Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Porto Alegre
2006
Luiz Gustavo Souza Pradella
-2-
Nos tempos de antes, no mundo de antes, o mbii (a lagarta) era um
avá (humano-guarani) seguidor de Nhanderu, que se tornou mal e
foi transformado em mbii por Nhanderu. Depois com o mbii
Nhanderu fez a alma dos Juruá (dos brancos).
Jovem Mbyá - Caderno de campo (09/05/2005)
-3-
Lista de Ilustrações
Figura de capa: Colagem feita a partir das fotografias de folhas de yvyrá vaíkué (planta
maligna) e yvyrárakuá (agulha de madeira), dispostas em forma concêntrica. Fotos e
montagem de autoria própria...............................................................................................01
Figura 02: Desenho da tatu pekué (bolsa de tatu) Anexado ao caderno de campo em
(13/09/2006). Autoria de um dos meus interlocutores Mbyá..............................................41
Figura 03: Foto das réplicas yvyrárakuá (agulhas de madeira). Anexada ao caderno de
campo em (24/10/2006) Autoria de um dos meus interlocutores Mbyá, foto de autoria
própria................................................................................................................................. 44
Figura 04: Foto de rosto entalhado em tronco de árvore. Anexada ao caderno de campo em
(07/11/2005) Autor do entalhe desconhecido, fotografias de autoria própria.................... 52
Figura 05: Foto de folhas de yvyrá vaíkué (planta maligna) coletada a pedido por um de
meus interlocutores. Anexada ao caderno de campo em (24/10/2006) Imagem de autoria
própria................................................................................................................................. 55
Figura 06: Desenho de folha de yvyrá vaíkué (planta maligna) Anexado ao caderno de
campo em (13/09/2006). Autoria de um dos meus interlocutores Mbyá............................55
-4-
Sumário
Agradecimentos....................................................................................................................07
Resumo..................................................................................................................................08
Convenções........................................................................................................................... 09
Prólogo.................................................................................................................................. 10
Os primeiros contatos...................................................................................................... 10
Os Guarani....................................................................................................................... 11
Introdução............................................................................................................................ 16
Método de análise............................................................................................................ 17
Feitiço.............................................................................................................................. 19
1. Xamanismo na bibliografia.............................................................................................21
-5-
3. Os caminhos do feiticeiro................................................................................................ 36
4.2 Yvyrárakuá.................................................................................................................44
4.3 Ka'avó........................................................................................................................ 47
5. Opá marangá.................................................................................................................... 49
Considerações finais............................................................................................................ 68
Glossário............................................................................................................................... 71
Referências............................................................................................................................74
-6-
Agradecimentos
-7-
Resumo
Este trabalho trata dos elementos vinculados ao tema da feitiçaria entre os Mbyá e os
Nhandeva. Estas duas extensas redes de grupos, organizadas por parentesco e afinidade,
atualmente compartilham o mesmo espaço em aldeias permanentes e acampamentos
provisórios no leste, no sul e no sudeste do Brasil; o território ocupado por essas populações
perpassa as fronteiras nacionais de diversos países do cone sul. Fundamentado n a
experiência de aproximadamente três anos de campo junto a comunidades Mbyá e
Nhandeva-Guarani, o presente trabalho tem por objetivo tratar das práticas e percepções dos
elementos do complexo xamânico Guarani em torno da feitiçaria e do feiticeiro, buscando
estabelecer linhas de diálogo entre as informações, frutos de minhas etnografias e das
referências bibliográficas.
-8-
Convenções
Todas as palavras escritas em Guarani estão grafadas em negrito tal qual me foram
apresentadas por meus interlocutores, salvo as denominações das parcialidades e a própria
palavra “Guarani”. No caso das citações, por fidelidade às fontes documentadas, optei por
preservar as formas gráficas originais. Todas as palavras estão seguidas de suas traduções
colocadas entre parênteses ou após barra (/) ou, de forma inversa, contidas entre parênteses
ou após barra, salvo quando fazem parte do título; nestes casos fiz uso de notas de rodapé.
Em parte dos títulos estão sendo utilizadas palavras em Guarani, tendo em mente a
preservação das referências simbólicas próprias desses termos. Algumas palavras foram
modificadas em sua acentuação e esta se deve às limitações impostas pela fonte utilizada na
digitação. As vogais nasaladas estão grafadas com til ou trema. Nenhuma das palavras em
Guarani terá qualquer classe de flexão (gênero ou número) a não ser quando constarem nos
relatos ou em citações bibliográficas. Todas as citações em outras línguas que não o
português foram traduzidas.
-9-
Prólogo
Os primeiros contatos
Durante a segunda metade do ano de 2003, tive a oportunidade de tomar parte como
bolsista-pesquisador no projeto Corpora da cultura Guarani 1 coordenado pelo professor
Sérgio Baptista da Silva, no Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e
Tradicionais (NIT). Foi a partir da inserção nesta pesquisa que iniciei os primeiros trabalhos
de campo junto às terras indígenas guarani localizadas na grande Porto Alegre e arredores.
Tímidos, sérios, distantes e desconfiados: foi assim que me pareceram os Guarani naqueles
dias.
1
O projeto em questão consistiu na catalogação sistemática (através de fotografias e desenhos) dos objetos pertencentes
à cultura material (Proto) Guarani (cerâmica arqueológica, instrumentos musicais, armas e adornos corporais), com
ênfase nos objetos portadores de grafismos junto a museus e acervos de universidades. Num segundo momento, esse
corpus construído (fotografias e desenhos) foi apresentado aos Guarani das aldeias do Rio Grande do Sul. A partir
disso, foram registradas suas memórias e percepções (discursos) relacionadas aos grafismos e objetos etnicamente
identificados.
2
Ayvu anhetenguá Diversos Autores. Porto Alegre: Secretaria de Estado da Educação : UFRGS. Pró-Reitoria de
Extensão. 2005, 75 p.
- 10 -
evidentemente, em um processo de longa duração. Se durante o primeiro ano persistiu o
distanciamento, ultimamente, com a intensificação da convivência, essa inserção se deu de
forma completamente diversa, fato evidenciado na recusa durante quase dois anos e meio
das temáticas relacionadas à cosmologia que, nos últimos meses tornaram-se freqüentes.
Os Guarani
3
Atualmente existem grupos familiares Mbyá Guarani habitando territórios até mesmo no estado do Pará, logo sua
territorialidade fluída não nos permite uma exatidão com relação aos pontos limítrofes. Desta forma os dados aqui
apresentados devem ser entendidos mais como referências do que fronteiras propriamente ditas.
4
O número de almas varia significativamente de sub-etnia para sub-etnia, no caso, estou dando um tratamento genérico a
partir do observado, em grande parte, junto aos Mbyá.
5
Tratarei, brevemente, sobre este assunto posteriormente em um dos planos formadores do cosmo guarani.
6
Sagrado sempre que referido aos elementos próprios do xamanismo Guarani deve ser entendido no seu sentido mais
amplo e diverso das noções de sagrado vinculadas à tradição judaico-cristã.
- 11 -
correspondente, e pode voltar a renascer em outro corpo se assim desejar.
Agã (também grafada ãng) é considerada uma alma telúrica. Surge e se desenvolve
com o corpo e, vinculada às paixões humanas, é também o espaço da animalidade. Se a
pessoa é tomada pelo mba'e poxy (substância/estado/ente de fúria) pode acabar em jepotá
(estado de animalidade ou lado animal) e se transformar em um animal.
7
Nimuendaju (1987, p.37-40) registra todos os nomes equivalentes próprios dos Apapocúva: Ayvucúe equivale a Nhe’ë
porã, acyiguá é o mesmo que agã, anguéry o equivalente a angué.
- 12 -
desempoderamento assumidas (ou refutadas) na relação entre líderes e “liderados”.
Com a intensificação do campo nos anos de 2004 e 2005, e também como reflexo do
contexto vivido nestas comunidades, deparei-me com informações sobre feitiçaria. Meus
interlocutores, três jovens Mbyá aparentados, na ocasião habitando as terras indígenas
próximas a Porto Alegre, voluntariamente abordaram aspectos superficiais sobre este esta
temática. Esse foi o ponto de partida para meu interesse no assunto.
Assim, por ocasião da realização das disciplinas Antropologia da Religião8 e
Etnologia e Etnografia do Brasil9, escrevi um artigo intitulado O curto caminho do feiticeiro
que apresentei como trabalho de conclusão de ambas. Sintético e , em certa medida,
exploratório, o artigo em questão trazia alguns elementos que me pareceram inédito, ou
ainda pouco aprofundado, sobre a feitiçaria entre os Guarani.
8
Ministrada pelo prof. Dr. Ari Pedro Oro.
9
Ministrada pelo prof. Dr. Sergio Baptista.
- 13 -
conhecimentos relativos as práticas de feitiçaria.
Sem esta proximidade e confiança mútua certamente teria sido impossível tocar em
assuntos sob segredo, conversar sobre xamãs e feiticeiros. Mas, longe de ser instrumental, a
proximidade é afetiva. O campo também serviu como espaço de domesticação para os Mbyá
que por meio de categorias de parentesco apropriadas do mundo juruá (compadrio,
apadrinhamento) nos colocaram, eu e meu companheiro de campo Luis Fernando Fagundes,
a meio caminho do tratamento dispensado a um parente14. Assim sendo, apesar de ser juruá
10
Nimuendaju (1987, p. 93 e 95).
11
Schaden (1974, p. 126).
12
Cadogan (1959, p.141).
13
Trecho de fala de um jovem mbyá, registrado em caderno de campo (07/11/2005).
14
Este meio-parentesco foi de certa forma oficializado pelo convite que nos tornasse padrinhos de filhos de nossos
- 14 -
(ocidental / não-indígena), tornamo-nos assunto pertinente não só aos nossos interlocutores
diretos como também de sua rede de parentesco.
Se estas pessoas nos possibilitam conhecer alguns dos aspectos sagrados tão caros ao
seu modo de ser que em tantas outras ocasiões são vetados para os não-Guarani, não é
somente devido a uma postura de simples tolerância com a diversidade; é, principalmente,
graças ao reconhecimento do respeito e partilha aos preceitos identificados pelos Guarani
em seu modo de ser ideal: -mbojeroviá – A confiança “que vem do interior”; e mborayú
entendido de muitos modos diferentes por autores distintos: Reciprocidade15, justiça16,
compartilhamento pleno, solidariedade tribal profunda17, ou ainda (naturalizando traduções
mais cristãs) amor recíproco18, amor e bondade19.
Se existiu uma preocupação por parte dos Mbyá ao falar sobre feitiçaria, houve igual
compromisso da minha parte ao escrever sobre seus relatos. Foi necessário proteger a
identidade daqueles com os quais dialoguei. Logo, ao longo do texto, opto por uma certa
imprecisão no que se refere às informações que poderiam identificá-los: todos os nomes
citados por meus interlocutores foram trocados por pseudônimos. Tornar uma etnografia
impessoal faz com que as pessoas sobre as quais escrevemos sejam, em grande medida,
descaracterizadas. Neste processo, infelizmente, a etnografia perde muito de sua cor. No
entanto, considero este um preço a ser pago ao se tratar de um assunto considerado tão
delicado e ao mesmo tempo tão instigante.
interlocutores.
15
H Clastres (1987 , p.94), Montardo (2002, p.58), Assis (2006, p. 21, 22, 87).
16
H. Clastres (1987, 96)
17
P Clastres (1990, p 29), H Clastres (1987, p.100).
