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Oestranho nao é, entre nés, apenas o agente imediato do capital, como 0 empresério, o gerente e o capataz, ‘mas é também o jagun¢o, o policial,o militar. E, ainda, 0 funcionério governamental, 0 agrdnomo, o missionrio, © cientista social. Embora cada um trabalhe para um projeto distinto, raros sto os que trabalham pela vtima dos processos de que sio agentes. Sao, portanto, prot sgonistas da tragédia que aniquila os frageis e que, por ‘sso, nos fragiliza a todos, nos empobrece e nos muti, pporaiue preenche com a figura da vtima o lugar do cia «dio, E nos priva, sobretudo, das possibilidades histor ccas de renovago e transformacio da vida, eriadas jus tamente pela exclusio e pelos padecimentos desneces- ‘sérios da imensa maioria. José de Souza Martins A CHEGADA DO ESTRANHO DO MESMO AUTOR, NA EDITORA HUCITRC Crt Motaraceo, 0 mpressrio ea Empresa (Etude de Socior 2osta do Desenvolvimento), 2 ed., 2° reispr nig Fob 0 Modo Copitalisia de Pensar, 4 ed nes Tepecriagdoe Violeneia (A Questa Politica ne Oamap), 2 ved, 1982; 3." od., aumentada, 1991, Migemiitde Criten & Sociologia Rural (org), 2 ., 1986 6 eas 0 Mortos na Sociedade Brasileira (orgy Yoon © Cativeiro da Terra, 4° ed. 1080 AIS faerie oe Limises da Demoeraca na “Nova Rept Caminhada no Chao da Noite, 1989 © Massacre dos In (org.), 1901 JOSE DE SOUZA MARTH ‘Universidade de So Paulo A CHEGADA DO ESTRANHO EDITORA HUCITEC Sao Paulo, 1993 INDICE Introdugio n Cap. 1 Antropofagia e barroco na cultura latino-americana 15 Cap.2 ‘Tempo e linguagem nas Intas do campo a7 Cap.3 Achegada do estranho 61 Cap.4 As lutas dos trabalhadores rurais na conjuntura Cap. 5 Cap. 6 adversa 83 Os novos sujeitos das lutas sociais, dos direitos eda politica no Brasil rural 107 Mereado ¢ democracia: a relagao perversa 155 INTRODUGAO Os citorentes textos que reino nosta livro teatam de umn fenémeno que ainda nfo mereceu maior atangio dos soci6- logos: neste pais — 0 do desencontro, que se expressa na importaneia social (e sociolégica) que em nossa sociedade e em nossa cultura tem ow@gtzanio. Em principio, 0 que vem “do fora”, o que pertence a “outro mundo social”, diverso do daque- los que sofrem o seu impacto e vivem a sua presenga intrusa ¢ incomoda. Em perspectiva diversa, © oposta, uns poucos fala- ram na presenea “do indio no mundo do branco” ou “do negro no mundo do branco”, analisando com competéneia as formas de ajustamento e transformagdo, de encontro, entre personagens «de mundos étnicos distintos. 1H, porém, uma enorme riqueza socioldgica na crientagao © nna situagdo epostas — a do desencontro, da estranheza, da resistencia — na persistente e, por ora, renovada experiencia lo aparentemenis. perdedor-e derrotado. Blas nos falam de maneira densa sobre caracteristicas e processos particulares desta sociedade. Uma sociologia do estranho.e do estranhamien- to é um reclamo natural de uma sociedade de tradigao corpora tiva, careegada-de-preconceitos sociaisy que TAG passou pelos processos-revolucionirios-que,-em_outros-lugares;-levaram & disseminagio.da_igualdade, da. contratualidade nas relactes sociais-e-da.cidadania. A nossa sociabilidade dominante 6 de- marcada e bloqueada por enormes dificuldades no reconheci- ‘mento do outro, sua accitagao como outro, ist 6, diferente, & igual. Se, de um lado, as citncias sociais tm reconhecido determi- n Le INTRODUGAO Hs etnins, grupos, classes, como “estranhos” © procurado ‘sludlar © compreender as cargcteristicas da sua integragio na sociedade *branca” © dominante, na seciedade do classes, 0 mesmo no tém feito na escala desejavel com os que mandam, ‘com mais razio ainda estranhos em relagao aos dominados ~~ ‘dios, eamponeses. Mesmo porque referida intagracio nfo tem se dado agui nos mesmas termos em que acorreu nos pals moderns. Os aleangados pela expanstio eapitalista sao ie uentemente langados nas escalas inferiores da produc mer- cantil simples, como ocorre elaramente com grande parte do nosso campesinato. Quando nao #80 banidos para a miséria aquilo que enire nos se tornou uma condigao permanente de nimitos, © nao transitéria como em outras partes, que é a do fexéreito industrial de reserva, lugar em que a situagaa de exclufdo (e de estranho) ¢ alimentada por condigoes andmicas de vid. E preciso invertor a perspectiva. Bssaa populagies Som vivi- do eofrido o impacto do estrano, que nao ssinvnde teretarios toibais -torras eamponetas, confinanda on expulsando, mas também quobra linhagens de familia, destréirelagdes sciais, clandestiniza concepgoos éulburals, valores, rezras — vitals para a sobrevivencia de tribos indigenas © cofmunidardos rarais. No minimo, repositérios de coneapgies alternativas do uma: zo, que novsa sociedade, em seu eanjunto, beisnsa © volenta, vem perdendo ou j4 pordeu. Assim como a devasagio de oresta destrsi definitivamente expéciea veustais iteis, a do- vastapio ou a mutilagio de grupos sociais diforantea do nosso oI xi de viver ©de pensar, bem como destrdi suberes auer acelerada que estamos vivendo. E verdade que, sob a dovastagio humana que presenciamos, persiste uma notével capacidade de recriagio ¢ regencragto de idéins ¢ modos de vida, muitas vezes através da assimilagdo, redefinida, das concapptes do inimigo. Mas as Iutas indigenas e as utas campo. nesas nfo tm sido suficientes para sensibilizar @ modifica a3 conviegoes sociais das elites, sobretudo oa dos intelectuais, oda classe més Ivrkopugao 13 Sovidlogos o historiadores 4 destacaram a importincia rave- Nucionsiria que tiveram as eoncopsoos eos valores pré-eapitalis {us dos artosdos o eamponeses europeus na resistencia & devas. {agio social de que tem sido portadora a centralidade do lucro ¢ lo condmico