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TELEVISÃO

Pode-se falar
em gêneros
NAS ÚLTIMAS DÉCADAS, a idéia de gênero tem
na televisão? sofrido um questionamento esmagador, de
parte inicialmente da crítica estruturalista
e posteriormente do pensamento dito pós-
moderno, para os quais esse tipo de dis-
cussão se tornou alguma coisa anacrônica,
quando não irrelevante. Maurice Blanchot
(1959), por exemplo, defendia, em seu tem-
po, que as únicas coisas realmente impor-
tantes são as obras na sua individualidade,
independentemente de como as possamos
classificar (“tudo se passa como se os gêne-
ros tivessem desaparecido e só a literatura
fosse afirmada...”). No mesmo contexto,
Roland Barthes (1988) defendia o texto em
si como uma força subversiva capaz de
dissolver todas as espécies de classificação
(“Como classificar Georges Bataille?... É tão
desconfortável responder a essa pergunta
que, em geral, se prefere esquecer Bataille
nos manuais de literatura.”). De forma um
pouco mais flexível, Jacques Derrida (1980)
problematizava a identificação de uma obra
literária com um gênero, considerando que,
ao penetrar no interior de um gênero, a
obra o transformava em outra coisa. Para
complicar, sabemos que as obras realmente
fundantes produzidas em nosso século não
se encaixam facilmente nas rubricas velhas
e canônicas e quanto mais avançamos na
direção do futuro, mais o hibridismo se
mostra como a própria condição estrutural
dos produtos culturais.
No entanto, por mais que Blanchot,
Barthes e Derrida queiram destronar as
categoriais, eles não deixam de operar
dentro de uma categoria, que é a literatu-
ra. E se lhes parece possível dizer que não
existem mais romances, nem poemas, nem
tragédias ou comédias, resta todavia uma
categoria que os abrange todos, o livro, pólo
de permanência e de resistência de uma
cultura, quiçá de uma civilização, de uma
Arlindo Machado Weltan-schauung que se recusa a integrar-se
Professor da PUCSP passivamente no terreno de outros meios
de expressão, como o disco, o cinema, a

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televisão, tudo isso que parece exprimir na dinâmica de uma cultura, as tendências
uma outra cultura, uma outra economia e que preferencialmente se manifestam num
uma outra visão de mundo. Para Marjorie gênero não se conservam ad infinitum, mas
Perloff, o livro pode ser tomado ele próprio estão em contínua transformação no mesmo
como um gênero (recordemo-nos do projeto instante em que buscam garantir uma certa
do Livre de Mallarmé, tentativa de amplia- estabilização. “O gênero sempre é e não é
ção ao extremo das possibilidades últimas o mesmo, sempre é novo e velho ao mes-
desse meio). Enquanto gênero, o livro “se mo tempo. O gênero renasce e se renova
contraporia a todos esses meios não livres- em cada nova etapa do desenvolvimento
cos (e cada vez mais não impressos), que es- da literatura e em cada obra individual de
tão prestes inclusive a ocupar o seu espaço um dado gênero. Nisto consiste a sua vida”
como o lugar da literatura” (Perloff, 1995: (Bakhtin, 1981: 91).
4). A palavra gênero deriva do latim genus/
Poderíamos perguntar então: acaba- generis (família, espécie) e não se vincula
ram-se realmente os gêneros (e, por exten- etimologicamente, malgrado a aparente
são, todas as classificações que nos permi- homofonia, com as palavras gene e genética
tiam vislumbrar um pouco de ordem na (do grego génesis: geração, criação). Apesar
selva da cultura) ou os nossos conceitos de disso, há uma inequívoca relação entre o
gênero já não são mais suficientes para dar que faz o gênero no meio semiótico (ou seja,
conta da complexidade dos fenômenos que no interior de uma linguagem) e o que faz o
agora enfrentamos? Talvez fosse o caso de gene no meio biológico. Os geneticistas de-
recorrer a um conceito mais flexível ou me- finem o gene como uma entidade replican-
lhor adaptável a um mundo em expansão e te, presente nas moléculas de DNA, cuja
em rápida mutação. De todas as teorias do função principal é transmitir às novas cé-
gênero em circulação, a de Mikhail Bakhtin lulas que estão sendo formadas as informa-
nos parece a mais aberta e a mais adequada ções básicas que vão garantir a preservação
às obras de nosso tempo, mesmo que tam- de uma determinada espécie. O paradoxal
bém Bakhtin nunca tenha dirigido a sua com relação aos genes é que, embora eles
análise para o audiovisual contemporâneo, sejam entidades conservadoras por missão
ficando restrito, como os demais, ao exa- biológica, eles são também os responsáveis
me dos fenômenos lingüísticos e literários pela evolução da vida desde as formas mais
em suas formas impressas ou orais. Para o simples às mais complexas, através de um
pensador russo, gênero é uma força aglu- longo processo de seleção natural. Como
ti-nadora e estabilizadora dentro de uma se sabe, o zoólogo e geneticista Richard
determinada linguagem, um certo modo de Dawkins, em seu livro The Selfish Gene, de-
organizar idéias, meios e recursos expres- fendeu a idéia de que os genes não são os
sivos, suficientemente estratificado numa únicos responsáveis pela evolução: quando
cultura, de modo a garantir a comunica-bi- a questão é a cultura humana, temos de
lidade dos produtos e a continuidade dessa pensar num equivalente “cultural” do gene
forma junto às comunidades futuras. Num – segundo ele, o meme – que se encarregaria
certo sentido, é o gênero que orienta todo o da mesma função replicante das entidades
uso da linguagem no âmbito de um deter- genéticas. A palavra meme foi criada a partir
minado meio, pois é nele que se manifestam de uma corruptela da palavra grega mímesis
as tendências expressivas mais estáveis e (imitação) e se justifica pelo fato de, segun-
mais organizadas da evolução de um meio, do Dawkins (1979: 211-222), a imitação ser
acumuladas ao longo de várias gerações de a forma básica de replicação dos memes. O
enunciadores. Mas não se deve extrair daí problema da argumentação de Dawkins é a
a conclusão de que o gênero é necessaria- imprecisão ou falta de critérios na caracteri-
mente conservador. Por estarem inseridas zação dos memes (“Exemplos de memes são

