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HOBBES E A RAZÃO PÚBLICA.

Um estudo sobre as origens do Estado do Bem-Estar Social


Fernando Magalhães *
Introdução

Diferentemente do que ocorre com o socialismo – entendido como propriedade


social dos meios de produção –, habitualmente relacionado à concepção marxista da
história, o liberalismo não tem uma paternidade definida. Atribui-se seu ideário, em regra, a
um diversificado e heterogêneo elenco de pensadores. No entanto, a despeito dessa
multiplicidade de patronos e das transformações que o pensamento liberal sofre ao longo
dos tempos, permanece enraizada, nas mentes da maioria dos teóricos e de filósofos da
política, a noção identificadora do liberalismo com o conceito de laisser faire. A
compreensão que se tem do liberalismo como uma economia de mercado em estado puro
exclui, de início, dessa corrente, um razoável contingente de autores que não gostariam de
sentir-se incluídos num restrito naipe de puristas ideológicos, ainda que partilhem de uma
mesma visão de mundo. O fracasso dos sistemas socialistas do Leste europeu contribuiu,
consideravelmente, para o esquecimento, por parte da teoria política, de outras variantes do
liberalismo, particularmente a que se auto-intitula social.
Ao que parece, este fato se deve, em boa medida, à associação que se faz, com
freqüência, à relação entre as questões sociais e o socialismo (ou marxismo), comparando
as conquistas obtidas nesse campo à intensa luta dos trabalhadores pelos seus direitos
através de suas organizações. Parcialmente correto, esse entendimento do processo
evolutivo das idéias sociais omite a existência de um fator intrínseco ao desenvolvimento
dessas idéias, a saber, que antes mesmo do nascimento do movimento socialista, uma
atenção para com a proteção do trabalhador e a regulamentação do trabalho já ocupa o
pensamento de alguns autores burgueses. Em outras palavras, a idéia de regulamentação
política da economia surge quase em paralelo com o aparecimento do capitalismo.

*
Fernando Magalhães é professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco.

1
Decerto, ninguém eleva a crítica da exploração capitalista às últimas conseqüências
como fazem os construtores do socialismo, sobretudo Marx e Engels. Impossível ocultar,
porém, que algumas questões sociais são objeto de apreensão por parte de certos
pensadores liberais. Não é sem razão que Stuart Mill atrai a atenção de Marx – que se
recusa a integrá-lo no mesmo grupo que inclui os economistas vulgares, prestando-lhe uma
inesperada homenagem -, e que muitos intelectuais de esquerda repensem, até certo ponto,
determinadas idéias de Tocqueville 1 . Contudo, ambos são contemporâneos das lutas sociais
travadas na Europa, no século XIX, e podem, por isso, ter recebido influência do
pensamento socialista da época. (Se bem que bastante difícil, no caso de Tocqueville,
aristocrata convicto e que se define abertamente anti-socialista). Mas o que dizer do
pensamento social do século XVII, quando o comércio começa a se desenvolver em escala
mundial e a acumulação do capital já se faz sentir na estrutura econômica das sociedades
européias?
É nesse ambiente, onde a atmosfera do Velho Mundo, notadamente da Inglaterra, é
preenchida pelo espírito mercantil – passo decisivo em direção à modernidade –, que
emergem simultaneamente a defesa e a regulamentação da sociedade burguesa e, por
conseguinte, fazem nascer a base intelectual que servirá de fundamento ao liberalismo
social. As linhas gerais dessa concepção são formuladas pelo primeiro teórico que rompe,
em definitivo, com o direito divino dos reis, e lança os alicerces do Estado moderno:
Thomas Hobbes.

1
. O ensaio em que Mill estuda o problema da liberdade contém os mais autênticos elementos das teorias
liberais, inclusive a defesa da liberdade de mercado. Mas não se pode reduzir seu pensamento a uma única
obra. Sua preocupação com a educação pública, a compreensão de que o comércio é um ato social, e de que o
cidadão não apenas deve ter voz mas também o direito de participação ativa no governo, provavelmente
contribui para que sua teoria não seja colocada, indiscriminadamente, ao lado das dos demais liberais
“apologéticos” do sistema capitalista. Marx, ao falar dos Princípios de Economia Política, de Mill,
entusiasma-se com a censura que o escritor inglês faz ao excesso de exploração do capitalismo sobre os
trabalhadores, demonstrando a fadiga e o esgotamento a que chega o operário, cujo trabalho “às vezes não
rende sequer o estritamente necessário para sua sobrevivência”. Para Marx, portanto, seria “injusto lançá-lo
no mesmo grupo que toda a corte de economistas vulgares”. Igualmente, a ardente paixão aristocrática de
Tocqueville não o impede de reconhecer que o Estado tem deveres para com os pobres e todos os cidadãos
que sofrem ou encontram-se reduzidos à miséria. Ele sustenta, ainda, a necessidade de criar escolas gratuitas,
a exigência da redução da jornada de trabalho e de fundos de ajuda mútua. Cf. John Stuart Mill, Sobre a
Liberdade, Petrópolis, Vozes, 1991, p. 13, e todo o capítulo 3 do “Representative Government”, in The Great
Books of the Western World, n. 43, Chicago, William Benton, Publisher, 1955, pp. 341-350; Karl Marx, El
Capital, Livro I, México, Fondo de Cultura Económica, 1973, p. 515; Alexis de Tocqueville, Liberdade
Social e Igualdade Política. Textos selecionados e organizados por Pierrre Gilbert, São Paulo, Nerman, 1988,
pp. 164-165, e André Jardin, Alexis de Tocqueville, 1805-1859, México, Fondo de Cultura Económica, 1988,
p. 322.

2
Uma hipótese interpretativa de filosofia político-econômica preside esta discussão.
Estriba-se, ela, na pressuposição de que o liberalismo social e o Welfare State são
depositários das idéias econômicas e políticas de Hobbes, apropriadas e desenvolvidas
pelos seus intérpretes. Isso não implica uma inteira tomada de consciência, por parte de
Hobbes, de que está realizando uma análise do capitalismo do Seiscentos, como tampouco
significa que seus seguidores adotam, com clareza, seus ensinamentos. A relação entre
leitor e autor, entre o discurso e a recepção não se dá mecanicamente. A recepção, por
exemplo, não ocorre somente quando o leitor (ou ouvinte) pensa estar interpretando
conscientemente as premissas explícitas do autor (ou evento) investigado. Ela é, antes, fruto
de uma “articulação entre o sujeito presente e o discurso passado”, a renovação histórica da
obra, cujo “efeito é determinado pelo texto” (ou acontecimento) e a “recepção pelo
destinatário”. Quero dizer com isso que o sujeito procura uma resposta implícita contida no
discurso passado e a persegue como se tivesse a intenção de obter uma resposta para uma
questão que o incomoda, e a recoloca em outro nível, “conferindo-lhe existência atual” 2 .
Ora, na compreensão do leitor está inserido “o horizonte de seus interesses, desejos,
necessidades e experiências que são determinados pela sociedade e pela classe à qual
pertence”, o que implica uma fusão de horizontes: o do discurso e o da leitura que dele se
faz 3 . A diferença de épocas, no entanto, instiga o receptor a complementar o texto
recorrendo a uma espécie de desvio com o objetivo de adaptá-lo às exigências dos novos
tempos. Evidentemente, a fusão de horizontes produzirá um efeito maior sobre o leitor à
medida que exista uma identificação com fatos e personagens históricos do passado, seja
por uma escolha consciente ou não 4 . Desse modo, é possível, para Hobbes, promover uma
análise da economia inglesa e do indivíduo, no século XVII, imaginando que faz uma
avaliação das sociedades e do homem de todos os tempos 5 , como é provável que um liberal
social adquira sua experiência pela leitura de Hobbes e do comportamento dos homens
numa sociedade competitiva – concorrentes, mas controlados socialmente.

