinistas a ordem era, em primeiro lugar, a uniao antiimperialista, em segundo, a hegemonia do capital nacional, e, em terceiro lugar, a revolucdo proletiria. A alianca que presidiu 0 evento de 1935 foi uma espécie de aplicacao daquele etapismo, a ante-sala de uma revolucao burguesa que teria como mo- tores 0 proletariadoe os militares, empurrando uma burguesia nao revo- lucionaria. No caso, esta concepcao situava-se como pré-sovietica, pois ainda se prendia a orientagAo tatica pré-Teses de Abril de Lenin. O marxismo teve, assim, uma produgao tedrica muito pobre, coma clara excegao de Caio Prado Jinior, cuja interpretacao do “sentido da co- lonizacao” fez escola na historiografia brasileira, uma espécie de “raio num dia de céu azul”. Bernardo Ricupero trabalhou bem essa excep- cionalidade de Caio num marxismo marxisticamente infértil. Deve-se assinalar, também, com justica, a producao de Astrojildo Pereira no en- saio de uma critica literéria materialista, cuja consumagao esperara por Roberto Schwarz j4 antes do golpe de 1964 e definitivamente depois.” Nelson Werneck Sodré, como historiador— inclusive da formagao da li- teratura brasileira —, fez escola no Partido e no pensamento de esquerda em geral com sua tese do feudalismo da formacio sociopolitica brasi- leira: deve-se cité-lo pela importincia da tese na estratégia do Partido € na criacao de uma filiére teorica que até hoje tem repercussio, mas do ponto de vista tedrico ela nao se equivale 4 de Caio Prado Jinior. Mas o mesmo nao vale para a influéncia dos marxistas — mais que domarxismo—na cultura brasileira e na formulagao de politicas estatais e ptbblicas. Nao ha, praticamente, nenhum terreno dessas areas que nao tivesse sido fecundado pela producao dos marxistas. O melhor da inte- lectualidade brasileira passou pelos quadros do antigo Partido Comu- nista do Brasil, depois Brasileiro, entre 1930€ 1964. A producao marxista brasileira funda-se, predominantemente, na matriz marxista-leninista, como foi quase regra nos que formavam a Terceira Internacional; o marxismo da Segunda Internacional de Kautsky nado medrou no Brasil, 297 como alhures abafado pelo marxismo soviético. Mesmo os socialistas brasileiros nao foram muito influenciados pelo marxismo da tradicao socialdemocrata alema. Também um Gramsci chegou tardiamente ao Brasil, apenas pelos anos 60, portanto as vésperas do golpe militar de 1964, enquanto José Aricé ja o havia traduzido em Buenos Aires nos anos 40; mesmo tardio, deu lugar a uma importante producdo te6rica no eixo da “revolucao passiva”, que ajudou a reformular o subdesenvolvimento exatamente como a forma daquela “revolucao” na periferia. Influéncias derivadas da Escola de Frankfurt sao escassissimas, ¢ 0 trotskismo, exe- crado, embora sempre tenha existido em pequenos grupos. Uma das “ressurreigdes” mais surpreendentes a partir dos anos 80 é a do trots- kismo no Brasil. Mas deve-se dizer que os trotskistas brasileiros tam- pouco foram originais: ndo se conhece uma interpretagao do Brasil de matriz trotskista que apresente alguma originalidade, e sua interlocucao com a politica também foi pouco expressiva. Desde logo, nenhuma dessas interpretagdes ou correntes heterodoxas influenciou minima. mente as taticas e estratégias do Partido Comunista Brasileiro. A influéncia politica do marxismo foi defenestrada da vida politica brasileira em 1964, com o golpe de Estado, ¢ a ja longa experiéncia de clandestinidade do pcs imediatamente levou-oa refluir para os subterra- neos da politica — nao exatamente os da liberdade, como no titulo de Jorge Amado. Continuou a existire aplicou sua velha tatica de submergir nos partidos oficiais, no caso no Movimento Democratico Brasileiro, pelo qual fez deputados federais, estaduais e vereadores, e mesmo algum senador trabalhando em sintonia com o velho Partidao. Paradoxalmente, foi a partir dai que o marxismo fez sua entrée na universidade. A tremenda