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melodias, idéias, slogans, modas do vestuá- intenção mais ou menos bem definidas, no
rio, maneiras de fazer potes ou de construir interior das quais os enunciados podem ser
arcos.”), sobretudo porque sabemos que, no codificados e decodificados de forma rela-
terreno da cultura, o que se “imita” ou se tivamente estável por uma comunidade de
assimila não são os enunciados diretamente produtores e espectadores até certo ponto
(uma melodia, uma idéia, um slogan), mas definida. Esses campos de acontecimentos
estruturas abstratas, arranjos sintáticos, audiovisuais são herdados da tradição, mas
modos de selecionar e combinar. Na mi- não apenas da tradição televisual (muitos
nha opinião, os gêneros discursivos, tais derivam da literatura, outros do cinema,
como Bakhtin os imaginou, se estendidos ou do teatro popular, do jornalismo e assim
para toda a produção semiótica do homem, por diante), nem tampouco esses “replican-
dariam muito maior precisão e coerência tes” são assimilados tais e quais, havendo
à idéia – de qualquer maneira fertilíssima sempre um processo inevitável de meta-
– do replicante cultural, o meme. morfose que os faz evoluir na direção de
Mas vamos ao tema que nos interessa. novas e distintas possiblidades.
A televisão abrange um conjunto bastante Para Mikhail Bakhtin, essas esferas de
amplo de eventos audiovisuais que têm acontecimentos – ou diríamos nós mais tec-
em comum apenas o fato da imagem e do nicamente: esses modos de trabalhar a ma-
som serem constituídos eletronicamente e téria televisual – podem ser chamados de
transmitidos de um local (emissor) a outro gêneros. Eles existem em grande quantida-
(receptor) também por via eletrônica. Cada de, chegam a ser mesmo inumeráveis, apa-
um desses eventos singulares, cada progra- recem e desaparecem ao sabor dos tempos,
ma, cada capítulo de programa, cada bloco alguns deles predominam mais num perío-
de um capítulo de programa, cada entrada do do que em outro, ou mais numa região
de reportagem ao vivo, cada vinheta, cada geográfica do que em outra, muitos deles
spot publicitário, constituem aquilo que os subdividem-se em outros gêneros menores.
semioticistas chamam de um enunciado. Os Os gêneros existem numa diversidade tão
enunciados televisuais são apresentados grande que muitas vezes se torna complica-
aos espectadores numa variabilidade prati- do estudá-los enquanto categorias. De fato,
camente infinita. A rigor, poder-se-ia dizer como colocar no mesmo pé de igualdade
que cada enunciado concreto é uma singu- eventos audiovisuais tão distintos entre si,
laridade que se apresenta de forma única, como uma narrativa de ficção seriada, a
mas foi produzido dentro de uma certa transmissão ao vivo de uma partida espor-
esfera de intencionalidades, sob a égide de tiva, o pronunciamento oficial de um pre-
uma certa economia, com vistas a abarcar sidente, um videoclipe, um debate político,
um certo campo de acontecimentos, atingir uma aula de culinária, uma vinheta com
um certo segmento de telespectadores e motivos abstratos, uma missa ou um docu-
assim por diante. Dessa maneira, malgrado mentário sobre o fundo do mar? Os gêneros
único em sua ocorrência singular, ele ilustra são categorias fundamentalmente mutáveis
ou espelha uma determinada possibilidade e heterogêneas (não apenas no sentido de
de utilização dos recursos expressivos da que são diferentes entre si, mas também no
televisão, um certo conceito de televisão, e sentido de que cada enunciado por estar
isso se expressa não apenas nos seus con- “replicando” muitos gêneros ao mesmo
teúdos verbais, figurativos, narrativos e tempo). “A riqueza e a diversidade dos
temáticos, como também no modo de ma- gêneros discursivos são ilimitadas, porque
nejar os elementos dos códigos televisuais. as possibilidades de atividade humana são
Existem algumas modalidades relativamen- também inesgotáveis e porque cada esfera
te estáveis de organizar esses elementos, ou de atividade contém um repertório inteiro
dito de outra maneira, existem esferas de de gêneros discursivos que se diferenciam e

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se ampliam na mesma proporção que cada mente de uma maior ou menor eloqüência
esfera particular se desenvolve e se torna no manejo da palavra oralizada, seja da par-
cada vez mais complexa” (Bakhtin, 1986: te de um apresentador, de um debatedor,
p. 60). Não compreender essa vertiginosa de um entrevistado, ou de qualquer outro.
variedade pode implicar numa concepção Não conheço nenhuma estatística a este res-
de gênero esclerosada, esta sim desprovida peito, mas a simples recepção cotidiana da
de sentido, anacrônica e irrelevante numa televisão já demonstra (e se alguém duvida,
civilização como a nossa. basta, a qualquer momento, “zapar” todos
Como não é possível tratar de todos os canais de televisão) que a maioria esma-
os gêneros televisuais, visto que nem sabe- gadora dos programas se funda na imagem
mos quantos e quais são em sua totalidade, prototípica de uma talking head (cabeça fa-
vamos a seguir tratar de dois deles, aqueles lante) que serve de suporte para a fala de
que nos pareceram exemplares e melhores algum protagonista. Talvez isso se explique
testemunhas da diversidade esfuziante dos por imperativos técnicos e econômicos: o
gêneros. São eles: as formas fundadas no depoimento oral, a entrevista, o debate, o
diálogo e as narrativas seriadas. Outros gê- discurso do âncora constituem as formas
neros, como o telejornal, as transmissões ao mais baratas de televisão e aquelas que ofe-
vivo, o videoclipe e outras formas musicais recem menos problemas para a transmissão
serão abordados posteriormente, em artigos direta ou para o ritmo veloz de produção.
futuros. Na verdade, este é um trabalho em Quando é preciso construir uma imagem
progresso, que deverá render desdobra- com atores, figurantes, locação, cenários,
mentos posteriores. A idéia aqui é apenas figurinos, maquia-gem, texto dramatúrgico,
fazer uma pequena demonstração da va- montagem e efeitos gráficos ou visuais de
riabilidade infinita da televisão, do amplo toda espécie, os custos crescem em progres-
leque de possibilidades que ela oferece aos são geométrica e o tempo de produção se
realizadores e das diferentes modalidades torna infinitamente mais lento.
de recepção que ela demanda, com seus Essa disponibilidade para o discurso
distintos graus de participação, credibilida- oral, de um lado, desviou a televisão para
de, legibilidade e suspensão de descrença. a facilidade, a comodidade e a banalidade
dos talk shows, em geral voltados para a ce-
lebração de suas próprias estrelas, ou para
Formas Fundadas no Diálogo algumas de suas derivações ainda mais de-
generadas, como os programas de auditório
Fala-se muito em “civilização das ima- e os reality shows (programas de intrigas do-
gens” a propósito da hegemonia da televi- mésticas e agressões físicas ou verbais, em
são a partir da segunda metade deste sécu- geral protagonizados por um lumpesinato
lo, mas a televisão, paradoxalmente, é um em estado terminal, que aceita a humilha-
meio bem pouco “visual” e o uso que ela faz ção pública por quaisquer trocados). Mas,
das imagens é, salvo as exceções de honra, de outro lado, favoreceu também o ressur-
pouco sofisticada. Herdeira direta do rádio, gimento na televisão de formas discursivas
ela se funda primordialmente no discurso muito antigas e muito vitais, formas que
oral e faz da palavra a sua matéria-prima. estão na raiz mais profunda de toda a nossa
Isso mudou um pouco nos últimos anos. cultura: aquelas que se fundam no diálogo.
Agora há uma maior utilização de recursos Dizemos “formas” em geral e no plural,
gráficos computadorizados nas vinhetas de porque, na televisão, o diálogo pode assu-
apresentação, mas, no essencial, a televisão mir as mais variadas modalidades: a entre-
continua oral, como nos pri-mórdios de sua vista, o debate, a mesa redonda e até mes-
história, e a parte mais expressiva de sua mo o monólogo que pressupõe algum tipo
programação segue dependendo basica- de interlocução com um diretor oculto ou

