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ANTONIO CELSO RIBEIRO

CHARLES BAUDELAIRE E OILIAM LANNA: SIGNIFICANTES


SILÊNCIOS LUNÁTICOS

UNIVERSIDADE DO VALE DO SAPUCAÍ


POUSO ALEGRE
2006
2

ANTONIO CELSO RIBEIRO

CHARLES BAUDELAIRE E OILIAM LANNA: SIGNIFICANTES


SILÊNCIOS LUNÁTICOS

Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de


Mestrado em Lingüística-Linguagem e Sociedade
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
Eugênio Pacelli, Universidade do Vale do Sapucaí,
como parte dos requisitos para obtenção do título
de Mestre em Lingüística, sob orientação da Profa.
Dra. Mirian do Santos.

UNIVERSIDADE DO VALE DO SAPUCAÍ


POUSO ALEGRE
2006
3

Ribeiro, Antonio Celso.

Charles Baudelaire e Oiliam Lanna: significantes silêncios


lunáticos / Antonio Celso Ribeiro. - Pouso Alegre: Univás / Fafiep,
2006.
121 f.: il.

Orientadora: Mirian dos Santos.


Dissertação (Mestrado) - Universidade do Vale do Sapucaí,
Curso de Mestrado em Linguística - Linguagem e Sociedade.

1. Música. 2. Literatura. 3. Silêncio Fundador. 4. Pri-


meiridade. 5. Paráfrase. 6. Polissemia. 6. Pragmatismo. I. Mirian
dos Santos. II. Universidade do Vale do Sapucaí. III. Título.
4

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Mestrado em


Lingüística e aprovada em _________, pela banca examinadora
constituída pelos professores:

Professor Orientador Dra.Mirian dos Santos


Universidade do Vale do Sapucaí

Profa. Dra. Luciana Pagliarini de Souza


Universidade de Sorocaba

Profa. Dra. Berenice Maria Rocha Santoro


Universidade do Vale do Sapucaí
5

Aos meus pais Sebastião e Dolores


que juntos de Deus acompanham
minha trajetória
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço e também dedico este trabalho ao meu amigo e mestre Oiliam Lanna, pela
generosidade que me passou seus conhecimentos enquanto seu aluno na Universidade Federal
de Minas Gerais. Oiliam me despertou para a necessidade de se construir um caminho sólido
na profissão e na vida, abrindo “os olhos e os ouvidos” para o mundo, e principalmente, me
fez acreditar que ao mundo somente nos imporemos pelo conhecimento, e não pela força.

Agradeço profundamente ao amigo e colega Nélio Tanios Porto, pelo apoio


incondicional desde a elaboração do projeto inicial. Agradeço também aos amigos Adriana
Cardoso e Paulo de Souza, pelas calorosas discussões sobre Lingüística, Semiótica e Análise
do Discurso. Estas discussões muito contribuíram para o enriquecimento do meu texto.

Agradeço de maneira muitíssimo especial, o carinho, dedicação e paciência da minha


orientadora Prof. Dra. Mirian dos Santos, sem a qual este trabalho não seria possível.
Agradeço, igualmente, à Prof.ª Mirian por me aprofundar o interesse e conhecimento pela
Semiótica de Charles Sanders Peirce, um dos referenciais teóricos para essa dissertação.

Agradeço também à Prof. Dra. Eni Pulcinelli Orlandi pelas aulas maravilhosas, pela
sabedoria e pela obra prima que é o seu livro “As Formas do Silêncio no Movimento dos
Sentidos” – grande referencial teórico para essa dissertação.

Agradeço à UNIVÁS pela importante e inusitada iniciativa de nos prover o Mestrado


em Lingüística – área de Análise do Discurso de Linha Francesa e principalmente pela
generosidade de torná-lo multidisciplinar.