ampliacao dos cursos de pés-graduacao nas ciéncias humanas foi o ambiente onde cresceu o marxismo académico, cuja influéncia passou em alguns sentidos para os partidos de esquerda clandestinos, através dos militantes de classe média que a universidade marxistizou, Das maestrias e doutorados, espraiou-se para os movimen- tos sociais, chegou, timidamente, até o sindicalismo — este sempre refratario aos intelectuais —, e irrigou as dissidéncias politicas do Par- tidao, do rcdor, da Acao Popular, da Polop, que se multiplicaram como cogumelos,"'a maioria enveredando pelas agdes armadas. £ evidente que o marxismo académico foi uma importacao eu- ropéia," principalmente da Franca, pelo intereambio produzido entre estudantes brasileiros de mestrado e doutorado freqiientando as univer- sidades francesas. Qu, como prefere Perry Anderson, uma verso do ‘marxismo ocidental” cuja principal caracteristica é seu desligamento da revolugao; 0 reparo a aplicagao do quase-conceito de Perry é que essa 298 esquerda “académica” era revolucionéria, mas nao dispunha de inter- locucao com a ampla massa de trabalhadores, que crescia formidavel- mente nos anos do “milagre brasileiro” "Foi o auge da interlocugao mar- xista com toda classe de movimentos politicos. Uma poderosa “vulgata” tornou-se obrigat6ria na discussao brasileira, até o ponto de afirmar-se como senso comum para os militantes, evidentemente, ja que chegou de forma muito rarefeita 4s camadas mais populares. Luta de classes, inte- resses de classe, sobredeterminagao— Althusser e Balibar—, aparelhos ideolégicos — Althusser e Poulantzas — exerceram poderoso fascinio, tornando facil o que era extremamente dificil, isto é, explicar uma d tadura militar expansionista, industrializante, nos quadros do capitalis- mo periférico. Aqui, uma vez mais, foia sofisticacdo gramsciana que aju- dou a avangar, com a interpretacao da “revolugao passiva” nas maos de Carlos Nelson Coutinho e Luis Jorge Werneck Vianna. Uma interpretacao original ¢ nao subsididria de qualquer dessas vertentes tericas no mar- xismo foi a de Florestan Fernandes com A revolugao burguesano Brasil, em que o mestre paulista lanca a definitiva pa de cal sobre as teses ante- riormente defendidas pelo Partido Comunista sobre o carater revolu- cionario da burguesia brasileira," Seria falso dizer que o florescimento dessas vertentes te6ricas nao influenciou as taticas ¢ estratégias dos que se opuseram A ditadura mili- tar ¢ ao chamado “modelo brasileiro”, excluido, pelas razdes j4 apon- tadas, o proprio Partido Comunista. Mesmoa fracdo maoista, que fundou © Partido Comunista do Brasil, foi atraida por ela, evidentemente em sua fantasia “camponesa”, coma pretensao de derrotar a ditadura a partir de uma guerrilha rural, no Araguaia. A propria Teologia da Libertacao é claramente um produto dessa fecundagao, e é interessante ver como a critica de Joseph Ratzinger —o atual papa Bento xvi —, como principal te6logo conservador pés-Vaticano 1, no longo papado de Joio Paulo 11, reconheceu a influéncia do marxismo na referida teologia, que ele com- bateu ferozmente. O alcance da critica a ditadura ampliou-se muitissimo sob o influxo de um marxismo liberado pelo declinio do Partido Comu- nista Brasileiro. Mas a critica ao capitalismo, no sentido de repensar uma teoria ori- ginal paraa periferia latino-americana, foi dificultada pela confusao com a critica 4 ditadura. Teria sido 0 momentum frankfurtiano da critica. Aproximou-se dele ao tentar caracterizar um “modelo brasileiro”, mas nao foi adiante. Sobra dizer que, como a interpretacdo marxista tinha se obnubiladosoba sombra da teoria do subdesenvolvimento da cepal-Pre- bisch-Furtado, quando esta entrou em declinio, acuada pelos golpes eas ditaduras militares que se sucederam como cascata na América Latina, a 299 interpretacao marxista também perdeu f6lego, restando sobretudo co- mo andlise. Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto ainda tentaram um movimento de atualizacao das teses marxistas sobre o imperialismo com a produgao da teorizacao do binémio “Dependéncia e Desenvolvi- mento”, que também esteve no centro da produgao de Ruy Mauro Marini € Theot6nio dos Santos."* Décadas depois, quando a luta ¢ © conflito de classes levaram a redemocratizacdo, vé-se o prejuizo causado: quase todas as interpre- tacdes analiticas que caucionam as demandas politicas e econémicas desde entao, ¢ até hoje, estado lastreadas numa espécie de forna a Fur- tado, uma crenga no desenvolvimento com base nacional, como se a intensa globalizag4o nao tivesse afetado as estruturas de classe e as for- magoes estatais Omarxismo académico sentiu também golpe da desmarxistizagao na academia francesa, sobretudo. Uma espécie de fim do ciclo da moda marxistizante. E, mais terrivelmente, o da queda do regime soviético. Embora o marxismo oficial soviético de h4 muito ja fosse intelectual- mente estéril, a subsisténcia do regime soviético, com seu inegavel do-* minio do bindmio técnico-cientifico, era uma prova dos nove da possi- bilidade da transformagao do capitalismo. A critica anti-soviética nas maos da esquerda procedia principalmente do ladotrotskista, que nunca foi capaz de apontar as insuficiéncias do regime soviético, salvo no que diz respeito a burocratizacdo. Mas uma teoria econdmica do socialismo ficou sempre nos prolegémenos, e a perspectiva critica frankfurtiana nunca foi incorporada pelos trotskistas, devido a implacavel critica a ciéncia ea racionalidade, de cuja mitificacaoa esquerda, em geral, nunca abriu mao. Nasce entao o Partido dos Trabalhadores. Também de uma con- fluéncia entre trabalhadores e intelectuais, mas sem a presenga de mili- tares — pois se estava ainda em 1980 —, embora 0 “militarismo” pene- trasse pelos egressos da tradi¢ao comunista sob varias formas, sobretudo. pelos que sobreviveram ao massacre dos grupos da luta armada pelo regime militar. Com a novidade da presenca de cristaos oriundos das Comunidades Eclesiais de Base, que eram, basicamente, trabalhadorase trabalhadores, cuja contribuicao pela reivindicagao da ética na politica tanto marcou a presenga do pr na politica brasileira, Havia chegado a hora de retomar, ampliando-a sem limites, uma elaboracio critica do capitalismo e da sociedade brasileira que poderia ter alcance latino- americano, no minimo, e, por que nao dizé-lo?, mundial, tendo em vista o declinio da esquerda. Algo da cultura marxista nao esteve ausente, por certo, nas postulagdes do Partido dos Trabalhadores. Mas este nao 300 provocou um revival da critica marxista ao capitalismo. A confluéncia trabalhadores + intelectuais foi mais aparente que real: os primeiros ressentiam-se do classico antiintelectualismo, que foi uma espécie de praga nas experiéncias do sindicalismo em escala mundial, ¢ 0 sadio descolamento do pt do “socialismo real” soviético resultou numa in- definicao fatal para a elaboracao teorica: 0 duro fracasso do “socialismo real”, entao ja evidente, e a necessidade de nao se deixar incluir no campo do totalitarismo levaram o pr a nunca definir que socialismo sua mensagem encarnava. Um expediente no principio tatico revelou-se, de fato, uma incapacidade de elaborac4o de uma nova proposta para 0 socialismo, e 0 pT terminou por fazer sua uma critica a0 “modelo bra- sileiro” bastante superficial eem unissono com outras for¢as de oposi¢ao A ditadura militar. A critica era mais analitica que te6rica. A complexidade da nova forma do capitalismo, j4 globalizado principalmente para as periferias, que precocemente anunciaram um modo de acumulacao a dominancia financeira — Chesnais"—, nao foi entendida radicalmente pela critica, que ficou nos umbrais da dependéncia financeira, da vulnerabilidade externa, que retirava forca ¢ autonomia ao processo de acumulacao de capital e enfraquecia o Estado nacional. Uma espécie, pois, outra