2
. Cr. Hans Robert Jauss, Pour Une Esthétique de la Récption, Paris, Gallimard, 1978, pp. 246-247.
3
. Ibid, p. 259.
4
. Sobre a compreensão e adaptação do texto como desvio (clinamen), ou seja, uma espécie de “desleitura” ou
“expropriação reparadora” da obra, sua ampliação e complementação como se o autor não tivesse ido longe
bastante em função da diferença de épocas, consulte-se o livro de Harold Bloom, A Angústia da Influência,
Rio de Janeiro, Imago, 1991, pp. 36, 43 e 106.
5
. Hobbes deixa-se influenciar pelos relatos de Tucídides sobre a natureza humana, e não pensa encontrar
grandes mudanças nos homens da sociedade seiscentista.

3
Hobbes, em sua investigação sobre a natureza humana, não tem a intenção de
modificá-la 6 nem se interessa em estabelecer um sistema para a reforma ou completa
reeducação dos indivíduos, ainda que alguns trechos de sua obra assinalem para o interesse
do filósofo em dotar o governo de um dispositivo educacional que ensine aos homens a
obediência ao poder soberano. Ele não se empenha em formular hipóteses sobre um sistema
educacional. Reserva, contudo, algumas recomendações que indicam a possibilidade de
uma “reeducação” por meio da constrição e do recurso ao instrumental científico 7 . No
entanto, Hobbes nem mesmo se opõe ao modelo capitalista de mercado. Aceita suas
premissas básicas, mas quer coibir a exacerbação, regulamentando o mercado com os
instrumentos coercitivos postos à disposição pelo próprio sistema emergente: a lei e a força
consentida. Na realidade, o regime liberal burguês não é composto exclusivamente por
epígonos do mercado puro. Se examinarmos, ainda que ligeiramente, a história antiga e
recente do pensamento liberal e da teoria capitalista, veremos que ela é formada por
posições políticas e sociais divergentes e até mesmo antagônicas.
É suficiente lembrar que, mesmo nos dias de hoje, diante de uma inundação de
propostas neoliberais, não deixam de crescer argumentos contra o descontrole do capital
nem a crítica ao fundamentalismo de mercado. Filósofos como John Rawls e Richard Rorty
certamente não admitem pertencer à mesma vertente de Milton Friedman ou Robert
Nozick, embora partilhem de um mesmo sistema de idéias. Em todo caso, não é tão
reduzido o número daqueles que aprovam a necessidade de um capitalismo controlado ou
um mercado socialmente regulamentado; princípios que sempre tiveram abrigo no cerne do
pensamento de alguns liberais. Tal tipo de formação social parece atrair filósofos que
detectam nele a essência da justiça, materializada no objetivo da razão pública, uma idéia
que está em linha direta com a tese que pretendo demonstrar neste trabalho. Essa concepção

6
. O reconhecimento por parte de Hobbes de que a natureza humana, embora possa ser controlada, mas não se
modifica, elimina a tese daqueles que consideram que o totalitarismo tem suas raízes na idéia de renovação
moral do homem. Cf, por exemplo, o estudo de Francesco Viola, “Totalitarismo e irrazionalismo nella teoria
morale di Hobbes”, Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Série IV, n. LIV, 1977.
7
. Hobbes acredita que não existirá paz duradoura enquanto as universidades não forem reformadas, e afirma
que a doutrina civil deve começar a ser introduzida na sociedade pelas academias, através de princípios
racionais e científicos. Cf. De Cive, Petrópolis, Vozes, 1993, pp. 171, 276-277 e 282; English Works, VI,
Londres, John Bohn, 1840, p. 237 e Leviathan, edição de C. B. Macphersonp, Harmondsworth, Penguin
Books, 1984, p. 378. Ver ainda os comentários de Quentin Skinner, Reason and Rhetoric in the Philosophy of
Hobbes, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 215 e de Elvira B. Susco, “Una aproximación a la
hipótesis hobbesiana del ‘estado de naturaleza’ aplicada a la area de las relaciones internacionales”, Revista
Occidental, Vol. 8, n. 23, 1991, p. 88.

4
político-econômica tem sua origem na filosofia hobbesiana que entende a finalidade da
sociedade como a concretização da razão pública, isto é, o Estado 8 orientado para o bem-
estar de seus cidadãos. O filósofo encontra-se diante de uma situação anárquica, provocada
não só pela guerra civil que devasta sua terra, mas também pelas extremas modificações
operadas no seio da economia nacional.

A Sociedade Inglesa

Polêmica, quando não problemática, a compreensão da estrutura econômico-social


da Inglaterra seiscentista. Difícil, mesmo, conciliar posições tão contraditórias com aquelas
expostas pelos grandes estudiosos do período. Não raro, as informações são conflitantes, e
historiadores, economistas, sociólogos e filósofos jamais chegaram inteiramente a um
acordo sobre a verdadeira condição da base material da Inglaterra no século XVII. As
dificuldades aumentam quando se trata de estabelecer um critério padronizado para definir
o entendimento que tem Hobbes de sua própria pátria. Face a essas contradições, ele se
apresenta, aos olhos de seus intérpretes, ora como defensor do nascente estilo de vida
burguês ora como porta-voz da moral aristocrática; tanto pode assumir a postura do
precursor do Estado burocrático, como revelar-se um antecipador do moderno totalitarismo.
Este não é o lugar – nem disponho de espaço suficiente – para discutir, de modo
amplo, o contexto inglês da época de Hobbes, não obstante reconheça sua importância para
compreender o pensamento do filósofo. Diante dessas limitações, resumirei a investigação
a respeito da economia inglesa à tendência dominante entre os especialista do assunto, isto
é, tomarei como paradigma as idéias prevalecentes na literatura dedicada ao tema. Em que
pese a ausência de um pensamento convergente em torno desse problema – e aqui, apenas a
título de ilustração, é o bastante mencionar o exame antitético da economia inglesa feita por

8
. A razão pública é entendida aqui no sentido explicitado tanto pelos liberais contemporâneos como na
acepção que lhe confere Hobbes, embora implicitamente. Ela é a razão daqueles cidadãos que partilham de
cidadania igual, exercem um poder final enquanto corpo político (Estado), e vêem o seu objeto como o bem
público, cujo equilíbrio é determinado pelas questões de justiça. Ao inverso dos liberais puros – os libertários
–, as questões econômicas são subordinadas a princípios éticos com o propósito de adequar as relações de
mercado a uma situação de “menor” desigualdade. Cf., por exemplo, John Rawls, O Liberalismo Político, São
Paulo, Ática, 2000, pp. 261-263 e 272.

5
Letwin e Hill e Sweezy e Dobb 9 , uns presenciando elementos de uma economia feudal,
outros uma estrutura liberalizante -, tudo leva a crer que uma economia relativamente
capitalista já se encontra formada na sociedade inglesa da época.
Parece confirmar esse ponto de vista a opinião de Keith Thomas que, mesmo
contestando a existência de uma concepção da natureza humana burguesa na filosofia de
Hobbes, atribuindo-lhe, ao contrário, uma visão patriarcalista e aristocrática, reconhece que
o filósofo exprime suas idéias a partir de uma economia relativamente avançada, em que
havia um estímulo ao crescimento da manufatura e todas as coisas obedeciam ao
dinheiro 10 . De qualquer forma, a maioria dos autores aponta para uma transição entre o
velho e o novo 11 , em que o primeiro tem uma força preponderante sobre o último, uma vez
que as forças produtivas em ascensão tendem a influenciar as mentes mais aguçadas da
época, inclusive forjando a hegemonia das classes ascendentes.
O fato é que o “espírito do individualismo” manifesta-se desde as primeiras décadas
do século e os cercamentos eram defendidos sob o argumento de que “o bem individual
concorre para o bem geral”. Exorta-se a dignidade do trabalho e os deveres de uma dura
jornada laboriosa 12 . A expansão comercial por novos mercados assinala a integração
inglesa na era capitalista, mas não sem a advertência de Hill para que não se exagere a
amplitude dessa evolução; ela é significativa, é verdade, mas como “tendência
dominante” 13 . Esta sociedade que Hobbes tem diante de si mostra o desenvolvimento de
certas relações econômicas que tornam o homem egoísta, ambicioso, sequioso de lucro e
acumulador de riquezas, além de incentivá-lo a viver em constante conflito com seus
semelhantes.
Hobbes não pensa, honestamente, que tudo isso seja produto de uma sociedade
específica. Para ele, essa guerra de todos contra todos é fruto da própria natureza humana