na definigho das orfentagtes sociais e das institui- ‘vi da sociodade moderna. Gragas as tentativas de defesa dos rivilégios pré-capitalistas das camadas populares, fo posstval ‘nienuar og efeitos destruidores do desenvolvimento ceonOmico ‘norlorne dos paises rieos e darthe wma directo social. Ascii, {oi possivel assegurar os direitas socials, constituindo a cidada- hia © dando-the sentido. Nas sociedades pobres, e em nossa cdudo brasileira om particular, oa pobren do campo e da cidade no 26 nfo tinham privilégios @ defender como nao tiveram aliados, em suas lutas, para impor condigbes 20 desen. volvimento econémieo que a este obrigassom a algum compro. ‘misso com 8 direitos sociais v com a dignidade humana. De ‘modo que, mais do que vistos e tratados como seres de trabalho ‘fontes de luero, fossera reconhecidos como seres de direitos. “O-estranho néo 6, entre nés, apenas 0 agente imediato do capital, como 0 empresério, 0 gerente © 0 capatan mas € também o jaguneo, o poleial, o militar. B, ainda, ofanciondeio yovernamental, 0 agronomo, © missionsrio, o cientista social Bmbora cada um trabalhe paca am projeto distinto, raros ato aque trabatham pela vitima dos processos de que aio agentes, ‘Sao, portanto, tas da tragédia que aniquila os frageis ates er aaa ns epobrese eo ruta, porgue preesebe com a Bgurs da lugar do cidado: F nos priva, sobretudo, das possibilidades historicas de Fenovagio e transformacio da vida, criadas justamente pe Ja exelusdo e pelos padecimentos desnecessarios da imensa salon. ‘Sto Paulo, 1 de maio de 1991. Capstulo 1 ANTROPOFAGIA E BARROCO NA CULTURA LATINO-AMERICANA* O auc seria interessante tratar em um encontro de ssoas comprometidas com programas de solidaredade a ou- {ros patses outros povos, em particular com a Amériea Latina? F que se propem a fazer uma eslebragio critica do V Centens- rio do inieio da Conquista? £ estranbo, mas li, no eartaz que a nuneia, ‘a conquista continua”, em portugués, porque ha um ‘iuplo sentido para essa expresso. “A continua conguista’, esse sentido i, porque a Conquista de fato nao terminow. O Doqueia sobre Cuba nio é um ato de conguista, dominagao, ‘prossto e colonialismo? As mutilagdes da Conquista consti ‘nom a vossa proposta de um debate, Porque a Conquista se {ornou um sistema, a conquista é um modo de vida até agora. A Conquista 6 como um virus que nos contamina e nos destri. A Conquista se jornou aimpossbildade de mudar a situagio dos ates Intinosmericanos, Padiram-me para falar também sobre a veléneia, Qual vio- loncia? A voléneiainstitucionalizada que levavam os mission‘- ios ¢ que muitos doles ainda lovam As soeiedades latine-ameri- ‘anas? A violéneia da divida externa? A violéncia de uina con- cepgio de democracia que € apenas uma fachada da histéria * Exposigio feita durante o 12.* Convegno Nozionale della Rete Raclé Resch di Soidarieta Internazionale, em Rimini alia), queteve ‘amo tema “1492-1992, A Conquista Continua’. Publicado orginal ‘monts como titulo de"l.avioloza dellAmeriea Latina e sullAmeriea Latina’, in Notciario della Rete Redié Resch, numero quindici, Anno X, Lugo 1982, p. 26-28. 16 ANTHOPOFAGIA H BAREOCO Jatino-americana? A violbncia ila ditadhras? A violéneia de wm capitalismo que nao tem nenhumna relagsa com a dignklade humana? De qual vieleneia se pode filler? Paroce-ane que It ‘também upra violoneia nesta coneepeao triste da Amérien Late nna, A nosea. América Latina 6 triygea, inas 6, ao mesmo tempo, divertida. F precian sompreender esta nossa contradigao, Sem compreandé-la nio so compreenda nada, pois na ae pode ehorar toda o tempo. As vezes ¢ preciso rir. E precisa cir de inimigo odo que dele feou dentya de nos. Par isso, ¢ preciso rir tambom de nossas proprias debifidactes, dos nossos enganoa, das noses vilérius quase nunca dafinitivas. B procivo rir 0 rico eritieo que denuncia a eornicidads des pravagonistas, eanquista: doves e conquistadoe, na va tencativa do vestir, e de impr, a apertada roapa eulsal de quom manda ow pensa mandar. Nao chorem por nds, porate @ Amérien Latina nfo € urn faneral, A Ameérien Latina é una festa, mesmo quando estamos scylean. do os nosso movins. Porque no silencio das dumeraia das vitimas los que nos oprimem ha também 0 cAntisa interior de nassas aperancas, aninele # prefigaragse da nossa festa eoletiva @ permanente, Destaco alguns pontos para wna zuflexio sobre este tema, para quo ee eompreenda « senticio daa nesaoe problemas. Antes do tudo, o que veiw a ver a América Latina Io ora antes da Conguista o tornow-sn main antrepotigies hinds depois da Conquista, As eartns jesuiti- eas do século XV nos falam abundantemonte do uma intensa pedasogia ovientada contra a poligamis © 9 canibalismne, Du: Fapte quase com anos, n eueiedads brasileiva nascente foi submetida a ume agto podagdgica cotidiana no sentido de ‘trunsformar 02 valoraa de canibaliamo rital ex valoves nega: tives da sociabilidads do novo mundo. A negatividade do es: nibolisme fol implantada nae proprias rales das sacieda- ides latino-americenas, sepultada reprossivamente cots a poli- amis nos torrenos profundos éo pre:bide € da geultsdo, Be- coberta pela lapide fragil dos adornes barrocns do entalicisine © dda f8. Ld no fando, permaneso a visagom desea modo wnwes- tral do ver. Na necessidade da dissimulagae, # Ameriea Tati NA CULTURA LATINO-AMERICARA " Ino te destroi a si mesma, obrigada a parecer mais do que a No infeio do séeulo XV,» primaica historiador brasileiro, ascide ns Colonia, um teaneizeano que ae chamava Prot Vi- feente do Salvador, excroven uma bistéria do Basil, cern anos ‘apo « inicio da ocupagso portuguesa do atval ternitérie bens nico. Num certo momento conta a luca dos portugueses contra fos indios Poeiguare @ com aryailho narra que 96 portgceses lunfiavum os prisionviros indigenas nos ennhaes para dispaes- ow contra 63 fndios que aindn resistisat. Era um ergulho fristto, a £8 contra a falta de fo, Frel Vicente da: Salvador morreu hit mais de trozentos anos, mas os indios Podiewora Iutam ainda na Baia da Traigno, na Paratha, B, provavelnente, ‘mais longa histéria de eonflito entim um pova éndigena da América © o8 cormquistadares. Frei Vicente do Salvador est ‘morto, mas 6s divs estae aindh sivas, entinciando, come pevo, fue née querem marrer Bret Vioonto do Salvador esqueceu-se de utsa earactoristiea muito importante da vida indigona daquele iompo-beanibalisma gum pratioa ritual da pavene renascimenta do homem no set Aomelhante. Av longo dos sceuloa, 08 conquistadores, antes Tmosmno de tocar a nova terra, ja acreditavam que os tndios fossem canibais; que comiam gents porque exam prumitivos Bra um mito, Mesmo hoje ha quem ni Paropa an nes Estados Unidos aevedite que hi ainda indies canibais. Infeliewente, nie ha. Ha cerva de dois anos um seeiqae do Xing, apossande-se esse mito braneo de canibalisme inlizenn, nmeneon, maha fentrevista na televisto, de comer os hraicas invasorcs das fterras de sus trib; mos explieava que nao deseiava faz6-l0 Porque, entre os diverson tipox da encne de aninnais, a pior ora dos braneos Os primeiros livios escritne sobre a América atlantica, fa Jam-nos de canibaliemo. Ha wn liveo, em particular, de um ‘lemao, um mereenaeio que foi para 0 Brasil no séeulo XVI se 2 Of Fra Visonto de Salvadee, Historia do Aras, 1900-1697, 74 digo, EDUSP/Buitare Tentiala Lian, Belo Hovizont, 1882, a8 ANTROPOFAGIA E BARROCO chamava Hans Staden*. Fol prisioneiro dos indios tupinambé e ‘como tal condenado a ser por eles devorado, Depois de algum tempo, pode escapar © escrever uma inemérin sobre a expe~ ianela de ser vitime, potencial e tastemunhal, da fore ritual dos indios seus captores, K muito interessante porque o livro tem varias e preciosas gravuras que nos mostram os tupinamba eaquartejando ¢ devorando prislaneivos: um come uma perna, outro uma cabera, autro as maos @ assim por diante. Neseas gravuras,feitas por um branco, € visivel a alegria com que © fariam. Porém, tratava-se de uma ceia ritual, Of bramcos, eo longo dos séculos, tem interpretade o.canibaliamo indigena-do ponto de vista da cultura da morte, de quo-eto portadares "Todorov nos fnlou da dexeaherta da Amériea como deseoberta 4a rolagdo entre o et « 9 outrof, mas pareco-me que as evidén- cing no eso adequadae porque sle utiliza sobrotudo os docu- ‘mentos dos espanhdis, dos conquistadores. E preciso fazer ima ‘tnografia das culturns indigenas para compreender & concep ‘fo que tinham e vem do outro, que era muito mals “rexpeltosa", ‘muito mis “humana”, pols nea o outro a6 tinha sentido const. ‘ido ¢ realizado no proprio corpo-€ no espirito de quem 0 dlovorava. Estudos antropologicos tem revelade euidadosamen te esse lado fiondamental da realidade indigena, que nao pode ser captado pelo olhar branco dos brancos leigos*. Os indios tinbam uma concepgao do outro, do estranko, Ainda ha’ pou = ee oder’ A cara dan aigarguiea ¢ una tare madonna, An rrr Fizem win dincnrs de enquerday no pegeado, no eoealo pad seam iraingznne atin soca moms barre tno: viver om controll, Eaagigarga stiles contre {2 pesnirerrettteereloyberouteatnireaire ar psoas, {evaldader mas, ao samo: tempo, fundam e baseinm 0-208 pollen Flags de dependeatn pessoal ue fron de serv 2x, um vlachonamentadarirada da eecravidao. Taiese tanto nu misice da Ameri Lating, na vocajBo ‘Himicn¢ musica dot laine-amerieanoe, Na verdado, © ome Tuna bervoco do neewo nada‘e da newa sujeigin, No ao tram, vine A Talia com mm represeatante 90" Movimants WA CULTURA LATINO-AMERICANA 2 jonal de Meninos de Rua do Brasil, para participar de wes com grupos intereseados no problema das eriangas ‘nfincia, ns eriangas de rua. Um dia nos levaram a um fonde havia um grande nsimero de eseolares e me parecau stranho que eriangas tao pequenas estivescem inte- ‘Fousadas em nos ouvir, Na verdade, elas nem mesmo sabiam {Wal ora a nossa ineumbéncin ali, porque, segundo dissoram, aperavam dois brasileires que tinham vindo para dangar & ‘cantar, Era, evidentemente, falso! Nao estavam ali para owvir a “Tossa palavea # a nossa razso, A mdsica na América Latina é, Mhuitas vere, e¢ fol seguramente nos primeiros tempos, a con- “irtfagso do silencio, Para oa negros e mesmo para papulagies Aniligenas que sobreviveram ao contato com os conquistado- fos, 0 masica @ a danga foram a fala dos emudecidos, dos ‘ilenciados: ‘Sempre me recordo de um acontecimonto um pouco eurioso: fstava na Amnazinia fazondo uma viagem para o sertio do “Maranhao, de dnibus. Ao meu Indo, por dois dias e duas noites, jm jovem camponés usava dculos ray-ban, como 0 general MeArthar. De ver em quando os tirava para limpar as lentes, ‘poréin com muito euidado para nfo estragar o selo dourado dat Imurca dos doulos. Ele nio sawn os Geulos para ver, mas pera hier visto, Claramente, um eamponés barroco. Ble queria ser 0 fienhor do objeto, da mereadoria, mas esta é que era a sua fonhora, © barroce est em todas ae partos, sempre, nos pro ys pequenos gestos eotidianos, até mesmo na revolucao, s30 barrecas, «.noska esquerda 6 barro- ‘sen. A Revolugaa Mexieana no sew momento mais glorioso, mais, Vinportante, quando os eamponeses chegaram a cidade do Mé- xxieo, tomou a forma de uma procisedo do aldela, Os eampo- hoses, os indios, levavam o eatandarte de Nossa Senhora de Guadalupe, batiam & porta das casas e pediam a earidade do ‘um pedago do pao © de um pouco do café. Klos oram os vence~ dores, mas nio o sabiam ou nao sabiam #6-lo! Emiliano Zapata, ‘ Pancho Villa