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com o telespectador. Naturalmente, a maior que juntos a procuram no processo de sua
ou menor eloqüência desse gênero televi- comunicação dialógica.” (Bakhtin, 1981: 94).
sual depende muito da grandeza maior ou O diálogo socrático utilizava vários
menor das pessoas que temos na tela como procedimentos, dos quais os mais impor-
debatedores, sejam eles os representantes tantes eram a síncrise e a anácrise. Entendia-
do programa ou da televisão (apresentado- se por síncrise a confrontação de dois ou
res, âncoras, entrevistadores), sejam eles os mais pontos de vista sobre um mesmo as-
representantes da sociedade, os entrevista- sunto. Era muito importante, portanto, que
dos ou protagonistas. um debate tivesse debatedores com pontos
Bakhtin (1981: 94-96) localiza o surgi- de vista diferentes, uma vez que não há
mento do diálogo como gênero na Grécia diálogo possível quando todos pensam exa-
antiga, a partir principalmente do método tamente da mesma maneira. Anácrise, por
socrático, que serviu de modelo a pratica- sua vez, era o nome que se dava aos méto-
mente todos os grande dialogistas do pri- dos de provocar a palavra do interlocutor,
meiro período (Xenofonte, Ésquilo, Fédon, forçando-o a colocar-se e externar claramen-
Alexameno, Glaucon, Craton, Simmios, Eu- te a sua opinião. Segundo Bakhtin, Sócrates,
clide, Anthisteno etc.). Sócrates colocava as como bom debatedor, foi um astuto mane-
pessoas umas diante das outras e as fustiga- jador da anácrise. Ele tinha uma habilidade
va ao debate. Atento sobretudo às oposições incomum para fazer as pessoas se expressa-
e contradições, ele conduzia os debatedores rem, mesmo quando as idéias não estavam
a encarar as questões sobre todos os ângu- ainda bem formuladas: a clareza vinha do
los, mas sem jamais propor um caminho ou diálogo e da consideração das ponderações
induzir uma conclusão final. Naturalmente, do(s) outro(s). Assim, os protagonistas dos
como apenas conhecemos toda essa fortuna diálogos socráticos eram homens de idéias
filosófica através do filtro de Platão, o mé- (“ideólogos”, na terminologia de Bakhtin),
todo socrático nos parece hoje apenas um mesmo quando se tratavam de pessoas sim-
recurso pedagógico do “mestre” para con- ples, incorporadas ao diálogo como deba-
duzir os seus discípulos a uma verdade já tedores involuntários. No espaço da ágora,
descoberta, acabada e indiscutível, como de eles encenavam aquele que talvez seja o
resto acabou acontecendo com o diálogo fi- drama maior da humanidade: “a procura e a
losófico nos períodos posteriores a Sócrates, experimentação da verdade” (Bakhtin).
reduzido que foi a uma mera técnica de ex- Talvez possa parecer um exagero di-
posição de conceitos dogmáticos de mundo. zer que temos diálogos socráticos hoje na
Mas para Sócrates, o diálogo não era apenas televisão. De fato, os debates que se vê e se
uma “forma”, no sentido puramente técnico ouve nos talk shows convencionais estão lon-
do termo: ele é o próprio alicerce de toda ge de configurarem uma maiêutica da pro-
uma cosmovisão filosófica que acredita na cura da verdade. Mas não estamos tratando
natureza dialógica (plurívoca, contraditória) aqui de banalidades. O retorno à oralidade
da verdade. – ou, mais exatamente, o advento de uma
“O gênero se baseia na concepção so- segunda fase da oralidade, mediada por tec-
crática da natureza dialógica da verdade e nologias de gravação e transmissão (cfme.
do pensamento humano sobre ela. O méto- Walter Ong, 1987: 133-136) – proporcionado
do dialógico de busca da verdade se opõe pelo rádio e pela televisão, abriu um espa-
ao monologismo oficial que se pretende ço novo para o ressurgimento do diálogo
dono de uma verdade acabada, opondo-se em condições muito próximas do modelo
igualmente à ingênua pretensão daqueles socrático. Mas essa possibilidade teórica
que pensam saber alguma coisa. A verdade só rendeu resultados reais em algumas
não nasce, nem se encontra na cabeça de um propostas mais ousadas de programas, em
único homem; ela nasce entre os homens, geral praticadas por televisões que fogem

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do esquema das grandes redes nacionais ou mulheres.
internacionais. Os mais belos exemplos são, Já no primeiro episódio, denominado
certamente, as séries televisuais realizadas Y a Personne (literalmente: “Não Há Nin-
por Jean-Luc Godard e Anne-Marie Mié- guém Ali”), Godard usa uma estratégia ab-
ville, entre 1976 e 1978, para o Institut Na- solutamente imprevisível para desencadear
tional de l’Audiovisuel (França). Numa en- um debate. Faz anunciar nos jornais que a
trevista concedida a Colin MacCabe (1980: sua microempresa (Sonimage) está entrevis-
160), Godard refere-se nominalmente ao tando candidatos para um emprego e, logo
método socrático como modelo inspira-dor em seguida, dezenas de desempregados
dessas séries. Numa outra entrevista, conce- batem à sua porta. Godard os entrevista
dida a Claude-Jean Philippe (compilada em um a um, mas em lugar de fazê-los relatar
Godard, 1985: 412), o cineasta lamenta que suas aptidões profissionais, questiona-os
o pensamento ocidental, a partir de Platão, sobre o problema do trabalho assalariado e
tenha estado historicamente vinculado à sobre a venda de mão-de-obra no mercado,
cultura escrita, à cultura do livro, perdendo forçando pessoas comuns a refletir sobre
os seus vínculos com o diálogo socrático, de complexos problemas econômicos e polí-
natureza fundamentalmente oral: no dizer ticos, dos quais provavelmente eles jamais
de Godard, Platão transformou o método tinham se dado conta. O “emprego” que
socrático num best seller! Godard oferece a essas pessoas e pelo qual
A primeira dessas séries – Six Fois oferece também um pagamento é, portan-
Deux (1976; também conhecida como Sur et to, deixar-se entrevistar para discutir a sua
Sous la Communication) – mostra um Godard própria crise de desemprego. À medida que
ainda fortemente influenciado pelo pensa- evoluem as várias entrevistas, a questão do
mento marxista. A série consiste, como diz emprego vai desaparecendo e a reflexão
o título, em seis emissões com duas partes sobre o modo como se organiza a sociedade
distintas cada uma, voltadas todas elas para passa a predominar. No final do episódio,
a discussão do problema da comunicação Godard consegue arrancar de uma das can-
na vida cotidiana e na mídia. A primeira didatas uma performance exemplar do hino
parte de cada episódio é um ensaio audio- da Internacional Comunista! Temos então
visual sobre algum aspecto da produção e o terreno preparado para a entrada, na
consumo de mensagens no trabalho e no segunda parte, de Louison, um camponês
lazer, enquanto a segunda é um perfeito di- rude mas esperto, tão eloqüente no mane-
álogo socrático entre Godard e um entrevis- jo da fala que acaba driblando Godard na
tado sobre o assunto da matéria precedente. discussão sobre o seu métier de produtor de
Os entrevistados dos seis episódios são: laticínios (falando em off para o espectador,
um camponês (Louison), um operário que Godard se queixa de que o seu interlocutor
é também cineasta amador nas horas va- fala rápido demais e não abre espaço para
gas (Marcel), um matemático célebre (René ele entrar). Se, em Y a Personne, a questão
Thom), um casal com problemas de comu- debatida era a do desemprego nos grandes
nicação (Jacqueline e Ludovic), um grupo centros urbanos, no bloco Louison o campo-
de mulheres (referido na série como Nanas, nês inverte o problema: devido à fuga das
gíria francesa para designar o sexo femini- massas campesinas para as grandes cida-
no) e o próprio Godard, que sai de trás das des, a crise atual no campo é motivada pela
câmeras, num dos episódios, e passa a ser falta de mão-de-obra e não de emprego.
ele próprio entrevistado por dois jornalistas Outro episódio luminoso é o terceiro
do Libération. Na verdade, também a co- da série, dividido nos blocos Photos et Cie.
realizadora Anne-Marie Miéville aparece (“Fotos e Companhia”) e Marcel, onde são
no final do episódio Nanas, questionando entrevistados respectivamente o fotógrafo
Godard e seu intento de falar em nome das profissional Michel Laurent, especializado

