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Túlio Vianna
OAB-MG 107.153 – www.tuliovianna.org
Parecer
O Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico – IBDE – por meio de seu ilustre advogado Prof.
Ms. José Carlos de Araújo Almeida Filho solicitou minha opinião acerca da Ação Direta de
Inconstitucionalidade ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil –
OAB – contra o art.20 da Lei Federal nº 11.280 de 16 de fevereiro de 2006, que deu nova
redação ao art.154 do Código de Processo Civil. Para tanto encaminhou‐me cópia da exordial,
propondo‐me os seguintes quesitos quanto à constitucionalidade do referido artigo: 1º. Há
nele violação do princípio constitucional da divisão de poderes? 2º. Há nele violação do
princípio da legalidade? 3º. Há nele violação do direito de defesa e do devido processo legal?
4º. Há nele violação do princípio da publicidade?
Da divisão de poderes
A primeira questão suscitada refere‐se à divisão de poderes. A OAB sustenta que a nova
redação dada ao art.154 do CPC pela Lei 11.280/2006 violaria o art.22, I, da Constituição da
República que estabelece a competência privativa da União para legislar sobre direito
processual. Ocorre, porém, que a mesma Constituição estabelece em seu art.24, XI,
competência concorrente entre União e Estados (ou Distrito Federal) para legislar sobre
procedimentos em matéria processual. O busílis, pois, é definir se o parágrafo único do
art.154 do CPC é norma processual ou procedimental.
Há muito os processualistas vêm procurando traçar uma distinção mais ou menos precisa
entre os conceitos de processo e procedimento. O Prof. Dr. ROSEMIRO PEREIRA LEAL relata
que:
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Com base nesta nova concepção de Processo como Procedimento realizado em contraditório,
pode‐se concluir com o Prof. Dr. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES que:
“(...) antes que ‘distinção’, há entre eles uma relação de inclusão,
porque o processo é uma espécie do gênero procedimento, e, se pode
ser dele separado é por uma diferença específica, uma propriedade que
possui e que o torna, então, distinto, na mesma escala em que pode
haver distinção entre gênero e espécie. A diferença específica entre
procedimento em geral, que pode ou não se desenvolver como
processo, e o procedimento que é processo, é a presença neste do
elemento que o especifica: o contraditório. O processo é um
procedimento, mas não qualquer procedimento; é o procedimento de
que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter
imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam
de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus
interesses em relação ao ato final são opostos.” (GONÇALVES, Aroldo
Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE
Editora, 2001. p.68)
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A diferença essencial entre um dispositivo processual e outro meramente procedimental é que
o primeiro disciplinará a garantia do contraditório enquanto o segundo regulará o rito do
julgamento.
Pode‐se citar como exemplo de dispositivos de nítido caráter processual os arts. 471 e 472 do
CPP que disciplinam que a acusação falará antes da defesa no Tribunal do Júri. Trata‐se de
garantia do réu ao contraditório e à ampla defesa que só poderão ser plenamente exercidos
com a manifestação da defesa após a acusação. Já o art.793 do CPP, tem caráter meramente
procedimental, pois pouco importa ao contraditório se as partes e seus advogados encontram‐
se sentados ou em pé.
Desta forma, como bem ensina o Prof. Dr. ROSEMIRO PEREIRA LEAL:
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Nossa questão central então é saber se “disciplinar a prática e a comunicação oficial dos atos
processuais por meios eletrônicos” é uma questão de caráter processual ou meramente
procedimental.
Pela própria disposição do art.154 no Código de Processo Civil, logo no início do Título V que
trata dos “Atos Processuais”, vê‐se com clareza que o dispositivo não delega aos tribunais toda
a regulamentação dos atos processuais, pois logo nos artigos seguintes o Código trata
exaustivamente das garantias de contraditório típicas de tais atos processuais. O legislador
limita‐se a delegar aos tribunais competência para disciplinar a prática e a comunicação oficial
de atos processuais por meios eletrônicos. Disciplinar equivale aqui a viabilizar através de
procedimentos eletrônicos o cumprimento das disposições processuais do Título V, Livro I, do
CPC.
Tradicionalmente coube aos tribunais disciplinarem as matérias procedimentais por meio de
seus regimentos internos e a informatização das secretarias por meio do procedimento
eletrônico em nada modifica o caráter procedimental destas normas, pois não se discute aqui
regras que cuidam das garantias ao contraditório.
Pouco importa se as partes tomarão ciência dos atos processuais por carta, fax, email ou sinais
de fumaça. A garantia do contraditório independe do meio pelo qual ela é efetivada, pois já se
encontra devidamente normatizada no citado Título V do Código de Processo Civil.
Assim não há falar propriamente em processo eletrônico, mas em procedimento eletrônico,
pois a essência do processo é o contraditório e não o meio no qual ele é efetivado.