Finalmente, agradeço à minha família, em especial à minha irmã Izabel, pelo carinho,
dedicação e pelo interesse e cuidado extremado por minha pessoa.
7

“Las cosas que nos rodean están habitualmente mudas, pero, desde su silencio, nos
interrogan, nos hablan. El diálogo que, desde los primeros tiempos, el hombre ha entablado con
las cosas, es un diálogo mudo. Las cosas preguntan por su esencia, por su presencia en el mundo,
por su orden o su limitación; de allí nace la metafísica. Inicialmente, la filosofía – asombro,
pregunta y duda – es sólo un intento de dar respuesta a ese interrogante que se plantea al sujeto
desde el objeto. La epistemología nace de este diálogo mudo. Todo objeto es, así, para quien lo
observa con atención, un interrogante mudo. Nos movemos entre las cosas silenciosas sin oír sus
voces. Pasamos, sordos, entre el silencio de los animales. No percibimos el secreto rumor de cada
cosa, y, sin embargo, ese cosmo en miniatura que es cada una de ellas – la mesa, la lámpara, el
papel, el libro – está poblado de asombrosas energías, de música, de resonancia atómicas. Entre
las cosas, pasamos así en silencio. Pero no sólo hablamos con la palabra. El silencio es, también,
otra forma de expresión. Cada gesto habla. Cada ser nos habla, mudamente, con su presencia.
Cada figura es un conjunto de sílabas. Cada cosa, cada ente, como dicen los filósofos, nos habla
con su ser – que participa también del silencio universal. Si hay un lenguaje del silencio, como
hay otro de la palabra, el filósofo y el poeta son precisamente aquellos hombres que interpretan a
su modo el idioma de los diversos silencios; porque, así como hay variedades de voces y de
acentos y de cantos, o de músicas, hay también multiplicidad de silencios. Cada silencio tiene su
densidad, su luz o su opacidad, su significado” (HOLGUIN, 1969, p. 32).
8

RESUMO

O presente estudo que se insere na linha de pesquisa “Discurso, Artes, Mídia e


Sociedade” objetiva investigar a obra musical “Sortilégios da Lua” de Oiliam Lanna, sob o
ponto de vista do silêncio. Profundamente inspirada pela obra “Les Bienfaits de la Lune” do
poeta simbolista francês Charles Baudelaire (1821-1867), o trabalho musical de Lanna foi
confrontado com a obra de Baudelaire também a partir do ponto de vista do silêncio. Para tal
tomamos como referência principal o “silêncio como pré-significação” como instituído por Eni
Orlandi (2002), a partir da visão da Análise de Discurso de Linha Francesa. Tratamos também
do silêncio musical sob o ponto de vista do pragmatismo. Procuramos compreender o papel do
silêncio nas obras em questão, resgatando as suas condições de produção e investigando as
tensões entre paráfrase e polissemia nas duas obras. Por se tratar de uma pesquisa em
linguagem não-verbal, usamos como suporte teórico, além dos dispositivos analíticos da
Análise de Discurso de Linha Francesa, a Teoria Semiótica tal como foi proposta pelo
americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), em especial o seu conceito de “Primeiridade”,
que foi confrontado com o conceito de “Silêncio Fundador” proposto por Orlandi. Com este
estudo pretende-se estabelecer o papel do silêncio como elemento estrutural e coincidente tanto
na obra de Baudelaire quanto na de Lanna.

PALAVRAS-CHAVES: Música. Literatura. Silêncio Fundador. Primeiridade. Paráfrase.


Polissemia. Pragmatismo.
9

ABSTRACT

The present study which has been inserted on the research’s line of “Discourse, Arts,
Media and Society”, intends to investigate the musical work “Sortilégios da Lua” [“Sortileges
of the Moon”] by Oiliam Lanna, under the point of view of the silence. Deeply inspired by the
work “Le Bienfaits de la Lune” [“The Favors of the Moon”] by french simbolist poet Charles
Baudelaire (1821-1867), Lanna’s musical work was confronted with Baudelaire’s also from the
point of view of the silence. For this purpose we took as a main reference the “silence as pre-
significance” as instituted by author Eni Orlandi (2002) inside the view of the Discourse
Analysis of French School. We also dealt with the musical silence under the point of view of
the pragmatism. We attempted to understand the role of silence in such works (Lanna’s and
Baudelaire’s), rescuing their conditions of production and investigating along the course the
tensions between paraphrase and polissemy among them. Once we’re dealing with a Non-
verbal language research, besides the analytic devices of the Discourse Analysis of French
School, we also made use as theoretical support the Semiotic Theory just as it was proposed by
the American semioticist Charles Sanders Peirce (1839-1914), particularly his concept of
“Firstness” that should be confronted with the “Founder Silence” concept proposed by Orlandi.
With this study it intends to establish the paper of the silence as structural and coincident
element both in the work of Baudelaire as in the one of Lanna.

KEY WORDS: Music. Literature. Founder Silence. Firstness. Paraphrase. Polissemy.