9
. Cf. Christopher Hill, De la Reforma a la Revolución Industrial 1530-1780, Barcelona, Editorial Ariel,
1991, p. 125, e Society and Puritanism in Pre-Revolutionary England, Harmondsworth, Penguin Books,
1986, p. 469; Paul Sweezy, “Comentário Crítico”, in Paul Sweezy, Maurice Dobb et alii, La transición del
feudalismo ao capitalismo, Madri, Editorial Ayuso, 1976, pp. 35 e 37 e William Letwin, “The economic
foundations of Hobbes”, in Maurice Cranston e Richard Peters (ed), Hobbes and Rousseau. A Collections of
Critical Essays, Nova York, Anchor Books, 1992, p. 149.
10
. Cf. “The Social Origins of Hobbes’s Political Thought”, in K. C. Brown (org), Hobbes Studies, Oxford,
Basil Blackwell, 1965, pp. 188, 189, 191.
11
. Ver, especialmente, Leo Strauss, The Political Philosophy of Hobbes. Its Basis and Its Genesis, Chicago,
University Press, 1973, p. 5.
12
. Cf. Hill, Society and Puritanism, p. 135.
13
. Hill, A Revolução Inglesa de 1640, Lisboa, Editorial Presença, 1981, p. 37.

6
que persegue os indivíduos desde a mais remota Antigüidade. O relato da Guerra do
Peloponeso, feito por Tucídides, é, para o filósofo, uma fonte de exemplos 14 . As
considerações de Hobbes levam muitos a acreditar que o sujeito hobbesiano possui uma
valoração universal, enquanto outros imaginam que, em função de sua intimidade com
ilustres membros da nobreza e sua intensa preocupação com a idéia de honra, a única opção
que lhe resta é definir-se por uma sociedade aristocrática. Em última análise, ele será, no
máximo, um mercantilista em luta com a cupidez da burguesia, opondo-lhe obstáculos e
negando seus preceitos 15 .
Mas não será o mercantilismo um sistema produtor de mercadorias de tipo
capitalista? O principal problema enfrentado pelos “teóricos da transição” reside
precisamente em identificar o capitalismo com a economia de mercado em seu caráter
pleno, em sua pureza ideal. Obviamente, a Inglaterra de Hobbes não é um sistema de
laisser faire; mas mesmo dominada pelo Estado mercantil oferece evidentes sinais de
competição acirrada, cuja descrição percebe-se nitidamente nos escritos do filósofo inglês.
Temos a impressão que Hobbes toma conhecimento desse novo tipo de formação social,
mas esta apresenta-se, às suas vistas, como uma tênue névoa. Por isso não entende
rigorosamente como mudança de uma época à outra.
O horizonte e o discurso não lhe dizem nada de novo sobre o homem moderno.
Ambos – discurso e homem – parecem idênticos aos antigos em sua volúpia e sofreguidão.
Como receptor, Hobbes apropria-se da natureza humana antiga e não vê (ou não lê)
transformações na essência da natureza humana moderna. Mas distingue, mesmo sem uma
consciência clara dos fatos, uma outra natureza no homem contemporâneo que é a do
indivíduo burguês. Se Hobbes não identifica a força motriz que se oculta por trás da
produção capitalista é porque as condições de nascimento do capital, como explica Marx,
pressupõem que “este ainda não existe”, que apenas está se convertendo em capital” 16 . O

14
. Hobbes deixa-se influenciar pela descrição que faz o historiador grego da Batalha da Córcira, e atribui à
natureza humana uma universalidade extraída tanto da experiência histórica quanto da própria introspecção.
Cf. Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Livro III, Brasília, UnB, 1987, pp. 166-168 e Leviathan
(Introdução), pp. 82-83.
15
. Um brilhante estudo nessa direção pode ser encontrado no livro de Renato Janine Ribeiro, Ao Leitor Sem
Medo. Hobbes escrevendo contra o seu tempo, São Paulo, Brasiliense, 1984. Em que pese o sofisticado e
refinado trabalho do autor, não concordo inteiramente com suas posições.
16
. Karl Marx, Líneas fundamentales de la crítica de la economía política (Grundrisse), Vol. I, Barcelona,
Grijalbo, 1977, p. 414.

7
dinheiro é o equivalente estável do valor e como tal a substância de todos os contratos 17 . O
valor corresponde, no pensamento de Hobbes, à lógica primitiva do capital, pois sua forma
originária de acumulação encontra-se na idéia de valor, sobretudo quando associada à
noção de preços 18
Segundo Marx, o produto ao ser negociado, tem seu preço discutido, avaliado e
fixado por meio de uma convenção legal 19 . É fácil entender por que Hobbes concede tanta
ênfase aos contratos e ao conceito de valor. Deduz-se, assim, dessas observações, que o
preço de uma mercadoria qualquer é estabelecido pelas partes num contrato de compra e
venda. Toda a análise de Hobbes desenvolve-se em torno daqueles que têm, como
profissão, a atividade comercial 20 . Vê no trabalho, tanto quanto no homem, uma
mercadoria a ser trocada por benefícios como qualquer outra coisa 21 . Entretanto, e em que
pese essa dinâmica moderna causar no filósofo, um certo espanto, não sentimos nenhuma
espécie de hesitação em sua análise no que se refere à aceitabilidade do modelo de
sociedade nascente. Ao contrário, admite que a felicidade é um contínuo avanço do desejo,
de um objeto para outro, em que a obtenção do primeiro não é outra coisa que um passo na
direção para se obter o segundo, e que esse prazer contínuo não consiste em se sentir
próspero, mas na busca da prosperidade 22 .
Esse desenfreado anelo de acumulação de riqueza por meio da competição,
transformando bens em lucro e a própria força de trabalho em mercadoria 23 , só pode ser
visível numa sociedade que superou, em grande parte, o sistema de status. Esse cenário
leva Hobbes a comparar, no seu texto Natureza Humana (uma das partes dos Elementos de
Direito Natural e Político), a vida do homem com uma corrida (race), em que este se
esforça para superar o próximo numa espécie de emulação 24 . Hobbes, no entanto, acredita

17
. Marx, Líneas fundamentales para la crítica de la economía política 1857-1858, II, México, Siglo XXI
Editores, 1984, p. 356.
18
. Grundrisse, I, pp. 199, 206 e 253.
19
. Ibid, p. 206.
20
. Thomas Hobbes, English Works, VI, 1840, pp. 320-321.
21
. Hobbes, Leviathan, pp. 151-152 e 295.
22
. Cf. Ibid, p. 160 e Elements of Law Natural and Politic, I, (“Human Nature”), vii, 7, p. 45.
23
. Marx reconhece, nesse trecho, a descoberta singular de Hobbes, autor que considera “um dos economistas
mais antigos e um dos mais originais filósofos da Inglaterra”. A percepção de Hobbes da venda da força de
trabalho (evidentemente, sem usar esse termo e sem notar todas as implicações contidas na descoberta)
escapa, segundo Marx, a todos os seus sucessores. Cf. “Salário, preço e lucro”, in, Marx e Engels, Textos,
Vol. 3, São Paulo, Edições Sociais, 1977, p. 358. Ver também C. B. MacPherson, Ascensão e Queda da
Justiça Econômica, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, pp. 180-181.
24
. Cf. Ibid, I, IX, 21, p. 59.

