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Capitulo II! Educacdo Literdria 4. Eca de Queirés, Os Maias ApresentacGo geral ConteUdos essenciais Modo narrativo 1, Categorias da narrativa 2. Modalidades de apresenta¢ao do discurso narrativo 3. Género - romance Eca de Queirés 1, Vida e obra de Eca de Queirés 2. Contextualizacao histérico-literaria 2.1, Adécada de 50 do século XIX 2.2. A Questéo Coimbra 2.3. A Geracao de 70 2.4. As Conferéncias Democraticas do Casino Os Maias 1. Visdo global da obra e estrutura¢do: titulo e subtitulo 2. O romance: pluralidade de acées 3. Acomplexidade do tempo 4. Acomplexidade do espaco 4.1, A representacao de espacos sociais e a critica de costumes. 4.2. Os espacos eo seu valor simbélico e motivo 4.3. A descricao do real eo papel das sensacdes 5. Acomplexidade dos protagonistas 5.1. Caracteristicas trdgicas dos protagonistas (Afonso da Maia, Carlos da Maia e Maria Eduarda) 5.2. Representacées do sentimento e da paixao: diversificacao da intriga amorosa (Pedro da Maia, Carlos da Maia e Ega). 6. Linguagem e estilo 6.1. Reproducao do discurso no discurso 6.2. Recursos expressivos Sintese de contetdos leste Capitulo, ponto-4 0 Programa indica para estudo duas obras ‘em alternativa: Os Maias ou Alustre Cosa de Ramires de Eca de Quelrés Apresentamos neste capitulo a andlise das duas obras, embora os ‘alunos apenas tenham de estudar uma delas. Aesesenocio gor Apresentacdo geral D A progtessiva complexificacdo da nogao de literacia e a construcao do seu gradual distancia~ ‘mento relativamente & nogao, mais restrita, de alfabetizagao vieram exigit, nos tiltimos anos, uma reflexio mais elaborada sobre os objetivos expectaveis para a compreensdo ¢ a producao textuais, O patamar internacionalmente reconhecido como horizonte de referéncia para o qual tender, em termos de leitura, sublinha agora, e cada vez mais, a importincia da compreensdo € da interpretagao de textos relevantes e nao a mera recolha de informacao explicita 0 Ensino Secundério representa uma etapa decisiva neste processo, quer porque os alunos que o frequentam se orientam para o prosseguimento de estudos, quer porque o seu ingresso no Circuito laboral exige um conjunto de capacidades em que compreensao e interpretagao, toma- das no seu sentido mais amplo, se tornam fatores decisivos. In Programa e Metas Curiculares de Portugués, Easino Secundriop.6 janeiro de2014, MEC De acordo com o Programa e Metas Curriculares, o dominio da Educagéo Literéria indica o estudo, na integra, de um romance de Eca de Queirés, pelo que se apresentam duas opcées: + Os Maias + Allustre Casa de Ramires A primeira parte desta subunidade seré dedicada & especificidade do texto narrativo, 8 vida e obra de Eca de Queirés e aos contextos ideolégico e sociolégico de producio dos seus romances. De seguida, pro: ceder-se-4 a0 estudo individualizado das narrativas em opcao. Com apenas dois anos de separaco na publicagéo, os dois romances distinguem-se pela intriga e pela atitude menos céustica do autor na 2.* obra, embora sejam os dois considerados expoentes do brilhantismo literério de Ega. Para além dos livros, ha o homem. Ea biogtatia, que ele sempre insistiu em que nao devia ser es- rita, De tal forma detestava que falassem da sua vida privada que quase somos tentados a crer que it terveio junto de Neptuno para que o Sto. André, onavio que transportava grande parte dos seus papéis, viesse, como acabou por suceder, a naufragar. Como todos nds, Era teve uma vida. Que nao era, como le provocatoriamente proclamou, tao desinteressante quanto a Hist6ria da Repiiblica de Andorra. Nascera, em 1845, ilo de “mae incégnita’ facto que deu origem a intimeras especulacées.[.. Em 1888, apés oito anos de maturacdo, publicava Os Maias. Trocara a raiva das suas primel- ras obras pelo desalento, Sob a influéncia da literatura inglesa, o tempo era tratado, nesta obra, de forma revolucionéria. A agio decorre em 1875, mas Eca consegue deslizar até 1820 e, depois, numa espécie de epilogo, avancar até 1887. E nao é esta a tinica novidade. Um romance de costu- mes, Os Maias contém, no seu interior, uma tragédia. Pela primeira vez, Eca admitia a possibili- dade de coincidéncias extraordinérias, como a dos irmaos-amantes, 0 que teria sido impossfvel,, se tivesse ficado dominado pela influéncia francesa. Nao hé, no livro, uma palavra a mais, um ‘tempo morto, uma passagem desnecessaria. Apesar disso, é uma obra longa, o que fez com que 0s contemporaneos, habituados a romances de intrigas répidas, a desprezassem. Eca sabia per- feitamente ter escrito uma obra-prima. O que o magoou nao foram tanto as criticas, mediocres, ‘que safram nos jornais, mas 0 facto de Os Maias terem sobretudo sido debatidos por causa de um imbecil fait divers: a acusagao de ele ter retratado, na figura de Alencar, Bulhdo Pato. ENota: Todas as citacdes da obra Os Malas sequem a edicio da Colecao Educacéo Literéria, da Porto Editora, 2016, 163 copio -Edvcocbo eso Bea tem sido acusado, sobretudo por devotos de Camilo, de ter usado um vocabulério pobre. Como 6 6bvio, néo foi por incapacidade de ler 0s classics, ou de usar termos rebuscados, que E¢a escreveu como escreveu. Fé-lo, porque estava farto da retorica fradesca que, hé séculos, do- minava as letras portuguesas. Nenhum outro escritor ~ com a possivel excegao de Ceséirio Verde = inovou tanto quanto ele. A nossa lingua é, ainda, a dele. E por isso que os seus escritos resisti- ram ao tempo. 0 seu riso revive nos sorrisos que, ao longo dos anos, foi despertando e, porque fizeram correr outras Lagrimas, as suas lagrimas néo secaram, Ao criar uma lingua nova, ao dar- -nos um mundo diferente, Fea modificou a forma como os portugueses se viam. A sua maneira, acabou por contribuir para a modernidade do pafs onde nascera. MONICA, Maria ilamena, Ey de Quer, ed Lisboa: Quetal Eatores, 2001, p. 365 (com supressoes) Conteddos essenciais Modo narrativo Integram o modo narrativo, entre outros, o conto, a novela e o romance. O modo narrative caracteriza-s® por apresentar mecanismos de articulagdo que asseguram uma din&mica que se desenvolve através das chamadas categorias da narrativa, 1. Categorias da narrativa Ago ~ desenvolvimento de acontecimentos que obedece a uma configuragao estrutural, condu- zindo ou nao a um desenlace definitive. A sequéncia dos acontecimentos pode ser feita por: + encadeamento ~ organizacéo linear dos acontecimentos; «+ encaixe - organizacéo néo linear, quando uma ou varias sequéncias surge engastadas (encaixa- das) no interior de outra que as engloba; + alterndncia - organizacéo no linear, quando as sequéncias séo narradas de forma intercalada, ou seja, uma sequéncia interrompe-se para dar lugar a outra, revezando-se, assim, sequéncias de ori- gem diversa, Personagens - entidades ficticias criadas pelo narrador, em torno das quais gira a ago e em fun¢ao das quais se organiza a economia da nartativa. O processo de caracterizacao das personagens abrange aspetos fisicos, socials e psicolégicos, podendo ser feito de duas formas: + direta — pelas palavras do narrador, da prépria personagem ou de outras; + indireta - resultante das atitudes ou comportamentos das personagens. ‘A personagem pode ter pesos diferentes na economia do relato — relevo -, podendo ser: + protagonista/herdi + personagem secundaria + personagem principal + figurante ‘Tendo em conta a densidade psicolégica da personagem, esta pode ainda ser classificada como: «+ redonda ~ sofre evolucdo ao longo da narrativa; « plana — acentuadamente estatica, ndo evoluindo psicologicamente: « tipo — quando resulta da sintese do individual com 0 coletivo, evidenciando sobretudo qualidades ou defeitos do conjunto que representa, ieee eee = 2, 4a de ats Os oes ‘Tempo ~ indispensével para a progresséo da ago, a categoria tempo narrativo desdobra-se em: + tempo histérico ~ definido pelo enquadramento histérico; + tempo da histéria/diegese - delimitado pelas balizas temporais da diegese/agao narrativa; + tempo do discurso — modo como o narrador organiza o tempo da historia. Por vezes, a lineari- dade cronolégica é alterada, ocorrendo anisocronias, que consistem em qualquer alteracéo, no discurso, da dura¢ao da historia, concretizando-se num tempo do discurso mais prolongado ou, pelo contrério, mais reduzido do que o da histéria. As anisocronias podem ser de varios tipos: ~ analepses ~ recuos no tempo da diegese; ~elipses ~ omissdes de intervalos temporais; ~ stumarios ~ resumos de intervals temporai —prolepses ~ avancos no tempo da diegese; + tempo psicolégico —filtrado pelas vivéncias das personagens. Espago ~ uma das mais importantes categorias da narrativa, uma vez que possibilta a articulagéo funcional das restantes categorias. Acategoria espaco desdobra-se et + espaco fisico ~ constituido por referéncia a lugares interiores ou exteriores, reais ou ficticios; * espace social — universo configurado em funcao da presenca de personagens- + espago psicolégico — constitui-se em fungso da necessidade de representar ambiéncias complexas, Projetadas nas atitudes igualmente complexas das personagens (vivéncias interiores conturbadas). poe figurantes; Narrador ~ entidade criada pelo autor, responsavel pela voz da narragao. Dependendo da situacao narrativa adotada, o narrador pode ser classificado como: + narrador autodiegético ~ 0 narrador & 0 protagonista, relatando as suas préprias experiancias; + narrador homodiegético — o narrador relata uma historia que viveu enquanto personagem com ‘maior ou menor destaque, mas nunca como protagonista; + narrador heterodiegético — 0 narrador relata uma hist6ria em que nao participa como personagem. Onarrador pode, ainda, adotar diferentes tipos de focalizagao ou pontos de vista: * focalizagao externa ~ o narrador tenta de forma objetiva e desapaixonada narrar os aconteci- mentos a que assiste; + focalizacso interna — 0 narrador adota 0 ponto de vista de uma personagem que integra a aco, © que, normalmente, modaliza e restringe as informacdes dadas; + focalizagéo omnisciente — 0 narrador assume uma posi¢do demilirgica, fazendo uso de um co- nhecimento ilimitadlo dos acontecimentos. Narratério — figura ficticia, tal como o narrador, a quem é dirigida a narragao. - Modalidades de apresentacao do discurso narrativo + Modos de representacao - a descricéo caracteriza-se pela suspensio do avanco da ago, em que se fornecem informagbes sobre as personagens, 