Pragmatism.
10

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10

2 A MÚSICA COMO LINGUAGEM 14


2.1 Os elementos constitutivos da música 20
2.2 A semiótica e a música 31
2.3 A música como linguagem das emoções 51

3 A PRIMEIRIDADE PEIRCEANA E O SILÊNCIO FUNDADOR 57


3.1 Música de silêncios filosóficos e pragmáticos: analogias 62

4 O SILÊNCIO COMO PRÉ-SIGNIFICAÇÃO EM “LES BIENFAITS


DE LA LUNE” E EM “SORTILÉGIOS DA LUA” 68
4.1 Introdução 68
4.1.1 Les bienfaits de la lune 69
4.1.2 Os favores da lua 70
4.2 As condições de produção de “les bienfaits de la lune” e de
“Sortilégios da lua” 72
4.2.1 Os “poèts maldits” e o simbolismo 74
4.3 A migração dos sentidos de Baudelaire a Lanna 84
4.4 O silêncio como base para a criação 88
4.4.1 Silêncios discursantes, musicais e pragmáticos: confrontando
Baudelaire e Lanna 91
4.5 As marcas recuperadas 102
4.5.1 Baudelaire e Lanna: silêncios entre palavras e silêncios entre
notas musicais 108

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 111

6 REFERÊNCIAS 114
10

1 INTRODUÇÃO

Partindo do pressuposto que a linguagem musical é composta de sons, notas musicais, e


silêncios, pausas, e que a linguagem poética é composta de sons, palavras e silêncios, outros
sentidos não explicitados pelas palavras, o nosso trabalho irá enfocar e comparar estas duas
linguagens de naturezas distintas mas ao mesmo tempo com muitos elementos em comum.
A música, um dos objetos de estudo dessa dissertação, é uma arte que se serve de um
sistema de signos sonoros, ou seja, linguagem, como meio de expressão, enunciação do
pensamento e de idéias. Música então, é linguagem e linguagem não-verbal.
A poesia, o outro objeto de análise e confronto dessa dissertação, também é uma arte que se
serve de um sistema de signos gráficos e verbais, como meio de expressão, enunciação do
pensamento e de idéias. Poesia, portanto, é linguagem e linguagem verbal.
Pretendemos confrontar a obra de Baudelaire, em especial o poema “Les Bienfaits de la
Lune”, com a obra musical “Sortilégios da Lua” de Oiliam Lanna. O poema de Baudelaire foi
publicado na primeira metade do século XIX, integrando seu livro “Le Spleen de Paris”.
“Sortilégios da Lua” foi composta em Belo Horizonte em 1998, condicionada por uma profunda
impressão após a leitura do poema de Baudelaire. Baseamos, por conseguinte, na transposição ou
efeitos do verbal sobre o não-verbal.
Apesar da importância e necessidade da linguagem não-verbal, parece haver uma
supremacia da linguagem verbal sobre o universo do Homem. Esta posição fica mais clara nas
palavras de Orlandi (1995) quando afirma que, numa formação social como a nossa que é
dominada pela ideologia da interpretação verbal (mundo civilizado, mundo letrado, ocidental,
cristão), diante de qualquer objeto simbólico, o homem, enquanto ser histórico, é impelido a
interpretar, ou em outras palavras, a produzir sentidos. Reconheçamos, pois, que o verbal tem
uma função imaginária crucial na construção da legibilidade, da interpretabilidade das outras
linguagens. Se isto não é uma função de direito, como nos lembra Orlandi (1995), é, no entanto,
uma função de fato e não pode ser indiferente a isso, porém advertindo que não ser indiferente
não significa se embalar nos efeitos dessa “ilusão” (grifo da autora), mas procurar atravessá-la,
desrefratando o jogo de seus reflexos, de suas simulações. Ou seja, enfim – compreendê-la.
11