Destarte, não há qualquer violação ao princípio constitucional da divisão dos poderes, pois é a
própria Constituição da República que em seus arts.24, XI, e 96, I, b, permite que os Tribunais
organizem suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados,
informatizando‐os na medida de suas necessidades e possibilidades.
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Do Princípio da Legalidade
A Ordem dos Advogados do Brasil sustentou ainda que a nova redação do art.154 do CPC
também violaria o princípio constitucional da legalidade (art.5º, II, da CF), “na medida em que,
possibilitando a intimação por meio a ser disciplinado pelos tribunais, está admitindo que
alguém venha a ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em razão de ato diverso
da lei.” (sic)
Evidentemente, o art. 154 do CPC não viola o princípio da legalidade, pois simplesmente
delega aos tribunais poderes para disciplinar a prática e a comunicação oficial dos atos
processuais por meios eletrônicos.
Eventualmente, é possível que algumas das normas a serem elaboradas por estes tribunais,
venham, de fato, a violar o referido princípio, mas, por ora, tudo não passa de meras
especulações.
Por outro lado, ainda que se conceba intimações praticadas exclusivamente por meio
eletrônico, não há falar em lesão ao princípio da legalidade pelo singelo fato de que ninguém é
obrigado a ser intimado. Intimação não é ato coercitivo do Estado, mas mero ato de
comunicação de atos processuais.
Não há qualquer coerção legal que obrigue o advogado a comprar o diário impresso para
tomar ciência de andamentos processuais. Ele pode, por exemplo, assinar um serviço de
informações processuais ou simplesmente consultar o jornal em uma biblioteca pública. Da
mesma forma em relação às intimações em meio eletrônico, também não haverá qualquer
coerção legal obrigando o advogado a adquirir um computador. Basta que continue assinando
um serviço que imprima a informação e lhe entregue em papel ou que simplesmente, acesse
as comunicações eletrônicas por um computador público.
Não há, pois, qualquer violação ao princípio da legalidade por parte do novo art.154 do CPC.
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Direito de defesa e Devido Processo Legal
Afirma ainda a OAB que a Internet não é meio seguro para a comunicação de atos processuais
por meio eletrônico e que nem todos os advogados possuem recursos econômicos para
arcarem com o custo do aparato necessário ao procedimento eletrônico, razão pela qual o
referido artigo também seria atentatório ao direito de defesa e devido processo legal.
Novamente é preciso que se tenha em mente que o art.154 do CPC limita‐se a delegar poderes
aos tribunais para disciplinar a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meios
eletrônicos. Assim, é impossível pela análise do dispositivo concluir‐se pela segurança ou
insegurança dos sistemas empregados pelo simples fato de que a lei não determina qual
sistema informático será utilizado.
A OAB não contesta a segurança de um sistema informático específico, nem poderia fazê‐lo,
pois a lei não estabelece um sistema informático em concreto. Limita‐se a afirmar que “tais
sistemas – em especial a Internet – não se mostram seguros”, olvidando que uma infinidade de
atos jurídicos de especial importância são praticados atualmente por meio da Internet, entre
eles transações bancárias, comércio eletrônico, declaração de imposto de renda e tantos
outros cuja segurança das informações é tão ou mais crucial que no procedimento judicial
eletrônico.
Se é certo que não existe sistema absolutamente seguro, certo é também que as tecnologias
disponíveis na atualidade permitem reduzir os riscos de fraude a níveis baixíssimos, bem
menores inclusive do que o risco existente nas transações não eletrônicas. Basta comparar o
risco de falsificação de um cheque ao de falsificação de uma transação bancária eletrônica. É
esta redução de risco aliada à economia de tempo e recursos que leva os banqueiros a
incentivarem transações eletrônicas em detrimento do uso do papel. De maneira análoga, as
possibilidades de fraude e extravio de autos em um procedimento tradicional superam em
muito os baixos riscos de falsificações e perda de informação do procedimento eletrônico, se
implantado com as modernas tecnologias de segurança eletrônica hoje disponíveis no
mercado.
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Por ora, porém, não há como discutir se o procedimento eletrônico será ou não mais seguro
que o tradicional, pois, não se sabe ao certo quais as tecnologias serão usadas na implantação
do processo eletrônico. A ação direta de inconstitucionalidade não se presta a discutir
legislação futura e, muito menos, atos da administração pública que estão por vir. É preciso
aguardar a implantação destes sistemas para que, só assim, se possa verificar em cada caso
concreto a segurança garantida por eles.
Por outro lado, seria um absurdo cogitar que o fato de muitos advogados não terem condições
econômicas de adquirir os necessários sistemas informáticos pudesse representar uma
ameaça aos direitos à defesa e ao devido processo legal, pois estes não são direitos do
advogado, mas das partes.