sentaram-sé a mesa presideneial para serem fotografados. Mas Emiliano tinha pressa, devia retornar logo & ua casa na pequena aldeia de Anenecuileo em tempo para 4 ANTROPOFAGIA B BARROCO semear 0 milho. A Revolusio nao era uma semesdura, um comego. Apenas assinalava 9 fim de uma tirania, 0 “barroquismo” da cultura Intino-americana’se-apresente numa. vide-de-dissimulagio. Faz-se de dia o que se destr6i de noite. E preciso sor assim. A polieia, no Brasil, por ‘muito tompo procurou reprimir aa tradigdes negras, dos ex. escravos levados da Afriea ao pais na Colénia ¢ no Império. Como conseqdéneia da repreago fol inventada uma religido, @ ‘umbanda, uma religiéo permitida pela polieia, que combatia a macumba. A policia deu a sua contribuleao para inventar uma religito, um disfarce, um ocultamento da crenga verdadeira. Até & meia-noite os’ nogros das favelas do Rio de Janeiro praticavam ou praticam ainda muitas vezes o calto da umban. da. Mas, & meia noite mudam o altar para fazer a quimbanda, ara pedir a presonca de Kxu, a entidade divertida e, as vozes, me. az alguns anos os indlos xohd, do rio Sto Franciaeo, em. Sergipe, me convidaram a participar de uma missa para cele brar o aniversério de eeu retorno a sua Tha de Sto Pedro ¢ a0 seu povoado, de quo haviam sido expulsos ha um ano. Fazia dezenas de anos que aquele grupo estava sob controle ¢ tutela, de uma farnslia de latifundisrios que thes tomara a terra, como fossem eseravos. A familia, da oligarquia loeal, empenhou-se fem destruirihes a lingua, como ocorren em quase todas as artes na sociedade brasileira. Nenhum {ndio xok6 sabe hoje gual ¢ a lingua que falavam seus antepassados. Mas na mulhe- res, quando iam ao rio lavar a roupa, escondiam-se na mata para dangar o tore. ‘Nessa danga esteve 0 centro do renascimento desse pequeno ovo de umas poucas dezenas de pessoas. F preciso disaimular. Ché Guevara 0 compreendeu na guerrilha. Ein seu diério hi ‘uma passagem em quo so refere aos olhos de pedra dos cam- poneses bolivianos. Bra tarde demais. Os olhos podein revelar coisas que nao podem ser ditas s ninguém, Oscar Lewis disse CF, George Lapassade » M.A. Lu, 0Segredo da Macumba, Pax 6 ‘Terra, Rio de Tansiva, 1972, ne (CULTURA LATING AMERICANA 25 fs culturas Intino-amaricanas sao culturas da pobreza, ‘Oscar Lewis! Nao compreenden tudo-Amentturas Tatino- y mede-Os missiondrio nos trouxe- ‘Trouxeram a idéia do inferno, da condenacao ‘propria idsia da morte. As nossas culturas so cultu- fachada. Andissimulngio-6-uma-agloone= Na dissimulacio hé a revolta permanente, a srmanente. © Basa caquizofrenia Historica tem o seu motivo. O.capitalis- juxeram (pode-se falar de morcantilicmo num ‘corto momento e de capitalismo num outro momento) nao é © ‘mosimo capitalisma que se dosenvolveu na Europa ¢ muito ‘wnos nos Estados Unidos. um capitalismo. basoado na 0 latifndioy na desigualdade dos es- ampnnz naira 29 mance mds, eonpetanen: te yeapitaliamo baseado no capital, na abstragao do_ on rulacian juridioamenia ieuulifirias. O letifca- BE cat A viqonen sven connote iquann-acuma cons ponpeeert rds nigurerbamcnda ons Mpotalhore nna rgucsn hnscnda nso meager 8 explo ‘Compra-se por poueo € vende-se por Jpaseado na extoraio. Por Peru, no inicio do século. A mosma eseravidno que havia’em 1pygides do México até ha pouco. De vex em quando reaparece faqui ou ali. No caso brasileiro, é um eseandalo, porque a es- ‘eravidao renasco a cada dia. Nao se trata de eseravidio em termos simbslieos. Compra-se e vende-se escraves, traneados & ‘noite para que nfo fijam. Em Rondonia, um fazendeiro man- dou cortar o tendo de seus trabahadores para que néo fugis- ‘nom. Mata-vo a quem tenta fagir. # ainda: se vende @ se dé recibo. Orlando Fals Borda, sociélégo colombiano que tom procurado ocifrar os onigmas de nossa América, oseroveu um po: fqueno livro sobre as rovolugges inconelusas na América La- 26 ANTROPOFAGIA E BARROCO tina”, Essa é a nossa caracterfstica: as nostas revolugdes ndo terminam, nfo chegam a nada, porque no limite podem des- truir-nos. As nossas revolugSes so meias revolugses. Sob o novo — por isso so meias revolugdes — o velho se repete sempre. No fundo, dizem alguns especialistas, porque as re- volugdes do mundo ocidental tém sentido apenas nos paises desenvolvidos. > Eric Hobsbawm, 0 historiador inglés nembro do Partido Comunista, que procurou compreender as lutas populares da América Latina e do mundo moditerraneo, nos diz que nossas lutas sdo pré-politicas, enquanto as dos outros sio politicas. As nossas revolagées no tm sentido desse ponto de vista. Nao falo apenas da direita, das oligarquias liberais, mas também da esquerda. Nao podem compreender uma revolugdo que seja a0 mesmo tempo um carnaval. A periferia ainda no conseguiu revolucionar 0 centro. Os olhos dos camponeses so de pedra, mas também os olhos dos outros. Qual revolugéio? Uma revolu. 40 para libertar os olhos, o ouvido, a palavra que nos tomaram. E termino com uma pergunta que me parece resumir a vossa tarefa: é possivel libertar o outro sem ser libertado da cadeia da vrazao? ® Cf, Orlando Fals Borda, Las Revoluciones Inconclusas en Améri- ca Latina, 1809-1968, Siglo Veintcuno Editores, México, 1971. ® coon _ ‘TEMPO E LINGUAGEM NAS LUTAS DO CAMPO* e he quo significa o aparecimento politico deseas novas personagens Pore snwitos, ainda nfo bé clareza completa sobre 0 In historia recente do Brasil, que 8&0 os indios e os camponeses ‘Ontom, foi dito, aqui, que as mulheres ainda sao tratadas como minoria, quando na verdade silo maioria — 61% da populagto Vale a pena ter a mesma preocupagao com os indios.