18
Pissolato (2006, p. 164)
19
Cadogan (1959, p.19, 20 e 26), Dooley (1998, p.71), Pissolato (2006, p.175, 330 e 343).
- 15 -
Introdução
20
Langdon (1996, p.27 e 28).
- 16 -
disposições e motivações parecem ser singularmente realistas21”.
Complexos xamânicos como dos Guarani distinguem-se ainda das religiões (ou dos
complexos religiosos) strict o s enso pela amplitude de sua abrangência: “ Falar de
xamanismo em várias sociedades, implica em falar de política, de medicina, de organização
social e de estética23”.
Método de análise
21
Langdon (1996, p.26)
22
Barth (2000, p.137).
23
Langdon (1996, p.27).
24
Obviamente a apreensão do “ponto de vista êmico” – entendido como a compreensão total das particularidades tal qual
compreendidas pelos atores sociais – é um ideal de pesquisa que obviamente só pode é atingido em termos.
- 17 -
historicamente empreendidas pelo Estado, os Mbyá foram paulatinamente forçados a dividir
territórios indígenas demarcados e acampamentos com grupos Xiripá (Nhandeva-Guarani) e,
em casos mais raros, com os pongué (Kaingang - Jê Meridionais). Com ambos os grupos há
um escalonamento que vai do compartilhamento de princípios comuns (com os Xiripá) ao
relativo estranhamento (com relação aos Kaingang). Estão ainda em contato permanente
com as populações não-indígenas (Juruá) membros da sociedade envolvente – vendedores,
burocratas, filantropos, políticos, estudiosos e vizinhos – que visitam suas aldeias com
freqüência.
Por vezes em meu texto acabo incorrendo numa certa generalização em prol do
“modo de ser” Mbyá ao me referir genericamente a um “modo de ser” supostamente
“homogêneo” guarani. Isto se deve certamente ao fato daqueles com os quais mais dialogo
serem membros desta parcialidade.
Apesar disto reconheço uma série de distinções (que não anulam as similaridades)
entre as parcialidades apresentadas a mim através da bibliografia, levando em conta também
o fato de que no âmbito de uma única parcialidade podem existir variações a serem
consideradas. Uma das propostas de Barth é reconsiderar o papel da variação no âmbito do
método comparativo.
25
Barth (2000, p.197).
- 18 -
transformadas em um campo de variabilidade, levando
progressivamente à construção de um conjunto de dimensões de
variação para facilitar a descrição de qualquer forma observada26.
Feitiço
No primeiro capítulo de seu livro Reflexão sobre o culto moderno dos deuses
fe(i)tiches, Bruno Latour reconstitui a origem do termo feitiço no contexto de contato entre
os portugueses católicos e os africanos da costa da África Ocidental. Ocultando a certeza da
legitimidade de suas crenças em detrimento de todas as demais, os portugueses interrogaram
os africanos sobre a origem e divindade dos objetos de sua adoração:
26
Barth (2000, p. 193).
27
Latour (2002, p.15 e 16).
- 19 -
Ao contrário da mentalidade portuguesa moderna que concebia a divindade (apesar
de sua influência) como exterior e separada da natureza dos homens (daí provavelmente se
origina o termo sobrenatural), o viés Guarani compreende a pessoa como entidade
segmentada em diferentes domínios; composta por potencialidades inerentes a suas distintas
almas, tanto para a animalidade (sombra) como para a divindade (iluminação). Cada pessoa,
em sua partícula divinal, é criação/desdobramento da própria divindade (mbojerá 28). Dessa
forma, é igualmente imbuída da capacidade de capacidade criadora, a partir de suas ações e
principalmente através de cantos/palavras que guardam em si a sabedoria das divindades
(arandú porã) e possibilidade de inspiração necessárias para criar29.
Tal qual para os Guianeenses, “a etimologia (do termo) feitiço recusa-se a escolher
entre o que toma forma através do trabalho (ou do falado/cantado) e o artifício fabricado 30”.
Assim como feitiço, a expressão guarani Joapóvaí, uma das denominações dada ao ataque
xamânico, evidencia seu caráter de “produção através do trabalho”. Joapóvaí é traduzido
pelos Guarani como “trabalho maligno feito no corpo”.
Os Guarani – assim como entre os africanos da costa ocidental na época do contato com os
portugueses – não reconhecem qualquer oposição ou contradição entre a idéia de se produzir
algo (através do trabalho ou da fala) e o fato deste algo ser dotado de poder. “As duas raízes
da palavra indicam bem a ambigüidade do objeto que fala, que é fabricado ou, para reunir
em uma só expressão os dois sentidos, que faz falar31”.
28
Cadogan (1959, p. 17).
29
Segundo um dos meus interlocutores, este “criar” deve ser entendido em seu sentido estritamente divino, traduzido
pelos Mbyá como criar a partir do nada, “igual a Nhanderu”, ou ainda criar a partir de si, de sua própria sabedoria.
Caderno de Campo (17/04/2006).
30
Latour (2002, p.16).
31
Idem (2002, p. 17).
- 20 -
1. Xamanismo na bibliografia
Já nos séculos XVIII e XIX, alguns estudos farão uso dessas crônicas, ligados
principalmente a pesquisas etno-linguísticas de base documental. Na maioria destes estudos
não havia contato direto com os povos ameríndios. Assim, seu legado para a compreensão
da cosmologia e das formas de xamanismo tupi-guarani é mínimo, senão, inexistente.
Outra figura de destaque foi Egon Schaden, etnólogo cuja teoria, essencialmente
32
Também em P.Clastres (2003, p. 95).
33
Nimuendaju ([1914]1987).
34
O campo de Kurt Nimuendaju iniciado em 1905 junto aos Apapocúva-Guarani, antecipa o trabalho de campo de
Bronislaw Malinowski (em 1915) junto o povo Mailu e os trobianeses em dez anos. É também um dos primeiros
etnólogos a abandonar as visitas em formato de expedições, optando por conviver com os grupos estudados in solo.
- 21 -
funcionalista, estava vinculada às escolas americana e britânica. Esse autor é o responsável
pelo modelo de classificação de três dos quatro grupos sub-étnicos Guarani existentes que
vem servindo de base para estudos posteriores desde então – Mbyá, Nhandeva (ou Xiripá no
Paraguai e Rio Grande do Sul) e Kaiowá (ou Paí no Mato Grosso do Sul e no Paraguai). Em
Aspectos fundamentais da cultura guarani35, Schaden pesquisa os contextos de contato e
intercâmbio cultural nos quais as diferentes sub-etnias encontram-se inseridas em sua época.
Como defensor da teoria da aculturação, anunciava um futuro terrível mais ou menos
semelhante para as diferentes parcialidades, dando como certo e próximo seu etnocídio.
Schaden foi, sem dúvida, um antropólogo de seu tempo.
Somente em 1959, com a publicação do livro Ayvú Rapytá36: Textos míticos de los
Mbyá-Guarani del Guairá parte considerável dos preceitos cosmológicos dos Guarani são
revelados através da etnografia de León Cadogan. De excepcional conteúdo e profundidade,
n o A y v ú R a p y t á e n c o n t r a m-s e r e g i s t r a d o s , p e l a p r i m e i r a v e z , i n ú m e r o s
cantos/meditações/ensinamentos sagrados através dos quais os poetas-profetas Mbyá
apresentam as propriedades centrais de sua cosmologia, cantando o fundamento da palavra,
o bom modo de ser, a primeira terra, o grande dilúvio e a nova terra.
35
Schaden (1974).
36
Cadogan (1959).
37
Meliá (1989, p.293)
38
P.Clastres (2003).
39
Idem (2004).
- 22 -
Mal40, os autores apontam para a efetivação processual do profetismo Tupi-Guarani como
parte de um “mecanismo reagente” ao empoderamento das lideranças políticas, ou seja,
contrário à reordenação (divisão) da sociedade entre governantes e governados. As
migrações proféticas historicamente observadas nas crônicas do período colonial são aqui
compreendidas como parte de um “mecanismo cultural” capaz de impedir o estabelecimento
de preceitos de autoridade e comando, desempoderando lideranças e condicionando seu grau
de influência à sua retórica e ao seu prestígio.
40
H.Clastres (1987).
41
Oliveira (1999).
42
Povo Tupi-Guarani nas margens do rio Ipixuna, afluente do médio Xingu.
- 23 -
como pautado por uma leitura multinaturalista do cosmos, no qual muitas naturezas
partilham os mesmos atributos culturais. Dessa forma, o pensamento ameríndio contrapõe-se
à cosmovisão multiculturalista, própria do pensamento moderno, que, de forma sintética,
pensa uma mesma natureza compartilhada por muitas culturas43.
Parte significativa dos elementos de feitiçaria Guarani que busco tratar neste trabalho
está presente, ainda que de maneira breve, nas fecundas etnografias de Deisy Montardo,
Valéria de Assis, Celeste Cicarone e Elisabeth Pissolato.
43
Viveiros de Castro (2002).
44
Langdon (1996).
45
GEERTZ (1989).
46
Barth (2000).
47
Deleuze & Guattari (1995, vol. V, p.53). Apesar dos Guarani não serem nômades stricto senso, sua relação com a
espacialidade pode ser considerada desterritorializada se levarmos em conta a importância do caminhar em sua sócio-
cosmologia.
48
Deleuze & Guattari (1995).
- 24 -
rizomático e f l u i d o : s uas fronteiras desterritorializaram-se e m r e d e s de parentesco,
procedimentos, objetos rituais, emaranhados de referência que ora se contrapõem, ora
convergem, por vezes se anulam e em outros casos se reforçam. Já não resiste mais a ênfase
estática n os conceitos dicotômicos tais como tradição/inovação, ou e n t r e sociedades
simples/complexas, e mesmo o monismo de categorias como sociedade e cultura, tornou-se
algo questionável49.
49
Barth (2000, p.109).
- 25 -
2. Imbá’avy'ky va'é hegui Karaí50
Se o interesse com relação ao xamã guarani é plural, as leituras são as mais diversas,
sendo identificável uma clara divisão na bibliografia no que se refere aos aspectos do
xamanismo Guarani. Enquanto parte da bibliografia aponta para o caráter homogêneo do
xamã, outra parcela defende a existência de uma especialização que distingue os líderes
religiosos dos feiticeiros. Esta divisão no mais das vezes pode ser evidenciada nas
denominações assumidas (ou evitadas) pelos estudiosos51.
50
Traduzido por “o feiticeiro e o líder religioso”.
51
Pajé, xamã, feiticeiro e curandeiro são algumas das denominações mais comuns.
- 26 -
2.1 Denominações do feiticeiro
Entre os Mbyá nas terras indígenas ao leste do Rio Grande do Sul, as denominações
mais comuns referentes aos feiticeiros são joapóvaí va'é (os que fazem trabalhos no corpo),
porovaíky'á (os que ferem furtivamente aos próximos) 52 e a m a i s freqüente delas,
imbá’avy'kyva'é53 (os que brincam com a vida). Já os Apapócuva (Nhandeva-Guarani) da
obra de Nimuendaju54 utilizavam a palavra moãjáry (senhor do veneno55) ao se referirem ao
feiticeiro. Ainda outra denominação utilizada pelos Nhandeva (Xiripá) para designar o
feiticeiro, opoängaíva, foi registrada por Chase-Sardi56. Há de se notar também alguma
semelhança entre esta palavra e a expressão Mosseu y gerre documentada em 1557 pelo
viajante francês Jean de Léri57 junto aos Tupinambá. Em seu glossário – constituído em
francês quinhentista a partir da fonética das palavras Tupi – Léri registra:
O termo payé (ou abapîe) registrado por Montoya58 no século XVII como sendo o
equivalente guarani a feiticeiro, possui outro sentido para os Mbyá atuais do Sul do Brasil.