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na cobertura de conflitos internacionais, e atrás das câmeras, mas audível na trilha
Marcel, um cineasta amador, para quem a sonora) e duas crianças em idade de alfabe-
produção de imagens e sons é um hobby, tização (Camille Virolleaud e Arnaud Mar-
lazer de fim de semana. O fotógrafo explica, tin), que se revezam em cada episódio. O
entre outras coisas, como obteve a famosa título parodia uma cartilha do século XIX,
foto da execução pública de três homens, escrita por Gérard Bruno, Le Tour de France
acusados de terem colaborado com o regi- par Deux Enfants. Apesar da pouca idade
me paquistanês, durante a guerra da inde- dos meninos, Linard não os trata como
pendência de Bangladesh (1971). A abun- imaturos, nem se dirige a eles como nor-
dância de explicações técnicas e de dados malmente os adultos se dirigem a crianças.
empíricos sobre a demanda de imagens no Pelo contrário, como um bom manejador
jornalismo contrastam com a violência da da anácri-se, ele estabelece com os meninos
foto, apresentada insistentemente ao espec- uma intrincada, complexa e desconcertante
tador, durante cerca de dez minutos. Nesse discussão filosófica sobre as grandes oposi-
bloco, aproveitando o gancho do depoi- ções da vida e do pensamento: a palavra e a
mento de Laurent, Godard discute o circui- imagem, a luz e a obscuridade, o ruído e o
to econômico da fotografia jornalística e os silêncio, o amor e o trabalho, o masculino e
seus imperativos institucionais, a gigantes- o feminino, a criação e a cópia, o consumo e
ca acumulação de imagens das vítimas de a produção. Os doze episódios são construí-
toda sorte de guerras e tragédias, que fez a dos numa estrutura simétrica e sincrítica
fortuna de profissionais e magnatas da mí- (referente a síncrise), fazendo alternar os
dia, sem que jamais os protagonistas dessas segmentos de Camille e Arnauld com títu-
fotos tenham sido consultados sobre a con- los contrapostos, que jogam um conceito
veniência de ter as suas imagens difundidas contra o outro. Assim, Obscur/Chimie (Obs-
publicamente, muito menos ainda pagos curo/Química) faz par com Lumière/Physi-
pelo direito de uso de suas imagens (uma que (Luz/Física), Réalité/Logique (Realidade/
vez que não eram modelos profissionais). Já Lógica) com Rêve/Morale (Sonho/Moral),
Marcel, o cineasta ingênuo que filma “pai- Violence/Grammaire (Violência/Gramática)
sagens bonitas” nos fins de semana, com com Désor-dre/Calcul (Desordem/Cálcu-
sua modesta câmera super-8 e o dinheiro lo) e assim por diante. Os diálogos com os
que ele ganha trabalhando numa fábrica meninos (intitu-lados Vérité) e as cenas da
de relógios, parece ignorar inteiramente o rotina de suas vidas (intituladas Télévision)
contexto econômico em que as imagens e os são acompanhados pelo irônico comentário
sons são produzidos e consumidos. Cine- de dois apresentadores de televisão, Albert
ma, para ele, é entretenimento, válvula de Dray e Betty Berr (no bloco Histoire), que
escape para fugir da dureza e da monotonia tentam amarrar os tópicos discutidos com
do trabalho. Apesar dele representar, na sé- um esboço de história que possa servir de
rie, o ponto de vista inocente do público, a fio condutor aos debates (eventualmente
honestidade de seus argumentos e a apaixo- também fazendo críticas ao próprio progra-
nada defesa de seu métier de fim de semana ma).
fazem o contraponto necessário ao discurso Em lugar de dividir o programa em
frio e calculista do profissional bem integra- capítulos, Godard e Miéville preferem tra-
do no mercado, para quem a produção de balhar com movimentos, como na música.
imagens é um trabalho como qualquer ou- Não sem razão, Godard (1985: 411) definiu
tro, que se faz por encomenda e se troca por a série como sendo “filosofia em forma de
dinheiro. música de câmera”. No primeiro movimento,
Já a série France/Tour/Détour/Deux/ Camille e Linard discutem as diferenças
Enfants (1978) consiste basicamente num entre o dia e a noite, a luz e as trevas, a
diálogo do jornalista Robert Linard (oculto imagem (física e mental) e o seu referente,

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assim como o significado da existência. No dormindo. Arnaud se prepara para assumir
segundo, Arnaud e Linard discutem a ilu- o seu leito, quando Linard o aborda para
minação e seus significados na vida e na re- discutir a vigília, o sonho, o pensamento, a
presentação. No terceiro, Camille, abordada existência, o que é claro e o que é obscuro
por Linard no trajeto para a escola, conver- na vida, a felicidade e o infortúnio, a vida e
sa com seu interlocutor sobre o movimento a morte, as origens e o sentido das coisas.
e as distâncias. A estrutura é quebrada no Em 1995, Godard e Miéville foram
quarto movimento, onde não há qualquer encarregados pelo British Film Institute
diálogo, mas apenas o dia-a-dia dos estu- de conceber o episódio francês da série
dos na classe de Arnaud. No movimento One Hundred Years of Cinema (Cem Anos de
seguinte, vemos Arnauld manejando o mi- Cinema). O episódio se chamou Deux Fois
meógrafo da escola, para copiar uma apos- Cinquante Ans de Cinéma Français e permitiu
tila de cálculo, quando aparece Linard para ao casal retomar as suas primeiras experi-
questioná-lo sobre a imprensa, a impressão ências com o diálogo socrático. Ele consiste
e a conservação da experiência na memória. basicamente num tenso debate entre Go-
O sexto movimento mostra Camille no re- dard e o ator Michel Piccoli, encarregado
creio escolar, dialogando com Linard sobre pela prefeitura de Lyon (cidade onde os
as relações entre a escola e o trabalho, o tra- irmãos Lumière começaram a produzir os
balho e o dinheiro, as razões por que a es- seus primeiros filmes) de planejar os even-
cola isola as crianças do mundo dos adultos tos comemorativos dos cem anos de histó-
e terminam discutindo se esse isolamento ria do cinema. Nesse episódio temos, de um
poderia ser interpretado como uma forma lado, um Piccoli ufanista, deslumbrado com
de aprisionamento. No sétimo movimento, a missão oficial de que foi investido e com
Linard surpreende Camille após esta ter o seu próprio projeto de mostrar ao mundo
sido repreendida pela professora e obriga- o papel da França na invenção do cinema;
da, por castigo, a copiar cinqüenta vezes de outro, um Godard cético e cínico, que
uma mesma frase. O jornalista a questiona desmonta os sonhos imperiais de seu inter-
sobre o dever, a obediência às leis, a revol- locutor, desmistifica os velhos monumentos
ta, as diferenças entre invenção e cópia, as da história e lamenta o fato dos contem-
relações entre escola e empresa. No oitavo, porâneos terem perdido a memória dos
Linard, Arnaud e um amiguinho da escola acontecimentos. O diálogo é tenso, às vezes
(que não aparece em campo) discutem a até descon-fortável, malgrado mantido nos
troca, o comércio, a propriedade, a multi- limites da civilidade. Godard encurrala Pic-
plicação, a matemática, o dinheiro e o valor coli e o obriga a enfrentar questões pouco
das coisas. No nono movimento, Camille cômodas sobre o suposto papel inaugural
está em seu quarto lendo uma história em dos irmãos Lumière, sobre a decadência
quadrinhos e ouvindo Mozart num fone de do cinema francês e o estado geral da arte
ouvido. Surge Linard e ambos conversam cinematográfica em todo o mundo. Não há
sobre a música, sua origem, seu papel na muito o que comemorar, parece querer di-
relação com a imagem, o ruído, as relações zer Godard, enquanto seu interlocutor faz
entre saber e poder. No décimo movimento, das tripas coração para salvar o seu proje-
Arnaud e Linard estão vendo um filme de to. Quem ganha é o espectador, que tem a
James Bond na televisão e conversam sobre chance de presenciar um grande debate na
a própria televisão e sobre o espetáculo, o melhor tradição socrática.
olhar, a digestão, o tédio e a solidão. No pe- Certamente, não foi Godard quem
núltimo movimento, novamente quebrando inventou o debate filosófico na televisão.
a estrutura, Camille janta e prepara-se para Diríamos que esse “gênero” tem uma longa,
dormir, sem dizer uma palavra. Finalmen- sólida e impressionante história e, algum
te, no último movimento, Camille já está dia, alguém terá de reconstituí-la. A televi-