<.0s | Ginponeses, que sso tratados como os dltimos dos ultimes, os hejaaram no fim da Histéria e para os quais jé nfo hd lugar. lectnais de esquerda;mais sensiveis a0 “apareci- to” desses grupos; tendem a-concebé-los como uma especie ile apendice-atrasado da classe operdria. Supostemente, sem ‘Glasse operdria nao h4 compreensio de nada, Esse entendimen- ‘to simplifica a realidade e complica sua compreensao. Temos de {ofletir criticamente sobre o tema. #10 que vou tentar fazer aqui Bstamos diante de desafios tematicos, de problemas novos. Alguma coisa esta acontecendo e precisa ser explicada sociologi- faimente. Bssas populagies, que vivem no limite da agéo politica eonseqtiente, presentes nas nossas preocupagses, colocum-nos diante da necessidade de reconhecer o inevitavel, que ¢ omeua. Essa presenga do inevitavel imp fantsna medida em que nos afasta de um certo colonialismo {nelectual, tradicional em nosso pais. Durante muito tompo, 05 * Toxto transerito da gravagio de exposigto no Seminario *O retor- hho do ator — Frange/Brasil: Movimentos caciais em perspectiva’, na Puculdade de Bducacdo da Universidade de Sto Paulo, 3-6 de julho de 1989. Revisto pelo autor. ea 28 ‘TEMPO E LINGUAGEM. ossos socidlogos mais competontes resistiram com dificuldade ' essa tentagao tradicional da intelectualidade brasileira, do bacharel brasileiro, que 6a de ter a cabeca na Buropae oassento no Brasil. Ou 0 assento vai do uma vex para I4, ou a eaboga vem de uma vex para cd. Tem derivadodat uina insidiosa perspectiva folclorista, que faz dos “retardatarios” da Historia personagens ‘estranhas ao “nosso” mundo, constitwidoras de um mundo st postamente & parte, o “mundo deles’ —o mundo do “eles”. © que esta acontecende com a prasanea do sindio como toma, nos dias de hoje, no mais tema exclusive da antropologia, ¢ As vezes de um certo colonialismo nela embutido, mas tema e preocupagto de outras ciéncias sociaie, 6) 0 reconhacimento do {ndio como agente politico. A mesma coisa corre com a popula. ‘s80 camponesa, J nto é mais, apenas, o camponés folelorico, 0 camponés das festividades populares, 9 eampones que simboliza © praticn o atraso, Agora é 0 eamponta que ocupa terrae desoew. padas, que luta, que desafia.o Conselho da Seguranga Nacional, ‘que nos questiona a todos, que invade a rigida demareagho positivista dos eampos de ostudo da antrapologia e da sociologia.” Portanto, estamos diante de sujeitos histéricos que nos obrigm arepensar esquemas, 'spectiva, por exemplo, as idéias de Lanin tam uma itada, perdem sou protenso peso de teoria absolute © revelam sua dimensto ideologies, muitas vezes mais forte do que a tedrica. Come encaixar 0 Cacique Raoni e aa lutas dos ovos Kayapé nas idéias de Lénin? Coma se encaixa a Tata dos seringueiros do Acre nas idéias que Lenin tinha sobre o campe- sinato? Lenin, anticamponée, fol transfarmado num teérice do eampebinato no Brasil, pelos pesquisndares, sem que suns inter- ppretagies fossem vistas na perspectiva e nas limitagbes das particularidades do processo histérieo de que nasceram —as do desenvolvimento do eapitalismo na Riss ‘Todos sabemos que muttas interpretagoee desonvolvidas a. partir da realidade de outros pafses nao podem ser transplanta- das sem mais nom menos para outras sociedades. Como econ eeu com as idéias dos posquiaadores americanos sobro a tradi 40 60 tradicionalismo camponoses. H necessdrio tar a coragem Was LUTAS Do casPO 20 lo nooitar o desafio de produsir uma ciéncia social que corres Jn A realidade da noesa sociedade es indagacses e proble- Imus que ela suseita © propee. I esso o suntido das roflexdos que ‘You dosenvolver aqui. Blas conatituem uma tentativa de-retorno ‘cia diretria da sociologia que, em outros tempos, teve Jancia na formagso dos socislogos, inclusive aqui na Uni Yormidade de Sao Paulo —a de que a soriologia 6 uma autocons- fidneia cientifica da sociedado. Bo que diz Hans Freyer num fiaquoles antigos e bons manvais que usdvamos aqui na Escola. Nini icin continua aendo verdadeira e ganha maior riquezs {linndo proseupoe a diferonsas de sociedad. INto da para ransplantar de um lugar a outro conhecimen- Aesocio\gico, eam um crive para distiouvir a oun particularida- fie cn su posstvel universalidade, B af que se manifesta tintividade do rocislogo © a Smaginagao coclldgica. Estamos falundo do cincia, nto estarmos falando da ideclogia, Porém, © onhcimento vocioligio ¢, em parte, tarabéen, exprosaso do Mina realidad espectica, singular. Temon de inluir no nosso trubstho a ideia de singular, No nosso singular esta, elaramen- {ovo posscir, eat o indio, extd o negro e exeseravo, Estou f= Indo, portania, de um eonhecimentosocioldgico que opera num tarrtéro demarcado, situado. A socologia, por menos que se fonts, 6 um conhecironia situado, Neste sentido, a pesquian fosolopica sobre easas populagles é pesquisa quo tem como Bo nto procedemos aasim, acabamoe farende udja cléncia e2- trenyeira,no sontido de eeirenia em relagbo ao mrunde daquale ‘sta endo objeto de espide. Um sociclogo americana — Iitrold Garfinkel —trosxe muita perturbagio a socologino a08 focilogos, em malo a contribuigtea tmportantes e eristivaa, porque nfl reconhece no outro aenao a viima da ciencia, Sus ftnometodologia nem étiea leva-o a tratar pettons e grupos com {Que trabalha como vitimes de experimentagde: em tal expert. Mento c vitima reage desta mancire; em tal outro, a vitime tonite daquela mancira, E preciso superar a idéia da vitima, ‘Ainda ha muito enminko ats pedermos incorporar a erlativi- dade, a inventividade e.