Não sendo qualquer denominação ligada ao xamã, líder religioso ou feiticeiro, pajé 59 é uma
categoria êmica referentes à potência (saberes-armas), os preceitos da feitiçaria, conhecidos
não só necessariamente pelos feiticeiros, mas colocados em prática apenas por estes.
52
Meliá, (1985, p. 317).
53
Este é o motivo pelo qual opto por empregar no mais das vezes esta denominação.
54
Nimuendaju (1987, p. 63 e 93).
55
Idem (1984, p. 73). Em nota, os tradutores Viveiros de Castro e Charlote Emmerich registram que Nimuendaju em seu
texto original faz clara distinção entre duas classes de xamãs: O Medeizimnann quando se refere ao principal/curador e
o zauberer remetendo-se ao feiticeiro. Infelizmente estas distinções se perderam na tradução para o português.
56
Chase-Sardi apud Pissolato (2006, p.168 e 169).
57
Em Istória de uma viagem feita á terra do Brazi por João de Leri traduzida em linguagem vernácula por Tristão de
Alencar Araripe. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro n.52 (80), 1889 p. 111 - 372.
58
Montoya (1876, p. 261).
59
Kracke apud Langdon (1996, p.27) utiliza o conceito de “possuidor de poder” como tradução para a palavra pajé.
- 27 -
R e j e i t a n d o o u s o do t e r m o pajé, Toninho definia-o como
inominável, afastando-o de seu universo verbal, como palavra de
branco e lado ruim do curandeiro. Meu interlocutor explicou-me
que o feiticeiro era um grande sábio, um xamã, que adquirindo
conhecimentos-fazeres maléficos a fim de combatê-los e dominá-
los, utilizava-os para propósitos benéficos, atingindo os indivíduos e
a sociedade60.
Considera-se um feiticeiro todo aquele que faz uso das palavras malignas e das
magias prejudiciais. O simples conhecimento dos procedimentos da feitiçaria por parte de
uma pessoa não é encarado como algo essencialmente ruim, já que estes são d e
conhecimento mais ou menos comum dos karaí e, inclusive, empregado nos procedimentos
de cura, principalmente, inclusive ao mesmo tipo de mal que podem causar61. No entanto,
quando alguém faz uso desses conhecimentos torna-se agente e também vítima de seus atos,
deixando-se levar pelo yvy teko axy (os caminhos/modos imperfeitos de um mundo
imperfeito).
Entre os Guarani (ao menos entre estes Mbyá e Nhandeva com os quais realizei meu
campo), os feiticeiros existem para além dos sistemas de acusações 62 instaurados nos
momentos de tensão social.
O Julio é muito meu amigo, é meu amigo mesmo, mas ele faz coisa
ruim. Todos sabem que ele faz. Ele é um porovaíky'á, apesar de ser
meu amigo, eu sei. Uma vez ele quis me ensinar. Ele disse ‘se você
quiser, você vai aprender tudo como se faz’. Eu não quis, não gosto
dessas coisas, não trazem coisas boas. Ele nunca pára, está sempre
indo embora, ninguém sabe onde ele foi parar63.
60
Cicarone (2001, p. 210).
61
Nesse sentido um feiticeiro só seria capaz de curar os males provenientes de ataques considerados feitiçarias, não
estando apto para realizar outras formas de cura.
62
As questões referentes ao sistema de acusações entre os Guarani serão abordadas posteriormente no sub capítulo 6.2
desta mesma monografia.
63
Trecho do relato de um jovem Mbyá registrado em caderno de campo (07/11/2005). O nome original da pessoa citada
foi substituído por um pseudônimo.
64
Outro relato registrado (11/07/2005), um de meus informantes narra a ocasião em que o mesmo feiticeiro citado acima
- 28 -
longe de ser uma figura restrita a um passado remoto, quase mítico, o feiticeiro guarani pode
ser encontrado tanto nas aldeias mais afastadas, como naquelas próximas aos grandes
centros urbanos.
se gaba junto a amigos e parentes do modo como asfixiou até a morte um importante karaí por meio de agulhas de
madeiras introduzidas através de feitiços em sua garganta.
65
Dobrizhoffer apud Meliá (1981, p. 165).
- 29 -
Os índios, batizando-se ganhavam o nome de Karaí, mas na
realidade não entravam na sociedade dos novos karaí [entenda-se os
ocidentais], os quais já haviam conseguido reter para si o significado
exclusivo que não desejavam compartilhar com os outros: o de ser
senhor, o de merecer respeito, o de ser superior e o de ter e poder,
66
exigir submissão e o trabalho necessários para eles .
66
Melià (1981, p. 167).
67
Cadogan (1959)
68
No entanto, alguns autores entre estes Nimuendaju, traduzem-no como 'pai'.
69
Idem (1987, p. 74).
70
Nimuendaju (1987, p. 80).
71
Melià (1989, p. 341).
72
Também na crônica de Eve D'Evreux registra-se o termo 'pagy guaçu' traduzindo-o como 'grande xamã' (os mesmos
que recebiam o título de caraí) D'Evreux Apud Clastres (1975, p. 37), da mesma forma em Bartolomé (1991, p.135)
entre os Avá Katu Eté (Nhandeva-Guarani no Paraguai).
- 30 -
As duas figuras – pa'í e karaí – apesar de tudo, não se contrapõem
necessariamente; juntas representam uma forma de sociedade e um
ideal de pessoa em que a reciprocidade econômica serial geral e
plena e cada qual possa alcançar o estado de perfeição, numa terra
onde não há males nem morte73.
Com o início dos estudos acadêmicos nesse campo, tanto a palavra pajé como
shaman foram assumidas como conceitos analíticos pelos pesquisadores, que inicialmente
não compreenderam o caráter generalizante de suas utilizações. Deste uso decorre uma série
de mal-entendidos permeando centenas de anos de registros escritos relacionados ao
xamanismo.
73
Idem (1989, p. 342).
74
Também registrado por Montardo (2002, p. 259).
75
Pissolato (2006, p. 288).
76
Este termo deve ser entendido no seu sentido mais amplo.
- 31 -
Losano distingue os xamãs guarani do período colonial em três categorias: os curandeiros,
os profetas e os feiticeiros.
Na mesma obra Léry registra ainda um outro termo em seu glossário, “mossou y
gerre”81, segundo ele empregado como denominação do feiticeiro, bem como referência a
alguém (uma mulher) que se encontra em estado de possessão por um espírito maligno.
Ambos os autores traçam distinções claras ao tratarem das práticas dos diferentes
tipos xamãs, diferentemente de boa parte da literatura jesuítica deste período, na qual os
xamãs são genericamente tratados por feiticeiros.
77
Losano Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p. 37).
78
Losano Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p.39).
79
Idem (1975, p. 37).
80
Léry Apud H.Clastres, Excertos de H.Clastres (1975, p. 38)
81
Previamente citado na página 27.
- 32 -
xamã82. Segundo este autor não existem outras distinções que não as de cunho hierárquico.
Assim sendo, o xamã Nhandeva é considerado como tipicamente ambivalente. Por outro
lado, Bartolomé reconhece uma disparidade entre a forma de atuação dos xamãs de menor
hierarquia e as posições tomadas pelo pa'í guasu. O emprego de ataques xamânicos entre
estes grandes líderes xamânicos é descrito como “raríssimo” pelo autor, deixando clara a
improbabilidade que um pa'í guasu “atue desta forma83”.
82
No mesmo sentido algumas observações de Nimendaju (1987, p. 63) sobre o feiticeiro Ñanderyquynï.
83
Bartolomé (1991, p. 135).
84
Melià, Grünberg e Grünberg (1976, p. 221-222, p. 249-251)
85
Cadogan (1959, p.91).
86
Melià (1989, 317).
- 33 -
aquele que meramente conhece a ciência maligna (pajé vaí o u arandu vaí). Espera-se
inclusive que os próprios karaí dominem os saberes referentes à feitiçaria com a finalidade
de combatê-la antes de se aprofundarem em outros saberes inspirados.
Nhanderú quer que ele aprenda, não pra fazer, mas pra cuidar.
Cuidar dos parentes. Então o karaí sabe como faz com a agulha e
ouve o canto do pajé'vaí. Mas não canta igual, mas não faz igual.
Karaí não pode ser bravo (...) Mas não usa, se usar pega outro
caminho. (...) Desde o começo, quem não pega o caminho certo já
era. (...) Se eles cometem umas 2 ou 3 vezes os erros, já era87.
Munidos desta sabedoria, ambos estão preparados para limpar os males que são
potencialmente capazes de inferir. No entanto, o conhecimento de limpeza do feiticeiro está
limitado a estes mesmos males, enquanto o poder de cura do karaí é geralmente
considerado muito mais vasto, abrangendo todas as chamadas doenças de guarani ou
doenças de índio91.
Idealmente, espera-se que um karaí jamais utilize seu conhecimento para inferir o
mal. No entanto, o uso dos saberes referentes aos ataques xamânicos parece ser sempre
empregado de forma relacional. Conseqüentemente, em contextos de grande discórdia, a
figura do karaí torna-se motivo de grande desconfiança. Também lideres religiosos não
estão isentos – e nem lhes parecem vetados – de sentimentos de aversão, ódio e vingança, já
que são considerados igualmente como parte da yvy rupáre koaxý: a terra de princípios
87
Trecho da fala de um de meus interlocutores Mbyá, registrada em caderno de campo (09/05/2005).
88
Meliá (1989, p. 317), Pissolato(2006, p. 166) e grafado ainda payé vaí - por Meliá & Grünberg (1976, p. 221-222; 249-
251). Este termo parece ter se constituído em contraposição ao ka'avó (também chamado mbajé e pajé) uma classe de
feitiços considerados lícitos e relativamente inofensivos. Ver pág 41.
89
Dooley (1998, p. 138).
90
Schaden (1974, p. 126), Meliá, (1985, p. 317).
91
Assis (2006, p. 133 e 134) e Pissolato (2006, p.170).
- 34 -
enganosos, feia, doente, imperfeita, mortal.
Têm uns que querem chegar antes, querem alcançar aguyje, mas não
alcançam, passam bem longe, se perdem muito cedo no caminho.
(...) às vezes eles nem sabem, acham que estão no caminho certo,
mas não estão. Dá pra saber quando isso acontece, a pessoa vai
ficando brava, ficando brava por qualquer coisa93.
Não tive contato com nenhum relato sobre as implicações cosmológicas destas
conversões, no entanto é possível supor que exista algum tipo de conseqüência, já que
fabricar ataques mágicos contra outras pessoas é considerado pelos Mbyá uma violação
grave dos bons preceitos de conduta. Os homens e as mulheres que fazem uso de feitiços –
sendo ou não líderes religiosos – provavelmente sofrem restrições na busca do aguyje.
92
Pretendo tratar este aspecto de forma mais aprofundada nos capítulos posteriores.
93
Trecho do relato de um dos meus interlocutores Mbyá, registrada em caderno de campo (09/05/2005).
- 35 -
3 Os caminhos do feiticeiro
3.1 O teko a'ã
“Qual é mais rápido, o caminho bom ou o caminho ruim?” Esta pergunta retórica foi
a resposta dada por um de meus interlocutores diante dos meus questionamentos sobre como
se constitui um feiticeiro.