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são, tantas vezes acusada de massificação colocam em confronto duas personalidades
e banalidade, tem sido também o lugar proeminentes em suas respectivas áreas de
onde o pensamento ganhou um impulso atuação para discutir um tema geralmente
novo, liberado que foi dos constrangimen- de caráter abstrato e transdisciplinar (como
tos retóricos da sua forma escrita. Entre os a dor, o desejo, o acaso, a utopia, o belo, o
melhores exemplos de debate intelectual na obsceno, a razão, o feminino, a liberdade,
televisão, poderíamos citar as várias séries a morte etc.). No Brasil, há ainda o notável
conduzidas por Bill Moyers, nos E.U.A., exemplo da série Ética (1994), dirigida por
desde os anos 70, tais como World of Ideas, Paulo Morelli e Dario Vizeu, que se não
Healing and the Mind e The Power of the Word, chega a ser exatamente um programa dialó-
passando por alguns dos debates mais lu- gico no sentido socrático-bakhtiniano, uma
minosos da televisão, como os que Moyers vez que está estruturado a partir de depoi-
travou com o antropólogo Joseph Campbell mentos em forma de monólogos de impor-
– The Power of Myth (1988) – e com o poeta tantes filósofos e intelectuais brasileiros,
Robert Bly – A Gathering of Men (1989). Em apresenta entretanto uma eloqüente pes-
geral, Moyers evita ambientar seus diálogos quisa iconográfica, sob a forma de imagens
em estúdios de televisão, preferindo antes que perpassam a tela em nítido contraponto
colocar seus debatedores em cenários na- com o que é dito na trilha sonora.
turais – jardins, bosques, casas de campo, A grandeza dos resultados obtidos em
sofás ao pé de lareiras – e conduzir as dis- todos esses programas deriva, naturalmente
cussões num clima de conversa informal. O e em primeiro lugar, das inteligências neles
equivalente francês de Moyers poderia ser envolvidas, mas também de algumas solu-
Bernard Pivot, o apresentador de Apostro- ções estruturais, que seria interessante co-
phes, mas há também a proposta alternativa mentar, já que estamos tratando aqui do di-
de Océaniques, dirigido por Pierre-André álogo como “gênero”. Antes de mais nada,
Boutang, que consiste em colocar face a face a eficácia do diálogo na televisão depende
dois debatedores de peso (o próprio Go- de uma autonomia real que se concede aos
dard debateu, em dezembro de 1987, com a participantes. Não pode haver debate onde
escritora e cineasta Marguerite Duras). Na há o constrangimento de um script determi-
América Latina, tivemos três exemplos bas- nando o que se deve dizer, de que maneira
tante maduros de programas dedicados ao dizê-lo, ou em que circunstância intervir. O
debate intelectual, eventualmente também debate deve ser fruto exclusivo da fogueira
filosófico. O primeiro foi Teleanálisis (Chile, das idéias e a astúcia única que se espera de
1984/89), dirigido por Augusto Gongorra, um bom moderador é sua técnica de fusti-
ainda nos duros anos da ditadura militar. gar as idéias, para que elas possam emergir.
O segundo foi Incidentes (Argentina, 1996), Crucial nessas circunstâncias é a liberação
dirigido por Jorge la Ferla e dedicado à dos constrangimentos de tempo. As televi-
discussão de temas relacionados com a con- sões comerciais, no geral, operam sob seve-
temporaneidade. O debate sobre o papel ra economia temporal, em razão dos inte-
dos intelectuais, travado por Beatriz Sarlo, resses econômicos e do esquadrinhamento
editora da revista Punto de Vista, e Jorge La- dos anunciantes ao longo da programação.
nata, jornalista do periódico Página/12, foi Grande parte dos debates promovidos sob
de longe o melhor, particularmente porque essas circunstâncias são marcados pelo rit-
os dois antagonistas tinham opiniões con- mo ferrenho do cronômetro, com perguntas
trárias sobre os vários tópicos discutidos e respostas desferidas à queima-roupa, sem
e isso tornava mais sincrítico o enfren-ta- intervalos para pausas, hesitações ou refle-
mento das idéias. O terceiro exemplo é a xões. A possibilidade de um real diálogo
série brasileira Diálogos Impertinentes (desde filosófico, nem é preciso dizer, depende
1995), dirigida por Gabriel Prioli, onde se muito da conquista de um outro timing tele-

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visual, mais livre e mais fluido do que aque- em impressionantes pri-meiríssimos planos.
le imposto à televisão pela metralhadora de
cortes dos spots publicitários. Nas séries de
Godard e Miéville, por exemplo, não há fala A Narrativa Seriada
plena o tempo todo: os depoimentos são
largamente interrompidos por suspensões, Como se sabe, a programação televi-
silêncios e pausas para reflexão. A lingua- sual é muito freqüentemente concebida em
gem dos protagonistas é, como em toda ge- forma de blocos, cuja duração varia de acor-
nuina comunicação oral, errante, flutuante, do com cada modelo de televisão. Em geral,
incerta, construída por tentativas e erros, televisões comerciais têm blocos de menor
configurando uma espécie de “gagueira fun- duração que as televisões públicas, pela
damental”, expressão cunhada por Philippe razão óbvia de que precisam vender mais
Dubois (1992: 169), a propósito justamente intervalos comerciais. Uma emissão diária
das séries televisuais de Godard e Miéville, de um determinado programa é normal-
e a partir de uma idéia de Deleuze. Os lon- mente constituída por um conjunto de blo-
guíssimos intervalos de silêncio de Ludo- cos, mas ela própria também é um segmen-
vic, na primeira série de Godard e Miéville, to de uma totalidade maior – o programa
inteiramente respeitados na edição, são como um todo – que se espalha ao longo de
os exemplos mais eloqüentes dessa busca meses, anos, em alguns casos até décadas,
de um timing próprio para uma televisão sob a forma de edições diárias, semanais
reflexiva. Resultados semelhantes podem ou mensais. Chamamos de serialidade essa
ser verificados no magnífico debate entre apresentação descontínua e fragmentada do
Bernard Pivot e Marguerite Duras para o sintagma televisual. No caso específico das
programa francês Apostrophe (levado ao ar formas narrativas, o enredo é geralmente
a 28 de setembro de 1984 pela Antenne 2, estru-turado sob a forma de capítulos ou
sob direção de Jean-Luc Léridon): enquanto episódios, cada um deles apresentado em dia
Pivot, histriônico e bem formado na tradi- ou horário diferente e subdividido, por sua
ção televisual, bombardeia de perguntas a vez, em blocos menores, separados uns dos
escritora e tenta acelerar o ritmo das falas, outros por breaks para a entrada dos comer-
Duras prefere manter o debate num ritmo ciais. Muito freqüentemente, esses blocos
introspectivo, meditativo, falando em voz incluem, no início, uma pequena contextua-
baixa, quase sussurrada, com longas pausas lização do que estava acontecendo antes
para reflexão, muito silêncio entre as frases (para refrescar a memória ou informar o es-
e uma linguagem plena de hesitações. Mais pectador que não viu o bloco anterior) e, no
radical ainda, o episódio El Cementerio da final, um gancho de tensão, que visa manter
série espanhola Qué Sabe Nadie (1990), di- o interesse do espectador até o retorno da
rigida por Téo Escamilla para a rede Tele- série depois do break ou no dia seguinte.
madrid, mostra um diálogo extremamente Os episódios da série de David Lynch Twin
tenso e difícil, gravado no interior de uma Peaks (1990-1991), por exemplo, começavam
penitenciária, entre o produtor Jesus Quin- sempre com uma rápida retrospectiva dos
tero e um prisioneiro condenado por homi- episódios anteriores e terminavam invaria-
cídio. As falas hesitantes dos dois antago- velmente no momento mais inquietante.
nistas, cheias de suspensões e angustiantes Existem basicamente três tipos princi-
intervalos de silêncio, parecem dizer mais pais de narrativas seriadas na televisão. No
pelo que omitem do que por aquilo que efe- primeiro caso, temos uma única narrativa
tivamente informam, como se fosse possível (ou várias narrativas entrelaçadas e para-
construir um diálogo não apenas com a voz, lelas) que se sucede mais ou menos linear-
mas também com os gestos, as alterações fi- mente ao longo de todos os capítulos. É o
sionômicas, o tremor dos lábios, captados caso dos teledramas, telenovelas e de alguns