vez de torna a Furtado, com tudo de positivo, mas de clara insuficiéncia teGrica."” O debate brasileiro se acendeu de forma extraordinaria, mas permaneceu “economicista”. Tudo parecia ser uma questao de gestaoe nao de pertencimento a estrutura da producao material capitalista. Dai que mesmo os melhores esforcos de politicas sociais, avalizadas por uma intensa renova¢do das pesquisas sociolégicas sobre os movimen- tos sociais, nunca tivessem passado do nivel de politicas compen- satorias.""A debilidade te6rica nao alcancava nem mesmo os patamares do keynesianismo, para quem as politicas de seguridade, de seguro- desemprego e de previdéncia sao as verdadeiras estruturadoras da demanda agregada, enquanto as concepgdes vencedoras no Brasil a encaram apenas como custo do Estado. Isto diz quase tudo. Quando ocorreu a producao do “pensamento tinico” ea hegemonia de Mont Pel- lérin, o keynesianismo foi superado pelo seu proprio éxito, vale dizer, quando ele liberou — isto é, as politicas anticiclicas — imensas forcas produtivas que jogaram para a frente poderosos processos de concen- tragao e centralizacao de capitais. Este era o seu limite: a partir dai, a critica ao capitalismo nao poderia ficar apenas na teorizagao sobre a probabilistica irracionalidade intrinseca das decis6es individuais-pri- vadas dos agentes econédmicos, mas deveria ultrapassi-la para coloc: la novamente no terreno do conflito social. 301 O “pensamento Gnico” produziu, entao, um enorme siléncio, Um siléncio ruidoso. Em lugar da anedota classica atribuida a Benedito Vala- dares, folclérico mas eficaz cacique da politica mineira, “estou rouco de tanto ouvir", ficamos sutdos de tanto falar. A hegemonia da direita fez-se evidente, Nao apenas pelo siléncio dos anos de Fernando Henrique Car- doso, que, de fato, aparece como 0 vitorioso do longo periodo que come- cou com Fernando Collor de Mello: a oposigao de esquerda, localizada predominantemente no Pt, adotou suas teses, fez suas as politicas tenaz- mente perseguidas. O cardosismo, a versao brasileira do neoliberalismo, é teoricamente infértil: ndo tem uma tinica idéia nova, mas apesar disso € agrande vitoriosa. O lema anunciado certa vez por uma campanha publi- citaria, de que “o bom do capitalismo € ser capitalista”, tornou-se 0 orien- tador geral da sociabilidade numa sociedade tao desigual: enquanto os ricos se transportam em helicépteros pela cidade de $a0 Paulo, que jé vai requerer regularizacao do espaco aéreo urbano, os pobres debatem-se entre o desemprego, os biscates, o narcotrafico controlando abertamente as imensas favelas, e o salve-se quem puder instalou-se. Bush nao precisa se preocupar: a desregulamentacdo € 0 sucateamento dos servigos do Estado, uma forma sutil de terrorismo de Estado, ao lado da violéncia pra- ticada pelo narcotrafico, civil ¢ urbano, sobre os pobres é a forma per- versa do “bom do capitalismo é ser capitalista”, A passagem do pr a condigao de “partido da ordem” seqiiestrou as organizacdes € movimentos sociais, e casou-se com uma progressiva profissionalizacao da academia, transitando agora, com desenvoltura, pelas grandes reunides internacionais, onde o marxismo €, no maximo, tolerado com um certo fastio, um dar de ombros. Ha um constrangido siléncio entre os intelectuais de esquerda. Uns, por considerarem que o pr ainda esta em disputa; outros, por temerem a volta dos tucanos, que, de pobre ave da fauna sul-americana, se transformou em feroz predador. Outros ainda por considerarem, na velha chave da estigmatizacao dos dissidentes, que estes fazem o servico da direita, uma chantagem de triste lembranga stalinista, Terceiros, por considerarem que, numa socie- dade abissalmente desigual, a critica a um governo liderado por ex-ope- rario é uma critica de claro viés classista de direita. O que se transforma numa versio do “siléncio obsequioso”, copiado da veneravel Santa Madre Igreja, cuja capacidade