Assim como se espera que um médico estude constantemente novos medicamentos que
venham a diminuir o sofrimento de seus pacientes, espera‐se também do advogado que este
esteja atento aos novos instrumentos tecnológicos que venham a trazer benefícios a um
julgamento mais célere das demandas. Aos médicos que não possuem condições econômicas
para adquirirem as modernas parafernálias eletrônicas de diagnósticos só resta solicitarem de
seus clientes que façam os exames em clínicas de terceiros, mas seria inconcebível que se
recusassem a utilizar das novas tecnologias por não poderem comprá‐las. Aos advogados que
não puderem adquirir um computador com conexão à Internet, de modo análogo, caberá
terceirizarem estes serviços para outros escritórios. Certo, porém, é que não poderão alegar
dificuldades econômicas como impedimento para a informatização judicial, pois, para as
partes, esta só trará benefícios, especialmente em termos de celeridade.
A tentativa da OAB de brecar a informatização judicial por via de ação direta de
inconstitucionalidade, pelo singelo argumento de dificuldades econômicas de alguns
profissionais, mais se aproxima de um luddismo pós‐industrial do que de um efetivo auxílio a
estes advogados. Melhor seria se a OAB, sensível que se mostra as dificuldades destes
advogados, proporcionasse condições mínimas para que eles pudessem se inserir na nova
dinâmica da sociedade pós‐moderna, marcada pelo predomínio das comunicações eletrônicas.
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Princípio da Publicidade
Finalmente, aduz a OAB que o dispositivo ofende o princípio da publicidade, pois como a
maioria da população não tem acesso a computadores e Internet, teriam seu acesso à
informação limitado com a substituição do velho diário impresso pelo meio eletrônico.
De novo, é essencial frisar que o dispositivo fustigado apenas delega competência aos
tribunais para disciplinar a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meios
eletrônicos. Não se pode afirmar ainda que o diário impresso será substituído por
comunicações exclusivamente eletrônicas.
Ainda que, de fato, os Tribunais decidam regulamentar o procedimento eletrônico abolindo os
diários impressos, seria um absurdo cogitar‐se da violação do princípio da publicidade. Mesmo
reconhecendo que infelizmente ainda são muito poucos os brasileiros que já acessaram a
Internet (apenas 33.32% segundo dados de 2006 do Comitê Gestor da Internet no Brasil,
disponíveis em http://www.cetic.br/usuarios/tic/2006/rel‐int‐01.htm), certamente este
número é bem superior ao daqueles que já consultaram um diário oficial impresso. Também o
número de residências brasileiras que já possuem um computador (19,3% segundo dados de
2006 do CETIC: http://www.cetic.br/usuarios/tic/2006/rel‐geral‐00.htm), por certo são bem
superiores à tiragem dos diários oficiais impressos.
Assim, forçoso é concluir que, longe de representar uma ameaça à publicidade, a tecnologia
representa um meio infinitamente mais eficaz de divulgação dos atos processuais
principalmente para as partes e interessados que poderão acompanhar seus processos a partir
do computador de suas residências, trabalho ou computadores públicos que vêm sendo
disponibilizados nas mais diversas regiões do país.
Decididamente, não há aqui qualquer violação ao princípio da publicidade que, pelo contrário,
só tende a ser fortalecido com a divulgação na Internet dos andamentos processuais.
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Conclusão
Por todo o exposto, não hesito em responder aos quesitos formulados da seguinte forma:
1º. Há nele violação do princípio constitucional da divisão de poderes? Resposta: NÃO, a
norma do art.154 do CPC com a nova redação dada pela Lei 11.280/2006 delega aos tribunais
poderes para disciplinar questões procedimentais e não processuais, razão pela qual não há
qualquer violação do art.22, I, da Constituição da República.
2º. Há nele violação do princípio da legalidade? Resposta: NÃO, pois a mera delegação de
poderes para disciplinar o procedimento eletrônico não obriga ninguém a fazer ou deixar de
fazer algo senão em virtude de lei.
3º. Há nele violação do direito de defesa e do devido processo legal? Resposta: NÃO, pois o
direito à defesa e ao devido processo legal são direitos das partes e não da categoria
profissional dos advogados. Longe de representar um empecilho para o exercício deste direito,
a informatização judicial possibilitará maior celeridade no exercício do direito à ampla defesa.
4º. Há nele violação do princípio da publicidade? Resposta: NÃO, pelo contrário, o
procedimento eletrônico tende a tornar mais efetivo o princípio da publicidade ao permitir
que qualquer pessoa com acesso à Internet possa acompanhar os andamentos processuais.
É o parecer.
Belo Horizonte, 2 de maio de 2007.
TÚLIO VIANNA
Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná
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