8
que essa competição sem freios é uma ameaça à segurança dos indivíduos, e propõe, como
forma de controlar seus livres impulsos, um acordo entre todos os que se encontram nessas
condições, preparando, assim, o caminho para a saída desse mundo, onde predomina a
barbárie, para uma sociedade mais civilizada.
Com efeito, o contrato hobbesiano é, antes de mais nada, um instrumento de
controle de um mercado que, de maneira incipiente, começa a dar seus primeiros passos em
direção ao que mais tarde chamaríamos de laisser faire. Uma indagação, contudo, se faz
necessária a essa altura. Se Hobbes não apenas descreve a sociedade burguesa mas aceita,
em princípio, seus postulados, por que então preocupar-se em combater um estilo de vida
com o qual tem afinidades? Não estarão corretos aqueles que insinuam que a oposição de
Hobbes a esse modelo implica, igualmente, sua rejeição ao capitalismo? 25

O Mercado Sob Controle: Moral e Conveniência

Naturalmente, algumas passagens nos escritos de Hobbes parecem indicar que ele se
lança contra a voracidade burguesa. Aparentemente, sua reação não é de aprovação. Difícil
conciliar, até mesmo, uma certa obrigação moral26 – antecipando-se a Kant – com a
aceitação da idéia de que o próprio homem é um objeto de consumo. Engana-se, porém,
quem vê nesses argumentos uma crítica aos interesses burgueses enquanto tais. Hobbes
condena somente o desejo de crescimento excessivo de riqueza que ameaça a convivência
pacífica entre os indivíduos. Aqui notamos a diferença entre Hobbes e os liberais clássicos;
uma distinção que reflete, inclusive, o problema do direito de propriedade. Como todo
liberal, Hobbes defende a aquisição de bens e de meios de produção, e sua livre
transferência (compra e venda) de um proprietário a outro. A propriedade é um bem que o
súdito tem em suas terras (ou em seu trabalho), que consiste tanto em excluir outros súditos
desses bens como pode ser trocado por qualquer outro benefício, e é mesmo necessário que

25
. Renato Janine Ribeiro põe em dúvida a existência de uma política burguesa em quem se empenha em
conter sua “desmedida natureza”, acreditando que Hobbes é, antes de tudo, “um gladiador em guerra com o
mercado de homens ávidos”. Cf. Ao Leitor Sem Medo, pp 18-19.
26
. Cf. Leviathan, pp. 214 e 318: “Não faças aos outros o que não gostarias que fosse feito por outrem a ti
mesmo”. Ver ainda A. E. Taylor, “The ethical doctrine of Hobbes”, in John Lively e Andrew Reeve (ed),
Modern Political Theory From Hobbes to Marx. Key Debates, Londres, Routledge, 1991, pp. 19-39.

9
os homens distribuam o que não conseguem economizar (spare), transferindo sua
propriedade para outros através de contratos mútuos 27 .
Essa liberdade de comércio, liberdade que o homem dispõe para negociar seus
próprios bens, não passa despercebida para muitos comentaristas de Hobbes 28 , embora
reconheçam as limitações ao direito de propriedade impostas pelo filósofo. É, portanto, no
controle da acumulação de riquezas, que se localiza na esfera das relações econômicas, que
se dá a virada de Hobbes para o social-liberalismo. Não obstante Hobbes abra espaço para
que a propriedade possa circular livremente entre os indivíduos, a ausência de uma
legislação que imponha restrições ao desembaraçado tráfico de mercadorias termina por
conduzir os homens a uma situação em que os levará de volta ao estado de natureza. O
Estado surge, assim como uma espécie de proteção contra o isolamento dos indivíduos no
mercado.
A riqueza, ao passar de mão em mão, independente de uma força centralizadora
capaz de canalizar os benefícios para a sociedade, não concorre apenas para valorizar o
capital (ou o lucro, na linguagem antiga), mas para fomentar a ambição pessoal em prejuízo
do bem-estar de todos. Talvez, por isso, Hobbes veja com desconfiança os monopólios
privados, uma vez que o objetivo dos corpos de comerciantes não é o benefício comum do
corpo inteiro. Acredita que o ideal que deverá trazer vantagens para o Estado encontra-se
na fusão de ambos em um único corpo político. Assim, reivindica a necessidade de
liberdade no interior do próprio país, todos vendendo e comprando pelo preço sugerido 29 .
Se Hobbes não subordina a sociedade ao mercado livre, tampouco pode ser acusado
de “estatista” 30 tout court. Inegavelmente, o Estado hobbesiano mantém uma forte presença
na economia e impõe severa regulamentação ao “setor privado”; mas não subtrai a vontade

27
. Cf. Leviathan, pp. 295-299. No De Cive (p. 102 ) Hobbes diz que, nos contratos particulares, todo
indivíduo tem o seu direito e a sua propriedade.
28
. “A soberania não pode legislar sobre a consciência dos cidadãos, que são livres em todos os campos nos
quais não foram instituídas leis – na vida privada, na educação dos filhos, no comércio...”. Cf. Daniela Coli,
La Modernità de Thomas Hobbes, Bolonha, Il Mulino, 1994, p. 56. Consultar ainda, Yves Charles Zarka,
Hobbes et la Pensée Politique Moderne, Paris, Presses Universitairies de France, 1995, p. 181: “A
propriedade de uma coisa é um direito absoluto no sentido de que o possuidor pode dispor da coisa como bem
entender, quer dizer, pode servir-se e fazer uso de seus produtos...bem como transformá-los, aliená-los e até
mesmo destruí-los”.
29
. Leviathan, pp. 282-283.
30
. A versão de um Hobbes estatista e ideólogo do Estado burocrático moderno é estabelecida por João Paulo
Monteiro, em seu artigo “A Ideologia do Leviatã Hobbesiano”, in, Célia Galvão Quirino, Cláudio Vouga e
Gildo Marçal Brandão (orgs), Clássicos do Pensamento Político, São Paulo, Edusp/Fapesp, 1998, pp. 77-90.

10
contratual dos indivíduos nem a liberdade de comércio. A teoria de Hobbes aproxima-se
muito mais daquele pensamento que criou o welfare state liberal do que daquele que forjou
a ideologia estatista. Vale lembrar que os Estados sociais do século XX, como a França, a
Itália e a Inglaterra anterior à era Thatcher, e mesmo a Suécia, não podem ser considerados
inteiramente estatistas. A despeito da regulamentação estatal que protege boa parte dos
setores estratégicos da economia, esses Estados jamais dominaram por completo todo o
setor público.
Na própria Suécia, a social-democracia, ainda que se apresentasse como socialista,
renunciava, na prática, a certos princípios que caracterizavam os partidos socialistas, tais
como estatização dos recursos naturais, indústrias, bancos etc. A indústria permaneceu,
fundamentalmente, como assinala Ruin, em mãos privadas. O que houve foi uma
disposição para “disciplinar o capital, combater os excessos e deformações capitalistas e
limitar os lucros” 31 . Devemos lembrar ainda, que o welfare state não é um sistema
necessariamente socialista e apresenta diversas formas de economia. Sping-Andersen
demonstra, inclusive, que países como o Canadá, Austrália e mesmo os Estados Unidos que
antecederam o período reaganiano constituíam-se welfare states liberais 32 . Hobbes insere-
se, portanto, nesta categoria do pensamento liberal, mas não do liberalismo de livre
mercado ou de um sistema de completa envergadura estatal. 33
Apesar de sua inclinação para a defesa dos interesses da burguesia, ele sabe que
*
submeter as relações sociais à mão invisível do mercado será o mesmo que observar o
prelúdio da dissolução da sociedade civil. Ser expulso da competição, como ele sustenta, é
abandonar-se à miséria 34 ; e nenhuma sociedade estará segura se seus súditos forem
pobres 35 . Hobbes, aqui, vai de encontro à opinião da grande maioria dos liberais que,