0s objetos, o tempo e 0 espaco; a narracao é 0 re- lato dos acontecimentos que constituem a acéo. + Modos de expresso ~o didlogo.e 0 mondlogo so os modos de expresso proprios das personagens. i = 165 copitl M -EducocBoleeririo 3. Género - romance © romance é um género narrative que se diferencia dos seus pares pela sua extensdo e que apresenta as seguintes caracteristicas: ago extensa, podendo apresentar ramificacoes secundarias: construgo das personagens implicando componentes de ordem socal, cultural, psicolagica - comple- xidade e densidade psicol6gica; -multiplicidade de espacos, caracterizados pela sua amplidao e pormenor; sorganizacéo temporal complexa ~ conjugacao de diversos tratementos temporais. Eca de Queirés 1. Vida e obra de Eca de Queirés «+ Nasceu na Pévoa de Varzim, a 25 de novembro de 1845, tendo sido registado como filho natural de José Maria de Almeida de Teixeira de Queités ede mae incognita. + As condigdes “iregulares” do seu nascimento fizeram com que a mae o entregasse a uma ama em Vila do Conde, que 0 criou até aos seis anos. « Parti entéo para casa dos avés paternos em Verdemilho (Aveiro), onde permaneceu até aos dez anos, altura do faleci- mento dos aves. = Entrou com esta idade no Colégio da Lapa (dirigido pelo pal de Ramalho Ortigio), onde foi aluno do proprio Ramalho. «+ Aos dezasseis anos, partiu para Coimbra, onde se formou em perato de Fea de Quits 1880, Diteito (1866). Rafael Boral nei « No meio intelectual dessa cidade, contactou com Antero com as novas ideas flos6ficas literérias vindas da Europa, o que se tornou decisivo para a sua formacao intelectual e civica. « Integrou © grupo da Geracéo de 70, responsivel pela agitacdo do marasmo intelectual proprio do Ultrarromantismo portugues. + Opai, que ndo esteve perto dele durante 0s seus primeiros anos de vida, foi colocado come juz ern Lisboa, o que faciitou a fixacao da familia na capital. + A partir dos 21 anos, Eca tornou-se, no dizer de Ramalho Ortigao, um verdadeitolisboeta. « Em 1867, E¢a publicou na Gazeta de Portugal o folhetim Lisboa, um documento interessante sobre @ cidade que o escritor conheceu nos seus primeiros tempos na capital. «= Com Jaime Batalha Reis e Antero, Eca criou um “heterénimo’ coletivo, Carlos Fradique Mendes, poeta da modernidade. «A sua vido repartiu-se pelo jornalismo ~ os primeiros textos foram publicados na Gazeta de Portugal e causaram grande surpresa pela ousadia epelo atrevimento demonstrados na observacio da reaidade social -, por uma breve atividade como advogado, pela longa carreira diplomatica de vinte ¢ olto anos (consul em Havana, Newcastle, Bristol e Paris) pela literatura. = O inicio da sua carreiraliterdria de catizrealsta ¢ assinalado pela publicagéo no Didrio de Noticias do conto 'Singularidades de uma rapariga loura’ no regresso de uma viagem de cinco meses pelos EUA © Canad. 4- fa do Quekés Os Mies ~ Fm 1871, em Lisboa, juntamente com Jaime Batalha Reis, Adolfo Coelho, Saloméo Saragga, membros do Cenéculo, liderado por Antero de Quental, Eca colaborou na organizacio das Conferénctas Denno. raticas do Casino. + Em 1872, partiy como cOnsul para Havana, de onde regressou em 1874, seguindo pouco depois para Inglaterra, também como diplomata, ~ Num breve regresso a Portugal, no verdo de 1884, iniciou o namoro com Emilia de Castro Pamplona, filha dos condes de Rezende. ~ Cesoucem 1886, data em que a sua filacio foilegitimada, com D. Emilia de Casto, de quem teve quatro filhos ~ Maria, José Maria, Ant6nio e Alberto * O periodo de maior producSo literéria coincidiu com a sua estada em Inglaterra, nomeadamente em Newcastle. Em setembro de 1888, instalou-se definitivamente em Paris, egressando a Lisboa ocasionalmente ¢ Participando sempre nos jantares organizados pelo grupo de amigos conhecido como Os Vencidos da Vida ~ elite de intelectuals de vanguarda & margem dos mes politicos oficias, que, face ao percebido. Insuicesso do processo madernizador da Regeneragao, canalizava a sua frustraco e desengano dos Ideais revoluciondtios juvenis para um diletantismo elegante e irénico. + Em 1893, a familia Queités mudou-se para os arredores de Paris, em Neuilly + Entre fevereiro emaio de 1899, Ec fez uma Ultima e longa visita Lisboa, regressando aos cendios dos seus livros. * Morreu em Neuily(eredores de Paris, em 1900, mas foi sepultado no cemitério do Alto de S, Jodo, tendo honras de funeral de Estado. ~ Posteriormente, seu corpo foi transladado para o cemitério de Santa Cruz do Douro, 2. Contextualizacao historico-literaria 2.1. A década de 50 do século XIX Este perfodo fol marcado pela conjugagéo do desenvolvimento econdmicoe da establidade politica: ~ grande desenvolvimento das vias de comunicacao (caminhos de fero, estrada, pontes, telégrafo) ink [...] um homem com o temperamento de Carlos ¢ a sua educacao, colocado no meio lis- boeta, posto perante as situacdes que ele teve de enfrentar, reage como Carlos reagiu. A anélise dessa experiéncia é, concomitantemente, na ética do romancista, a anélise do caso portugués. Uma ligdo de desengano. Formado pelo curso de Medicina e pelo conhecimento da Europa, Carlos chega a Lisboa dese- Joso de estudar, de investigar, de publicar. Mas o “tédio moroso” do seu gabinete fi-lo bocejar; do Rossio vém “uma sussurragéo lenta de cidade preguicosa’ um “ar aveludado de clima rico” que envolvem Carlos “numa indoléncia e numa dorméncia’ (p. 103). Aliés, como o Ega, como Craft, niio passa de um requintado diletante, Talvez seja sincero, talvez nao tenha jéilusdes quando diz& Gouvarinho, sorrinco: “A agua fria e a gindstica tém melhor reputagao do que merecem.. COELHO, Jacinto do Prado, “Pare a compreensdo '0s Malas como um todo orginic ‘in Ao Contrto de Penélope, Lisboa: Bertrand, 1976 (com supressGes) Cepllogo do romance evidencia essa constatagdo por parte do narrador, ou seja, feito o balanco do assado ¢ analisado o presente, a previsio do futuro mostra-se sombria, por forga das instituigdes e das pessoas que as representam, 4. A complexidade do espaco Cespaco é uma componente essencial na romance, isto que ajuda a definiro pano de fundo que serve de cenario 8 acdo e permite assinalar aspetos simbélicos relevantes para a construgao da diegese. N'Os Maias, a referencia a espacos fisicos reveste-se de uma dupla funcao: * Por um lado, é uma forma de ancoragem da agéo, criando também, tal como as referéncias histéricas, cefeito do real * Por outro lado, assume igualmente uma dimenséo simbélica, facto que subverte os cénones naturalistas, 4 Aintriga desenrola-se em Lisboa, mas os antecedentes decorrem em lugares como Santa Olavia - infan- {a de Carlos - e Coimbra —formacéo universitiria do protagonista importantes também sao os espacos das grandes capitais da cultura europeia, sobretudo Paris. Carlos da Mala via frequentemente e é no estrangeiro que passa os dez anos posteriores &tragédia familar. ———— eons de copia -Edueac00 reine 4.1. Arepresentagao de espagos sociais e a critica de costumes O subtitulo do romance ~ Epis6dios da vida romantica - aponta pare a pintura detalhada de uma socie-2 . dade com os seus vicios e aspetos menos edificantes, pintura que se integra perfeitamente num dos objeti-2 vos do romance naturalista, que se concretiza através da abordagem de certos temas e episédios de caréc-2 tersocial i ‘A educagaio em Os Maias é abordada de forma a evidenciar duas mentalidades diferentes. Uma é a por- ‘tuguesa, arreigada a uma viséo catdlica, decadente e tradicionalista, avessa a inovacbes e a “modemnices’ ‘Oensino das criangas deveria ter o “latinzinho" ip. 66) por base, devia valorizar a meméria, descuidar 0 corpo eas capacidades de reflexdo e de critica. A outra, a britanica, defendia uma educagéo moderna, aberta a0 futuro, apologista da cultura fisica, da defiesa da ética e do respeito pelos outros e pela diferenca. Pedro da Maia e Eusebiozinho séo os simbolos da educacao portuguesa, enquanto Carlos tipifica o modelo britanico. De criancas nervosas e frageis a adultos fracos, abillicos e fracassados, assim sera o percurso de Pedro (que, obcecado pela paixéo pela mée e depois por Maria Monforte, optaria pelo suicidio face a uma situa- gio de caréncia afetiva) e de Eusebiozinho (protagonista de aventuras com espanholas de porte duvidoso, ‘mas submisso a violéncia da mulher): [...] Equem avistaram logo foi o Euseblozinho. Parecia mais finebre, mais tisico, dando o braco a.uma senhora muito forte, muito corada, que estalava num vestido de seda cor de pinhao. Iam devagar, tomando 0 sol. E 0 Eusébio nem os viu, descafdo e molengo, seguindo com as grossas Iu- netas pretas o marchar lento da sua sombra. ~ Aquela aventesma é a mulher - contou Bga. - Depois de varias paixdes em lupanares, 0 nosso Eusébio teve este namoro. O pai da criatura, que ¢ dono de um prego, apanbou-o uma noite na escada com ela a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E desapareceu, nfo o tornei a ver... Diz. que a mulher o derreia a pancada. ~ Deus a conserve! ~ Ame e729 E Carlos? Forma-se em Medicina, ainda inicia uma carteira de médico que logo abandona, contaminado pela doléncia do meio lisboeta e, mais tarde, pela vivencia absoluta da sua paixéo por Maria Eduarda. Carlos também falhou, apesar da educac30? Ou Carlos superou a tragédia final devido & sua educagao? Com efeito, embora Carlos néo realize nenhum dos seus projetos iniciais, consegue sobreviver (talvez devido a educacao que recebeu) de uma forma digna & descoberta do seu parentesco com Maria Eduarda 4 morte do avé. Parece, pois, evidente que, em matéria de educacéo, a defesa da perspetiva britanica sai reforcada com o percurso de Carlos 0s episédios representatives Occonjunto destes episédios configura e desenha o espaco social do romance ~ a sociedade da segunda metade do século XIX ~ que remete para varios frisos humanos, nas suas vertentes cultural, econémica, politica e moral. O jantarno Hotel Central (cap. VI) é uma espécie de festa de homenagem de Ega ao banqueiro Cohen (simboto da alta finanga), marido da divina Raquel, amante de Ege. Este episédio de critica de costumes: + proporciona o primeiro encontro de Maria Eduarda e Carlos: > *Crafte Carlos ofastaram-se, ela passou diante deles,com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bbem-feita, deixando atrds de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de ouro, eum aroma no ap. ¥64) 178 4 -Keado Quarts, osmaoe + €a primeira reuniao social da elite” lisboata em que Carlos participa; + reproduz conversas que vao focar diversos aspetos da sociedade portuguesa, tals como 0 atavico es- ‘tado deploravel das financas piiblicas, o eterno endividamento do pais e a consequente necessidade de reformas extremas e radicais, de que Ega ¢ o defensor mais convicto: > "Portugal nao necessita reformas, Cohen, Portugalo que precisa éa invaséo espanhola.