@ novo senso comum que vai sendo 30 ‘TEMPO B LINGUAGEM, produsida no cotidiano. A socilogia tem que por um fim na briga tradicional com oggnsgpomttiyle¢umacias mateizes de -referéncia.na constracan de uth pensanento socolstoo malt bréximo da diversdade do roal. Bm vor de dialogar com ce, socilogia tem pretendido, nos utimos anos, por mets de uaa obra como a de Peter Berger, entre outran,transformarae eat tam nova senso comum. A rociologin vom procurando se trans, formar om senso comm, em subatitata de bom sons de homens comum, como também scontecen com a poleslogia: Dens da, casa, joven, fancionariow pdblicos, pars, profeeseres tolos podiem usar a sociologin HA manaisinhas que se podem com. par nos acroportos e nas rodoviaries, que tupestemente nos fazem compreender tudo o qua estéacontecendo wo nonso redo, isto 6, com of outros. E, agora sim, com os alhos ojetives ds clea eno mais com os olhos velaos do “volo” senwo comun Borém, o problema é um poco mais complied, Se a aociolo. sia tem, como uma da suas pretonsbea, ade transformneca oma Senso comum, ¢ necsasdrio quo também tonha a hunildade de reconhecer quo essa modalidade de conhocimento tem raises "sociais dotorminadas elimitadoras) ~ antes de tudo, sla cons, Stilo modo de pensar de uma época 0 do tm lugar. Nessa sentido, o senso comin dos outros 6 igualmente rlewantesBte pré-interpreta.a.vida social.e, desse modo, nl s6 fala da parti Gularidadle como; éembénaprosonta pitas inpertanten para Fa explicagao-sociologicn sto-da universalidade que |. Convém ter presente que indios e camponeses ram apresentados & sociedade pelos socidlogos., Foram eles que se apresentarnm como mujoitos-ngentes de contac ‘nent ¢ dottistora,falaeidoatravée de rane lutan« eonfrnton coma *nosta!gociodade; matrindn onea” gciologia. Blew eatan nos pondo, portanto, diante de indagaptes que eto fundamen tais para entendormos a sociedade, nfo 0 e realldade deler, mas também a nossa, Indios © camponones tom af um papel importante. Nao se trata da classe opera, Potamos flandde ‘upos humanos ode entegorina cin quo tem sido mantidoa mnargom, excluidos da Histéri. A nossa tradigae hiwtdrice « conporativa poss ainda na exciasdo scondmica da rande macea NAS LUTAS DO CAMPO sa [nabathadora e das populagses indigenas, excluindo-as, porém, politicamente e marginalizande-as socialmente, ‘Sio popalagdes compelidas, por isso, a praticar uma vida de uplicidade, a ocultar elementos de sua cultura ¢ a revelar laponas 6 que é sancionade pelos que ae dominam. Nao estou finlonvdo unicamente de raciemo. A primeira coisa que 0 indio porte intair, quando 6 aleangado pela chamada eivilizagto, é que feu lugar nesta sociedade é demareado por uma desigualdade Gortrutural que faré dele, com o tempo, uma dupla pessoa. O osm aeontece com os camponeses, que, em muitas regives, lias, sto na verdade a outra face da diseimulagao que um dia tingiu seu antepassado indigena. sea duplicidade tem impli- ‘oagdes na trabalho do socislogo. [Rstamos diante de um grande niimero de conflitos no campo, onvolvendo populagies indigenas ¢ camponesas. O numero de ftrupos indigenas, no Brasil, nao 6 muito grande, una 180, fbbrangendo tuma populagso de cerca de 220,000 pessoas. ntre- tanto, a quase totalidade dos grupos indigenas envolvew-se em ‘onflitos tereiteriais nastes tltimos vinte anos. Alguns envolve- rmun-se om verdadeiras guerras, como ne caso dos Kaingang, do sul do Brasil — Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Parana. B, também, 0 caso dos Txurkahamst, de que faz parte o Cacique Raoni. Elos desencadearam a guerra contra os brancos e, sobre- tudo, contra o Estado, Tiveram vitérias significativas. I, ainda, © cane dos Guajajara, do Maranhio, dos Surui ¢ dos Uru-eu- nena, de Rondonia ea terrivel o tragica guerra dos Waimi- reAtraahi, no Amazonas, que foram barbaramente dorrotacdos Firam uns tres mil fndioa © extao reduzidos a pouco mais de 600, hoje, disimados que foram nestea ultimos anos. M4, igualmente, um nimero grande de conflitos no campo. IRgclarogo que nfo extou deixando de distinguir ima de campo now tiao krupos e realidacies distintas, com eapacidades o possi- bilidades histériens diversas, com &xitos o fracassos totalmente diferontes; no-eonfrenta com seus domninadores © exploradores. CGonvém que isso fique claro nesta expocicao. 'No Rrasil tem ocorrido tans quinhentoa conflitos fundidrios por ano, Mais le trés mithaes de eamponeses tém sido aleanca 32 ‘TEMPO E LINGUAGEM dos pela violéncia armada do latifindio, A média anual de mor- tos 6 de com eo mimero de mortos vem duplicando a cada cinco ‘anos. No sltimo qainguénio, houve 630 mortos, uma violéneia muito extensa e, a0 mesmo tempo, muito intensa, pois, om ‘mortos tendem a ser, om maior nsimero, pessoas de lideranga liderancas sindicais, de povoados, ¢ até liderangas partidarias uma violencia dirigida concretamente para demolir a capaci. dade de organizagao © expressao politica dessas populagies, Esta sociedade insiste em manter a duplicidade, em manter essas populagdes “fora” do proceso histérice. Por isso, reage violentamente quando elas ke manifestam © proclamam seus @ireitos. Elns acabam entrando residualmente no processo, na ‘economia e, também, na politica. Osisocislogos tam sido tontados-a-tratar ease grande mimero de conflitos, iscindamante,-como-movimentos sociais- Porm, isoladamente,-cles.niio sao movimento socials, nao tem earac. ‘teristicas de movimentos-sociais. Aparentemente, 0 aleance dessas lutas circunscritas (muitas das quais conhego direta. mente) é muito pequeno. Portanto, nao é conversando, apenas, com seus participantes que xe pode apreender, na sun inteirese, © efetive movimento social que ests ocorrendo. Como acontece fem qualquer outra situagao, 0 canjunte do processo em que costae envolvidos nso & muito claro para esses trabalhadoros ©, também, para as populag6es indigenas, Nem sempre é visivel que esto envolvidos num grande movimento que, este sim, dd sentido ao que esta acontecendo, Estainos diante de