dialético-alquimista de transformar chum- bo em ouro é ainda insuperavel. Com isso retira-se 0 operariado do ter- reno da hist6ria e volta-se a uma teleologia, que tem como resultado aceitar as inevitabilidades. Ha uma clara vitoria ideolégica da direita. A esquerda voltou a posigOes nacionalistas anacrénicas: Juscelino € hoje seu heri. Mesmo 302 Cardoso declarou-se 0 novo Juscelino, embora tenha prometido enter- rar de vez a era Vargas, sem se dar conta de que Jx foi Vargas levado quase as Ultimas conseqiiéncias — mas, diferentemente do estadista gaticho, 0 avanco dos direitos sociais sob jx foi quase nulo, confiado a dindmica do crescimento da economia. E Lula ja 0 cita desenvolto olha-se no espelho e vé 0 politico “pé-de-valsa”, 0 “peixe vivo” refle- tido. Pretensao e Agua benta sao de graca, como sabe quem freqiienta as igrejas catolicas. Mas, como disse Roberto Schwarz, a conjuntura é péssima, 6tima para renovar o pensamento radical brasileiro pelo mar- xismo. O que explica o “siléncio obsequioso” é claramente a falta de uma critica radical ao capitalismo globalizado contemporaneo, tanto na propria ¢ ampla esfera global como em cada uma de suas satrapias. Retomando, alias, a critica que em passado recente encostou a ditadura no canto da parede nas reunides da sarc, na criagao das sociedades cientificas em todos os ramos do conhecimento, no desafio a ditadura no seu proprio campo de competéncias. H4 debates por todos os lados, inquietacao, no principio frustragao, que se vem transformando em indignagao, e em alguns setores rapidamente transitando para o desa- fio claro ao “partido da ordem” € ao mito antipolitico de Lula; por entre dores de um tremendo dilaceramento, ja existe um enorme esforgo de distinguir o petismo do lulismo, essa forma personalista de usurpa do maior patriménio politico que o Brasil acariciou e formou ao longo dos tltimos quarenta anos. De desfavoravel, existe certamente o fato de que 0 seqiiestro dos movimentos sociais pelo governo Lula retira bases de interlocucao, sem 0 que o papel dos intelectuais pode voltar apenas ao redil do “marxismo ocidental”, Nao se trata de uma tarefa facil para © marxismo brasileiro e latino-americano: as condigdes de nossas sociedades mudaram radicalmente, com o mix da globalizacdo mais privatizacdes. Talvez.as chaves que a ciéncia social forneceuao proprio marxismo estejam grandemente desatualizadas. Se o marxismo foi ca- paz, e também no Brasil, de abrir-se e enfrentar decididamente o desa- fio que lhe foi imposto no campo da cultura, da literatura, da psicana- lise, e da prépria religido, terrenos onde antes reinava a ortodoxia mais impenetravel, tornando-se indispensavel 4 compreensio do mundo contemporaneo, ele ainda nao o fez no seu terreno privilegiado de ori- gem: na cconomia politica, Sem uma nova economia politica marxista, © capitalismo contemporaneo tornar-se-4 imune a critica. Pois um “amor sem uso” fenece, € 0 amor dos intelectuais marxistas continuara sendo a Revolugao com R maitisculo pelas novas sendas que a historia, de que somos nao apenas contempladores analiticos mas sujeitos ati- vos, forjara. A Revolucao é sempre uma invencao. 303 NOTAS (2) Para uma boa discussdo sobre alguns casos de “capitalismos tardios”, ver “Os capitalismos tardios e sua projecdo global”, em José Luis Fiori (org,), Estados e moedas no desenvolvimento das nagdes, Petropolis, Vozes, Colecao Zero a Esquerda, 1999. Walquiria Domingues Leao Régo realiza uma bela e interpretativa sintese do didlogo italiano no Em busca do socialismo democratico, Campinas, Editora da Unicamp, 2001 (2)0 papel de Plekhanov na difusdo do marxismo na Réssia ajudou muito na for- magao da intelectualidade que fez a revoluco, mas, sem divida, ele proprio se colocou sempre como um reformista, assim como toda a ala que foi denominada “menchevique” na divisao do Partido Operario Social-Democrata Russo. (3) Ver Fernando P, Limongi, “O