(...] Sern monarquia, sem essa caterva de politicos, sem esse tortulho da inscrcso, parque tudo desaparecia, estdvamos novos em falha, impos, escarolados, como se nunca tivéssemmos servido. Erecomecava-se uma histéria nova, um outro Portugal, um Portugal serio e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo ciilzagéio como utrora.. Meninos, nada regenera uma nagao como uma medonha tare... Oh! Deus de Ourique, manda- -noso.castelhano!" op. 75-176) + &dominado pela contenda literéria entre Ega e Alencar: Ega, defensor acérrimo do Naturalismo, que considerava uma ciéncia, envolve-se em disputa verbal efisica com Alencar: > *A forma pura da arte naturalista devia ser a monografia,o estudo saco de um tipo, de um vicio, de uma paixdo, tal qual como se se tatasse de um caso patolégico, sem pitoresco e em estilo...” (pp. 172-173) ‘Alencar, 0 protétipo do posta ultrartomantico, cujo aspeto fisico era o de um romantico, ataca feroz- mente a ideia Nova, dirigindo 0 seu édio contra 0 Craveiro, 0 defensor da nova estética literdria e que satiizara Alencar num jé conhecido epigrama; a discussao literaria rapidamente cai nos ataques pes- soais, sublinhando-se, assim, a pouca credibilidade e seriedade da critica literiria em Portugal: > "esse Craveirote da Ideia Nova, esse calotera, que se nao lembra que a porca da irma é uma meretriz dedoze vinténs em Marco de Canaveses"tp. 182) O episédio das corridas (cap. X), 2 que Carlos assiste com o tinico objetivo de rever Maria Eduarda (0 ‘que ndo acontece), constitui mais uma visio caricatural da sociedade lisboeta que, num desesperado es- forco de cosmopolitizacao, resolve promover um espetéculo que nada tem que ver coma tradicio cultural do pais, como Afonso sublinha: > “Overdadeiro patriotism, talvez— disse ele - seria em lugar de corridas, fazer uma boa tourada.[.]"(p. 319) 0s resultados das corridas so, por isso, desastrosos e verificam-se a varios niveis: + desinteresse generalizado, cima humano sem motivacio nem vitalidade: > "Um garotoia opregoando desconsoladamente programas das corridas que ninguém comprava(p. 323) + espaco inadequado: ~aentrada: > ‘Aentrada para. hipédromo, abertura escalavrada num muro de quintarola as tribunas: » "Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetdo vermelho de mesa de reparticéo, erguiamse 4s duas tribunas piblicas, com o feito de traves mal pregadas, como palangues de arraial.A da esquerdo, vata, por pintar, mostreva @luzas fendas do tabuado. Na da dteta, besuntada por fora de azul-clara |..." e325) 99 Coptl - u-oq30 erro ~a falta de um balcdo de apostas, substituido por uma “poule" improvisada: > * Vocé quer entrar numa poule monstro, Maia? Quinze bilhetes, ez tostdes cada um... Lé em cimaao canto da tribuna esté-se apostando ferozmente..."p- 389) Q ~obufete: > "Obufete estava instalado debaixo da tribuna, sob o tabuado nu, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor, ‘Ao fundo conria uma pratelera de tabema com garrafas e pratos de boos. E, no balcio tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam a pressa as fatias de sanduiches com as maos humidas da espuma da cervejap. 333) + comportamentos desajustados: das senhoras: > “L..d havia uma fla de senhoras quase todas de escuro{...}"Ip-325) > ‘Debrucadas no rebordo, nurna fila muda, olhando vagamente, como de uma janela em dia de procissdo 1 ‘Amaior parte nha vestidos séros de missa"ip. 328) > * um camteiinho de cameélias meladas 1". 328) dos concorrentes: > “De repente, fora, houve um rebulio |... ra uma desordemIl.. Porque o que havia naquele hipédromo era compadiice lacroeira” ep. 335-338) > "sto éum pats que s6 suporta hortas e araias... Corridas, como muitas outras coisas civilizadas ide fra, ne- cesstam primeiro gente educada. No fundo todos nds somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaca,e viola, bordoada viva fd seu compacte!"(p.337) + oridiculo das roupas: > ‘Amaior parte [das senhoras]tinha vestidos sérios de missa.[..] Carlos cumprimentou as duas ims do Ta- vera |...) ambas corretamente vestidas de xadrezinho:|...J@ viscondessa de Alvim, nédiae branca, com 0 compete negro reluzente devidrihes,..]a condessa de Souta, desarranjada, com um arde terlama nas saias"p. 328) + a falta de desportivismo dos participantes nas corridas: > “Perera a conida por uma pouca-vergonha! O protest ali era um arrocho! Porque o que havia naquee hips dromo era compadiiceeladroeira” p. 336) + aignorancia do piiblico relativamente ao inicio das varias corridas: > ‘Alguns sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista, fumando, olhando a tribuna |..." Ip-382) + aapatia nas apostas: > *Conridas era para se apostar.Tinha-se apostado? Ndo? Ent histérias... Em Inglaterra e em Franca, sim! At 18. eram um jogo come arroleta, ou como o monte... Até havia banqueiros, que eram os bookmakers... p. 338) 4 fd Cues, Os alas No meio de toda esta mediocridade, destacam-se Carlos e Craft pelo seu &-vontade e peta sua familar: dade com este tipo de acontecimentos sociais, Também Damaso, 0 novo-rco endinheirado (0 parvenu),avido de copiar Carlos, se destaca, mas pela negativa, ‘pelo seu podre de chique’, bern representado pela indumentaria escolhida: sobrecasaca branca ¢ véu azul no chapéu tima vez mais. Sociedade lisboeta no consegue manter por muito tempo a linha postica, o veriz su- perficial com que julga poder“maquilhar-se" de pals cvilizado: > ‘A civlizagio custa-noscarsima, com os dietos daAfandega: eéem segunda méo,ndofieita para nds, fica-nos curtanas mangas...”(p. 16) © Jantar dos Gouvarinho (cap. Xl), oferecido a Carlos pelo conde (marido da Gouvarinho, amante de Carlos), surge num momento em que Carlos, a desinteressado da condessa, passa grande porte das ma. Inhas na Rua de S. Francisco, em casa de Maria Eduarda, ‘Aconversa, durante ojantarfoca miitiplosassuntos, mas devem sublinhar-se os seguintes aspetos: + a’estreiteza” de pontos de vista do conde de Gouvarinho: > era esta. a vantagem de Lisboa, dsse/ogo. conde, o conhecerem-se todos de reputasio,opoder-seterassim lumma apreciagdo mais justa ds caracteres. Em Paris, por exemplo, era impossivelpor sso havia tanta Imoral- dade, tanta relaxacéo..." Ip. 400, > © Pals de grande prosperidade, a Holands...£m nada inferior ao nosso...Jé conheci mesmo.um holandés ‘que era excessivamenteinstruido..”(@. 402) > “T..1 Mas temos grandes olérias:oinfanteD. Henrique é de primeira ordem: ea tomada de Ormuzéum prior... ndo ha hoe colénias nem mais suscetives de rqueza, nem mals crentes no progress nem mais liberais que as nossas!(p, 403) * agnorancia e fata de inteligéncia de Sousa Neto, visivel no dislogo com Ega sobre as supostas teo- ‘las de Proudhon relativas a0 amor e & literatura em Inglaterra: > "Nao sabia...] que esse fldsofo tvesse escrito sobre assumtos escabrosos!”p, 810) 2 “Freontrase pore emnglaten,desaiteratura amene, como entrendsflhetnstas poets de puso? ny + aincompeténcia dos politicos: > © conde de Gouvarinho jétinha passado por virios ministérios; > Sousa Neto era oficial superior da insttuigéo Pblica, mas nunca tinha ouvido falar de figuras notévels da literatura e da filosofia da época, © Jomalismo portugués do século XIX surge representado pelos episédios da Corneta do Diabo e do Jornal A Tarde (cap. XV). Relativamente a este aspeto, podem ser evidenciados: * oJomalismo corrupto e desprovido de ética: 0s jornalistas deixavam-se corromper, motivades por interesses econémicos (¢ 0 caso de Palma Cavaléo, do jomal Cometa do Diabo) ou evidenciavam uma Parcialidace comprometedora, originada por motivos politicos (é 0 caso de Neves, diretor do jornal Tarde}; * 8abeténcia pelos assuntos “escabrosos'/o sensacionalismo jomalistico: Carles diige-se, com Egaa este Jornal, que publicara uma carta, escrita por Damaso Salcede, insultando e expondo, em termos egradantes,a sua relago amorosa com Maria Eduard, Palma Cavalo revela o nome do autor da carta e mostra aos dois amigos o original, escrito pela letra de Damaso Salcede, a troco de ‘cem mil res’ cop -foucoc00Uetsa «+ 08 compadrios politicos: Neves acede a publicar a carta em que Damaso Salcede se confessa embri gado quando redigiu a carta insultuosa, mencionando @ relacdo de Carios e de Maria Eduarda, por conecluir que, afinal,ndo se tratava do seu amigo politico Damaso Guedes, o que 0 teria levado a rejet tara publicacéo. O sarau literério, no Teatro da Trindade (cap. XV), surge num momento do romance em que Carlos € Maria Eduarda viver jd um amor sem sobressaltos, fazendo planos para o futuro e esperando apenas a ‘ocasiso mais propicia para que Carlos comunique a Afonso os seus pianos. Os momentos mais marcantes deste episédio si «+ aida de Carlos ¢ Ega ao Teatro da Trindade apenas para cumprir uma obrigacao social (0 sarau dest nava-se a ajudar as vitimas das cheias no Ribatejo); « as revelagées do Sr. Guimardes, precisamente no final do serau, quando Ega e Cruges passavam porta ‘do Hotel Alianga ~o St. Guimaraes (0 “demagogo’ 0 tio do Damaso, que vivia hé longos anos em Paris) interpela Ega, entregando-the o fatidico cofre de Maria Monforte que contém as revelagées relativas a0 parentesco entre Carlos e Maria Eduardo; «+ a importancia do episédio para o desencadear da catastrofe final, ‘Aanélise pormenorizada do sarau aponta para aspetos caricatos da sociedade lisboeta: + oapteco ea admiracio pela verborreia oca e inqualificavel de Rufino: > "Um largo frémito de emocdo passou. Vozes sufocadas de gaze mal podiam murmurar: muito bern, muito er. 6044 + a auséncia da familia real num espetéiculo de beneficéncia: > “Eimediatamente Steinbroken queixou-se da auséncia da familia reap. 603) + a total falta de sensibilidade estética para apreciar 0 verdadeiro talento, incamado por Cruges: > * Ede Beethoven, SD. Maria da Cunha, a Sonata Patétca.,..] Ea marquesa de Soutal[...] muito bela, chei- rando devagarums frasquinho de ais disse que era a Sonata Patete. Por toda a bancada fol um rastitho de isos sufocades.