No mito de criação mbyá, Nhanderú Papá (Nosso Único Pai) caminha para fora da
Yvy Tenondé (a Primeira Terra) após o conflito com Nhandexýeté (nossa mãe verdadeira).
Esta, grávida, percorre uma longa jornada buscando por Nhanderú Papá, guiada por seu
filho Nhamandú (o Deus Sol), que ainda não nascido lhe indica os bons caminhos. Eis que
Nhamandú, da barriga de sua mãe, deseja uma flor surgida na beira do caminho. Ao pegá-
la, Nhandexý acaba sendo picada por uma vespa, tornando-se ríspida com seu filho que
desde então se cala. Em seu caminhar, Nhandexý toma o rumo errado, afasta-se das pegadas
de Nhanderú Papá e caminha em direção a casa da avó das onças, onde acaba sendo morta.
Nhamandú, nascido de Nhandexýeté já morta, cria seu irmão Jaxy (o Deus Lua) e com ele
caminha pela terra primeira nomeando as coisas, povoando os espaços e guaranicizando o
mundo para, ao fim de sua jornada, encontrarem o grande Pai e receberem deste as insígnias
dos karaí97.
94
Nimuendaju (1914, p. 28).
95
Cadogan (1959, p.18), Clastres (1987, p. 85).
96
Em alguns trechos dos cantos coletados e traduzidos por Léon Cadogan, presentes em seu Ayvu Rapytá, existem
referências a preocupação com a possibilidade da “bifurcação do amor que impossibilita alcançar valor e fortaleza”
(Cadogan (1959, p. 92). A palavra “amor” tal qual é empregada na tradução de Cadogan, busca dar conta do conceito
guarani de mby’aguaxu ou mborayú, ambos os termos serão abordados futuramente neste texto.
97
Meliá (1985, p. 326).
- 36 -
Figura 1: Vixúrangá Indajé (imagem de madeira da águia) Em sua base três
referências simbólicas. Do lado esquerdo a letra “A” apropriada do alfabeto
ocidental. No centro, um grafismo relacionado ao teko a'ã e, à direita, o desenho
de uma palmeira Pindó, símbolo das divindades, da imortalidade, presente no
centro de cada um dos yambás (cidades das nhe’ë ou 'paraíso'), formando, assim,
o eixo em cruz responsável pela sustentação do mundo. Lido da esquerda para a
direita (forma comum na tradição ocidental) simboliza a trajetória daqueles que
aceitam trilhar o teko a'ã na busca pelo aguyje. Existe somente um meio de se
alcançar a deidade pelo teko a'ã: buscar entre os muitos caminhos (modos de ser e
de proceder) o tekó porã (belo caminho sagrado revelado pelas divindades).
- 37 -
Ao pedir a flor na qual se escondia a vespa, Nhamandú estabelece uma espécie de
teste/obstáculo no qual sua mãe se perde ao tornar-se ríspida com o filho devido a picada.
Nhandexý deixa, então, de ouvir as palavras de Nhamandú, que se cala. À sua frente, o
caminho se bifurca, e ela acaba por escolher, entre as duas possibilidades, aquela que a
levará em direção a morte. Esta é a descrição do surgimento do primeiro teko a'ã ainda na
terra primeva (yvy tenondé). Desde então todo aquele que busca se tornar uno com sua
partícula divina deve passar pelos obstáculos do longo caminho tortuoso em direção à
Nhanderú.
Apontado como central na cosmologia guarani, o termo teko a'ã me foi apresentado
através de inúmeras traduções: desafio ou prova 98, a sombra do modo de ser, a vida de
difícil compreensão/aceitação e ainda o caminho dos obstáculos. Cada humano possui seu
próprio teko a’ã, um trajeto por entre as imperfeições (-eko vaí), riscos e provações
distintas de todas as outras.
Não existe no teko a'ã uma rota específica a ser aprendida; chega-se ao fim na
medida em que aquele que trilha o caminho se esquiva da multiplicidade de obstáculos. Em
contrapartida, os obstáculos tornam-se mais difíceis e numerosos na medida em que o fim se
aproxima. Assim, o caminho é sempre construído por seu caminhante nas escolhas que faz,
nas posições que escolhe em referência a outras humanidades, mantendo vigilância
permanente para que o caminho não se bifurque.
Percorrer o teko a’ã nos preceitos do teko porã (sagrado/belo modo de ser) é um
98
Dooley (1998, p.32) registra -eko a'ã v. t. direto. Por à prova: jajoeko a'ã provamos, desafiamos uns aos outros. (De -
a'ã.).
99
Trecho do relato de um dos meus interlocutores Mbyá, registrado em caderno de campo (07/11/2005). O nome original
da pessoa citada foi substituído por um pseudônimo.
- 38 -
empreendimento na busca por um maior estado de compreensão e perfeição, o aguyje. Uns
poucos após uma vida de caminhar, poucos mesmo entre os karaí, que através de suas
jornadas espirituais por outros níveis do cosmos – na infra-humanidade100 (animal) ou na
meta-humanidade (divina)101 - conseguem seguir os passos deixados pelas divindades.
São muitos os caminhos curtos presentes no teko a'ã. Ao se enveredarem por estes
outros caminhos, as pessoas se distanciam igualmente das divindades. A metáfora do
caminho é ilustrativa, tratando-se de um povo que tem em sua tradição o caminhar como um
meio de se distanciar/resolver os problemas. A vida é caminhar, para superar a condição de
mortal é necessário se distanciar o máximo possível da yvý rupáre kóaxý na constante
busca pela Terra sem males (yvy marae’y)102.
100
Opto aqui por utilizar os conceitos meta-humanidade (metacultural), humanidade (cultural) e infra-humanidade
(infracultural) na divisão dominial do cosmos, buscando assim abarcar a idéia de muitas naturezas e uma única cultura,
de humanidades existentes lócus apartados, compartilhando formas de socialidade semelhantes. Desta forma, a
humanidade (Ava-Mbyá) encontra-se no entre-lócus em contraposição às outras humanidades. (Viveiros de Castro
1986 Apud, 2002).
101
Em sua cosmologia, os Mbyá-Guarani apontam para a existência de sete ou mais domínios (celestiais) sobrepostos.
Estes são reconhecidos como os domínios das divindades, dos anhã, dos senhores guardiões dos elementos da
existência, em uma tradução cultural, Paraísos. Cadogan (1959, p. 29).
102
A água parada é denominada água morta também entre os Mbyá. Esta água atrairia ou possuiria angué, da mesma
forma que os cemitérios. Dessa forma, é considerada viva e boa toda água que percorre um caminho, toda água
corrente. Em consonância com o que afirma Assis (2006, p.127).
- 39 -
necessária entre um aquém (a natureza, que é imediatez) e um além
(o sobrenatural que é ultrapassagem). Seu ser duplo situa desta
maneira os homens entre duas negações possíveis de sociedade103.
Hélène Clastres compreende que a natureza (que opto por tratar como infra-
humanidade) é por excelência o espaço/tempo do imediatismo, o além (ou meta-
humanidade) é o espaço/tempo da deidade que se caracteriza pela transcendência. Nesse
sentido, a humanidade (o que a autora chama de social) é compreendida como um
locus/processo em disputa entre o imediatismo e a transcendência.
103
H.Clastres (1987, p. 94).
104
Idem (1987 p. 96).
- 40 -
4 Tatu peküé105: Os artefatos de feitiçaria
Os Guarani nas aldeias do Rio Grande do Sul afirmam que o imbá’avy'kyva'é pode
ser reconhecido ainda nos dias de hoje, na Argentina e no Paraguai, assim como nos tempos
antigos, por portarem sua tatu peküé, uma bolsa confeccionada com carapaça de tatu
costurada e sustentada por tiras de couro106, na qual guardam seus mba'e'vaí (objetos de
maldade) ou mba'evyky .
105
Tradução: bolsa de carapaça de tatu.
106
O Mbyá autor do desenho acima, afirma ter visto uma destas bolsas de carapaça de tatu, objeto particular do feiticeiro,
em fotografias coloridas trazidas do Paraguai à terra indígena de Guarita, no início da década de 1990.
107
Schaden (1974 p. 124).
108
Cadogan (1959, p.90).
- 41 -
4.1 Nhe’ë vaí109
“Para o guarani a palavra é tudo. E tudo para ele é palavra 110”. Não é tarefa fácil
reconhecer a amplitude desta afirmação no âmbito destes grupos. Se o próprio segmento
divino contido em cada homem e mulher são palavras e ao mesmo tempo almas, não seria
absurdo afirmar que outras palavras também podem se tornar substancialmente algo
próximo a espíritos.
O mal-dizer entre os Guarani supera a esfera de uma simples ofensa comunicada. Tal
qual as divindades, as palavras proferidas pelos humanos também são gerativas. Todo mal-
dizer é por si só uma espécie de maldição, causando um impacto considerável no cotidiano
guarani. Não sendo do controle de nenhum especialista, o mal-dizer proferido por qualquer
um, mesmo sem a intencionalidade de uma agressão mágica ilícita, pode ser considerado
uma forma de ataque oculto.
Estas maldições são potencialmente menos perigosas que um outro mal-dizer, aquele
considerado inspirado e passível de ser transformado, animado, tornado vivo e guiado pela
vontade daquele que o profere/invoca.
109
Assis (2006, p.141) traduz ñe'ë vaí como alma telúrica. Já Montardo (2006, p.54) traduz ñe'ë vaí “falar mal” ou
“falar ruim” como um tipo específico de feitiço.
110
Melià (1991, p.306).
111
Montardo (2006, p.54). A autora em nota explicita ainda a utilização da expressão ñe'ë vaí “falar mal” ou “falar
ruim” que entre os Guarani caracteriza um tipo de feitiço, em virtude do qual a vítima dos comentários sofrem
conseqüências maléficas.
112
Chamado anguéry entre os Apopócuva. Nimuendaju (1987, p.43-45).
- 42 -
assombração), os anhã (demônio) e mba'e poxy 113 (objeto de fúria) – também possuem a
capacidade de inspirar palavras. Seus cantos/palavras maléficos são recebidos e entoados
pelos imbá’avy'kyva'é, potencializando um simples mal-dizer em feitiçaria que se torna
capaz de matar ou de limpar através daquilo que não se vê.
Tem Mbyá que é ruim. A maior parte é bom, mas quando tem ruim,
é pior que os juruá. Pensei nos imbá’avy'kyva'é que tu perguntou.
Eles são muito piores que os juruá que tem metralhadora porque a
arma deles ninguém vê. Pra usar metralhadora tem que tá perto, o
imbá’avy'kyva'é te acerta de outro lugar, te acerta bem ruim. Tem
vez que tu nem viu nem ouviu nada e já era, morreu114.
Os Kaiowá possuem uma “reza de fazer mal” que, segundo Schaden, denominam
ñeëgaraí e seria cantada sozinha por uma pessoa, em voz baixa, junto com o mbaraká.
Existe ainda, entre os Kaiowá, outra classe de cantos chamados ñembóévaí ou mbórahêi
ivaí, cantado sem mbaraká diante de um objeto particular da pessoa-alvo, que adoece e
morre. Os “civilizados” são considerados imunes a estes cantos. Contudo, p a r a a
preocupação dos indígenas, são capazes de utilizá-los. Na opinião dos interlocutores de
Schaden, as “rezas de fazer mal” não são consideradas como feitiços. As verdadeiras
113
Cadogan (1959, p.41 e 91).
114
Relato de um dos meus interlocutores mbyá registrado em caderno de campo (13/09/2006).
115
Nimuendaju (1987, p.63 e 95).