federalista: remédios republicanos para males repu- blicanos”, em Francisco €, Weffort (org,), Os classicos da politica 1, Sao Paulo, Atica, 1989. (4) Vero sempre insuperivel Roberto Schwarz eseu Yim mestre na periferia do capi- talismo— Machado de Assis, S40 Paulo, Duas Cidades, 1990. (GD Ver, para breves comentarios sobre estes pensadores e sua influéncia na agenda politica brasileira, Francisco de Oliveira, “Didlogona grande tradicao” em Adauto Novaes (org), A crise do Estado-nagao, (6) Ibidem. (7) E interessante observar, no plano urbanistico de Brasilia, a obra maior dessa dupla maior, a concepedo da sociedade igualitaria explicita que a animava, seja do ponto de vista da habitacao, seja do ponto de vista dos espacos para atividades comerciais ede” servigos. a igualdade social que d4 o plano da cidade, ainda que um tanto hierarquizada. Aomesmo tempo, a monumentalidade dos espacos¢ edificios publicos comemora a forca que organizava a sociedade. Pode-se dizer que foi no plano do transporte que a con- cepcdo de Costa-Niemeyer sofreu sua maior derrota: uma cidade para 0 automével, quandoa experiéncia mundial do metré ja autorizava descartara solugioeminentemente privatista— e na verdade antiurbana — do automével. Evidentemente, a vida foi mais forte que a arte: 0 capitalismo oligopolizado o papel do Estado na economia tornaram pOas concepcdes igualitarias, criando as amplas periferias pobres das cidades-satélites e © cardter quase exclusivamente estatal da vida brasilica. (8) Ver Francisco de Oliveira, A navegacao venturosa — ensaios sobre Gelso Fur- tado, Sao Paulo, Boitempo Editorial, 2003. (9) Ver Caio Navarro de Toledo, ISEB — Fabrica de ideologias, Sao Paulo, Atica, 197. (10) © fundador da moderna critica literdria brasileira € Antonio Candido, de quem Schwarz € assumidamente discipulo. Mas Candido, embora socialista, ndo se considera marxista, mesmo que sua teoria de critica literaria seja, a meus olhos ineptos, decidida- mente materialista. Ver 0 seu Formagdo da literatura brasileira: momentos decisivos, 2 vols., Sa0 Paulo, Martins, 1959. (11) Marcelo Ridentiassinala quinze organizacdesarmadas cuja militincia bitsiea foi formada por universitarios. Ver seu O fantasma da revolucdo brasileira, Sao Paulo, Edi tora Unesp, 1993, (12) Inclusivea pretensa teorizacio sobrea guerrilhana América Latina, pelasmaos de Régis Debray, que mais do que ninguém se esforgou por dar um estatuto te6rico as formu- laces guerrilheiras do Che Guevara. Deve-se dizer, desde logo, que o Partido Comunista Brasileiro sempre se ops vigorosamente 3 luta armada em sua modalidade guerrilheira (13) Ver também, complementando o livro ji citado de Marcelo Ridenti, Daniel Aarao Reis Filho, A revolucao faltou ao encontro, Sao Paulo, Brasiliense, 1990. (14) Florestan Fernandes, A revolugdo burguesa no Brasil, 2 ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1976. 304 (415) Ver, de Cardoso e Faletto, Dependéncia e desenvolvimento na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970. (46) Francois Chesnais, A mundializacdo do capital, Sio Paulo, Xama, 1996, © Frangois Chesnais (org.), A mundializagdo financeira — génese, custos e riscos, S40 Paulo, Xama, 1998. (7) A bibliografia € vastissima e impossivel de ser devidamente citada, Talvez 0 melhor exemplo dela esteja no proprio Furtado. Um pequeno mas substancioso livro, talvez seu testamento intelectual ¢ politico (Furtado morreria dois anos depois, em 2004), que resume uma longa lista de livros e artigos, indica a permanéncia do fundo teérico do autor: Em busca de novo modelo, Reflexbes sobre a crise contempordnea, Sao Paulo, Paz e Terra, 2002. ‘ (48) Uma bela discussie sobre 0 cariter da desigualdade social no Brasil, que resume—masnio éuma resenha—oavancosociologicodealgumas décadas, éade Vera da Silva Telles, Pobrezae cidadania, Sto Paulo, Editora 34, 2001 305

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