[...] No entanto, por toda a sala, 0 sussurrocrescia. ,..]E caido sobre oteclado, com a gole da ca ‘0a fugida para aruca,o pobre Cruges, suando,estonteado por aquela desatencao rumorosa,atabalhoava cas notas, numa debandada:"fp. 619 «= alagrima facil, exacerbada pelos versos de Alen > "Palmas mais numerosas, jd sinceras estalaram pela sala, ...] Sob aquele bafo de simpatia, Alencar soria, ‘com os bracos abertos, anunclando uma a uma, como pérolas que se desfiam, todas as dédivas que traria.a Republica” fp. 624) > Era apaixao meridional do verso, da sonoridade, do liberaismo roméntico...1"tp- 625) 0 desencantado passeio final de Carlos e Ega (cop. xvi situa-se dez anos apds a partida de Carlos para ‘a viagem a volta do Mundo e consequente instalacao em Paris: > “Enuma luminosa emacia manh de janeiro de 1887, 0s dois amigos, enfim juntos, almogavam num sald do Hotel Braganca, com as duasjanelas abertas para ori0(p. 707) 182 4: teadeQvets, Os Mats Os aspetos fundamentais da critica & sociedade portuguesa presentes neste episédio sao: + a sensacao de total imobilismo de Lisboa, sinédoque de Protugal: > “Estavam no Loreto;e Carlos parara, ohando, reentrando na intimidade dequele velho coracdo da capital Nada mudara". 74) + oprovincianismo da sociedade lisboeta: > ‘L..Jorapaz recolhev ao seu rancho - onde todos, jé calados, com uma curiasidade de provincia, examinavam aquele homem de tao alta elegancia x". 76) + aaceitacao do fracasso e do desencanto por parte dos dois amigos ~ 0 vencidismo: >" Emaue tudo ficou! Mas rimos bastante!” jp. 717) + a falta de félego nacional para acabar os grandes empreendimentos: > \Oraaitens tuessa Avenidal Hem?... 4 ndo émaul|...] Eao fundo a colina verde, salpicada de drvores, os terrenos de Vale de Pereto, punham um brusco remate campestre aquele curto rompante de luxo barato {que partira para transformara velha cidade, e estacara logo, como falego curto, entre montées de cascalho.” (pp. 718-719), + aimitacio acritica do estrangeito: > “Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemportineo. Via-se por all como a coisa era Tendo abandonado o seu feito antigo, a D. Jodo VI, que tao bem Ihe fcava, este desgracado Portugal decidira ‘orranjar-se moderna: mas, sem originalidade, sem forga, sem cardcter para criar um feito seu, um feito pré- prio, manda vir madelos do estrangeiro — modelos de ideias, de calgas de costumes, de es, dearte, de cozinha. ‘Somente, como Ihe falta o sentimento da praporgio, edo mesmo tempo o domina a impacincia de parecer ‘muito moderno e muito civiizado ~ exagerao modelo, deforma-o, estraga-o até. caricatura’ pp. 79-720) + adecadéncia dos valores genuinos: > Resta aquilo, que égenuino. Emostravaos alts da cidade, os vethos outers da Graga e da Penha, com 0 seu casario escorregando pelas encostas essequidase tisnadas do so. |... E abrigados por ee, no escure bairro de S. Vicente e da Sé, os pala- «etes decrépitos, com vistas saudasas para a barra, enormes brasdes nas paredes rachadas, onde, entrea male dicéncia, a devogao ea bisca, arrastaos seus derradeiros dias, caquética e caturr avelha Lisboa fdalgal ga olhou um momento, pensativo: ~ Sim, com efeto, €talvez mais genuino, Mas tdo estipida, rao sebento! Nao sabe a gente para onde sehd de volta... Esenas voltarmos para nds mesmos ainda pior! i. 720 + oaspeto simbélico dos espacos fisicos: ~ a estétua de Camées, cuja tristeza espelha a grandeza perdida; ~ 2 Avenida, cujas obras de renovacao se processam morosamente, espelhando o esforco inglério de progresso; ~ 05 baittos antigos, cujo abandono e degradacao oferecem a imagem da decadéncia atual; ~ 0 Ramalhete, solitério e amortalhado, reiterando o fim ea ruina dos Maias. Cestudo do espaco social ndo se esgota nestes episédios, visto que os serdes no Ramalhete, o cha dos ;ouvarinho, as conversas ocasionais contribuern para visdo critica da sociedade portuguesa do final do culo XIX. 5 Sublinhe-se ainda o facto de a critica de costumes ser construida através da apresentacao de episédios Fe do evoluir de personagens-tipo. 183 Corin -Fdueoc00 era Representatividade social das personagens Asociedade representada no romance éa da aristocracia decadente ea da alta burguesia acéfala, exces sivamente comodista e matetialista, muito distanciada das verdadelras necessidades do pais. Os seus habi 10s sociais, o seu modo de vida, os ambientes de doentia rotina séo reveladores de ociosidade, superficial dade, corrupcao, limitacio intelectual e negagao do progresso. E assumnidamente uma sociedace que vi do parecer em detrimento do ser. ‘Como € proprio de um romance de amplos espacos sociats, multas personagens de Os Maias, mesmo aquelas que se afiram pela sua individualidade, podem ser representativas de grupos socials, de ativida- des profissionais, de estados intelectuais Vejamos, entéo, a sua representatividade social Afonso Portugués austero,simbolo das virtudes e da moral de outrora en Portugues fruto da educacao romantica, sentimental e beata, propenso a ‘comportamentos neurdticos ¢trégicos Alencar PoetaultrarromBntico rico arebatadoe de um idealism extrero. exacerbado. Financeita sem escrdpulos,simbolo da ata finanga nacionel oportunista:“0respeitado ere diretorde Banco Naciona?. : _ |. Bolitico incompetente, reégrado, mas com poder, Ministroe par do reino, Conde de Gouvarinho epresentante da incompeténca politica. Sousa Neto Representante da Administragio Pablica, ncompetente ¢ inculto. Eusebiozinho Produto da educacao portuguesa, etrograda e deformadora, ees Portugués vulgar, de um estrato social privlegiado, simula de varios defeltos (calainia, cobardia,imitacdo servil do estrangeiro falta de identidade, culto do ‘chica vale a Protetipo do demagogo, incoerente nas suas posigGes, alheio a convencdes, mas vitima do meio que ieverentemente contesta. Portugues educado superiormante, dotado de um gosto requintado que se distancia da Carlos ‘mediocridade do meio social que orodeia, mas vtima de um diletantismo e ociosidade |_ que oimpedem de concretizar os seus projets. £ o intelectual ncompreendide e marginalizado:*um diabo adoidado, maestro, pianista, Cruges |_comumapontinha de genio’ iH Steinbroken __Polticoneutro,quenunca se compromete on Protétipo do inglés rico e boémio, de*hdbitos js” e que observa com distanciamento en faces SS dos tdicos, no tipo gaste, todo ele revelava imundiciee malandhice”e Neves citige A Tarde. Para além da singularidade destes tipos”, poderemos ainda detetar no romance situacdes de confronto ou de contraste que exemplificam determinados comportamentos e perfis intelectuats: « anticlericalismo vs. clericalismo fanético, representado pelo par Afonso da Mala e Maria Eduarda Runa; « Romantismo vs. Naturalismo, estéticas lterdrias em confronto, representadas por Alencar e Ega, respe- tivamente. 4.2. Os espacos e 0 seu valor simbélico e emotivo + Lisboa é 0 grande espaco privilegiado ao longo de todo 0 texto, As suas ruas (Rua de S. Domingos, Rua do Alecrim, Rua Nova da Trindade, Rua Garrett, Rua de S. Francisco, Rua Nova do Almada...), 5 suas pracas (Chiado, Loreto, Rossio...), 0s seus hotéis (Bregance, Allanca), os seus locals de convivio (Bertrand, Baltreschi, a Havanesa, o Grémio) e os seus teatros (Trindade, S. Carlos) assumem quase 0 estatuto de personagens ao longo do romance. Mas Lisboa é também o simbolo da sociedade portuguesa da Regeneragéo incapaz de se moderni zar (cf. obras da Avenida da Liberdade) e que agoniza na contemplacgo de um pasado glorioso 184 (cf referencia &"estatua triste” de Camoes). 4-0 de Quis, Os oie + Santa Olavia é um lugar magico, para onde a familia se desloca a fim de recuperaras forcas perdidas, de esquecera dor e de encarar o futuro. £lé que Afonso se refugia com Carlos apés suicidio de Pedro, €lé que Carlos cresce e se prepara para a reabilitacao da familia: > “Oia fora convidava, adonévet [| vinha por vezes um vago cheire de violetas, misturade ao perfume adoci- ". Jescreveu para Lisboa ao Ega anunciando que depois de um exlio de quase dez anos, resolvera vir ao velho Portugal veras drvores de Santa Oldvia eas maravilhas da Avenida.’ 707. + Coimbra é 0 simbolo da boémia estudantil artisticae literdria,é 0 espaco de formacéo académicae civica de Carlos: >...] quando se soube, porém, queo done destes confortes a Proudhan, Augusto Comte, Herbert Spencer, ¢ “Chegavam as primeiras casas de Sintra, havia jd verduras naestrado, e batia-thes no rostoo primeiro sopro forte frescoda sera"tp. 232) Espagos fisicos interiores ‘Ro longo de Os Maias, abundam as descricées mais ou menos pormenorizadas de espacos interiores, que funcionam quase como um prolongamento significative do perfil das personagens: salas, quartos, halls, locais de convivio, et. Abordaremos alguns desses espacos considerados paradigmaticos e imbutdos de uma dimensao simbélica significativa. + © Ramalhete ~‘...] eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete" o.7, AA descrico do Ramalhete aparece logo no inicio do primeiro capitulo (antes e depois das obras) e & revelaclora do bom gosto e do requinte dos Maias, em geral, e de Carlos, em particular, evidenciando o seu diletantismo, No decurso do romance, o Ramalhete constitui um marco de referéncia fundamental € 0 seu apogeu e/ou degradago acompanham o percurso da familia, Simbolo desse percurso & 0 jar- dim do velho casarao, apresentado em trés momentos diferentes da diegese: » Lemomento: de“t....eo Ramalhete possuia apenas, ao fundo de um terraco de tole, um pobre quintol ‘ncuito...J"até*E 0 Remalhete continuou decabitado."ip. 6) > 2.emomento; de"E gostava até do seu quintalej." até"... com um pranto de ndiade doméstica, esflado gotaa gota na bacia de meirmore."tp. 12} copie Mago Ura > 3. momento: de”Em baixo ojardim .."até"...] como um resto de esperanga numa face que se anuvia. pp.726-727, Estes trés momentos descritivos do jardim revestem-se de uma simbologia evidente, bem oposta a0 racionalismo naturalista. Com efeito, o primeiro momento, em que 0 Jardim tem um aspeto de aban- dono e de degradacdo, poder associar-se ao desgosto ¢ a0 sofrimento de Afonso, apés # morte de Pedro. J4 0 segundo momento coincide com o renascimento da esperanca, pois ¢ a altura em que 2 juventude e a vitalidade de Carlos renovam 0 Ramalhete. Finalmente, a ultima imagem do jardim, io, simboliza o fim de um sonho ea morte de uma familia. areado e limpo, mas sombrio e soli + O consultério ~ ‘Carlos mobilou-o com luxa.