116
Interessante registrar a contradição com a famosa afirmação de Nimuendaju (1987, p.77) sobre o desconhecimento dos
Apapocúva com relação a cantos profanos.
117
Idem (1987, p.95).
- 43 -
feitiçarias recebem o nome de mohã vaí e são realizadas com restos de comida118.
No que se refere aos cantos malignos, os Mbyá com os quais realizei meu campo
afirmaram ser este um conhecimento muito particular dos feiticeiros. Além destes, apenas
os karaí teriam-nos ouvido pessoalmente durante suas jornadas pelos outros planos. E é
graças aos líderes espirituais que ouviram os terríveis mborai'vaí c antados diretamente
pelos próprios anhã que os moradores das tekoá sabem da existência desses cantos de fazer
mal.
4.2 Yvyrárakuá119
Algumas agulhas são muito pequenas, outras chegam ao tamanho de um dedo, tendo
seu tamanho uma relação direta com o mal que o feiticeiro pretende causar. Nessa
118
Schaden (1974, p.126).
119
Agulhas de madeira.
120
O mbyá responsável pela confecção das duas peças fez questão de explicitar o caráter de cópia (réplica), certamente
com o objetivo destituir as agulhas de sua potência para o mal e evidenciar seu não envolvimento com práticas de
feitiçaria.
- 44 -
graduação, as maiores são consideradas para matar o u d e morte certa. Terminada a
confecção, são guardadas para que sejam entregues no momento preciso aos espíritos dos
mortos. As madeiras escolhidas para sua confecção são sempre selecionadas entre aquelas
consideradas mais duras e difíceis de quebrar, implicando, também, numa gradação com
relação ao dano que podem inferir. Não consegui obter mais informações sobre os tipos de
madeira e suas implicações no porovaí: este seria um conhecimento que somente aqueles
que fazem o têm em profundidade.
Quando o feiticeiro assim deseja, entrega as agulhas aos angué (espíritos dos
mortos), que as carregam através do seu mundo, cravando-as no interior do corpo da vítima
que depois desse ataque, passa a ter dores, fica doente e vai morrer.121 O procedimento com
os outros artefatos de inferir mal – vermes, lagartas, ervas nocivas e venenos – é semelhante
ao realizado com as yvyrárakuá 122.
Apesar dos feitiços serem considerados invisíveis e silenciosos, existem sinais que
podem ser notados no corpo-alvo permitindo às vítimas saberem que estão sendo alvos de
feitiçaria. Algumas vezes o ataque vem acompanhado por uma breve e intensa lufada de
vento123. Em outros casos, partes do corpo atingidas esquentam muito 124 por um período
curto, voltando em seguida à sua temperatura normal. Meus interlocutores afirmam, ainda,
que a pele sobre as partes atingidas pode ficar avermelhada, com pústulas e feridas.
121
Palavras aqui destacadas fazem parte da descrição de um de meus interlocutores à ação do feiticeiro.
122
Inversamente ao registrado por Pissolato (2006, p.197) que afirma que os angué não introduzem “peças” de doenças,
nem se ouve dizer que desejariam levar consigo parentes vivos. A propósito, o tema do rapto de almas apresenta-se de
modo fraco na nosologia mbya.
123
Em concordância com a descrição de Pissolato (2006, p. 169) na qual a pessoa sente uma corrente de ar quente ao
cruzar casualmente com o omanogue, e Pissolato (2006, p.196 e 170) onde -mbovytu/ “fazer ventar” ou “mandar no
vento” podem ser também formas de denominar a ação do feiticeiro.
124
Montardo (2002, p.169, 229 e 232). Meu principal interlocutor quando perguntado se o calor tem a ver com a ação do
pajé'vaí, responde com outra pergunta, que trás em si uma esclarecedora dicotomia: Calor como do corpo ou igual do
sol?
- 45 -
uma [agulha] desse tamanho (do tamanho de uns cinco centímetros,
fez com as mãos). Era para matar, mas errou o coração125.
Além das yvyrárakuá (agulhas de madeira), outros artefatos são também utilizados
na elaboração de feitiços, como os moã (ervas nocivas), os mberu ra'y 126 (vermes/larvas de
moscas) em carnes podres, as mbii (taturanas e lagartas) e akykyï yvyrárupá (besouros de
cemitério). Além dos itens listados, Cadogan registra como matéria-prima para elaboração
destes “feitiços ilícitos: os ossos do dedo de um morto; os ossos e as presas de serpentes” , e
(quando bebido) o sangue dos jaguares (onças). Segundo o autor, os que são vítimas de
feitiços envolvendo estes objetos citados estão condenados à morte, não existindo
medicamento ou canto/dança que lhes possa salvar a vida127.
125
Trecho do diálogo com um dos meus informantes Mbyá registrado em caderno de campo (30/09/2006). O nome da
pessoa citada foi substituído por um pseudônimo.
126
Cadogan (1959, p. 90).
127
Idem (1959, p. 141).
128
Cadogan (1959, p. 90) Bartolomé (1991, p.135).
129
Montardo (2006, p.54) registra a reação do filho de sua informante ao contar sobre o sonho-aviso de feitiçaria, no qual
a mãe estava coberta por lagartinhas (no original, lagartinhos que “tecem teias”. Suponho que seja uma tradução êmica
equivalente a lagartas).
- 46 -
Os feiticeiros e seus objetos/insígnias de maldade são também responsabilizadas pelo
surgimento de uma série de deformações, crescimento de verrugas e o apodrecimento dos
dentes. Sobre estes feitiços 'deformantes' não obtive informações a não ser o fato de sua
existência.
4.3 Ka'avó
São denominados ka'avó131, ijaje 132 ou mbajé 133 uma classe de objetos-feitiços tidos
como lícitos, também denominados pela bibliografia amuletos/filtros134, os quais podem ser
confeccionados e empregados por qualquer um. Também chamados no passado de pajé,
geralmente tem como finalidade a obtenção de sorte, seja na coleta de mel, na caça e na
pesca, ou ainda na atração de parceiros amorosos.
Macerando a rainha das abelhas jate'i, untarás teus olhos com ela,
para que tenha sorte na busca do mel (...) Para ter sorte na caça (de
veados) extrairás os olhos do primeiro veado que caçares. Feito isto
tingirás os globos dos olhos com carvão para que eles não possam
ver àqueles que a de o matar (...) Do osso principal da asa do
Taguatohü se faz uma flauta; esta é tocada para que as víboras não
130
Yvyra'í (bastões insígnia masculino), petynguá (cachimbo sagrado), takuapu (taquara insignia feminina), apyká
(banco ritual), mbaraká (violão ritual), mbaraká mirim (chocalho sagrado ritual) e ravé (rabeca ritual) entre outros.
131
Cadogan (1959, p. 105 e 141).
132
Pissolato. (2006, p. 170).
133
Nimuendaju (1987, p. 74). Traduzido como feitiço do amor.
134
Cadogan (1959, p. 140).
- 47 -
ataquem135.
Argumentava ao contrário afirmando existir feitiço contra tudo;
assim contra os 'passarinhos‘ o bodoque; contra o macaco, o quati e
outros animais a flecha; contra o tatu o mundéu136.
Atualmente, os ka'avó mais comuns são para atrair o amor. Geralmente realizados
com um conjunto específico de ervas, esses feitiços podem incorrer em conseqüências
consideradas graves sempre que seu objetivo vá de encontro ao modo correto de ser (teko)
de seu realizador ou da pessoa sobre a qual ele é realizado.
135
Cadogan (1959, p. 140).
136
Schaden (1974, p.125).
137
Idem (1959, p. 139 e 140).
138
Trecho de relato de um de meus interlocutores Mbyá registrado em caderno de campo (13/09/06). Não consegui
descobrir exatamente qual era a planta em questão, apesar de ter sido informado por este mesmo Mbyá que esta é uma
planta bem comum em sua aldeia.
- 48 -
5. Opá marangá 139
Existem pelo menos quatro planos superiores conhecidos pelos homens, segundo a
visão cosmológica Guarani. O mais alto destes planos é considerado a morada de Nhanderú
Papá Tenondé, a divindade primeva e original e todas as criaturas primeiras das quais os
animais são apenas um reflexo vivo e imperfeito. No plano inferior a este, localizam-se as
moradas dos nhe’ë de todos aqueles que estão vivos (esta alma primordial e perfeita não se
encontra no corpo, visitando-o apenas em momentos rituais). Abaixo deste, encontra-se o
plano dos anhã (demônios), que podem tentar impedir a comunicação entre os vivos e suas
almas-palavras. Sob este plano, está o plano da yvy koaxy (terra imperfeita), lugar dos avá
(homens) e dos yvaguy reguá kuery (aqueles que habitam sob o mundo dos anhã) – os
senhores-guardiões (-já), os sedutores invisíveis (mbaí), as assombrações (angué), entre
tantos outros – compondo um quadro amplo e complexo das entidades com os quais os
humanos se relacionam. Existe ainda pelo menos um mundo subterrâneo de onde, em certas
ocasiões, os angué realizam seus cantos de maldade. São denominados opá marangá (seres
nefastos) um amplo conjunto entidades que habita os três últimos planos.
139
As coisas nefastas. Cadogan (1959, p. 105).
140
Nimuendaju (1987, p.37-40). Schaden (1974, p.132 e 133).
141
Cadogan (1959, p.104).
142
Idem, Assis (2006, p. 126) e Pissolato (2006, p.198).
143
Pissolato (2006, p.195).
144
Idem.
- 49 -
entre as casas das tekoá e pelos caminhos e cemitérios, perturbando o sono dos vivos e
trabalhando para trazê-los para junto de si.
Existe uma intencionalidade clara nas ações dos angué: todos a reconhecem. É de
senso comum a forma como estas “assombrações” exercem seu poder e influência: é
visando a transformar os agã dos vivos também em angué ou se apossarem de seus corpos
que os “fantasmas” caçam as pessoas.
O angue tem inveja do corpo dos vivos e fará de tudo para voltar a
ter um corpo (...) A alma não quer ficar sozinha e deseja levar a
outra pessoa com ela (...) pensar e sonhar com o morto significa
estar em contato com ele, ou seja, com seu angue147.
Estabelece-se entre os que fazem feitiços e os espíritos dos mortos uma relação de
permuta (associação), onde cada uma das partes possui interesses próprios no acordo: O
feiticeiro, aquele que se deixou bifurcar 150 t e m c o m o f o n t e d e p o d e r o angué;
instrumentaliza a assombração ao mesmo tempo em que se torna instrumento desta, afia
145
Ibidem (2006, p.202).
146
Explicação de um dos meus interlocutores Mbyá para as motivações dos angué. Registrado em caderno de campo
(05/05/2006).
147
Assis (2006, p.126-127).
148
Cadogan (1959, p.91).
149
Explicação de um jovem Mbyá sobre a ação do mbaí. Registrado em caderno de campo (09/10/2006).
150
Que se distanciou do mborayu. Em várias ocasiões em campo ouvi a afirmativa de que os deuses seriam só mborayu.
- 50 -
suas flechas, além de engendrar cantos e palavras malignas ao terý (nome verdadeiro) de
suas vítimas, oferecendo ao fantasma o local e a direção dos corpos dos vivos a serem
caçados.
Aqueles que se associam ao angué vão perdendo contato com suas almas-palavras
até se tornarem também angué. O xamã dúbio tem os bens considerados extensões de sua
própria pessoa, devendo ser queimados após a morte. A assombração atinge seus objetivos
seja através da morte das vítimas, seja após a morte do feiticeiro ao qual inspirou e se
associou. Inverte-se aqui o processo ideal pelo qual passa o karaí que segue os passos das
(sendo inspirado pelas) divindades aniquilando sua alma telúrica, tornando-se uno com sua
alma-palavra.