um-aample - - que ndo 6 claro‘ne Ambivo local da vide'de cada dia: Além disso, nao é na simples conversagse que se pode eaptar tudo o que esta acontecendo, porque a fala com 0 estranho éregulada pelo ie:0 que éditonem Sempre corresponde ao que 6 feita e 0 que é feito nem sempre se expelha no acontecido. Esse ¢ um problema importante para a reflexio socioldgica, pois é problema de ordem metodoldgica ‘Quando se quer estudar movimentos sociais, na particularidade do grupo local, & preciso ter em conta singularidades como essa, do duplo eédigo de expressao que maren a exdaténcia das popu NAM LUTAS DO CAMPO 3 Ingen camponesas ¢ indfgonae no Brasil. O sociélogo nso vai Huvir doles senao aquilo que eles decidiram que devem dizer- Jembro aqui o que ocorren com um antropélogo do Rio de anoiro, Em um de sous trabathos, encontramos nota de rodapé ‘Wesinalancto que, quando fez sua pesquisa mais importante, em 80 Domingos das Latas, no Para, fol recebido camo enviado da Hesta-fora, o que é muito significativo. A besta-fera 6, na cultura Popular, o dinheiro, o capital, o poder, o Estado. O pesquisador Wi identifiendo w diseriminado rapidamente: ele vinha de um finindo oposto x0 dos camponeses , no entendimento deles, © Fepronentava. A ciéncia social convencianal que muitos fazem, fom uma identidade clara aos olhos do camponés. Ele sabe do flo ola vem osntai para que serve 1, sociologicamente, mite Aluniticativo que wm juts0 camponta tae easencal (eto devas Hilo para o trabatino do pesqutandor)sejerelogado a uma nota erodaps. 0 quo snostra que a identifvagan ¢ julgamonto do IWeuisador polo campones poo em sério rico n sux coneapgae Mle producao do conhecimento ciontiic, peis implica hess, nhecer-s0 2 si mesmo coma ohio de eonhecimento, na propria fiungho de pooqaise, © nfo apanas mejeito. A nota de mocupe Mlonimncin 9 bloqueio da inteligencia do peaquieador pata to: ens perepectiva difercte e alternative Portanto,a questto da pesquisa ni se resolve, simpleamen- 40, com tims corta sisting de téenicas, que funciona bem, fitvezes, num bairro da perforia ou num eatudo sabre empress, Hos, No campo, 0 poagutsador vo deftonta com uma-agungem Sdegmmane Com 0 tcmpo, aprende a conviver tom essa Popta: WHO © devoobre o que sizaficn e neu silencio io do hata. # prociso una pacidneta enorme Dra ouvir oss sldneio, Fé ele que fata mais do qualaucr outra fina As vores, numa situagio de entrevista, o entrevistade @ fnpas de ier longo tempo ealado, As poucas palavras, interes: Indns por pausas.e acampanhadas por muitos gestos,coloeamm 9 Paulsador ciante da ammpia rigueza desea fale dupla, que ult revela com io, situa quem fala o, tame, Gem a ‘TEMPO B LINGUAGEM ‘Tomo a liberdade de meneionar um caso no qual me vi pessoal ediretamente envolvido, ha alguns anos, Foi o caso de Apareci- do Galdino Jacinto, um eamponts do intorior de Sao Paulo, que ‘comecou wim movimento milenarista na roqige de Santa Fé do ‘Sul, em decorréneia de problemas fundiarios eda constructo de ‘uma barragem que iia inundar as terras dos trabalhadores. Foi preco pola policia, provessado ejulgado, tendo sido absolvido da acusagso de curandeirismo. Porém, o préprio promotor piblico denunciou-o A Justiga Militar como subversive, porque ele havia, organizado wia grupo de homens e mulheres a que chamava de Exéreito Divino. Galdino continuow preso e foi julgade novar mente, agora pela Justiga Militar, j& que, supostamente, prati- ‘eara aio eriminoso provisto na Lei de Seguranca Nacional, Foi considerado eaquizotrénieo parandide, nao podendo, por isto, fer condenado, Em consequéncia, mandaram-no para oManic®- mio Judicidrio ¢ colocaram-no a disposi¢ao dessa tirania disfar- fgada que 6, a vezea, a psiquiatria, particularmente quando se ‘associa ao poder do Estado. Condenaram-no a dois anos de dotengao, renovéveis a eritério médico. Os médicos nao tiveram nenbum eserdpulo em renovar, ao longo de ito anos, a condena- ¢80 de Galdino, que é um homem extremamente pacifico, pro- fandamente inteligente e kicido e que nao é mais esquizofrénico parandide do que qualquer um de nés que estamos aqui ou do que qualquer um de seus juizes, carcersiros e médicos. Fui autorizado, pelo juiz corrogedor, a visitar Galdino no ‘Manicémio, porque ett estava denuneiando ocaso publicamente, ‘oque aliés me fizera vitima da ira e dos xingamentos do um juiz da auditoria militar numa fala a jornalistas. Na visita;e queme ‘chamou a atengto, imediatamente, foi que Galdino falava, de modos diferentes, duaa coisas ao mesmo tempo — uma fala audivel e outra visivel. Com a boca, falava a “nossa” lingua com as maos falava a lingua de “seu mundo” ¢ “seus” iguais. Em situagao dramética, eonfirmava observagies de campo que eu fizera durante muitos anos entre trabalhadores rurais. Aqui e ‘agora, minhas malos acompanham o quo estou falando com a minha boca. No easo dele, a mao ia numa diregao diferento, fazendo gestos diversos do que a fala dizia. A oposigao era clara WAS LurAS Do CAMPO i ‘has expresses do rosto pacifico @ ininico. Foi esse desencontro sip Neve Galdino desdizia com as mos, ecom ox gestos.e as expressbes do Hato, 0 que estava dizenda com a boca Tiso-acontece tom quem passa par-m-amplo-e”profundo ante repress, que caradiraticaments'0 ve fom ntevido com as noseas populagées camponeaas e, também, Ihigsnas Freqientementa, ne compo: scontace nee, Ainge ffomdosiléncio, do gosto, de cthar, fala muito mais, emuito mais Profuindamente sobre o.outro.eeu, de que aquilo que o outro diz \inundo,no fala, a minha lingua, néo alingna dele. lingua dele foi.copturads; dominada'e-silenciads. Em alguns casos, muito fonretamente. Os indios Pataxé hahaha, da Bahia, tem de Fowto da sua lingua apenas 129 palavras © dias frases, como