(p.104) ‘A descricdo do consultério cedo nos revela algumas facetas de Carlos: 0 seu diletantismo, os seus entu- siasmos passageiros, 05 seus projetos inacabados, conducentes ao tédio e ao Scio. + AYToca” [A descricao do ninho de amor de Carlos e Maria Eduarda aponta para a expresséo de um gosto exético, requintado e sensual, apropriado a vivencia de uma paixéo marginal “"Tocaé 0 covil de um animal, é onde este se esconde das ameacas do exterior. Als, 60 pr6prio Carlos {que afirma: “Uma divisa de bicho egoista na sua felicidade eno seu buraco: Nao me mexar!”(p. 445) Também Catlos e Maria Eduarda, num primeiro momento, vive um amor “marginal, um amor que necesita de ser preservado da curiosidade da sociedade, Mas 0 facto de uma toca ser o habitat de um animal poder também ser relacionado com o caracter incestuoso da relacdo amorosa, que subverte o tabu social. Ao longo da descricéo da “Toca’, em especial a do quarto, multiplicam-se os elementos simbélicos, que indiciam o cardcter interdito eo fim trégico do amor: ‘oquadro com os amores de Vénus e Marte (protagonistas também eles de uma relagio incestuosal; > *{..J@aleova resplandecia come 0 interior de um taberniculo profanado, convertido em retro lascive de serralho [1p 446) > {Jeo eito de dosse|...] como erguide para as voluptuosidades grandiosas de uma palxdo trégica do tempo de Luerécia ou de Romeu."tp. 446), > {..Jnum painel antigo [...] onde apenas se distinguia urna cabeca degolada, Iivda, gelaca no seu songue, dentro de um prato de cobre."(p. 446) > “L...]umaenorme coruja empallnada fixava no leita de amar, com um arde meditagao sinistra, os seus dots ‘olhos redondose agoirentos'.1"(op. 446-447) 4.3. A descricao do real e o papel das sensacées ‘A partir do topico anterior, conclui-se que hé, efetivamente, um leque de espagos em Os Maias, com precominancia do espaco interior, o que se enquadra nas caracteristicas da obra, Efetivamente, no romance realista, ocenério é um pano de fundo importantissimo, constituindo um universo de pormenores que per- item reconstituir quer ambientes, quer retratos fisicos das personagens. ‘Assim, ndo é de estranhar que seja 0 espaco interior a desfilar nas paginas desta obra, revelando requin- tados pormenores da vida aristocratica e cosmopolita do jovem Carlos da Maia e das pessoas que consti- tuem o seu circulo de amizades, Em algumas paginas, podemos ler: > "Eestava ideando também uma cascata de lougana sala de jantar quando, inesperadamente, Caros apare- ‘ceuem Lisboa com urn arquiteto-decoradior de Londres, e, depois de estudar com ele @pressa algumasoma- ‘mentagbes ealguns tons de estofos, entregou-the as quatro paredes do Ramalhete, para ele ali criar,exercendo os seu gosto, um interior confortdive, de luxo inteligente e sdbrio" ee. 710) 4 ade aves Os Malas Jé quanto ao consultério, podemos ler: » "Carles mobilou-o com luxe. Numa antecdmara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, francesa, um criadio de libré.A sala de espera dos doentesalegrava com 0 seu papel verde de ramagens pratea- das, as plantas em vasos de Rudo, quadros de mutta core ricas patronas cercando a jardineia coberta de co legdes do Charivar, de vistas estereoscopicas, de dbuns deatrzes seminuas; paratirarintelramente oar triste deconsult6rio, até um piano mostrava o seu teclado branco" tp. 104) A partir destes excertos, éfécil confirmar a importancia dade a descricdo da realidade circundante com Tecurso a0 impressionismo literdtio, que vai buscar influéncias 20 movimento pictérico com © mesmo Tome — Impressionismo — 0 qual valorizava a cor, a luz, 0s contornos esfumados e os efeitos da observacao do real Deste modo, também nesta obra queirosiana as sensacdes que a observagzo do real provocam sé0 evi dentes, sobretudo através da sinestesia, isto &, a associacao de duas ou mais sensagdes pertencentes a dife- rentes registos sensoriais ~ “uma luz macia, escorregando docemente do azul-ferrete, vinha douraras fachadas enxovalhadas.” Constata-se, pois, © recurso a um vocabulétio rico e essencialmente sensorial, em que os adjetivos, neste caso, mas também 05 advérbios ou os verbos no gertindio desempenham um papel deter- minante. 5. A complexidade dos protagonistas O romance apresenta um leque vastissimo de personagens que podem ser analisadas segundo varias facetas, tendo em conta o seu relevo, a sua importancia, ea sua representatividade social Afonso da Maia ‘Afonso éa personagem que funciona como 0 esteio da familia Maia; é para ele que todos se voltam nos momentos de crise, Com efeito, Afonso constitui 0 ponto de equilibrio dos Maias. é a ele que Pedro entrega Carlos apés a fuga de Maria, é ele que Carlos interroga na esperanca de que 0 avé desminta as revelacées de Guimardes. ‘Afonso, simbolo do Portugal liberal da década de 1820, que atirou “foguetes de ldgrimas & Constituigé (0.18, fol um joven revolucionario que sofreu o exilio pela sua audacla ideolégica, ‘Afonso ¢ ainda a encamacao do bom senso, da experiéncia, dos valores da nacdo e da raca, é alguém que defende o patriménio portugués face a descaracterizago e & invaséo das modas estrangeiras. Convive harmoniosamente com varias getacdes € varios tipos de formagao, de que os serdes nos Pacos. de Celas (Coimbra) e no Ramalhete so exemplo. No entanto, Afonso é humano e, embora tenha consequido sobreviver tragédia do filho, ndo superaa do neto, morrendo também com ele o futuro da familia, Aleitura dos seguintes excertos ajuda a completar a sua caracterizaco: > de “Afonso era um pouco bai..." até"... epensava com prazerem ficarali para sempre naquela pazena- {quela orden (op. 4-18) > de "No escritrio de Afonso da Maia...)"at6 Ll depois de ter devorado um prato de croquet pp. 19-128, > de Hd uma coisa extraordindria, avo” até "...]0 esmagava ao fim da velhice com adesgracadoneto!” (ep. 658-661, > de“..] Eaparecey Afonso da Maia, paid até... novo os seus passos, mais pesados, mais lentos, se sum- ram no corredor"'p. 679 > de “Defronte do Ramalhete os candeeiros ainda ardiam”até...] naquela tosca mesa de pedra onde deixara pender a cabeca cansada."Ipp. 683-685). Coptl M vago0 Uri Carlos da Maia Apersonagem Carlos, devido a sua centraidade, tem direitoa um tratamento privilegiado por parte do narrador. ‘Assim, o leitor val acompanhando o seu percurso, desde o seu periodo de formacao em Santa Olévia, submetido a uma rigida educacdo britanica (modema e laica) até ao desencantado passeio final, em que a sua Unica razio existencial parece set a de se ter esquecido de encomendar para o Jantar “um grande prato de paio com ervilhas" ip. 732. Pelo caminho, encontramo-lo em Coimbra, levando uma vida de boémia estudantil e literdria, em Lisboa, passando belos momentos de écio no seu consultério, af fazendo planos para mudara mentall- dade da sociedade lisboeta que frequenta e que o idotatra, Vive de forma exacerbada e intensa a sua paixdo por Maria Eduarda, interessando-se por tudo e por nada ‘ao mesmo tempo. Carlos é o diletante culto, por exceléncia, que acaba por se deixar submergir pela mo- dorre da sociedade lisboeta em que vive, no sendo capaz de impedir que todos os seus projetos se. F desmoronem inclusive a sua paixdo, embora esta tiltima por razées que Carlos nao consegue controlar. Como se Justifica, entéo, dentro dos cénones naturalists, este falhango de Carlos? A educagao que Carlos recebeu nao deveria ter criado um individuo forte, capaz de ultrapassar as adversidades da vida? | Aresposta a esta questo néo € tinica, uma vez que, e tendo em conta os pressupostos naturalistas, nd0 E podemos esquecer que a carga hereditaria dos pais também deve ser tida em conta; por outro lado, 0 meio decadente em que Carlos se move também 0 influenciou. No entanto, apésa revelacao do incesto e a morte do avd, Carlos consegue sobreviver, pelo menos fisi- camente, talvez devido & sua educacao britanica, Basta compararmos a sua atitude com a de Pedro, para concluirmos como as duas personagens estao distantes. Dever-se-a ainda referir que 0 percurso existencial de Carlos pode ser o simbolo da evolugao da socie- dade portuguesa apés a Regeneraco. Quando Portugal parecia estar a entrar numa época diferente, ‘marcada por uma certa prosperidade (tal como Carlos foi a esperanca de renascimento dos Maias), 0 pais acaba por air no indiferentismo, num retrocesso marcado por uma indefinicéo quanto ao futuro (constatacéo de Carlos e Ega no passelo final). Dai que se possa afirmer, parafraseando José de Almeida = Moura, que Os Maias mais néo so que “um ensaio alegrico sobre a decadéncia da nagao"! E mais dificil indicar excertos paradigmticos em relagao a Carlos da Maia, devido & centralidade e & £ quase omnipresenca da personagem ao longo da obra, encontrando-se a sua caracterizacao dissemI- = nada ao longo do romance de forma indireta e contrariando, assim, os canones naturalistas. Recomendamos, no entanto, a leitura dos seguintes excertos para melhor reter a caracterizagao da per- © sonagem: > de Carls a0 lado, muito séi...I"até “Mas hd de ser muito mais homer”. 58; > de*0 bom Vilaca, no entanto, dando estalinhos aos ded ...]"até “...]evia-se passa, fugizo britho dos seus olhos muito negros ermuito abertos” pp. 66-701, > de "Carlos ia formar-se em Medicina até“...] que inventam dasncas de quea humanidade papalva se presta logo.a morte" pp. 98-96 > deEra decerto um formosoe magnifico moco [..}" até... das paisagens da Holanda”. 102) > de 0 laboratério de Carlos|...” até... pesasse na politica, requlasse a sociedade, fosse a forca pensante de Lisboa" top. 188-1845 > de “Carlos continuava calada até a0 final do capitulo tpp. 430-482 > de“ Ecurioso! $6 vividois nos nesta caso. ...|"até a0 final do capitulo ep. 731-7331. 