Diferentemente dos angué, nos relatos, o s mba'e poxy (substância de fúria, ser
furioso), outra classe de entidades inspiradoras de poder dos feiticeiros, não carregam
objetos de feitiçaria (mba'e vai) para serem introduzidos no corpo das vítimas. O mba'e
poxy busca dominar o corpo do enfeitiçado, levá-lo ao p o x y (furor, fúria), mais
extensamente ao jepotá (descontrole, animosidade) e, em última instância, é capaz de
converter o corpo e/ou a alma telúrica da vítima em uma forma animal (vixó ojepotá),
perdendo assim a humanidade na medida em que sua alma-palavra retorna ao yambá
(santuário, local da divindade original) de origem.
151
Assis (2006, p.141).
- 51 -
que ferem furtivamente ao próximo”152.
Também os seres furiosos não são auxiliares passíveis na relação com o feiticeiro,
eles estão presentes já quando há a intencionalidade de fazer mal ao outro. Quando há
sentimentos de ódio, são estes que inspiram as intenções do feiticeiro como do assassino. Ao
inspirarem os cantos/palavras de ódio e se associarem por tempo prolongado 153 àqueles que
odeiam (que desejam o mal a seus semelhantes), são dominados pelo poder de agência dos
mba'e poxy, levando-os até mesmo à demência, afastando-os da capacidade de diálogo, e de
qualquer controle – enfurecendo-se com qualquer coisa – podendo ter seu corpo e sua alma-
telúrica transformada em um animal perigoso.
Contraditoriamente, os anhã também foram vinculados ora aos mba'e poxy, ora aos
angué. Em outro contexto, considerados entidades distintas de ambos, e, também em outra
ocasião, como uma categoria que abrange ambas as classes de entidades. Os anhã ainda
foram tratados como um grupo de diabinhos satirizados - vítimas das brincadeiras de
Nhamandú e Jaxy em sua caminhada pelo mundo no mito de criação Mbyá-Guarani –
distanciados da seriedade que em outras ocasiões os envolvia.
152
Cadogan (1959, p. 91).
153
Ou possivelmente em muitos trabalhos mágicos nocivos.
154
Assis (2006, p.130) registra mbochyjá, traduzindo como o “dono”, “mestre da cólera”.
- 52 -
5.2 Yvyranhe’ë vaíkué155
Os antigos não deixavam as crianças subir nas árvores, isso não era
brincadeira para eles. Eles sabiam que tinha que ter mbojeroviá
(respeito de maneira profunda, nosso acreditar, confiar por meio do
respeito) por elas. É perigoso subir, tem árvore brava que vai em
cima156.
155
Árvores de alma-palavra maligna / indócil.
156
Trecho da fala de um Mbyá, registrada em caderno de campo (09/10/2006).
157
Cadogan (1959, p.90).
- 53 -
Quando uma árvore de ‘alma-palavra indócil’ fere alguém, os que
possuem a boa ciência conjuram o malefício, extraem o mal. Entre
todas as árvores, a que possui alma mais feroz é o Ipê158. Mesmo
cortado em pedaços o Ipê, sua alma não desaparece; Por esta razão,
não usamos esta árvore para colunas de nossas moradas...159.
158
Original 'Lapacho', provavelmente se refere ao ipê rosado (Taebuia avellanedae), dentre as espécies de ipê esta é a
mais comumente encontrada nos vales dos rios da região oriental do Paraguai.
159
Cadogan (1959, p.90).
160
Nome Científico: Maytenus ilicifolia / Nome popular: Espinheira Santa.
161
Tal qual apontado por Cadogan (1959, p.110).
162
Dooley (1998, p. 50) registra sua tradução como Criar (algo ou alguém) de nada, ou transformar em outra coisa.
163
Esta expressão encontra-se registrada como fazer viver e m Dooley (1998, p.74). No entanto, a partir do que foi
- 54 -
responsáveis, entre outras coisas, por colocar o veneno das formigas nas presas das
serpentes, as quais são parte da classe de objetos (mba'e vaí) empregados pelo feiticeiro em
suas ações.
Para os Guarani, o plano terrestre não é somente a morada dos homens e espaço das
plantas e dos animais: é também o lugar muitas outras entidades, como os -já (senhores,
guardiões, donos). Geralmente, cada espécie animal, elemento e ambiente possui seu próprio
-já. Estes donos ou senhores possuem grandes poderes sobre seus kuery (grupo ao qual
cada um está relacionado) ou dentro do seu domínio (lugar ou relevo).
explicado por meus interlocutores, “criar a partir de seu centro”. Não consegui estabelecer distinções entre as duas
expressões, no entanto os Mbyá com os quais conversei afirmaram que os anhã não podem se relacionar ao mbojerá,
só moíngó.
164
Os objetos de feitiço e os “Donos” (senhores das coisas).
165
Cadogan (1959, p. 208).
- 55 -
animal (ou de determinado lugar), sempre que pretenderem caçar um dos seus (ou transitar
por aquele). Há cantos específicos que devem ser oferecidos a cada -já, em sua homenagem,
como intercâmbio pela caça ou ao passar por um determinado domínio. Caso contrário,
podem sofrer diversas formas de ataques xamânicos. Alguns donos são responsáveis por
doenças; outros têm capacidade de colocar furtivamente pedras; e outros, ainda, podem
colocar objetos nos corpos dos humanos da mesma forma que um feiticeiro faz com seus
mba'e vaí166.
Os “donos” relacionados ao solo – O Itajá (dono das pedras), o Yakãnjá (dono das
margens dos rios 167) , Yvyjá ( d o n o d a t e r r a ) , o Yvyãnjá ( dono dos montes) e o
Ynhakanguajá (dono dos barreiros) – são considerados aparentados entre si e seus
domínios representam uma ameaça àqueles com nomes-espíritos dos Tupãkuery (próprios
de Tupã, relativos ao yambá desta divindade), devendo estes sempre se manterem a uma
distância segura de tais espaços.
166
As pedras são os objetos de ataque mágico exclusivos dos -já. Logo, estes objetos estão vetados para o uso dos
feiticeiros.
167
Foi me informado ainda que esta entidade é capaz de causar febres muito fortes através do seu mal olhado.
168
Assis (2006, p.125).
169
Trecho do relato de um dos meus interlocutores mbyá. Registrado em caderno de campo (09/10/2006)
- 56 -
pedrinhas, no corpo, para me fazerem sofrer170.
Neste contexto, estabelece-se uma situação semelhante à caça, onde o caçador deve
detectar a presa mais vulnerável ao ataque aumentando suas possibilidades de sucesso. Os
papéis se invertem e os humanos mais debilitados se tornam presas em potenciais dos -já, a
serem apanhados com armas pelos caçadores, senhores dos animais e dos elementos.
Os ataques xamânicos dos –Já, apesar de representarem uma ameaça, não são
considerados tão perigosos quanto os realizados pelos feiticeiros. O tratamento ritual deve
acontecer na opy, onde a kunhã karaí (ou o karaí) busca limpar o corpo retirando os
objetos infiltrados responsáveis pela doença. Quando o diagnóstico do karaí aponta para
ataques por ambos (feiticeiro e dono), o mal é potencializado e a morte é considerada
iminente, a despeito do tratamento empregado nas tentativas de cura.
170
Idem.
- 57 -
6. Mba'é vaí ombojaity 171
“O Guarani não ‘se chama’ fulano de tal, mas ele ‘é’ este nome. O fato de malbaratar
o nome pode prejudicar gravemente seu portador172”. Se um feiticeiro deseja inferir mal a
uma pessoa, basta que este conheça seu terý (verdadeiro nome). Revelado pelas divindades
através do ritual de batismo, “buscado” e anunciado pelo karaí, o verdadeiro nome, o seu
nhe’ë (nome-alma-palavra), é aquele conhecido somente pelos mais confiáveis.
É possível fazer feitiços sobre objetos e fotos daquele que se deseja enfeitiçar. No
entanto, de posse de um nome, a ação torna-se potencialmente mais perigosa. Engendrando
cantos malignos e palavras ruins ao terý da vítima, o feiticeiro, aliado dos angué, busca
atingir seus objetivos. O alvo é sempre o corpo, porém, o feiticeiro deve “mirar” na nhe’ë
(nome alma-palavra) para atingi-lo.
Diante do feitiço realizado sobre o nome, a distância entre o causador do mal e sua
vítima em nada influi. “Se ele [o feiticeiro] conhece seu verdadeiro nome não importa se
você está aqui ou em outro país, o mal te alcança de qualquer jeito173”.
É justamente devido a estes perigosos feitiços sobre os nomes que os Mbyá nunca
revelam seus terý a quem não confiam: seja pelo perigo destes serem comunicados (por
descuido) a um feiticeiro ou por receio de que os desconhecidos sejam eles próprios
feiticeiros. Como forma de protegerem seus verdadeiros nomes, os Guarani recorrem aos
apelidos e aos nomes ocidentais que utilizam preferencialmente em seu cotidiano. Entre os
171
Acabando com o mal ou ainda limpando as coisas ruins.
172
Nimuendaju (1987, p. 31).
173
Excerto da fala de um jovem mbyá registrada em caderno de campo (08/05/2005).
- 58 -
Apapócuva era comum que os pais e mães guardassem segredo sobre os verdadeiros nomes
dos filhos com intenção de protegê-los, de forma que alguns desconheciam o próprio nome
quando seus pais morriam sem contá-los a ninguém174.
Em Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, Evans Pritchard busca trazer à luz
da razão (britânica) as lógicas e o contexto nos quais estão pautadas as acusações de
bruxaria entre os Azande. O sistema de acusações reflete em si a própria estrutura de poder
na medida em que estabelece determinadas possibilidades de acusação em detrimento de
outras em uma complexa rede de interação social.
Apesar da ameaça que pode vir a representar, geralmente o feiticeiro mbyá não é
marginal aos grupos locais ou às redes de parentesco. Em tempos considerados pacíficos –
nos quais a possibilidade de ataques xamânicos é tida como inexistente – o feiticeiro pode
viver na tekoá com seus parentes sem ser perturbado. Este é principalmente alguém a ser
respeitado, alguém de quem não se deve falar (acusar) sem motivos.
Nos momentos de tensão, quando as denúncias de feitiçaria vêm à tona pelas vozes
das possíveis vítimas e/ou de seus parentes, a presença do feiticeiro torna-se motivo de
disjunção. Sendo geralmente revelada no âmbito dos parentes e dos amigos próximos, a
acusação deve obedecer determinados critérios para que não seja considerada ela própria
174
Nimuendaju (1987, p. 31).
175
Trad. Acusação.
- 59 -
uma forma incorreta de proceder.
As acusações levadas a cabo em uma -aty (reunião dos habitantes de uma tekoá) só
acontecem quando aquele que acusa possui ampla certeza da culpabilidade do feiticeiro,
geralmente como forma de exigir alguma forma de reparação ou vingança perante o grupo.
Ao tornar o assunto da feitiçaria concernente à coletividade, o acusador espera igualmente
que os membros da coletividade, d iante das faltas cometidas, assumam também a
necessidade de se fazer justiça. Cabe tanto ao grupo quanto ao karaí avaliar a existência e
real gravidade da situação, assumindo ou não como verídica a versão do acusador.
176
Pissolato (2006, p.172).