31
. Cf. Olof Ruin, “O Desenvolvimento do Modelo Sueco”, Lua Nova, n. 94, setembro de 1991, p. 219.
32
. Cf. Gosta Sping-Andersen, “As Três Economias do Welfare State”, Lua Nova, n. 94, setembro de 1991,
pp. 85-116.
33
. Talvez, em última análise ou no limite, possamos admitir a existência de um “estatismo temperado”. Isso,
porém, não elimina a hipótese de que o Estado hobbesiano possua suas vinculaçòes com o ideário capitalista.
O Japão e a Coréia, por exemplo, dão provas cabais desse viés capitalista estatal, se bem que é difícil aceitar
que a Coréia possa ser incluída no seleto clube das economias do bem-estar social.
*
. O termo só será criado mais tarde, por Adam Smith, mas a cena econômica prepara então o ato inicial do
palco em que intervirá a futura economia mundial.
34
. Cf. Elements, I, ix, 21, p. 60.
35
. Leviathan, p. 242. É isso que leva Hobbes a pensar que passando de um indivíduo para outro, esta
circulação acaba por alimentar (nutrir = Nourishing) todas as partes do Estado. (p. 300).

11
quando se referem aos conceitos de povo e de cidadão restringem-se, grosso modo, às
várias camadas da burguesia ou falam das classes subalternas de maneira preconceituosa 36 .
Entretanto, não se pode dizer que as preocupações sociais de Hobbes obedecem
inteiramente ou sempre a princípios morais definidos. (O que também não significa que
elas estão destituídas de todo caráter ético). Em certa medida, essas preocupações estão
afetas ao medo da anarquia, derivado do empobrecimento geral dos cidadãos excluídos do
mercado. A falta de segurança, que consiste sobretudo na ausência de numa vida
confortável, leva os indivíduos a perder a confiança no soberano, gerando uma instabilidade
no interior da sociedade que pode conduzi-la à morte violenta: à guerra civil. Kavka parece
apoiar-se em argumento semelhante para desenvolver sua tese sobre a fundação do Estado
hobbesiano. Para ele, uma das razões pelas quais o cidadão deve guardar o mínimo
necessário para sua sobrevivência está no interesse privado, na insegurança de que a
competição nem sempre garante o sucesso pessoal. Isso significa que o derrotado pode
precisar de auxílio no processo de concorrência.
Há, todavia, uma outra razão que justifica a apropriação mínima dos meios de
subsistência. Consiste no fato de que, sem uma vida social mais ou menos estável, os
homens tendem para a rebelião, conduzindo o Estado à desintegração e ao desastre social37 .
Com grande freqüência, a desordem tem sua origem na pobreza, que de todas as desgraças
é, para Hobbes, a que mais aflige o coração humano. Teme o filósofo, que a falta do
necessário para preservar a vida dê início a falsos pensamentos, como deduzir da indolência
ou da intemperança a falta de recursos, lançando, assim a culpa no governo da Cidade 38 .
Hobbes deixa claro que a segurança do Estado está vinculada estreitamente ao bem-estar

36
. Hobbes demonstra alguma simpatia pelos estratos mais baixos quando polemiza com os defensores do
direito pleno de propriedade. Estes se recusam, inclusive, a aceitar o critério justo de distribuição e insistem
na impossibilidade do povo conhecer direitos e princípios, incitando a objeção do filósofo: “...todavia, o povo
comum não tem capacidade suficiente para que se faça entendê-lo. Estaria satisfeito se os súditos ricos e
poderosos de um reino, ou aqueles que são considerados ilustrados fossem menos incapazes que a multidão”.
Cf. Leviathan, pp. 377-379. No mesmo capítulo (XXX), Hobbes adverte que “ser severo com o povo é punir
aquela ignorância que em grande parte deve ser imputada ao soberano”. Para ele, o castigo maior, em caso de
convulsão social, não deve recair no “pobre povo seduzido”, mas nos líderes e agitadores”. Ibid, p. 390.
37
. Gregory Kavka, Hobbesian Moral and Political Theory, Princeton, University Press, 1986, p. 218.
38
. De Cive, pp. 161-162.

12
dos cidadãos, pois é o conforto - e a esperança de consegui-lo pelo trabalho - que
impulsiona os homens para a paz 39 .
É nesse sentido que Hobbes sugere que cada homem acomode-se com o outro, pois
o acúmulo de coisas supérfluas para uns, e que para outros são necessárias, torna-se
prejudicial à sociedade 40 . Kavka reconhece, nessa passagem, bem como no trecho em que
Hobbes discute a proteção ao desemprego, que o filósofo de Malmesbury, ao esforçar-se
por proporcionar uma vida decente aos cidadãos, acredita em alguma forma de welfare
state 41 .
E não se trata apenas do mínimo para a simples sobrevivência, mas da necessidade
de que os cidadãos gozem de todos os bens para o prazer da vida 42 . Hobbes unifica, desse
modo, duas categorias distintas mas que se completam entre si: uma ética e outra de
conveniência. Ambas convergem para a fusão de dois horizontes em que o discurso passado
encontra respaldo no sujeito presente. A recepção das idéias de Hobbes sintoniza-se com a
leitura que fazem certos neoliberais (arrependidos) de suas afinidades, elegendo como
prioridade a categoria que lhes é conveniente. A exemplo de Hobbes, temem pelo destino
do sistema e propõem uma retomada do bem-estar como estratégia metodológica. Não está
em jogo preocupações morais – ainda que estas sejam citadas -, mas a sobrevivência da
ordem ameaçada de extinção 43 .
Mas há um outro auditório para o qual as palavras do locutor transmitem sinais em
que princípios éticos assumem uma posição privilegiada. Seus herdeiros pertencem à escola
de um pensamento liberal que tem sua origem na concepção hobbesiana da sociedade. Esta
ambigüidade deve-se ao fato de que Hobbes tornou-se um pensador de opiniões tão opostas
nas análises de seus intérpretes, que mesmo um estudioso atento de sua obra, como
Macpherson, reconhecendo corretamente sua tendência burguesa, e até mesmo sua

39
. “Por segurança”, diz Hobbes, “não se entende aqui apenas a preservação, mas também todos os outros
prazeres (Contentments) da vida que todo homem, por um trabalho (Industry) legítimo, sem perigo ou
prejuízo para o Estado, pode adquirir para si próprio”. Leviathan, pp. 161, 188 e 376.
40
. Leviathan, pp. 209-210.
41
. Kavka, Hobbesian Moral..., p. 210.
42
. De Cive, p. 168.
43
. Penso aqui nos em representantes do atual capitalismo financeiro que, receosos da falência do sistema por
uma desestruturação geral do capital especulativo, reivindicam instrumentos limitadores para conter a
avalanche neoliberal e propõem medidas de natureza social para frear o assustador processo de proletarização
dos trabalhadores em todo o mundo. Cf. George Soros, A Crise do Capitalismo, Rio de Janeiro, Campus,
1998, pp. 21-24 e 28-29, e Joseph Stieglitz, “O Consenso de Washington”, Caderno Mais, Folha de São
Paulo, 12 de junho de 1998.