11 MOURA, Josée Amelia, Cademos de Literatura, Coimra,n* 14, abrilde 1985, pp. 46-56 4a de Osis Os Moos Maria Eduarda Maria Eduarda é sempre apresentada ao leitor como uma ‘deusa transviada' ip.259), como um ser supe- Flor que se destaca no meio das mulheres lishoetas. Ela é alta, loira, elegante, requintada, envolta numa aura de mistério, o que aumenta o seu poder de sedugao e a sua sensualidade. Era pois normal ¢inevi- ‘vel, tal como diz Ega, que ela ¢ Carlos, também ele diferente do lisbocta comum, se conhecessem, se ‘sentissem atraidos um pelo outro e se amassem. Surge em Lisboa, fazendo-se passar pela mulher do brasileiro Castro Gomes, com quem vivia ha trés anos, depois de ter enviuvado de Mac Gren, pai de sua filha Rosa. Quando conhece e se torna intima de Carlos, revela-se uma mulher sensata, equilibrada, doce e com um forte sentido de dignidade, particularmente quando Castro Gomes a abandona, O seu espirito culto - conhecia os grandes nomes da literatura e da musica do seu tempo — fascinava Carlos e 05 seus amigos, tanto mais que se mostrava solidétia com os mais desfavorecidos, numa linha ideol6- gica proxima do socialismo ~ "Carles provava-the rindo que ela era socialista” ip. 380) Maria Eduarda encarna a heroina romantica, perseguida pela vida e pelo destino, mas que acaba por encontrar, ainda que momentaneamente, a razéo da sua vida, na palxio € no amor. Ela é também. vitima do seu pasado, das circunstancias em que cresceue viveu (bem ao jeito naturalista), mas o facto de ser a propria personagem a natrar 0 seu percurso, omitindo, logicamente, aquilo que nao sabe refe- F Tente ao seu passacio, apds o leitor ja ter conhecimento do seu presente, afasta Maria Eduarda de alguns dos preceitos estruturais do Naturalismo. Alettura dos sequintes excertos ajuda a completar a sua caracterizacao: > de“Umesplendido preto, jd grsalho |. de “Mas Carlos néo escutave, nem sorria jc. até ".... aparecia o tom do seu cabelo castanho, quase louro & luz; ‘a cadelinha trotava ao lado, com as orelhas dieitas"ip. 27; > de “Nascera em Viena ...]"até 7...] omeu corpo permaneceu sempre fro, frio como marmore..."(pp. 522-530). "até “...J¢ vorde Craft murmurou:~Trés chic"tp 6 5.1. Caracteristicas tra Maria Eduarda) ‘as dos protagonistas (Afonso da Maia, Carlos da Maiae A acao central apresenta uma tipica estrutura de tragédia, que, no sentido classico, se caracteriza pela Presenga de um destino insondavel que se abate sobre as personagens, envolvendo toda a familia Maia No entanto, ndo é s6 a presenca do destino que confere tragicidade a esta obra, Assim, a intriga central presenta outros aspetos que a aproximam da tragédia classica, tais como: + a superioridade fisica e intelectual das personagens — Afonso, Carlos e Maria Eduarda destacam-se 110 meio pequeno e mediocre em que vive, pelas suas qualidades fisicas, morais e intelectuais, Ex: +Retrato de Afonso te. 14 + Retrato de Carlos fp. 102-103) + Descricéo de Maria Eduard jpp. 164-165; * © papel do destino, da fatalidade, como forca motriz— a destruico consuma-se por meio de um agente dissimulado, o destino, frequentemente referido ao longo do romance: a inevitabil idade do destino Ex: “Tu és simplesmente, como ele, um devasso; ¢ hds de vira acabar desgragadamente como ele, numa tragédia infernaltt...1- Carlinhos da minha alma, éndtil que ninguém ande d busca da sua mulher, la vird. Cada um tem a sua mulher e necessariamente tem de a encontrar. Tu estds aqui, na Cruzdos Quatro Caminhos, ela este talvez em Pequimn: mas tu, afa raspar o meu repes como verniz dos sapa- f05,e ela a o1ar no templo de Confiicio, estais ambos insensivelmente, iresistivelmente,fatalmente, ‘marchando um para o outrol...” fp. 10} 189 SST cpio -Edurocoo eric ~aconcordancia dos nomes e do destino x: “Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similituce nos seus nomes. Quem sabe se ndo pressa giava a concordéncia dos seus destinos!”p. 358) ~e destino“Irreparavel” Ex: “Ega escutava-o, sem uma palavra,[...] € agora, 36 pelo modo como Carlos falava daquele grande ‘amor, ele sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se dal por diante, e para sempre, o seu irepardvel destino”. 430) «+ 08 indicios/pressagios — que sao sinais, afloramentos disfarcados da forca do destino, que se reves ‘tem de aparéncias diversas, dficultando o seu reconhecimento por parte das personagens Incautas € definitivamente & sua mercé: ~alusio por parte de Vilaga a fatalidade dos Maias Ex: “uma lenda, segundo a qual eram sempre fatals aos Malas as paredes do Ramalhete..."(p. 7 +d trés anos, quando o Sr. Afonso me encomendou aqui as primeiras obras, lembrei-Ihe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete, (r.Afonso da Maia riu de agouros e lendas... Poisfatais foram!" (p. 697; “0s olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridao — como recebendo dela o pressdgio de um fu- turo onde tudo seria confuso e escuro também! tp. 472 =a semelhanca fisionomica de Carlos com a mée, reconhecida por Maria Eduarda Be: “Pareces-te com a minha mée! ...]~ Tens razGo ~ disse ela, - que a mamé era formosa... Pols éver- dade, hd um nao sel qué na testa, no nariz... Mas sobretudo certos jeitos, uma maneira de sori. ‘Qutra maneira que tu tens de ficar assim um pouco vaga, esquecido... Tenho pensado nisto muitas vwezes..." tp. 486} a semelhanca temperamental de Maria Eduarda e Afonso da Maia, reconhecida por Carlos Ex: “Enestas piedades Carlos achava-the semelhancas com 0 av" (p. 80 —a adverténcia a Carlos, por parte de Ega, de que a sua volubilidade sentimental teré consequéncias tragicas Ex: “hds de vira acabor(...] numa tragédia infernal” p. 60% ~ aimagem da alcova onde decorrem os amores de Carlos e Maria Eduarda como “taberndculo profa- nado" p.446)- preniincio da coliséo violenta da situagao incestuosa com valores morais de inspiracso sagrada; + alguns aspetos estruturais tragicos: ~ camorincestuoso de Carlos e Maria Eduarda, que equivale a hybris ia tragédia clissica, porque cons- titui um desafio & ordem estabelecida; ~ a peripécia —a sibita mudanca dos acontecimentos, @ passagem brusca da felicidade para ainfelic- dade: as casuais revelacdes do Sr. Guimaraes a Ega, propiciadas pelo encontro de Maria Eduarda com 0 Sr. Guimarses; 0 duplo reconhecimento ~ as revelagdes de Guimaraes a Ega e de Ega a Carlos; ~a catéstrofe: a “morte” das personagens ~ fisica, para Afonso; do amor, para Carlos e Maria Eduarda; social, para a fami =a temitice do incesto: 0 amor dos dois irmaos, Carlos e Maria Euarda: 190 > conhecem-se—+ amanv-se-+ reconhecem-se— separarm-se 4 Fade Quetes, os Maes Significado do caracter tragico numa obra realista/naturalista ‘Atematica do incesto representa, no universo ficcional do romance: ‘| +0 descrédito do Naturalismo; + ainovagio estética de Os Maias; + ofalhango dos valores positivistas; + oabsurdo do real face arbitrariedade do transcendente, Esa de Queités, que aderira as teses realistas/naturalistas na sua juventude, rejeita-as numa fase da sua vida em que alcancara ja a maturidade (cf. 1888, data de publicagdo de Os Mais). © romancista pretende demonstrar que haveré sempre algo de misterioso e de insondavel na vida hu- ‘mana, que a razao e a ciéncia nao conseguitéo explicar e resolver, revelando, assim, uma atitude antiposit vista, ‘Anegacio das teses do naturalismo esta representada em Carlos, ser superior, dotado de todos os trun- fos para vencer na vida, que, no entanto, fracassa, no apenas por influéncia negativa da sociedade portu- guesa, mas sobretudo devido ao destino adverso que se abate sobre a sua felicidade, provocando uma tra- dia familia. Curiosamente, poder-se-a afirmar que a temtica do incesto, pelo que tem de “anormal, é também um tema predileto dos naturalistas, que abordam predominantemente temas marginais 4 estrutura social, tals como o alcoolismo, a prostituigao, 0 adultério,oincesto, entre outros. O estudo cientifico destes casos pato- l6gicos levaria & expurgacéo destes males socias. 5.2, Representacées do sentimento e da paixao: diversificacao da intriga amorosa (Pedro da Maia, Carlos da Maia e Ega) As personagens d’Os Maias, tanto como as situacOes, 0s sentimentos, os conceitos, sdo mui ~~ tiplas pecas dum grande jogo de contrastes, ora categéricos, violentos, ora ténues, de simples intes. Definem-se, num quadro de valores, por compara¢ao, [..] Os amores de Carlos ¢ Maria Eduarda tém uma elevagao, uma qualidade, que se torna mais sensivel ao leitor pelo con- traste com os amores entre o Ega e Raquel Cohen os amores entre Carlos e a Gouvarinho. Todos ilegitimos, situam-se, porém, numa escala em que Carlos/Maria Eduarda ocupam o lugar ci- meiro ¢ Fga/Raquel o infe COELHO, Jacinto do Prado, “Para acompreensao d’Os Maas como um todo orginico; in Aa Contino de Ponlope, Lisboa: Bertrand, p.178 (com supressoes) Apartir do excerto apresentado, é possivel tracar um quadro representative do sentimento amoroso em Os Maias. Efetivamente, nao s6 os elementos da familia Maia so negativamente marcados pela paixdo, como também Ega, 0 excéntrico amigo de Carlos, tem a sua dose de relacées atribuladas. Mas comecemos pela andlise do amor fatal entre os pais de Carlos ~ Pedro da Maia e Maria Monforte. Apés a morte da “mama’, a vida de Pedrinho da Maia é marcada pela devassidao dos lupanares e dos J botequins, numa expressao clara do romantismo torpe que marca esta personagem. £ Obastardo, do qual nada mais ¢ dito ao longo do romance, e a vida dissoluta ndo agradam a Afonso, = contudo, tudo é preferivel ao hipotético ingresso na vida eclesidstica, Tudo se altera quando conhece Maria * Monforte, a negreira que seré a sua perdico, como podemos observar no excerto que se segue. 191 192 Capi Educ les ‘Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessas foilertes excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa, e faziam dizer as senhoras que ela se vestia “como uma c6mica’ Estava de seda corde trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas trancas, opalas sobre 0 colo e nos bragos; & estes tons de seara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabelos, iluminando-Ihe a camagio ebiirnea, banhando as suas formas de estétua, davam-Ihe 0 esplendor de uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Melo, que conversava de pé com o papa Monforte ~ escondido como sempre no canto negro da frisa. © Alencar foi observar “o caso" do camarote dos Gamas. Pedro voltara a sua cadeira, e de bra- 0s cruzados contemplava Maria, Ela conservou algum tempo a sua atitude de deusa insensivel; ‘mas, depois, no dueto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azuis ¢ profundos se fixaram nele, gravemente e muito tempo, 0 Alencar correu 20 Marrare, de bragos a0 a, aberraranovidade ‘Nao tardou de resto a falar-se em toda a Lisboa da paixdo de Pedro da Maia pela negreira, Ele também namorou-a publicamente, & antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos ‘Vargas, com 0s olhos cravados na janela dela, imével e pilido de éxtase. Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel ~ poemas desordenados que ia compor para 0 Marrare: ¢ ninguém ld ignorava 0 destino daquetas paginas de linhas encruzadas {que se acumulavam diante dele sobre o tabuleiro da genebra. Se algum amigo vinha a porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados jé respondiam muito naturalmente: ~ 0 Sr. D. Pedro? Esta a escrever A menina. Ele mesmo, seo amigo se acercava, estendia-Ihe a mao, exclamava radiante, como seu belo © franco sorriso: ~ Espera af um bocado, rapaz, estou a escrever & Maria! (Os velhos amigos de Afonso da Maia que vinham fazer 0 seu whist a Benfica, sobretudo o Vi- Jaca, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, nfo tardaram em Ihe trazer nova daqueles amores do Pedrinho. Afonso jé os suspeitava: via todos os dias um eriado da quinta partir com um grande ramo das melhores camélias do jardim; todas as manhs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume de um envelope com sinete de lacre dourado; e nao Ihe desagradava que um sentimento qualquer humano e forte, Ihe fosse arrancando o filho & estroinice bulhenta, ao jogo, as melancolias sem raziio em que reaparecia o negro ripango... Mas ignorava o nome, a existéncia sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos the revelaram, aquela facada nos Agores, 0 chicote de feitor na Virginia, o brigue Nova Linda, toda ‘asinistra legenda do velho contrariou muito Afonso da Maia. Uma noite que o coronel Sequeira, & mesa do whist, contava que vira Maria Monforte ¢ Pedro passeando a cavalo, “ambos muito bem e muito distingués; Afonso, depois de um siléncio, disse ‘com um ar enfastiado: — Enfim, todos os rapazes tém as suas amantes. absurdo querer reprimir tais coisas. Mas essa mulher, com um pai desses, mesmo para amante acho mé. 0 Vilaga suspendeu o baralhar das cartas, ¢ ajeitando os dculos de ouro exclamou com es- panto: ~ Amante! Mas a rapatiga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!... Os costumes so assim, a vida é assim, e seria (cop. pp. 27-29) Este amor-paixéo, que serd um amor-fatal, 60 mesmo sentimento que pontuara a ligagao Incestuosa de Carlos e Maria Eduarda, 4 enquanto estudante, Carlos tinha tido um percurso académico que caminhara a par € passo com um percurso sentimental curioso: envolveu-se com urna mulher casada, Hermengarda € ‘com uma espanhola. 0 pudor moral néo caracteriza 0 jovem méico, nem mesmo quando se instala em Lisboa ¢ inicia uma relaco adkitera com a Condessa de Gouvarinno. 4 ade ets, Os Mate O seu carécter voltivel é desde logo evidenciado pela forma como, ainda sem ter iniciado esta mesma relacdo, j& sente um certo desinteresse, repulsa até, por esta mulher fogosa, mas controladora. No momento em que vé Maria Eduarda, no peristilo do Hotel Central, numa viséo em tudo semelhante que seu pai teve quando viu Maria Monforte pela primeira vez, inicia-se a sua caminhada fatal. Apesar de Maria Eduarda nao ser, afinal, casada, est em Lisboa com Castro Gomes e, mais uma vez, a questo moral 'ndo € Impeditiva para Carlos, incapaz de controlar as suas emocées perante a “brasileira”. Entravam entéo no peristilo do Hotel Central - e nesse momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do lado da Rua do Arsenal, veio estacar & porta. Um espléndido preto, ja grisalho, de casaca e calc4o, correu logo & portinhola; de dentro um Tapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os bracos uma deliciosa cadelinha es- cocesa, de pelos esguedelhaclos, finos como seda e cor de prata; depois apeando-se, indolente e oseur, ofereceu a mao a uma senhora alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito es- curo que realcava 0 esplendor da sua carnagdo ebiimea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem-feita, deixando atrés de si, como uma claridade, um reflexo de cabelos de ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génove, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz das suas botinas. 0 rapaz ao lado, esticado num fato de xadrezinho inglés, abria negligentemente um tele- ‘grama; 0 preto seguia com a cadelinha nos bracos. E no siléncio a voz de Craft murmurou: = Tres chic. Em cima, no gabinete que o criado lhes indicou, Ega esperava, sentado no diva de marroquim, € conversando com um rapaz baixote, gordo, ftisado como um noivo de provincia, de camélia ao peito e plastréo azul-celeste. O Craft conhecia-o; Ega apresentou a Carlos o St. Damaso Salcede, ¢ mandou servir vermute, por ser tarde, segundo Ihe parecia, para esse requinte literdrio e satanico do absinto... Fora um dia de inverno suave e luminoso, as duas janelas estavam ainda abertas. Sobre o rio, no céu largo, a tarde morria, sem uma aragem, numa paz elisia, com nuvenzinhas muito altas, pa- radas, tocadas de cor-de-rosa; as terras, os longes da outra banda jé se iam afogando num vapor aveludado, do tom de violeta; a agua jazia lisa e luzidia como uma bela chapa de aco novo; e aqui e além, pelo vasto ancoradouro, grossos navios de carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraca- dos ingleses, dormiam, com as mastreacées iméveis, como tomados de preguica, cedendo ao afago do clima doce... ~ Vimos agora lé em baixo - disse Craft indo sentar-se no diva - uma espléndida mulher, com uma espléndida cadelinha griffon, e servida por um espléndido preto! (cop. Vi pp. 164-166), Deste mado, 0 adultério marca a intriga amorosa, que nao se concentra apenas em Carlos, sendo alar- gada para o seu amigo Ega, que se envolve com a mulher do banqueiro Cohen, a bela Raquel, que voa para 08 bracos de Damaso, depois do “Mefistéfeles de Celorico” ter sido escorracado do baile de mascaras pelo marido taido. Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se as vezes Raquel, e as opinides discordavam. Taveira achava-a “deliciosa!” — e dizia-o rilhando o dente: ao marqués nao deixava de parecer apetitosa, para uma vez, aquela carnezinha faisandée de mulher de trinta anos: Cruges chamava-lhe uma “lambisgoia relambéria’ Nos jornais, na seccao do High Life, ela era "uma das nossas primeiras elegantes": e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta de ouro presa por um fio de ouro, ea sua caleche azul com cavalos pretos. Era alta, muito palida, sobretudo as luzes, delicada de satide, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de litio meio murcho: a sua maior beleza estava nos cabelos, magnificamente 193 Cop corto ero negtos, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ela deixava habilmente cair numa ‘massa meio solta sobre as costas, como num desalinho de nudez. Dizia-se que tinha literatura, e fazia frases. O seu sorriso lasso, pélido, constante, dava-Ihe um ar de insignificéncia, O pobre Ega adorava-a. Conhecera-a na Foz, na Assembleia; nessa noite, cervejando com os rapazes, ainda Ihe cha- mou camélia melada; dias depois jé adulava o marido; e agora esse demagogo, que queria o massa cre em massa das classes médias, solugava muita vez por causa dela, horas inteiras, caido para cima da cama, Em Lisboa, entre 0 Grémio e a Casa Havanesa, jé se comegava a falar “do arranjinho do Ega’ Ele todavia procurava pér a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precaugées tanta sinceridade como prazer roméntico do mistério; e era nos sitios mais desajeitados, fora de portas, para os lados do Matadouro, que ia furtivamente encontrar a criada que lhe trazia as cartas dela... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce afetado com que espreitava as horas), transbordava a imensa vaidade daquele adultério elegante. De resto sen- tia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso que, diante de Carlos e dos outros, nunca até af mencionara o nome dela, nem del- xara jamais escapar um lampejo de exaltacao. ‘Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em ‘que caminhavam ambos calados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixio, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os bragos, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz: ‘Ohi laisse-toi done aimer, oh! Yamour ceest la vie! (cop. V, pp. 185-186) Outros personagens Universo feminino Maria Eduarda Runa “Linda, morena, mimosa eum pouco adoentada”tp.16, Maria Eduarda Runa, filha do Conde de Runa, casa ‘com Afonso, um jovem revolucionétio ¢ liberal, cujas idelas progressistas a atormentam, levando 0 ‘casal ao exilio em Inglaterra. A vida nesse pais, qual nunca se adaptou, tornou-a ainda mals melancé- lica e doente, encontrando refiigio numa devocao religiosa exacerbada. Assim, nao confiando numa educacao briténica, mesmo sendo catdlica, faz ir o Padre Vasques de Lisboa para educar 0 ‘seu Pech inho, 0 nico filho do casal. Aleitura do excerto seguinte ajuda a completar a sua caracterizacao: > de “Folentéio que conheceu D. Maria Eduarda Runa ...!"até“... paraivisitara sepultura da mamé..."\pp. 16-23) Maria Monforte Maria Monforte destaca-se no universo feminino do romance, tanto pela sua beleza avassaladora, como pela irreveréncia face as normas discriminatorias da sociedade oitocentista: «+ 6 herdeira de uma fortuna ganha & custa do tréfico de escravos - 0 pai era “negreiro’; 5 + é protagonista de aventuras amorosas: fuga com Pedro da Maia, depois de um casamento secreto: mais tarde, com o italiano Tancredo; e é em Paris, muito mais tarde, “com uma stcia para Baden’; + & protagonista de soirés e tertliasliterdrias que ela prépria organiza e que contam com uma pre- senga maioritariamente mascutina; 4 teade cunts, os Mais + rompe com um casamento nobre que Ihe permite ser aceite na sociedade, salvando-a de uma situa- 40 social sem titulo; + rejeita a fortuna do marido, em busca do amor; + foge, levando a filha e abandonando o filho, desfazendo, assim, a estrutura familiar; + jd em Paris, toma-se proprietéria de ume casa de jogo que entra em decadéncia, quando Maria se de“ Vossa Exceléncia sabe que apareceu a Monforte?” até “Ela respondera que era oretrato da filha que the ‘morrera em Londres" (pp. 83-89); > de’...]eleevitara pronunciar sequer o nome de Maria Monfortel” até “O papd,.a mamé, os seres amados, cestavam all todos —no aves" pp. 190-192) > de “Nascera em Viena...’ até"... depois de rapada a sua magratigela de sopas,e ainda com fore...” (©. 