- 60 -
artesanatos, as acusações proliferam na mesma medida em que as inimizades. “Não existe
mais mborayu como no tempo dos antigos, os antigos viviam no mborayu, nós não
podemos mais177” . É nesse clima de desconfiança sobre permanente tensão, competitividade
e acusação que os grupos locais existem. A solução geralmente adotada é o caminhar em
busca de outros lugares, terras indígenas ou acampamentos.
177
Excerto de fala de um de meus interlocutores mbyá. Registrado em caderno de campo (20/08/2005).
178
Ver nota 91.
179
Relato de um jovem mbyá-guarani registrado em caderno de campo (24/10/2006).
- 61 -
proveniente do cachimbo – manifestação terrena da divindade Jakaírarueté – o karaí se
prepara.
O pajé [xamã] trata a doença como se ela fosse mágica, com a qual
é mais ou menos idêntica; isto é, como sendo uma matéria invisível,
embora perfeitamente corpórea que o pajé [xamã] visualiza e retira
através do canto quando está em transe180.
Ela [a kunhã karaí] puxa com a boca tirando. Por exemplo, tá sujo
aqui (apontando para o meu ombro) e eles [os karaí] colocam a mão
e sabem onde está, aí limpa o corpo puxando com a boca [pedra,
folha ou agulha]. Só bicheira que não183.
180
Nimuendaju (1987, p. 92).
181
Existe pelo menos mais uma técnica denominada ‘assopro’ que seria própria dos grandes karaí. Estes seriam capazes de
expulsar o mal ‘assoprando-o’ para longe do corpo da vítima. Os karaí que fazem uso desta técnica seriam mais
poderosos não necessitando de auxiliares que realizem sua própria limpeza. Caderno de campo (24/10/2006).
182
Em Nimuendaju (1987, p. 92) a prática de sugar não observada é atribuída aos antigos xamãs, ou seja, não mais é
utilizada entre os Apapócuva.
183
Trecho de um diálogo com um jovem mbyá registrado caderno de campo (30/09/2006).
184
Cadogan (1959, p. 102).
- 62 -
retira/derruba/transubstancia o mal185.
Como é bicheira?
Bicheira é com o assopro. Uma vez eu vi meu avô Marcelino
limpando um corpo.
Como é que foi?
Foi uma mulher. Daí ele pegava o popyguá, colocava no alto da
cabeça, depois pegava a mão e balançava no alto da cabeça [da
mulher], começava a assoprar o corpo, então as bicheiras
começavam a cair do corpo.
Era muito?
Bah, era bastante. Daí os yvyrá'íjá juntaram numa vasilha de
porongo.
Por que a pessoa estava daquele jeito?
Porque ela foi enfeitiçada. Porque o ipajé va'e fez isso186.
Não basta que os objetos sejam retirados para que a saúde da vítima se restabeleça; o
mal substancializado deve ser eliminado em rituais específicos.
(...) os vermes (ou outros insetos) que extrai o médico são colocados
em um canudo de takuapi – Merostachys clausenii, onde foram
colocadas previamente ramas de yvyrapepë – Holocalyx balansae, e
espinhos de j u m o r ï – Pareschia auleata. Em cima dos vermes
novamente são colocados espinhos e ramas; se tapa hermeticamente
o canudo com cera que é colocado na posição vertical junto ao
185
Montardo (2002, p. 208 e 209).
186
Trecho do relato de um dos meus interlocutores Mbyá, registrado em caderno de campo (30/09/2006). O nome original
da pessoa citada foi substituído por um pseudônimo.
187
Excerto do mesmo diálogo referente a nota acima registrado em caderno de campo (30/09/2006).
188
Trecho do diálogo com jovem mbyá registrado caderno de campo (30/09/2006). O início do diálogo correspondente às
três últimas citações apresentadas aqui se encontra na página 45 deste mesmo texto.
- 63 -
fogo189.
Aquele que realiza feitiçaria não dura muito191. Seu caminho não é curto somente
pela escolha de atalhos: o é pela simples aceitação de princípios não originados nas
divindades. Tem-se a idéia de que o feiticeiro é jovem, não chega a envelhecer e acaba
morrendo antes. As lideranças espirituais que por ventura se voltam aos trabalhos
prejudiciais, distanciando-se do belo caminho (tekó porá) em direção a divindade, acabam
sendo inevitavelmente mortas por outros karaí ou feiticeiros, quando suas próprias práticas
189
Cadogan (1959, p.102).
190
Segundo um de meus interlocutores mbyá, Nhanderú Papá marca o destino de tudo que existe.
191
Pissolato (2006, p 171) registra em nota “Quem faz isto não dura muito, morrendo cedo, pois o próprio Nhanderu iria
em cima dele'” como afirmou Miguel, um de seus interlocutores.
- 64 -
não as levam a morte. Depois de mortas, é muito provável que seus agã tomem a forma
ameaçadora dos angué, assombrando os moradores de suas tekoá, seus entes queridos e
principalmente seus parentes próximos.
Também a vingança física, levada a cabo pelos homens, é entendida como solução
preferencial por alguns grupos Guarani e levada a cabo pela família das vítimas, quando não
por toda coletividade. No início do século XX, Kurt Nimuendaju registrou uma série de
assassinatos orquestrados contra possíveis feiticeiros entre os Apapócuva.
192
Cicarone (2001, p.210).
193
Nimuendaju (1987, p. 93 à 94).
194
Montardo (2002, p. 54).
- 65 -
na reza ou poraéi, “cantos”), implicando sempre na morte do
feiticeiro, queimado geralmente pelos próprios parentes de sua
vítima (...)“195.
Apesar de ser uma possibilidade nos casos em que os enfeitiçados acabam morrendo,
o assassinato do feiticeiro não parece se constituir em uma prática usual entre os atuais
Mbyá no sul do Brasil. Nos contextos em que a vítima de feitiçaria não é morta, o
assassinato do feiticeiro não é encarado como uma punição viável já que, aquele que mata o
feiticeiro está causando grande mal para si mesmo, contrapondo-se aos preceitos do teko
porã. Assim, o tratamento geralmente empregado para aqueles que realizam feitiços não-
letais não é a morte, e sim o derramamento abundante de sangue196, seguido de expulsão da
tekoá. “Quando existem feiticeiros, devemos escarmentá-los exemplarmente; devemos lhes
inferir numerosas feridas nos pulsos197”.
Por outro lado, a vingança mágica levada a cabo pelos karaí é tida como justa, e
inclusive necessária nos casos em que a ação do feiticeiro é considerada fatal. Para Cadogan
a própria destruição dos mba'é vaí, implica na destruição do feiticeiro, ou na indicação de
sua localização.
A descoberta daquele que faz o feitiço e sua punição mágica é necessária inclusive
para que o processo de cura surta efeito. Na ótica sócio-cosmológica mbyá o contra-ataque
xamânico é não só um procedimento de cura como também um meio pelo qual a divindade
195
Pissolato (2006, 167).
196
O derramento do sangue é de grande importância nestas ocasiões. É provável que sua prática esteja vinculada à
antinomia carne/sangue/alma telúrica e ossos/alma-palavras descritas por H.Clastres (1987, p.94 e 117). Também em P.
Clastres (1990, p. 141).
197
Cadogan (1959, p. 91), e Pissolato (2006, p. 237).
198
Cadogan (1959, p. 91).
- 66 -
faz valer sua própria justiça.
Quando ele faz isso ele tá cometendo um erro para o próprio corpo
dele. Próprio ele corre risco, né? Se algum karaí... que tem karaí que
não tem muita paciencia com isso, né? Daí eles retornam. Se o
feitiço acertar a pessoa que fez, não dura, morre, já era. Então
próprio eles correm risco de vida também199.
199
Trecho de relato de um jovem mbyá registrado em caderno de campo (08/05/2005).
- 67 -
Considerações finais
Entre os Guarani200 não existe um xamã homogêneo e ambíguo, mas sim pelo menos
duas f o r m a s d e x a m a n i s m o d i s t i n t a s – l í d e r r e l i g i o s o ( karaí) e f e i t i c e i r o
(imbá’avy'kyva'é)201 – partilhando das mesmas referências simbólicas202, porém com
diferentes inspirações. Estes papéis, no entanto, não são estanques: podem se converter um
no outro conforme as disposições sociais e a conjuntura vivenciada.
200
Principalmente entre os Mbyá-Guarani, entre aqueles junto aos quais realizei meu campo.
201
Dessa forma o xamã passa a ser encarado não só necessariamente um mediador que age em benefício de seu grupo.
Assumindo o caráter de feiticeiro, pode se revelar um potencial gerador perigos, um meio pelo qual os ‘malefícios’
alcançam e atingem os humanos.
202
A palavra inspirada, as possibilidades do caminhar; as divindades e a divinização; a ameaça da fúria e da animosidade;
as doenças e as formas de cura; a coesão da reciprocidade e os contextos que levam a disjunção.
203
Esta mesma idéia encontra-se presente também em Pissolato (2006, p.27).
204
Langdon (1996, p. 27).
- 68 -
Os objetos de feitiço (mba'evyky) - agulhas de madeira ( yvyrárakuá), ervas
nocivas (moã), larvas de moscas (mberu ra'y), taturanas e lagartas (mbii) e besouros de
cemitério (akykyï yvyrárupá) – constituem a parcela material empregada no feitiço e são
coletados ou confeccionados pelos feiticeiros com o intuito de causar furtivamente o mal a
outrem. Estes entregam-nos aos angué que os carregam em sua forma invisível, cravando-os
no interior do corpo da vítima. Apesar desta ação ser considerada invisível e silenciosa, as
vítimas podem vir a saber do ataque através de uma série de sinais tais como: uma breve e
intensa lufada de corrente de ar num dia de vento parado; partes do corpo que esquentam
anormalmente para depois esfriar; a pele sobre as partes atingidas tornando-se avermelhada,
com pústulas ou feridas.
A partir dos nomes verdadeiros (tery), das almas-palavras (nhe’ë) de suas vítimas205,
o feiticeiro busca atingir o corpo e a alma telúrica (ãng) de suas vítimas, relacionando-se
com diferentes entidades para tal empreendimento. Algumas podem ser consideradas como
origem e inspiração dos cantos e palavras malignas, outras estão relacionadas a gênese das
más intenções, do ódio, da inveja e da fúria pregressa ao feitiço, constituindo-se como seu
motivo. Há ainda aquelas por meio das quais os objetos de maldade são inseridos no corpo
das vítimas.
205
Parte constituinte da pessoa a qual o feiticeiro não pode fazer qualquer mal.
- 69 -
O rituais de cura coordenados pelos karaí têm como objetivo localizar o mal,
(re)materializá-lo em sua forma original (de um objeto de feitiço – mba'evyky), retirando-o
por fim, do corpo com o auxilio de cantos e palavras sagradas, quando emprega a fumaça do
cachimbo ritual nas partes afetadas. As principais técnicas de extração do mal são a sucção e
o mbojaity (agito ou sacode). Ao retirar os objetos de maldade, o karaí pode mandá-los de
volta contra o autor da feitiçaria ou lançá-los em uma fogueira, ‘queimando’ também o
feiticeiro neste processo. O contra-ataque xamânico é considerado parte da terapia.
Para os Guarani, aquele que realiza feitiçaria geralmente não dura muito, já que o
mal lançado contra outra pessoa retorna invariavelmente para sua origem. Ainda a vingança
contra o feiticeiro é considerada legítima e necessária, seja através do contra-ataque
xamânico, seja por meio da violência física.