13
predisposição para a condenação moral da situação dos trabalhadores ingleses, foi incapaz
de desenvolver uma crítica das idéias sociais de Hobbes sobre o próprio capitalismo. Em
vez disso, acusa-o de decretar o fim da justiça econômica por este não enfatizar os
princípios éticos nas relações econômicas 44 .
Macpherson não percebe que o filósofo desloca o foco de suas inquietações já que o
próprio sistema assim exige, à medida que situar os preceitos éticos à margem da economia
vigente é o mesmo que retornar ao passado. A nova ética impõe que o preço justo é aquele
estabelecido pelas partes. Nada há de injusto em se vender mais caro do que se comprou
porque “o valor de todas as coisas contratadas é medido pelo apetite dos contratantes;
portanto, o valor justo é aquele que foi estipulado por eles” 45 . Hobbes não se desvencilha
da justiça comutativa porque se o preço justo é o preço determinado pela sociedade, e esta
aceita a moral do mercado, o preço justo é determinado socialmente. Ele é válido para a
ética do mercado. Esta é a “desleitura” que faz o filósofo da economia do seu tempo,
adaptando-a à nova moral pelo processo inconsciente do clinamen. Ainda assim a questão
não é tão simples. Hobbes não admite que a atividade do mercado coloque em risco o bem-
estar dos cidadãos. Somente no momento em que “a atividade dos empresários particulares
pudesse ter conseqüências danosas para a riqueza e o poder da nação”, reconhece
MacPherson, “é que o Estado deveria intervir” 46 .
Hobbes adequa, desse modo, sua inclinação para o regime burguês à condenação
moral desse mesmo regime em sua forma perversa. Mutatis mutandis, sua postura
assemelha-se a de alguns liberais de esquerda em sua aversão ao neoliberalismo. Se
admitirmos que nas relações entre o sistema econômico capitalista e os pensadores que se
filiam ao social-liberalismo sempre esteve presente uma preocupação com o trabalho e o
bem-estar dos trabalhadores – além, é claro, da busca do lucro -, veremos que no mundo
moderno Hobbes tem a precedência sobre os teóricos da política social. Como vimos

44
. C. B. MacPherson, Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1991, pp. 22 e 181. Agnes Heller comenta que “Hobbes trabalha com um conceito ético-político de justiça
completo”, e que para ele não havia diferença se a sociedade era concebida moralmente ou devida “à famosa
conveniência”. Cf. Além da Justiça, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998, pp. 116-117.
45
. Leviathan, p. 208.
46
. MacPherson, Ascensão e queda, p. 186.

14
acima, Hobbes jamais se opôs ao direito de propriedade, mas em nenhum momento esse
direito pode chocar-se com o que ele considera a segurança 47 do povo ou o bem público.
É exatamente o uso desmedido da propriedade 48 que faz nascer no homem a
propensão para a discórdia. A partir dessas asserções é possível compreender o raciocínio
de Hobbes e as razões pelas quais ele não concebe a propriedade provida de um caráter
absoluto; ou melhor, ela pode até mesmo ser dotada de uma natureza ilimitada, mas só no
que concerne às relações entre os indivíduos particulares. Para ele, é uma doutrina errônea
aquela que afirma que a propriedade privada exclui o direito do soberano 49 . A posição de
Hobbes confirma a tese de que há em andamento uma economia de mercado em que,
provavelmente, muitos não vêem com bons olhos a intervenção estatal. Para o filósofo de
Malmesbury o problema é outro. Se entendemos que no estado de natureza todas as coisas
pertencem igualmente a todos, e pelo fato de não existirem leis civis esse desejo de
acumulação irrestrita empurra os homens para a guerra, perceberemos também porque
Hobbes recorre ao poder soberano para decidir quem tem o direito de propriedade.
Creio que não devemos dar muita atenção à linguagem hobbesiana em seu sentido
literal. Hobbes não diz, concretamente, que cabe ao monarca estipular quem deve ter ou
não o direito de propriedade. O que ele afirma é que os bens são adquiridos pelo trabalho e
podem ser transferidos pelo contrato; e que no estado de natureza ele pode ser obtido pela
força. A intenção de Hobbes não é de estabelecer um mecanismo de distribuição em que o
representante escolha, aleatoriamente ou ao seu bel prazer, a quem vai fazer a entrega da
propriedade. Quando ele afirma que é da competência do poder soberano a constituição do
meu (Mine), do teu (Thine) e do seu (His), ele quer dizer que cabe à administração pública
o poder de regular, por meio das leis civis, o direito de propriedade, pois como demonstra
no capítulo XXIV, “soberano quer dizer o Estado” 50 .

47
. Vale a pena mencionar que o conceito de segurança de Hobbes deriva do termo latino salus populi, que
tem o significado de saúde, salvação, conforto. Esta é também a divisa do Estado norte-americano do
Missouri, que traduziu o salus populi suprema lex esto por Tehe welfare of the people shall be the supreme
law (O bem-estar do povo é a suprema lei). Quando Hobbes fala em segurança do povo (the peoples safaty),
na Introdução do Leviatã, ele recorre, igualmente, à expressão em latim Salus Populi. Cr. Leviathan, p. 81.
Estou em débito com Renato Janine que me chamou atenção para esse aspecto da linguagem hobbesiana.
48
. Segundo um de seus comentaristas, Hobbes pretende remover as barreiras sociais, pois as entende como
resultado do uso incontrolado da propriedade privada. Cf. Arnold W. Green, Hobbes and Human Nature,
New Brunswick, Transaction Publishers, 1993, p. 33.
49
. Leviathan, p. 367.
50
. Ibid, pp. 294-297.

15
Essa idéia está bem mais explícita no De Cive: “...é própria de todo homem aquela
coisa que ele pode reservar para si através das leis e do poder de toda a Cidade, isto é,
daquele a quem o comando soberano foi conferido. Compreende-se que cada um dos
cidadãos tem algo de sua propriedade a que nenhum dos concidadãos tem direito, porque
estão ligados pelas mesmas leis. Mas ninguém tem sua propriedade a tal ponto que à
mesma não tenha direito e acesso aquele que exerce o poder soberano, cujas ordens são as
próprias leis, em cuja vontade estão incluídas as vontades individuais dos cidadãos, e que
foi constituído pelo mesmo juiz supremo” 51 .
É óbvio o propósito de Hobbes. O estado de natureza é uma sociedade de mercado,
cuja liberdade de comércio e poder absoluto sobre a propriedade sem a regulamentação
necessária deixa os indivíduos em situação de insegurança, e a anarquia econômica induz o
povo a pensar que o governo é por demais permissivo para impedir a vida brutal, sórdida e
miserável que leva. Mas a preocupação de Hobbes não é apenas por motivos de
conveniência. Se bem que o medo da morte violenta, ou seja, o da dissolução da sociedade,
o induz a elaborar uma teoria em que o poder se apresenta de forma absoluta, não devemos
nos esquecer que sua visão não é meramente estratégica. Acreditar nessa exclusividade é
suprimir a razão última que impulsiona os homens para a paz e para a busca da vida
confortável: a importância ética das leis da natureza.
São elas que obrigam, ainda que “in foro interno”, que os homens cumpram os
contratos e se esforcem para alcançar a paz por quaisquer meios. Para Hobbes, elas não são
apenas eternas e imutáveis. Divinas, elas são, antes de mais nada, leis morais que ordenam
aos homens que escapem do estado de natureza. Isso significa, em outros termos, que o
compromisso assumido pelos pactuantes para a fundação da sociedade civil deriva dos
princípios éticos que procuram justificar a tranqüilidade às custas da renúncia dos direitos.
Renúncia, porém, não é a perda dos direitos de propriedade. É a fórmula jurídica inventada
por Hobbes para regulamentar o sistema através de mecanismos de proteção social. É certo
que Hobbes admite a impossibilidade de eliminar a desigualdade. Até mesmo porque
muitos gastam tudo o que têm enquanto outros poupam 52 . O que não quer dizer que a
obrigação do Estado restrinja-se à proteção da propriedade ou das elites, pois o Estado é

51
. De Cive, p. 108. Os destaques são do original.
52
. Leviathan, p. 386.

16
criado para oferecer ao cidadão bem-estar e felicidade, coisas que ele engloba sob a rubrica
de segurança 53 .