522-520) Universo masculino Caetano da Maia Gaetano da Maia é uma personagem que se afirma no romance como grande opositor do liberalism. Asua intolerdncia elativamente as ideias revoluciondries leva-o a expulsaro filho de casa, desterrando- -© para Santa Olévia, no Douro, por este se envolver com os simpatizantes da Revolucao Francesa € partihar dos ideats jacobinistas. Era-he intolervel ter um filho revolucionério, tal era 0 seu édio pelo jacobinismo, a que atribuia “todos os males, 0s da patria e os seus, desde a perda das colénias até crises da sua gota’ (p.19. Aleitura do excerto assinalado ajuda a completar a caracterizacao: > de “Caetano da Maia era um portugués antigo e fil que se benzia ao nome de Robespiere[...1"até “O pai beljou- -0,todo em légrimas |... vendo alia evidente, a glorosa intercessdo de Nossa Senhora do Soledad!” (pp. 15-16 Pedro da Maia A cconstrucso da personagem de Pedro obedece ao cénone naturalista, em que as caracteristicas psico- légicas, o meio social ea educagéo so determinantes na formacdo da sua personalidade, Assim, com ‘uma educagéo catdlica e tradicional, bem ao modo portuguss, herdando o caracter depressivo e me- lancélico de Maria Eduarda Runa, sua mae, ¢ vivendo no meio do “sopro romdntico da Regeneracao” (p. 39), Pedro nada mais podia fazer que se deixar arrastar por uma vida de boémia e dissipacdo, que culmina numa paixéo obsessiva e fatal por Maria Monforte.E esta mulher que, definitivamente, o preci pita no abismo da perdi Sublinhe-se, ainda, 0 facto de a caracterizagéo direta de Pedro e de a omnisciéncia do narrador em rela- «So. esta personagem corroborarema sua concecéo de pendor naturalista 195 cope Ml -Educosbe tra ‘Aleitura dos seguintes excertos ajuda a completara sua caracterizaca > de “Odiando tudo o que era inglés ...]" até “...] Que podia ela fazer! -" (pp. 19-20}; > de0 Pedrinhono entantoestava quase um homer: até “..alguma coisa de mortal e superior Tera op. 2-24 > de Pedro e Maria, noentanto, numa elcidade de novel @ amavam: pp. 35-39% > deUma sombria tarde de decembro[...]’até “Amanha conversaremos mais” pp. 47-54% > de’A madrugada larevat... at... ecom todos os criades para a Quinta de Santa Oldvia Ip. 55 * at6 Todos os amigos de Pedro, naturalmente, Jodo da Ega ga funciona como 0 Sancho Panca de Carlos, ou sea, é aquele amigo que o taz de volta &realidade, {que o faz por os pés no mundo. € também aquele que, nos momentos mas dlfceis e mais dolorosos, © ampara e ajuda, ndo s6 em termos psicol6gicos, mas também na resolus#0 dos problemas préticos (carta de Damaso, partida de Maria Eduarda de Lisboa). Para além destes aspetos, sao também eviden tes afinidades culturais entre as duas personagens. amigo de Carlos é igualmente, 0 simbolo da pure irreveréncia, do sarcasmo, d nia, da critica pela: catia, do prazer de chocar e de questionar, mostrando-se, muitas vezes, contraditério nas suas opi- rides: literatura, educacSo da mulher, politica, escravatura... Gosta, por isso, de se fazer notar e de ser notado nos circulos que frequenta. Entusiasma-se facilmente pela novidade, iniciando varios projetos, i Como a criacéo de uma revista que revolucionasse o ambiente cultural portugués e um livointtulado © as memérias de um Atomo, projetos que nunca foram concluidos, No passeio final, tal como Carlos, Ega extravasa o seu desencanto, a sua desilusdo, a sua frustragao, nao 's6 em rela¢o 20 Portugal que o envolve, mas também em relacio 20 falhanco dos seus projetos. ‘Aleitura dos seguintes excertos ajuda a completar a sua caracterizacao: > de“Um amigo de Carlos (um certo Jodo da Fga)"tp. 95% > de “lado da Ega, com efeito, ra considerado nd s6 em Celorico, mas também na Academia... Fama de fdalgote rico tomava-o apetecide nas familias” to. 98) > de Foiuma dessas manhés|..."até“..J¢,de monéculo no olho,examinowo gabinete" (pp. 109-1; > de Olivo do Egat” até a0 fim do capitulo pp. 17-8 > de" Tens razdo!” até ‘...]éassim que pensariao grande Sancho Panga” p. 534 > deMas, aestaideia de incesto[..J"até ao final do capitulo (op. 688-6405 > > até Asua de ga bafbuciou, atarantadol...” até“ Diabos lever as mulheres, ea vida, e tudo... pp. 679-681: def curiosolS6 vii do's anos nesta casa [..)"até ao final do capitulo bp. 73-733 6. Linguagem e estilo 6.1. Reproducao do discurso no discurso © natrador pode reproduzir de diferentes modos o discurso de outros locutores presentes na narrativa {Assim, podemos enumerar trés modos de representacao do discurso: Discurso Reproduz as caracterstcas proprias da oralidade, “O proprio Carlos lisse, muito sri direta omeadamente, as pausas, ashestacdes,asinterelcdes, | _Nao senhor.. ninguém hi defugic, simulanco um discutso verosimil, Pode apresentar verbos ‘eh dese morrer bem ip. 178) introdutores de rlato do discurso e & matcado pelo recurso as aspas, aos dois pontos, a0 pardarafo e20 travessac. 4a do Osis Os alas Reproduz com alteracdes 0 discurso original, oque implica | “Cohen interveia declarou que o 2 utilizacdo da 3 pessoa gramatical, bem como mudancas | soldado portugués era valente,& ‘20 nivel de tempos e modos verbais.€ marcado por verbos | maneiradasturcos- sem discipina, declarativos (alzer, afar perguntar...)e pela recorréncia | mas esa"(p. 78) de oragées subordinadas substantivas completivas. Reproduzo discurso fundindo as palavras do nartador com | “Was Corlos queria realmente saber asdo locutor/personagem, sem que hajaa presencade | se,no fundo,eram mais lies esses verbos introdutores de relato do discurso, mantendo-se as._| quesedirigiam 36 pelarazdo, ndo se ‘marcas tipicas do discurso oral caracterstcas daquela ddesviando nunca dee, ,.p. 731 personagem. 6.2. Recursos expressivos: a comparaco, a ironia, a metéfora, a personi a sinestesia e 0 uso expressivo do adjetivo e do advérbio Recursos expressivos + Acomparacio: “ocipreste eo cedroenvelheciam juntos, como dois amigos num emo" p.726);...]ouviu- “se, como um gluglu grosso de pery, @ voz da baronesa [..1" 881) permitindo enriquecer a descricéo ou de cenatios ou de personagens; + Aronia: uma das originalidades de Eca, usada pare evidenciar os aspetos risiveis e reveladores das incoeréncias das personagens ou dos factos. Assim, 0 narrador anula a objetividade que caracteriza 0 romance realista, assumindo uma perspetiva critica ¢ subjetiva, revelando simultaneamente uma posi- ao de superioridade e distanciamento ~ “Ega foi generoso.p. 572) - ao referir a atitude de Ega em rela 20 a Damaso, em nada “generosa’, pois este Ultimo tinha sido obrigado 2 admitir por escrito que era bébedo, “por um habito hereditdrio” da familia; “O Reverendo Bonifdcio inome do gato de Afonso da ‘Maia, que, desce que se tornara dignitério da Igreja comia com os senhores" 107} + Ametéfora: “um canteirinho de cameélias meladas” tp. 328) ~ referindo-se as senhoras que assistiam as cotridas no hipédromo; “uma chuva de ouro caiu por baixo" —referindo-se as failhas das brasas (. 129; + Apersonificagao: ‘...] acurta paisagem do Ramalhete, um pedaco de Tejoe monte, tomava naquele fim de tarde um tom mais pensativo e triste |...1"(p. 727; ‘com um céu triste de trovoada’p.3m)~ animizando a atureza; + A sinestesia: ‘F por toda a parte o Juminoso ar de abril punha a docura do seu veludo” tp. 240) — expri- mindo uma mistura de sensacées visuais e tacteis. + Ouso expressive do adjetivo: “um recitativo lentoe babyjado’ tp.791;“pelest. (6.328); E outros ainda, mortos, sumidos, afundados no lodo de Paris!" p. 713)". ros dias, caquética e caturra, a velha Lisboa fidalga!” tp. 72; murchas, gastas, moles” arrasta 0s seus derrade- 0 adjetivo surge também associado a outras categorias morfolégicas, como 0 advérbio: “um rapaz ‘muito fouro[...anguidamente recostado”p. 72%; “luvas clarasfortemente pespontadas de negro". 71% ~ adjetivo associa-se a outros recursos estilisticos, como por exemplo & animizacio ~ “cidade pregui- (05a p. 108) ~; 8 hipalage - ‘silenciosas tapecarias” fp. 318) ~; 8 ironia - “...] prosseguiu 0 Sr. Sousa Neto, [...]cheio de curiosidade inteligente" i. 349 ~; 8 sinestesia - “Fora um dia de inveo suave e luminoso"” (©.165)€ “luz macia"(p. 108) mesclando dois tipos de sensagao, visual e téctil ~ a repeti¢ao do adjetivo, com intencionalidade expressiva:‘[...] uma espléndida mulher, com uma es- pléndida cadelinha griffon, e servida por um espléndido preto!” 168) +0 uso expressive do advérbio (elemento que imprime valores inusitados a narrac3o e 8 descri¢ao) “apelava desesperadamente” tp. $70}, “Depois serenamente fez a titima declaracéo |...]"p- 571; ‘...] estais ‘ambos insensivelmente, inesistivelmente, fatalmente, marchando um para o outro..." p. 60}; "...] corria ‘o prantozinho da cascata, esfiado saudosamente'p. 727. 197 agit Educa eda Sintese de conieGdos O romance realista/naturalista + Preparacio da acdo principal (antecedentes familiares): = juventude de Afonso da Maia eexilio em Inglaterra = agio secundétla - vida de Pedro da Mala (infancia, ventude, relagao e casamento com Maria Monforte; suctaio) = formacio de Catlos da Maia {inféncia em Santa Olévia, ventude académica em Coimbra, longa viagem pela Europa, instalago no Ramalhete, em Lisboa) Titulo + Agio principal Osmais-histéria ~ vida diletante de Carlos deuma familia = peixio incestuosa de Carlos por Maria Eduarda ~ earéctertrigico da itriga central + Narrador: = ornnisciéncla ~ focalzacio interna (Vilaga, Carlos da Maa, Jodo da Egal = vez critica @ironica + intura objetve da socledad/dentincia dos males da sociedade portuguese da segunda metade do século XIX __« Ambiente socials Hotel Centra, hipédromo de Belém, Sintra, casa dos Gowvarinho, Subtitulo | Teatro da Trindade, espagos da Baba Iisboeta eisiios davida + Representatividade socalipersenagens tipo ~ Cohen, Conde de Gouvarint ae alipersonagens tp . ©, Steinbroken, Cruges, Alencar, Ega, Sousa Neto, Eusebiozinho, Palma Cavalio, Neves + Grandes temas de critica ~asfinangas, a politica, 0 jomalismo, educagao, a critica Iterdria,o estatuto da mulher al | + Realismo/Naturalismo: | descrigdo minuciosa de ambientes # de personagens |= catécterclentifico da literatura/positivismo = hereditatiedade, educacio e meio como fatores determinantes do comportamento individual Estéticaliterdtia que. Dascrédito das teses realistas: enformao romance ——— cardcter trigico da intriga central |= temitica do incesto = smbolismo dos espacos e dos percursos das personagens principais {(provincianismo, decadénci frustragio, autenticidade..) = concegio fatalsta da existéncia ~ arbitrariedade do destino sata : | sno | -oseuso inet te (cee! ama ee *Neolgimes verbs) aaa + Empréstimo Reis | -Diminutvo

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