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tipos de séries ou minisséries. No segundo Privada (1995-1997), em que as diferentes
caso, cada emissão é uma história comple- histórias mensais têm em comum apenas o
ta e autônoma, com começo, meio e fim, e fato de focalizarem sempre a vida domésti-
o que se repete no episódio seguinte são ca e o eterno conflito homem-mulher (além,
apenas os mesmos personagens principais e naturalmente, dos arrojados estilos de mise-
uma mesma situação narrativa. Neste caso, en-scène e edição). Seguindo principalmente
temos um protótipo básico que se multi- sugestões de Renata Pallottini (1998: 31,
plica em variantes diversas ao longo da 40), adotaremos, sempre que pertinente, a
duração do programa. É o caso basicamente seguinte terminologia: vamos chamar de ca-
dos seriados – por exemplo, o célebre Malu pítulos os segmentos do primeiro tipo de se-
Mulher (1979-1981) – e de programas humo- rialização, de episódios seriados os segmentos
rísticos do tipo Monty Python’s Flying Circus do segundo tipo e de episódios unitários as
(1969/74). Nessa modalidade, um episódio, narrativas independentes do terceiro tipo.
via de regra, não se recorda dos anteriores, Naturalmente, os três tipos de nar-
nem interfere nos posteriores: o persona- rativas podem às vezes se confundir. As
gem principal aparece ferido no final de um telenovelas brasileiras pertencem, sem dú-
episódio, o vilão é colocado na cadeia, mas vida, à primeira modalidade, ou seja, a(s)
no episódio seguinte já não há mais sinal do histó-ria(s) iniciada(s) no primeiro capítulo
ferimento, nem o vilão está mais na prisão. continua(m) ao longo de toda a série, até
O caso mais absurdo é o desenho dirigido o desfecho final no último capítulo, mas
por Trey Park South Park (desde 1998), que pode(m) arrastar-se indefinidamente, repe-
tem um personagem, o Kenny, que morre tindo ad infinitum as mesmas situações ou
em todos os episódios, mas sempre retorna criando situações novas, enquanto houver
vivo nos episódios seguintes. Nesse tipo altos índices de audiência. Por outro lado,
de estrutura, ao contrário da modalidade existem seriados em que, malgrado se possa
anterior, não há ordem de apresentação dos verificar uma estrutura básica de episódios
episódios: pode-se invertê-los ou embara- independentes, permitindo, portanto, que
lhá-los aleatoriamente, sem que a situação possam ser assistidos em qualquer número
narrativa se modifique. Finalmente, temos ou ordem, há uma situação teleológi-ca, um
um terceiro tipo de serialização, em que início que explica as razões do(s) conflito(s)
a única coisa que se preserva nos vários e uma espécie de objetivo final que orienta
episódios é o espírito geral das histórias, a evolução da narrativa. Aqui também a
ou a temática, mas cada episódio é não série pode desdobrar-se ao infinito, enquan-
apenas uma história completa e diferente to houver audiência, mas há um episódio
das outras, como também são diferentes inaugural que explica o contexto da série e
os personagens, os atores, os cenários e, às é possível ainda que, em algum momento,
vezes, até os roteristas e diretores. É o caso os realizadores resolvam colocar um ponto
de todas aquelas séries em que os episódios final na história, fazendo com que os per-
têm em comum apenas o título genérico e sonagens principais possam atingir uma
o estilo das histórias, mas cada segmento meta prefixada. A situação básica do seria-
é uma narrativa independente. A série The do Malu Mulher, por exemplo, se explica no
Outer Limits (1964-1965, primeira versão), primeiro episódio, com o conflito conjugal,
por exemplo, é constituída de episódios em a separação do casal e o trauma da filha.
que a única coisa em comum é a presença Todos os demais episódios serão derivações
em cena de monstros do espaço extraterres- do fato de Malu estar descasada, ter de ini-
te, sejam eles insetos gigantes, microorga- ciar uma nova vida sozinha e ainda traba-
nismos parasitários ou rochas inteligentes. lhar o trauma da filha. No sériado The Fugi-
Na mesma categoria se poderia enquadrar tive (1964-1967), temos uma situação básica
também a série brasileira Comédia da Vida também apresentada no primeiro episódio:

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o Dr. Richard Kimble, equivocadamente nalização da produção. A tradição parece
acusado de matar a sua esposa, passa seus demonstrar que um certo “fatiamento” da
dias interminavelmente fugindo da polícia programação permite agilizar melhor a
e tentando encontrar o verdadeiro assas- produção (o programa pode já estar sendo
sino, antes que ele próprio seja capturado. transmitido enquanto ainda está sendo pro-
Cada um dos episódios seguintes será uma duzido) e também responder às diferentes
variação em torno da fuga e da investigação demandas por parte dos distintos segmen-
do crime. Finalmente, três anos depois do tos da comunidade de telespectadores. De
início do seriado, o crime é desvendado e o qualquer forma, não foi a televisão que
assassino fuzilado pelo mesmo policial que criou a forma seriada de apresentação das
perseguia Kimble, finalizando portanto a mensagens. Ela já existia antes nas formas
narrativa. epistolares de literatura (cartas, sermões
Há várias explicações sobre as razões etc.), em que cada fragmento se destinava
que levaram a televisão a adotar a seria- à leitura num dia diferente do ano, depois
lização como a principal forma de estrutu- teve um imenso desenvolvimento com a
ra-ção de seus produtos audiovisuais. Para técnica do folhetim, utilizada na literatura
muitos, a televisão, muito mais do que os publicada em jornais desde o século pas-
meios anteriores, funciona segundo um sado, continuou com a tradição do radio-
modelo industrial e adota como estratégia dra-ma ou da radionovela e conheceu a sua
produtiva as mesmas prerrogativas da pro- primeira versão audiovisual com os seriados
dução em série que já vigoram em outras do cinema. Mas foi a televisão, sem dúvida,
esferas industriais, sobretudo na indústria que deu expressão industrial e forma sig-
automobilística. A necessidade de alimentar nificante à serialização, antes praticada em
com material audiovisual uma programa- outros meios de maneira apenas marginal.
ção ininterrupta teria exigido da televisão Além disso, existem também razões de
a adoção de modelos de produção em lar- natureza intrínseca ao meio condi-cionando
ga escala, onde a serialização e a repetição a televisão à produção seriada. Ao contrário
infinita do mesmo protótipo constituem a do cinema, que exige o concurso da sala
regra. Com isso, é possível produzir um escura como condição fundan-te do ilusio-
número bastante elevado de programas di- nismo e que, em conseqüência disso, dirige
ferentes, utilizando sempre os mesmos ato- todos os olhares para um único ponto lumi-
res, os mesmos cenários, o mesmo figurino noso do espaço – a tela onde são projetadas
e uma única situação dramática. Enquanto as imagens –, a televisão em geral ocorre
produtos como o livro, o filme e o disco de em espaços domésticos iluminados, em
música são concebidos como unidades mais que o ambiente circundante concorre dire-
ou menos independentes, que demoram um tamente com o lugar simbólico da tela pe-
tempo relativamente longo para serem pro- quena, desviando a atenção do espectador e
duzidos, o programa de televisão é concebi- solicitando-o com muita freqüência. E mais:
do como um sintagma-padrão, que repete enquanto o espectador de cinema executa
o seu modelo básico ao longo de um certo um ato deliberado de sair de casa, comprar
tempo, com variações maiores ou menores. um ingresso e se introduzir na sala escura
O fato mesmo da programação televisual com a finalidade exclusiva de assistir a um
como um todo constituir um fluxo inin-ter- filme, o espectador de televisão é, em geral,
rupto de material audiovisual, transmitido um espectador involuntário, que se encon-
todas as horas do dia e todos os dias da tra “de passagem” no espaço da exibição,
semana, aliado ainda ao fato de que uma que em geral chega depois que o espetáculo
boa parte da programação é constituída de já começou e que provavelmente já terá se
material ao vivo, que não pode ser editado retirado antes que ele se acabe, conforme
posteriormente, exigem velocidade e racio- o modelo do telespectador “zapando” os