Trabalho e Bem-Estar Social: O Liberalismo Condicionado

Esse bem-estar implica uma certa qualidade de vida não só para uns poucos
indivíduos, mas para todos igualmente. “A segurança do povo, além do mais, requer,
daquele ou daqueles que detêm o poder soberano, que a justiça seja administrada
igualmente em todos os níveis da população” 54 . Daí a necessidade tanto da cobrança de
impostos quanto da proteção ao trabalho e ao trabalhador. Hobbes aqui dá um passo à
frente dos filósofos sociais da modernidade. Pela primeira vez na história, talvez, um
pensador levanta a hipótese de que o trabalhador merece, para garantir sua sobrevivência, a
proteção do Estado, bem como necessita lutar para manter seu emprego 55 .
Não pretendo insinuar que ele recomenda, de modo consciente, que aqueles que
exerçam uma atividade nas indústrias unam-se em torno de alguma espécie de organização,
não obstante sua referência à reação dos judeus após o regresso do cativeiro, reedificando o
templo com uma mão e a espada na outra, deixe ampla margem para especulação. Como
defender uma posição conquistada com tanto esforço sem uma forte união? A simples
menção ao ânimo que o indivíduo deve desenvolver para manter um lugar no mundo do
trabalho é suficiente para que se possa pensar alguma forma de oposição ao desemprego.
Seguramente, Hobbes encontra solução para os que se vêem excluídos do processo
produtivo, antecipando a idéia do Estado Previdência: a sociedade civil, por meio de um
diagnóstico dos sintomas gerais do sistema, prevê suas deficiências com a finalidade de
garantir a sobrevivência da cidade 56 . Como, porém, antecipar o problema, prevenindo os
cidadãos contra a ociosidade forçada?

53
. Independentemente dos diversos trechos que Hobbes dedica, no Leviatã, à idéia de vida confortável,
podemos encontrar o mesmo sentido no De Cive, p. 168: “Deve-se entender por salvação não a preservação
da vida com qualquer qualidade, mas a garantia de um viver quanto possível feliz”. Cursivas do autor; o
destaque em negrito é meu.
54
. Leviathan, p. 385.
55
. “Não é suficiente para um homem trabalhar para a manutenção de sua vida; deve lutar, igualmente (se for
preciso), para assegurar seu trabalho”. Leviathan, p. 386.
56
. “E considerando que muitos homens, por um acidente inevitável, podem tornar-se incapazes de manter-se
com seu trabalho, não devem ser deixados à caridade de particulares, mas devem ser providos...pelas leis do
Estado”. Leviathan, p. 387.

17
Se Hobbes não é claro, nada impede que se perceba, em suas alusões, uma
necessidade de luta conjunta. Se há uma convergência de vontades individuais para um
objetivo comum em amplo espectro – a união de todas as vontades em uma -, por que não
um pacto em menor escala, uma pessoa única em “termos atomísticos”, cuja força possua
capacidade para evitar um dano maior que é o risco de uma vida insatisfeita? As más ou
boas aplicações das idéias não estão isentas de recepção. Em um estudo de quase um quarto
de século, Bobbio pede coerência aos “fugitivos da irresponsabilidade dos intelectuais” 57
que se recusam a aceitar a tese de que as idéias não são inocentes. De alguma maneira elas
são incorporadas ao patrimônio intelectual de um determinado auditório, cujo discurso
tende a manter o sentido original, mas seu conteúdo, é reconstituído – por meio do desvio –
em novas bases. O resultado parece óbvio: o combate pelo direito ao trabalho estimula nas
pessoas a concepção de força organizada e consentida que, através do dispêndio comum de
energia, congregam suas vontades para a realização do fim supremo: a autoconservação e a
obtenção de tudo aquilo que colabore para a objetivação da vida confortável, inclusive o
trabalho.
Hobbes se dá conta disso quando escreve, no De Cive, “que os homens não apenas
devem trabalhar para viver, mas combater para trabalhar”58 . Pode-se argumentar que esse
raciocínio fere a estrutura do Leviatã, uma vez que incentiva a oposição ao governo, o que é
contrário à obra hobbesiana. Mas não é o próprio Hobbes que abre exceção à resistência
nos casos em que a preservação da vida encontra-se em perigo ou em estado de
necessidade? 59 Ele admite a liberdade do súdito em todas as ações que o soberano permite,
tais como a escolha do seu domicílio, sua alimentação, profissão e...coisas semelhantes 60 .
O trabalho, para quem não possui propriedade, é essencial para a manutenção de uma vida

57
. Norberto Bobbio, “Qual Socialismo?”, in Norberto Bobbio, Massimo Boffa, Umberto Cerroni e outros, O
Marxismo e o Estado, Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp 235-236.
58
. De Cive, p. 162.
59
. No capítulo XV do Leviathan, Hobbes ressalta que todo homem deve, não só por direito, mas por
necessidade de natureza, esforçar-se para conseguir o necessário para a sua conservação, e quem quer que a
ele se oponha por mesquinharias (coisas supérfluas) é culpado da guerra que daí resulte, e que por isso mesmo
fere uma lei fundamental da natureza, aquela que ordena a busca da paz. Hobbes acrescenta, ainda, que ao
rompimento dessa lei os gregos chamam de Πλεονεξια (pleonexia) Cf. Leviathan, pp. 209-210, e Elements,
I, xvii, 2, pp. 93-94. Acertadamente, Zarka considera essa vinculação entre o direito de resistir e e auto-
preservação um princípio ético fundamental. Cf. Hobbes et la Pensée Politique Moderne, p. 232.
60
. Leviathan, p. 264. A tradução de trade of life por profissão (utilizada igualmente por João Paulo Monteiro
para a edição brasileira da Coleção Os Pensadores) reflete bem o entendimento que o filósofo possui das
relações de trabalho em sua época. O grifo é meu.

18
digna, pois as comodidades que o homem adquire para si são resultantes de “uma indústria
legítima” 61 . E onde a lei silencia tudo é permitido.
Ora, a utilidade (use) das leis não é reprimir todas as ações voluntárias do povo. Ao
contrário, seu objetivo é dirigir e manter os cidadãos num movimento de controle de seus
impulsos impetuosos 62 . A organização pelo direito ao trabalho não contraria os desígnios
do Estado. Inversamente, colabora com ele para enfrentar o aumento do índice de
desemprego e, consequentemente, o da insatisfação contra o governo. Essa predisposição
para o combate pelo conforto ultrapassa, inclusive, o mero reducionismo corporativista.
Torna-se um fato político fundamental à medida que implica o exercício da cidadania na
luta pelos direitos do homem, ao mesmo tempo que identifica a função do Estado com a
salvaguarda de tais direitos.
Hobbes não só funda o liberalismo como instituição social como “prenuncia a idéia
dos direitos humanos” 63 . Indivíduo e governo fundem-se em benefício do bem comum. Só
que esses direitos, agora, não estão mais dispersos no mundo da natureza, disputados por
indivíduos isolados que agem com base no instinto ou interesse. Os direitos são regulados
por leis civis, depois que uma lei maior e divina (a lei moral da natureza) substitui a
necessidade pela civilização. Eles agora encontram-se sob o controle de um poder comum
que constringe a uma vida segundo a razão 64 Nesse sentido, o individualismo puro,
irracional - porque por instinto -, cede lugar a um racionalismo dotado de interesses
socializados 65 . O súdito renuncia o juízo privado e assume como sua a razão pública 66 ,
quer dizer, reconhece o Estado como a instância decisiva na distribuição da justiça e na
consecução do bem comum 67 .

