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Dogville se passa nos Estados Unidos durante os anos 30, época da Lei Seca e da
débâcle econômico-financeira da sociedade norte-americana após o crash da Bolsa em
1929. A atmosfera é propícia à proliferação de grupos de gangsters estruturados de
forma mafiosa. Grace aparece como fugitiva de um desses bandos em uma pequena
cidade do interior, na qual é acolhida sob os auspícios de Tom, pretenso intelectual que
convence os moradores da cidade a lhe dar abrigo, com o objetivo de "ilustrar" a
natureza humana de forma a transcender a pequeneza da vida em local tão humilde e
isolado.
Dogville, a “cidade do cão”, recebe Grace, cujo nome remete à graça ou dádiva,
com os dentes literalmente à mostra na figura do cachorro do vilarejo, que a ameaça por
ter-lhe roubado um osso que ainda apresentava restos de carne. A situação é
emblemática, pois apresenta uma Grace completamente fragilizada, em situação de total
abandono e, portanto, à mercê da piedade e dos caprichos de terceiros. Ao mesmo
tempo, o dono do cão, que mais tarde vai se revelar um homem cruel e predatório,
reclama à esposa sobre os restos de carne deixados no osso, cuja serventia devia ser
dirigida os humanos somente. Os tempos, como podemos perceber, são de miséria
absoluta, que endurece o coração das pessoas do vilarejo, microcosmos onde se vê
retratada toda a “blue collar America”, os Estados Unidos dos trabalhadores braçais,
sem perspectiva de um amanhã melhor. As fotografias escolhidas pelo diretor para o
encerramento do filme são exemplares para representar o universo cuja mesquinhez e
desesperança acabou de ser retratada no longa-metragem que está terminando.
Essa identificação comunitária com base em novos termos de poder – pois até
então, devido às condições de pobreza e à falta de perspectivas, a única identidade
possível entre os moradores era a de impotência – provoca, de forma à primeira vista
paradoxal, um aumento da sensação de intimidade de parte dos moradores do vilarejo
para com Grace, que a julgam de tal maneira à mercê de suas vontades, que se
autorizam a abusar dela sexualmente.
Segundo Foucault, a partir dos séculos XVII e XVIII, o corpo humano entra
numa maquinaria de poder, por ele denominada vigilância hierarquizada, contínua e
funcional, que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe da mesma forma que a
população de Dogville o faz com Grace, dissociando o poder do corpo, que passa a ser
observado como “objeto e alvo de poder” (1989, p. 125). O autor afirma que, “forma-se
então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação
calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos” (1989, p.127),
cujo objetivo é o domínio de cada um sobre seu próprio corpo ou, dependendo da
relação de forças do grupo em questão, do domínio do corpo de uns pelos outros.
É extremamente irônico observar que a violência imposta a Grace, crescente e
paulatina, ocorre numa sociedade formada, à primeira vista, por ‘gente de bem’, de
religiosidade puritana e organizada de acordo com rígidos preceitos sociais. No entanto
é justamente essa rigidez de princípios que possibilita o exercício do que Foucault
chama de ‘disciplinas’, aquelas que objetivam o controle do corpo – e,
conseqüentemente, do sujeito que nele habita – visando mais os processos da atividade
em si do que seu resultado. O resultado é secundário em termos de eficiência da
disciplina empregada, justamente por ser a submissão a ela o mais importante a ser
atingido. Não importa tanto se Grace não consegue desempenhar a contento todas as
tarefas impostas, o que importa é sua submissão, que vaza do simbólico para o literal,
quando da colocação de uma corrente em seu pescoço como se ela fosse o ‘cão’ da
cidade, a representação tanto do Mal, quanto do elo mais fraco da hierarquia social.
Grace chega a Dogville decidida a perdoar, mas não por gratidão pelo refúgio
concedido e em virtude de estar completamente despojada de alternativas, como o
diretor nos faz acreditar durante boa parte do filme. A forma como Grace suporta,
justifica e, aparentemente, perdoa cada violência a que é submetida pode, também, ser
analisada como um exercício de poder. A título de elucubração teórica podemos pensar,
baseados nos poucos dados que a película nos oferece, que na casa paterna Grace era
destituída do poder na forma como esse lá era comumente exercido, ou seja, pela
violência das armas. Podemos depreender essa situação do diálogo que ela trava com o
pai, que lhe oferece a divisão do poder em pé de igualdade, oferta essa decisiva para a
virada em seu destino que a personagem promove.
De certa forma é possível dizer que não há fabulação em Irreversível. Não que falte
trama ao incrivelmente agressivo filme do franco-argentino Gaspar Noé. Irreversível é
indigerível, justamente por não ser fábula, por aproximar-se demais da realidade
possível. A fábula metaforiza a realidade, o que, em um filme como Dogville, embora
cause estranheza e perplexidade no público, lhe permite o distanciamento necessário
para uma reflexão pós-exibição que tende à racionalização, a corriqueira e por vezes
apaixonada conversa de bar ou de pizzaria acerca do filme recém assistido. É quando se
realiza uma tentativa coletiva de apreensão e análise dos elementos em questão no
filme, embora estes, no caso de Dogville, não sejam, de modo algum, revestidos de
leveza. No entanto, essa mesma reação já não é possível ao término de Irreversível. O
filme se inscreve como um soco na boca do estômago do imaginário do espectador de
forma – inevitável o uso do vocábulo – absolutamente irreversível.
Traçando um paralelo com Grace, de Dogville, temos mais uma vez uma
personagem que passa o filme a negar o uso da violência mesmo quando se encontra em
situação desesperadora e que, ao final, será a que fará uso dela de forma explosiva e
definitiva. Da mesma forma que Grace revida a humilhação sofrida, Pierre o faz
também, em longos golpes de extintor de incêndio contra o rosto já desfigurado do
estuprador da ex-esposa, em uma cena na qual parece estar não apenas salvando o
amigo de uma violação, mas desabafando toda a dor, toda a humilhação, derramando
toda a animalidade que traz dentro de si, até então disfarçada sob grossas camadas de
verniz acadêmico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
i
Doutoranda em Letras pela PUCRS. Professora no Instituto Meridional, Passo Fundo, RS,
Brasil.
malubvargas@gmail.com