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canais televi-suais com seu controle remoto, bilitar a montagem macroestrutural, uma
mas também o do transeunte de um aero- vez que o programa pode ser interrompido
porto ou de uma estação de metrô, momen- a qualquer momento, e ao mesmo tempo
taneamente fisgado pela tela de um circuito precisa arranjar o material de tal forma a
fechado de televisão. Tudo isso quer dizer prender e interessar o espectador eventu-
que a atitude do espectador em relação à al, que está de passagem por aquele canal
mensagem televisual é não apenas eventu- e que precisa de imediato entender o que
al, como também dispersiva e distraída em está acontecendo, mesmo sem ter as infor-
grande parte das vezes. mações apresentadas anteriormente.
Diante dessas contingências, a pro- Há que considerar também a incorpo-
dução televisual se vê permanentemente ração do break à estrutura da obra. O “in-
constrangida a levar em consideração as tervalo comercial” surgiu, muito provavel-
condições de recepção e essa pressão acaba mente, por razões de natureza econômica,
finalmente por se cristalizar em forma ex- imposto pelas necessidades de financiamen-
pressiva. Um produto adequado aos mode- to na televisão comercial e talvez essa seja a
los correntes de difusão não pode assumir razão porque ele é tão mal compreendido
uma forma linear, progressiva, com efeitos (até algum tempo atrás, os franceses o cha-
de continuidade rigidamente amarrados mavam, pejorativamente, de saucis-sonage,
como no cinema, ou então o telespectador “fatiamento” do programa como se ele fosse
perderá o fio da meada cada vez que a sua um salsichão). Mas a sua função estrutural
atenção se desviar da tela pequena. A te- não se limita apenas a um constrangimento
levisão logra melhores resultados quanto de natureza econômica. Ele tem também
mais a sua programação for do tipo recor- um papel organizativo muito preciso, que é
rente, circular, reiterando idéias e sensações o de garantir, de um lado, um momento de
a cada novo plano, ou então quando ela as- “respiração” para absorver a dispersão e, de
sume a dispersão, organizando a mensagem outro, explorar ganchos de tensão que per-
em painéis fragmentários e híbridos, como mitem despertar o interesse da audiência,
na técnica da collage. Além disso, é preciso conforme o modelo do corte com suspense,
considerar que, na televisão, ocorre sempre explorado na técnica do folhetim. A melhor
uma intersecção de três tipos diferentes de prova disso é o fato de até mesmo as televi-
“edição”. Há, em primeiro lugar, a monta- sões estatais – aquelas que não dependem
gem interna do programa, que poderia pa- de publicidade para se manter – utilizarem
recer semelhante à de outros meios audio- o recurso do break em sua programação.
visuais, como o cinema por exemplo. Mas Segundo Balogh (1996: 152), típicos ganchos
há também uma outra “montagem”, que se para a divisão dos blocos são os momen-
dá no nível da macroestrutura da televisão tos de risco ou de decisão do relato, ou os
e que faz coexistir o programa stricto sensu momentos mais tensos no plano passional.
(uma telenovela, um telejornal etc.) com os Ela cita o caso dos momentos de suspense e
breaks e outros tipos de interrupções, além tensão na conquista amorosa entre Riobal-
de amarrar cada capítulo ou unidade com a do e Diadorim, na adaptação televisual de
sua continuidade no dia seguinte. Por fim, Grande Sertão: Veredas (1985, dirigido por
há a “montagem” que o próprio espectador Walter Avancini). Como se trata de uma
realiza, com sua unidade de controle remo- aproximação difícil (um caso de homos-
to, pulando de um programa para outro, de sexualidade entre jagunços), carregada de
uma emissora a outra, como um viajante erotismo, proibição, sentimento de culpa e
errando nas ondas hertzianas. Essas três afastamento físico, tem-se uma situação ide-
grandes estruturas de “montagem” se in- al para extrair dela vários ganchos de ten-
terpenetram e agem umas sobre as outras: são. Seccionando o relato no momento pre-
a montagem interna concorre para possi- ciso em que se forma uma tensão e em que

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o espectador mais quer a continuação ou o terado, o espectador aprende a situar com
desfecho, a programação de televisão excita rapidez uma série dentro de uma tipologia
a imaginação do público. Assim, o corte e o existente (Balogh, 1990: 112). Os norte-
suspense emocional abrem brechas para a americanos demonstram maior predileção
participação do espectador, convidando-o a pelos seriados de aventuras policiais, ficção
prever o posterior desenvolvimento do en- científica ou pelas comédias de costumes
trecho. familiares (sitcoms), os europeus preferem
Se os intervalos que fragmentam um as minisséries de dramas históricos, os japo-
programa de televisão fossem suprimidos e neses as animações (animês) derivadas dos
os vários capítulos diários fossem colocados quadrinhos (mangá) e os latino-americanos
em continuidade numa mesma seqüência, o as telenovelas de tendência melodramática.
interesse do programa provavelmente cairia Mas em condições de produção privilegia-
de imediato, uma vez que ele foi concebido das, é possível encontrar estruturas seriadas
para ser decodificado em partes e simulta- realmente interessantes, nas quais a repeti-
neamente com outros programas. Ninguém ção torna-se, como na música mini-malista,
suportaria uma minissérie ou telenovela a condição inaugural de uma nova drama-
que fosse apresentada de uma só vez (mes- turgia.
mo que de forma compacta), sem interrup- Na verdade, repetição não significa
ções e sem os nós de tensão que viabilizam necessariamente redundância. Ela é, pelo
o corte. Certa ocasião, pediram a Bob Wil- contrário, princípio organizativo de vários
son que apresentasse numa sala aberta ao sistemas poéticos. Peter Kivy, em seu livro
público o seu Video 50 (série de curtíssimos The Fine Arts of Repetition (1993), vê na repe-
sintagmas televisuais concebidos para se- tição a forma íntima mais profunda da mú-
rem inseridos aleatoriamente nos breaks sica, comparável apenas à tecnica da repeti-
de separação dos blocos de programas). O ção de padrões geométricos na arte da tape-
artista, entretanto, recusou-se a fazê-lo, ale- çaria, enquanto Iuri Lotman (1978: 187-235)
gando que seu trabalho havia sido pensado entendia também o verso poético como um
e realizado para a televisão, de forma que a discurso de repetições (fonológicas, rítmicas
sua recepção tinha de ser necessariamente e também a repetição como recurso de pro-
bloqueada, descontínua e distraída como dução de sentido). Discutindo a serialização
requer a tela pequena. Assim, não fazia sen- nas histórias em quadrinhos, Umberto Eco
tido emendar os fragmentos e exibi-los em (1970: 286) observa que o fluxo contínuo de
continuidade numa sala pública como a do variações sobre um mesmo esquema bási-
cinema. co possibilita criar uma espécie de “poésie
Lorenzo Vilches (1984: 57-70) define a ininterrompue”, cuja força não pode ser ex-
serialização como um conjunto de seqüên- perimentada através do contato com apenas
cias sintagmáticas baseadas na alternância uma, duas ou dez histórias, “mas só depois
desigual: cada novo episódio repete um de haver entrado a fundo nos caracteres e
conjunto de elementos já conhecidos e que situações, visto que a graça, a ternura ou o
fazem parte do repertório do receptor, ao riso nascem somente da repetição, infinita-
mesmo tempo em que introduz algumas va- mente cambiante, dos esquemas, nascem da
riantes ou até mesmo elementos novos. Na fidelidade à inspiração básica, e requerem
produção comercial mais banal (os chama- do leitor um ato contínuo e fiel de simpa-
dos “enlatados”), os esquemas narrativos tia.” Omar Calabrese (1987: 44), por sua
que se repetem costumam ser estereótipos, vez, rejeitando o senso comum que consi-
protótipos elementares ou padrões simples dera o repetitivo e o serial como o contrário
e previsíveis, podendo ainda ser facilmente do original e do artístico, vem a afirmar que
representados nos modelos narrativos de a produção seriada da televisão nos permite
Propp ou de Bremond. Com o consumo rei- pensar numa coisa nova, uma espécie de