61
. Ibid, p. 376.
62
. Ibid, p. 388.
63
. Cf. G. M. Chiodi, “Legge naturale e legge positiva nella filosofia politica de T. Hobbes”, Milão, 1970,
citado por Giuseppe Sorgi, “La problematica lettura di Thomas Hobbes”, Rivista Internazionale di Filosofia
del Diritto, Série IV, n. LVII, abr-jun, 1980, pp. 310 e 312.
64
. Cf. Francesco Viola, “Hobbes Tra Moderno e Postmoderno. Cinquant’Anni di Studi Hobbesiani”, in F.
Viola, A. Pacchi et alii, Hobbes Oggi, Milão, Franco Angeli, 1990, p. 75.
65
. Ao que parece, o irracionalismo procede da “maximização pura” e não do contexto de cooperação, como
pretende Gauthier. Cf. Álvaro de Vita, A Justiça Igualitária e Seus Críticos, São Paulo, Unesp/Fapesp, 2000,
p. 140.
66
. Ibid, p. 61.
67
. Toda obra política de Hobbes é dirigida para exorcizar a consciência privada, considerada a causa primeira
da guerra civil. Cf. Viola, “Hobbes, filosofo moderno”, Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, IV,
LIX, 1982, p. 108.

19
A dedução é simples. Se o modelo hobbesiano “é um instrumento para agir sobre a
natureza e para transformar o estado natural em estado civil”, cujo objetivo final é pôr fim
às dissenções e estabelecer o reino da paz, e se as leis da natureza são um ditame da razão
que ordena que o homem busque a paz a qualquer preço, tudo leva a crer que o fundamento
da razão pública está contido naquelas leis que são, ao mesmo tempo, leis morais. Isso
porque, para Hobbes, o interesse geral só consegue realizar sua materialização numa
sociedade pacífica. Segundo Viola – e todos sabemos disso -, para Hobbes a paz é um meio
necessário para a preservação da vida. Contudo, do ponto de vista ético, a autoconservação
é o fim sobre o qual se edifica todo o universo moral que projeta sobre a lei natural aquela
qualidade moral em que se assenta o instinto de preservação.
O dever nasce então com a sociedade e esta exige uma transformação ética do
homem do estado de natureza no cidadão, quando a razão privada é substituída pela razão
pública 68 . Ainda que instrumental, a moral hobbesiana supera, de fato, a perspectiva
egocêntrica e reconhece o outro como sujeito moral 69 . No mais, diz Viola, o soberano
substitui a razão privada pela razão pública, concedendo universalidade à norma moral.
Existe uma consciência, em Hobbes, de que a lei moral só se constitui no Estado e por isso
ele tem uma validade ética 70 . Não vejo, portanto, como não atribuir a Hobbes uma visão
moral do Estado e, por conseguinte, da justiça, uma vez que o nascimento desta depende
daquele.
De acordo com Sommerville, existe uma ampla tendência na filosofia moral daquela
época para reconhecer o ideal de justiça na palavra dada para o cumprimento dos
contratos 71 . O mais importante, porém, é que as leis da natureza não afetam apenas o
cidadão comum; elas exigem que o soberano promova o bem-estar, pois nem o governante
pode escapar ao império dessas leis 72 . Nota-se perfeitamente uma subordinação da
economia e da política a princípios morais, o que de resto não está longe das elaborações
das teorias da justiça de muitos pensadores contemporâneos, principalmente daquele que é,
nesse campo, o mais conhecido: John Rawls. Penso aqui, em especial, na fórmula de Rawls

68
. Ibid, p. 111.
69
. Ibid, p. 111.
70
. Ibid, p. 113.
71
. Johann P. Sommerville, Thomas Hobbes; Political Ideas in Historical Context, Nova York, St. Martin’s
Press, 1992, p. 48.
72
. Ibid, p. 103, e Leviathan, cap. XXX.

20
do ideal da razão pública quando aplicada aos cidadãos que atuam na argumentação
política, e na concepção do poder político enquanto corpo coletivo. As inserções dos termos
livres e iguais ficam por conta das necessárias inovações do filósofo americano em função
da diferença de épocas, como se o autor do Leviatã “não tivesse ido longe o bastante”.
Ele próprio chama atenção para essas possíveis inovações. Mas será que elas são tão
novas assim? Os valores, ao que parece, permanecem semelhantes: reciprocidade
econômica, igualdade de oportunidades, liberdade política e civil etc. 73 Hobbes quer o
mesmo que todos os liberais sociais: melhoria das condições dos indivíduos, ainda que no
interior de uma sociedade desigual 74 . Afinal, onde a igualdade impera não há necessidade
de justiça. Hobbes parte, é verdade, do individualismo teórico, mas não a ponto de aceitar
que a cupidez ávida ponha em risco a sociedade civil. O discurso passado encontra eco no
leitor moderno. O Estado não pode furtar-se à sua função precípua, a de prover a segurança
dos cidadãos e de proteger a propriedade; mas acima de tudo está a obrigação de oferecer
aos súditos uma vida confortável 75 .
Dessa forma, quando Keynes critica a injustiça da lei econômica inglesa de 1931
que solapa o rendimento dos trabalhadores e funcionários públicos, Galbraith lamenta o
abandono das subclasses pelo Estado norte-americano, e Rawls afirma que por mais
individualista que possa ser a concepção contratualista, é preciso mostrar o valor da
comunidade, estão, na realidade, seguindo uma tradição que se inicia nos primórdios da
modernidade e que busca evitar os conflitos sociais mais agudos recorrendo ao controle das
paixões e do individualismo exacerbado da economia de mercado 76 . Provavelmente Hobbes
não concordaria com a opinião de Rawls de que não vale a pena obter ganhos econômicos
às custas das liberdades básicas, mas o contratualismo exposto na Teoria parece inspirar-se
nitidamente no contrato hobbesiano: “O contrato...regulamenta a busca, por meio dos

73
. Cf. Rawls, Liberalismo Político, pp. 182, 264, 273 e 305.
74
. É difícil perceber diferenças entre os liberais nesse aspecto, mesmo em Rawls, para quem a “concepção
geral de justiça não impõe restrições aos tipos de desigualdades permissíveis; apenas exige que a posição de
todos seja melhorada”. Cf. Uma Teoria da Justiça, São Paulo, Martins Fontes, 1997, p 67.
75
. Disso resulta que o Estado não pode sofrer dieta como exigem os neo ou os ultraliberais, à medida que “a
riqueza pública não pode ser estabelecida por outros limites que não aqueles que as emergências da ocasião
exigem”. Cf. Leviatha, p. 248.
76
. Cf. John Maynard Keynes, “Inflação e Deflação”, in Os Pensadores, Vol. XLVII, São Paulo, Abril
Cultural, 1976, pp. 47-48; John Kenneth Galbraith, A Cultura do Contentamento, São Paulo Pioneira, 1992 e
Rawls, Uma Teoria da Justiça, p. 292.

21
indivíduos, de seus interesses espirituais e morais, de um acordo com os princípios com os
quais eles próprios concordariam numa posição inicial de igualdade” 77 .
*
O fato é que a “má fama” de Hobbes afugenta os teóricos do liberalismo social que
enxergam no filósofo apenas um pensador autoritário. Contudo, um exame minucioso do
conteúdo da razão pública e sua idéia, ou seja, daquelas características que o próprio Rawls
reivindica como intrínsecas ao pensamento liberal 78 , revela que suas raízes já se encontram
na filosofia política e econômica de Hobbes, o que faz dele tanto um precursor longínquo
do liberalismo como daquilo que hoje consideramos ser o Estado do Bem-Estar Social. De
resto, uma boa lição para os liberais pós-modernos.

77
. Ibid, pp. 231 e 289.
*
. Sobre esta questão, consulte-se o ensaio de Renato Janine Ribeiro, “Sobre a má fama em filosofia política:
Hobbes”, Luís A. de Boni (org), Finitude e Transcendência, Petrópolis, Vozes, 1996.
78
. “A forma como uma sociedade política faz isso é sua razão; a capacidade de fazê-lo também é sua
razão...[e] os valores de justiça política...da igual liberdade política e civil; da igualdade de oportunidades...e
da reciprocidade econômica; e acrescentamos ainda os valores do bem comum...[são} condições necessárias a
todos esses valores”. Rawls, Liberalismo Político, pp. 261 e 273.

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