fanstatow no campo a antropéloga Araci Lapes da Silva, desta Universidade. Ouseja, foram roubados. Nao perderam somente Wtorra oa luta pela terra —perderam a lingua, Ha alguns anos fui convidado pelos Xoks, daha de Sto Pedro, em Sergipe, para ar presente na celebragao que fariam da retomada da Hha, soulo depois de terem sido expulsos dela, Nao ha mais numa polavra da Hinggua 20k6, eles nao conhecem mais ‘onhiuma palavra de sua gua. Sobrow de sua cultura apenas tima danga, o'Toré, que era feta 8s escondidas, no mato, pelas futhoros. Cada vez que um indo abria a boca e dizia uma Plavea cm sua Magua, levava uma surra dos jagungos do fixendeiro. © mesma ceorreu eom as pepulagoes eamponesae, {quo tem yma origem indigena om muitas regives Hissa perda tem do ser levada em conta quando se quer fazer Posquisa sobre os movimentos sociais, Nas Iutas do campo, a flu dominanta tem um lugar restrito. Nao si Lutas como as de Bernardo do Campo, dominadas pela fala, pelo discurso. Depois de muito diseureo, vem a agao organieada a partir do Aiscurvo articulado, Metodologicamente, quando se estuda os Imovimentos do campo, é necessério levar em conta algumas Ahforencas que Is em rolagio Aquela parssin do'mundo gue 36 PO B LINGUAGEM ‘Uma ¢ esta questo de linguagem — eles nao falam a nossa, lingua, Falam o portugues, que 6 a lingua do estranhe, mas nao falam a noses Imguas Alenia deles, a lingzua que diz 9 que cles sia ¢ 0 que eles fazem, 6 uma outra lingua, Lembro que of caipiras de Sao Paulo falavam lingua-goral hi tros séculos e, provavelmente, ainda ha dois eéculos. Em alguns casos, mesmo falando em portuzués, é uma outra lingua portuguesa. Numa regido tio acentuadamente conflitiva e tio bonita no que ¢ refere a riqueza eocial do conflite, das propostas, da eriativida- de, que é do Maranhio, muitos eamponeses falam um portu- ues que a6 se encontra em diciondrio antiga. Falam, ainda, de certo modo, o portugués que Cambor exerevia, ¢ 0 falam perfei- tamente bem. Alisa, lembro da professorinha de um poveado do ‘Vale do Pindaré que me perguntou o que estava fazendo por la. Explique’-Ihe que faxin pesquisa, boa parte da qual consistia em observar, perguntar, ouvir respostas. Ela, entao, comentou: “Ab! Voco esta perdendo o seu tempo.” “Por que estou perdendo ‘o meu tempo?” — periunte: Ihe. “Rasa gente nao fala nada com nada", foi a resposta. “Como assim?” “Ah! Eles falam tudo cerrado.” Ela cra mulher eulta —lia Capricho sempre que podia, lee, no entanto, falavam o portugués antigo — portugués de dicionério e portugues de literatura. Clare que & necessdrio trabalhar com a linguagem falada, com a informagao que pode ser verbelizada. Mas ¢ novessitrio estar atento a estas outras formas de expresso ¢ @ essas variagoes de Hinguagem, ‘Uma outra diferenca, que é necossério considerar na pesqui- ssa doses movimentos, 6 relativa ‘Onoseo ‘tempo nada tem que ver com o tempo “eles”. Onossa tempo 6 ‘um tempo linear, eomoca tal hora e termina tal hora, com tantos minutos, tantos segundos, e assim por diante. O tempo para eles 6 completamente outra cola, 0 que, alids, ndo é nenhuma novidade — antropélogos e sovislogos tem dito que as popula- ges indigenas e camponesas esto inseridas num tempo césmi- 0, que 6 outro tempo, Mas a questao 6 ver esse tempo na prética. © tompo 6 outro. O tempo da luta é outro. Por isso, parece extremamente dificil acompanhar tais movimentos. Re’ SRA LUTAS Do CAMPO a7 ‘entomento, fui interpelado aqui'na Universidade pelas razdes FoF quo nto faco a livre-docéneia. Bstou fazendo minha pesquisa oh movimentos sociais no campo, sobreas lutas pela terra, ha Wine quinze anos, mais ou menos. Provavelmente, vou ser ap0- Hentudo antes de torminar esse trabalho. Expliquei ao meu {ilorlocutor que a pesquisa “nao fechou" ainda, nao tem sentido sai a nao consigo explicar o conjunto do procosso, Ha Solna que ostow acompanhando desde 0 comego, que comera- ‘fm n acontecer © ainda nto acabaram de acontecer. Fatoa ‘onion afotam nao 96 o nosso trabalho de pesquisadores, Afetam, Wunbéim, o trabalho do lider sindical, do educador. Leembro o caso do conflite de Cachoeirinha, no norte de Minas orais. Os camponeses foram expulsos da terra ha muitos anos. Vortunto, o assunto estava supostamente encerrado. Porque, ‘expulso da torra, o trabalhador estaria dafinitivamente a cami Juho Wo protetariado, “inserido na Histéria’, processo acabado, Donossois anos depois de expulsos de sua terra, no entanto, 0 ‘eumponeses voltaram para a area e a retomaram. Ocorrew nao ue muito, quando Tancredo Neves era governader de Minas. Hi, alls, um dos fatores de sensibilizagaa do ex-futuro presi- Honte para o problema agrario. Para os camponeses de Cachoei- 4, no entanto, ¢ processo nfo tinha acabado. © que acontece, também, com populagées indfgenas. Um. slow casos mais interéscantes, rieos e draméticos, 6 0 dos Xavan fe, no Mato Grosso. Foram expulzos do varias areas de seu wrritorio, retirados da terra, as fazendas insteladas. Sedes de fiizoncdas foram construfdas om cima de cemitérios dos indios, a ‘que mostra uma sagacidade diabélica dos fazendeiros na rela- ‘com essa populagao indigena, ocupando, mutilanda e apa- iyando simbolos ¢ tragos culturaia cesenciais sua sobrevivencia ‘0iN0 povo. Aparentemente, os indios astavamn confinados € ‘eonformados, com seu territério reduzido, O que os fazendeiros Inho viram, e, alias, ao que parece, o8 peequieadares também ‘nto, 6 que de vez em quando um xavante eseapava da aldeia ein visilar torras ancestrais. Aparecia, por exemplo, na Fazenda Sluid:Missu, que portence a um grupo multinacional, a Liquigés, *O que voo’ ost fazendo por aqui?” “Ah! Eu vim vor a nossa

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