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“estética da repetição”, baseada na dinâmi- rie, uma vaga promessa de continuidade e
ca que brota da relação entre os elementos progressão, embora cada episódio continue
invariantes e os variáveis. mantendo-se mais ou menos independente
Essa “estética da repetição” é muito dos outros, podendo ser acompanhado sem
bem exemplificada por Calabrese (1987: 55- problemas pelo espectador ocasional. No
56) através da análise que ele faz do seriado dizer de Calabrese, Bonanza consegue criar
norte-americano Bonanza (1960-1973), cujos diversos desníveis narrativos e temporais:
primeiros episódios foram dirigidos por “a história acabada em cada episódio, a his-
Robert Altman. Os elementos invariantes tória aberta da série e um modelo interme-
da série correspondem à iconografia básica diário que consiste em uma história aberta
do western, celebrizada pelo cinema: boia- para um número definido de capítulos” (p.
deiros, aldeias, saloons, bailes na praça, 56).
manadas de gado, corridas nas pradarias, Outros modelos de narrativa seriada
índios, country music etc. Aos poucos, vari- que procuram extrair o máximo do jogo
áveis vão sendo introduzidas, manchando entre variantes e invariantes são também
essa platitude inicial: surge um boxeador examinados por Calabrese. Ele cita, por
da Inglaterra e um japonês que não conse- exemplo, a série norte-americana Columbo
gue integrar-se ao grupo, o pistoleiro fica (1972-1979), que tem um único personagem
cego e assim por diante. No plano temático, principal – o detetive que dá título ao se-
os papéis que personificam o bem e o mal riado – e uma situação básica rígidamente
também vão sofrendo contínua redefinição estabe-lecida e infinitamente repetida: um
ao longo do seriado. Assim, os valores clás- crime quase perfeito, o ocultamento das
sicos do western, que parecem típicos nos provas, a competição de inteligências entre
primeiros episódios, vão sofrendo revisões o criminoso e o investigador, a descoberta
nos episódios posteriores, até redirecionar de um minúsculo erro do culpado e o des-
completamente a narrativa. Além disso, mas-caramento final. O interesse da série
temos aqui uma situação ficcional mais está justamente em promover sutis varia-
afinada com uma estrutura seriada do que ções em torno desse eixo temático aparente-
com um padrão narrativo de tipo clássico, mente estático. Na verdade, cada episódio é
no sentido aristotélico do termo. A história realmente um exercício de variações diegé-
é vaga: acompanha a saga da família Car- ticas e estilísticas em torno do tema central,
twright, proprietária do rancho Ponderosa, sempre assinado por diretores diferentes
em Virginia City, Nevada, composta basica- (alguns até bastante expressivos, como John
mente pelo pai Ben e os filhos Adam, Hoss Cassavetes e John Boorman), quase como
e Joe, e narra os problemas que a família se fossem encenações diferentes da mesma
tem de enfrentar com bandidos e índios história.
ou a ajuda que prestam aos outros colonos Se o enfoque, seguindo a pista de Ca-
em perigo. Não há um enredo linear, uma labrese, diz respeito às variações em torno
trama a ser seguida, um objetivo final a ser do idêntico, não há como deixar de citar um
perseguido (a não ser a própria autopre-ser- seriado brasileiro bastante inovador, o Ar-
vação da família), mas há um mecanismo mação Ilimitada (1985-1988), realizado para a
interno de mutação que modifica o estatuto Rede Globo sob a direção geral de Guel Ar-
dos personagens de um episódio a outro, raes. Entre as suas várias virtudes, o seriado
exigindo que o espectador reconsidere per- se distingue pela sua imensa capacidade de
manentemente o seu conhecimento e a sua metamorfose (ele nunca é a mesma coisa a
apreciação da história. Em cada semana, cada novo episódio) e pela sua voracidade
alguma coisa acontece que modifica o rumo em “deglutir” antropo-fagicamente todos
posterior dos acontecimentos e, como de- os outros formatos televisuais, para devol-
corrência, esboça-se, ao longo de toda a sé- vê-los em seguida sob a forma de paródia.

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Comparado com as outras séries brasilei- dos seriados norte-americanos (os episódios
ras do mesmo período – Malu Mulher, O Meu Amigo Mignum e A Dama de Couro),
Bem Amado, Carga Pesada, Plantão de Polícia, não raro absorvendo elementos formais da
Amizade Colorida etc. – o programa aparece telenovela, do telejornal, do videoclipe, da
nitidamente como um seriado atípico, pela ficção científica (o bebê Zeldinha, fruto da
maneira como joga com os esquemas da relação de Ronalda Cristina com algum ser
produção seriada. De um lado, há uma es- extraterrestre) e fazendo citações explícitas
trutura fortemente repetitiva, fundada no dos outros programas da Rede Globo e de
quarteto básico um tanto quanto estereotípi- toda a história do audiovisual ■
co – Juba e Lula, os protótipos dos garotões
esportistas ligeiramente alienados; Zelda, a
jornalista protofe-minista; Bacana, o “me- Referências
nor abandonado” nada carente – e nas suas
peripécias em torno da administração da BAKHTIN, Mikhail (1986). Speech Genres & Other Late Es-
estranha e suspeita comunidade/empresa says. Austin: University of Texas.
Armação Ilimitada. Mas o tom farsesco da
série demole todo e qualquer princípio de BAKHTIN, Mikhail (1981). Problemas da Poética de Dostoiévski.
estabilidade, garantindo a variabilidade in- Rio de Janeiro: Forense.
finita das combinações iconográficas, temá-
ticas e narrativas. Dependendo dos rumos BALOGH, Anna Maria (1990). “Televisão: serialidade, para-
que toma a(s) trama(s), Zelda tanto pode serialidade e repetição”. In Face, vol. 3, no. 1, jan/jun.
aparecer como uma feia e desengonçada
dona de casa, uma intelectual vetusta e es- BALOGH, Anna Maria (1996). Conjunções, Disjunções, Trans-
trábica, uma vamp sensual e irresistível e até mutações: da Literatura do Cinema e à TV. São Paulo: Anna-
mesmo uma Iracema alencariana (no epi- blume.
sódio Programa de Índio). Um dos persona-
gens mais descon-certantes é o camaleônico BARTHES, Roland (1988). O Rumor da Língua. São Paulo: Bra-
“chefe” de Zelda, o editor do jornal Correio siliense.
do Crepúsculo. Cada vez que ele aparece,
em cada bloco ou episódio, sua personali- BLANCHOT, Maurice (1959). Le Livre à venir. Paris: Gallimard.
dade muda completamente: ora ele parece
rígido e autoritário como um ditador, ora CALABRESE, Omar (1987). La Era Neobarroca. Madrid: Cáte-
dócil e submisso como um cachorrinho de dra.
estimação, ora ele parece estar apaixonado
por Zelda e faz tudo por ela, outras vezes DAWKINS, Richard (1979). O Gene Egoísta. Belo Horizonte:
a trata cruelmente, como a mais baixa das Itatiaia.
funcionárias. Às vezes, ele também se trans-
forma visualmente em porco, flor ou mario- DERRIDA, Jacques (1980). “The Law of Genre”. In Critical
nete, de acordo com o humor do bloco ou Inquiry, vol. 7, no. 8.1, Autum.
episódio. Além disso, o estilo narrativo da DUBOIS, Philippe (1992). “Video Thinks What Cinema
série é bastante indefinido, permitindo va- Creates”. In Jean-Luc Godard: Son + Image, R. Bellour,
riar o tempo todo entre um sem-número de M.L.Bandy, ed. New York: MOMA.
possibilidades estilísticas. Às vezes a narra-
tiva é conduzida como se fosse um progra- ECO, Umberto (1970). Apocalípticos e Integrados. São Paulo:
ma de rádio (as contínuas interrupções de Perspectiva.
Black Boy, o locutor-narrador dos primeiros
episódios), outras vezes como uma chan- GODARD, Jean-Luc (1985). Jean-Luc Godard par Jean-Luc Go-
chada ou programa de auditório, outras dard. Alain Bergala, éd. Paris: Étoile/Cahiers du Cinéma.
vezes ainda como uma paródia debochada

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 10 • junho 1999 • semestral 157


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