Grande parte dos elementos tratados nesta monografia está longe de se esgotar em
termos de pesquisa. A pouca quantidade de trabalhos focados no tema da feitiçaria 206,
refletem não só limitações de campo é também conseqüência da ênfase no registro da boa
palavra, decorrente do impacto das etnografias clássicas sobre os Guarani do século XX.
206
Um dos poucos trabalhos que versam exatamente sobre este assunto é a dissertação de Vera Lúcia Oliveira: Mba’evyky:
o que a gente faz: Cotidiano e Cosmologia Guarani Mbyá. (Mestrado. PPGSA/UFRJ) que infelizmente não consegui
encontrar.
207
Existem indicações de que também o racismo é compreendido nos termos da feitiçaria, nas formas assumidas pelo mal-
dizer, já que todas as formas de falar e de agir induzidas por ódio são consideradas pelos Guarani nhe’ë vaí.
- 70 -
Glossário
A
agã – (também escrito ãng) alma-telúrica, denominação de uma das almas que compõem a pessoa guarani.
aguyje – perfeição, divinização.
akã te'ÿ – avareza, egoísmo.
akykyï yvyrárupá – besouro de cemitério/de caixão.
angué – (também denominados anguéry e mboguá) denominação mbyá dada a assombração, ou fantasma
resultado da alma telúrica.
anhã – (também escrito anay) espírito maligno, demônio, grupo inimigo mítico.
arandu – sabedoria.
ayvu – (também escrito ayú) palavra-alma, ver nhe’ë.
-aty - reunião/assembléia.
-axy – adj. Imperfeição, doença, mortalidade.
C
chiriguano- sub-etnia guarani, tal qual a denominação que recebe seu dialeto.
E
-eko a'ã – por a prova, desafiar. caminho/vida de testes.
G
-guaxu – (também escrito guaçu) Grande. Também denominação do veado.
I
ikandire – imortalidade. tornar-se divindade.
ika'avó va'é – lit. aqueles que fazem ka'avó.
imbá'avy'ky va'é – lit. os que brincam com a vida. Uma das denominações mbyá para feiticeiro.
Imba'é poxyjá – senhor da fúria. entidade.
indajé – águia.
ipajé va'e – lit. aqueles que dominam/sabem fazer pajé.
ipõa ka'aguy va'é – lit. os que curam através do remédio da mata.
itajá – lit. dono/senhor da pedra. Entidade responsável pelas rochas e pedras.
J
-já - senhores, guardiões, donos.
jakaíra – deus da neblina vivificante. Denominação mbyá de uma de suas divindades.
jaxy – deus-lua. Denominação mbyá de uma de suas divindades.
jepotá – animosidade, estado de fúria próxima da demência.
joapóvaí – lit. trabalho xamânico prejudicial sobre o corpo. Uma das denominações mbyá para feitiço.
joapóvaí va'é – lit. Os que realizam trabalhos xamânicos sobre o corpo. Uma das denominações mbyá para
feiticeiro.
juruá – lit. boca grande, boca caída. Uma das denominações mbyá e nhandeva para os não-indígenas.
K
ka'avó – (também denominados ijajé e mbajé) classe de objetos-feitiços lícitos também denominados
amuletos/filtros.
kaiová – (também escrito kaiowá) sub-etnia guarani, tal qual a denominação que recebe seu dialeto.
karaí – denominação nhandeva e mbyá para liderança religiosa responsável pela proteção do grupo. igualmente
denominação kaiowá para os não indígenas.
-kuery – grupo ao qual determinado sujeito está relacionado.
kunhã – (também grafado kunã) mulher.
- 71 -
M
marae'y – sem mal, livre de todas as coisas ruins.
mba'ekuaá – lit. os que sabem as coisas, os sabidos, os conhecedores. Denominação mbyá aos que sabem
realizar feitiços
mba'evyky – lit. objetos que brincam (ameaçam) a vida. Objetos de feitiçaria.
mbai – entidade invisível que persegue e seduz os humanos na mata.
mbaraká – violão. Instrumento ritual.
mbaraká mirï – chocalho. Instrumento ritual.
mberu ra'y – larva de mosca. Um dos animais empregados pelo feiticeiro.
mbii – lagarta. Animal empregado pelo feiticeiro.
mbii tata'y - taturana. Animal empregado pelo feiticeiro.
mbojerá – criar a partir do nada, ou ainda criar a partir de si, de sua própria sabedoria tal qual as divindades.
-mbojeroviá – confiança profunda que vem do interior.
mborai'vaí – (escrito também mboraiaí) lit. cantos maléficos ou cantos de fazer mal. Denominação dos
cantos-feitiços própria dos Apapócuva e dos Mbyá.
mborayu - reciprocidade, amor recíproco, justiça, compartilhamento pleno e solidariedade tribal profunda.
-mbovytu – fazer ventar/ lançar um feitiço.
mby'aguaxu – fortaleza espiritual, coração grande.
mbyá – sub-etnias guarani, tal qual a denominação que recebe seu dialeto. (também escrito mbüá)
-mirï – pequeno e sagrado.
moã – ervas venenosas, plantas nocivas.
moãjary – lit. avó dos venenos. Uma das denominações Apapócuva para feiticeiro.
mohã vaí – classe de feitiços kaiová realizada com restos de comida.
moíngó – o criar dos anhã, fazer existir/viver, a partir de seu próprio centro, do centro de sua sabedoria.
N
nhandexy – (também escrito nhandecy e ñandecy) lit. nossa mãe. Denominação mbyá de uma de suas
divindades.
nhamandú – (também escrito ñamandu) lit. deus sol. Denominação mbyá de uma de suas divindades.
primogenito do deus maior nhanderú.
nhanderú – (também escrito ñanderu). lit. nosso pai. Denominação mbyá da principal divindade, o deus maior.
nhandeva – (também escrito ñandeva) sub-etnias guarani, tal qual a denominação que recebe seu dialeto.
ñeëgaraí – lit. reza maléfica ou reza de fazer mal. Denominação de uma classe de cantos-feitiços própria dos
kaiová.
nhe’ë – (também grafado ne'ë) alma-palavra imortal sagrada. partícula divina. Denominação mbyá de uma das
almas que compõem a pessoa guarani.
nhêmongaraei – (também escrito ñemongaraí) canto/fala ritual de longa duração executado pelo karaí.
ñembóévaí (denominado também mbórahêi ivaí) lit. reza maléfica ou reza de fazer mal. Denominação de uma
classe de cantos-feitiços própria dos kaiová.
O
o'ó – casa.
ombojaity – limpar, tirar o mal.
opita'i va'e – lit. curador através do cachimbo. Denominação mbyá dada às lideranças religiosas.
opoängaiva – Uma das denominações nhandeva para feiticeiro.
opora'i va'e – lit. cantor/rezador. Denominação mbyá dada às lideranças religiosas.
opy – casa de rituais, centro da vida religiosa mbyá e nhandeva, habitação do karaí.
opyguá – lit. os que habitam a casa de reza. Denominação mbyá dada às lideranças religiosas.
P
pa'í – líder religioso ou líder de uma família extensa. Denominação mbyá, kaiová e nhandeva dada às
lideranças religiosas.
pajé – (também escrito payé, mpajé). Os saberes-armas, a potência para a feitiçaria que não é de exclusividade
- 72 -
do feitiçeiro.
peküé – bolsa de couro.
petÿn – fumaça de tabaco.
petÿnguá – cachimbo. objeto ritual.
pindó – palmeira, arvores sagrada. Imagem das palmeiras imortais que sustentam o eixo do mundo.
popyguá – bastões insígnia.
-porã – belo e sagrado.
porovaí – lit. golpe xamânico e furtivo contra o próximo. Uma das denominações mbyá para feitiço.
porovaíky'á – lit. os que ferem furtivamente ao próximo. Uma das denominações mbyá para feiticeiro.
poxy - fúria.
R
rapytá – fundamento, base, lugar de onde se brota uma planta.
ravé – instrumento ritual. Rabeca
T
tata – fogo.
tata'y – madeira em brasa.
takuapu – instrumento ritual de taquara. Insígnia feminina.
teko – modo de ser/proceder guarani.
tekoá – lit. local do modo de ser/proceder guarani, aldeia e arredores.
tembikuaá - conhecimento xamânico, poder-saber.
tenondê – primevo, primeiro, relativo ao início dos tempos.
terý – nome verdadeiro / alma-palavra.
tupã – deus da tempestade, da água e do trovão. Denominação mbyá de uma de suas divindades, geralmente
identificada com o deus cristão.
U
umandal – granizo na fala sagrada e secreta dos karaí.
V
-vaí – maligno. relativo ao mal espiritual.
vixúrangá – lit. a imagem do animal. animal de madeira, peça de artesanato.
Y
yakãnjá – lit. dono/senhor das margens/cabeceiras dos rios. Entidade.
yambá – denominação mbyá dada aos locais onde habitam os deuses, equivalentes aos quatro pontos cardiais,
locais de origem das almas-palavras.
ynhakanguajá lit. dono/senhor do barro e dos barreiros. Entidade.
yvy – terra, plano onde se dá a existência
yvyjá - lit. dono/senhor da terra. Entidade.
yvyãnjá - lit. dono/senhor dos montes e montanhas. Entidade.
yvyra – madeira, bastão de madeira.
yvyra'ija – lit. senhor dos bastões-insígnia de madeira. Os auxiliares do líder religioso.
yvyrárakuá – agulhas de madeira. Um dos objetos insígnia do feiticeiro.
- 73 -
Referências
- 74 -
1 8 8 9 , p . 1 1 1 -3 7 2 . D i s p o n í v e l e m
<http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT1730002.html>. Acesso em: 12 jun 2006.
MELIÀ, Bartolomeu. A entrada no Paraguai de outros Karaí. I n : Contribuições à
antropologia em homenagem a Egon Schaden. São Paulo : 1981. pp. 157 – 167.
_________________. A experiência religiosa Guarani. In: MARZAL, Manuel et ali. O
rosto índio de Deus. São Paulo : Vozes, 1989. pp 293 – 357.
MELIÀ, Bartolomeu, GRÜNBERG, Georg. & GRÜNBERG, Friedl. Los Pai-Taviterã
etnografia guarani del Paraguay comtemporaneo. Assunción : Centro de Estudios
Antropológicos de la Universidad Católica, 1976.
MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do Mbaraka: Música e Xamanismo Guarani.
Tese de Doutorado apresentada como requisito parcial à obtenção do título de doutor. São
Paulo : Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 2002. 277pp.
MONTOYA, Pe. A Ruiz de. Vocabulário y Tesoro de la Lengua Guarani, ó mas bien
Tupi. Ed. do Visconde de Porto Seguro/Faesy y Frick/Maisonneuve y Cia : Viena/Paris,
1876.
NIMUENDAJU, Kurt Unkel. As lendas da criação e destruição do mundo como
fundamentos da religião dos Apapocúva Guarani. São Paulo : HUCITEC/USP, [1914]
1987. 156 pp.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro: UFRJ,
1999. 272 pp.
PISSOLATO, Elisabeth de Paula. A Duração da pessoa : Mobilidade, parentesco e
xamanismo Mbyá (Guarani). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. 366 pp.
SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guaraní. São Paulo: EPU; Edusp,
1974. 208 pp.
SOUSA, Neimar Machado de. A Redução de Nuestra Señora de la Fe no Itatim: Entre a
cruz e a espada (1631-1659). Dourados : UFMS, 2002. 130 pp.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros
Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 552 pp.
________________________________. Araweté: Os deuses canibais. Rio de Janeiro:
Jeorge Zahar Ed., 1986.
- 75 -