Este estudo se insere na linha de pesquisa “Discurso, artes, mídia e sociedade” do Curso de
Mestrado em Lingüística da Universidade do Vale do Sapucaí. Seu objetivo é estudar as relações
entre sistemas verbais (o poema “Les Bienfaits de la Lune” de Charles Baudelaire) e sistemas
sonoros (a composição musical “Sortilégios da Lua” para orquestra de cordas, de Oiliam Lanna),
que é um estudo que envolve duas teorias complexas: a Semiótica proposta por Charles Sanders
Peirce e a Análise de Discurso de Linha Francesa, como representada por Michel Pêcheux, aqui
embasada na obra maior de Eni Pulcinelli Orlandi em seu livro “As Formas do Silêncio no
Movimento dos Sentidos” (2002).
Estruturalmente, tanto “Les Bienfaits de la Lune” quanto “Sortilégios da Lua” seguem os
mesmos critérios: abundância de timbres, articulações, dinâmicas, andamentos e vozes
polifônicas. Se em Baudelaire “Les Bienfaits de la Lune” é livre na forma e na métrica (como
assimilado de Aloysius Bertrand [1807-1841]), em “Sortilégios da Lua” a sua estrutura rítmica
interna por outro lado beira o paradoxal: constituída de valores medidos mas com proporções
irregulares (quiálteras, notas pontuadas, síncopas, imbricações1, etc), o rigor estrutural destas
durações são comprometidas tanto pelas variações de andamento como pela própria estrutura
rítmica em si, fazendo com que a mesma soe como livre, imprecisa, incerta. Temos aqui a
atuação dos outros sentidos como proposto pela Análise de Discurso e também dos múltiplos
interpretantes peirceanos.
De todos os elementos citados acima, tanto na obra de Baudelaire quanto na obra de Lanna,
há um elemento que provoca em ambas todas as suas condições de existência: o silêncio.
Obviamente, não se trata aqui do silêncio acústico, embora não descartamos a possibilidade de
sua atuação, como de fato acontece de maneira pragmática na obra de Lanna e é abordado no
terceiro capítulo desta dissertação, mas do “Silêncio Fundador” ou fundante, tal como proposto
por Eni Orlandi (2002) – que significa o não-dito e o que dá espaço de recuo significante,
produzindo as condições para significar; e da “Primeiridade” proposta por Peirce: a Primeiridade
ou mônada é o começo, correspondendo às noções de acaso, indeterminação, vagueza,
indefinição, possibilidade, originalidade irresponsável e livre, espontaneidade, frescor,
potencialidade, presentidade, imediaticidade, qualidade, sentimento.

1
A imbricação se apresenta aqui pela união (ligadura) de notas com valores de duração longa com valores de
duração curta.
12

O Silêncio Fundador e a Primeiridade são, então, as condições encontradas para se buscar


compreender o processo de criação tanto da obra de Baudelaire quanto da obra de Lanna. As
relações de derivação da obra de Lanna da obra de Baudelaire se dará por tensões entre redes
parafrásticas e polissêmicas, como será abordado em tempo oportuno.
Dentro desta proposição, desenvolveremos o nosso estudo, sempre amparado pelos
conceitos da Semiótica peirceana e da Análise de Discurso de Linha Francesa, levando-se em
consideração que uma vez que a linguagem verbal (neste caso, o poema de Baudelaire) é
plenamente sustida pelos dispositivos teóricos da Análise do Discurso, o mesmo já não acontece
com a linguagem não-verbal (aqui, a obra musical de Lanna), precisando esta do apoio da
Semiótica para a sua investigação.
Na primeira seção intitulada “A música como linguagem”, tratamos de afirmar a música
como linguagem, em especial como a “linguagem das emoções”. Ainda nesta seção, expomos o
essencial da teoria epistemológica de Peirce e sua devida aplicação musical. A seguir
desvendamos os elementos constitutivos da música, desde seus elementos internos como a
manipulação dos mesmos em uma obra musical.
Na segunda seção, que denominamos “A primeiridade peirceana e o silêncio fundador”
evidenciamos o quadro teórico de nosso trabalho. Aqui os conceitos de Primeiridade e silêncio
fundador são abordados e confrontados. Através do uso de analogias foram então aplicados à
linguagem musical, sendo comparados com o silêncio pragmático e filosófico do compositor
americano John Cage.
Na terceira seção intitulada “O silêncio como pré-significação na obra ‘sortilégios da lua’”,
confrontamos a obra de Baudelaire com a obra de Lanna sob o ponto de vista do silêncio, usando
principalmente os pressupostos teóricos da Análise de Discurso de Linha Francesa, baseando nas
asserções de Eni Orlandi (2002).
O nosso corpus constará então do poema original de Baudelaire “Les Bienfaits de la Lune”
tal como foi editado por Gallimard, Paris em 2000, juntamente com uma tradução literal feita por
Antonio Celso Ribeiro. Temos também fragmentos do manuscrito autógrafo da partitura
“Sortilégios da Lua”, além de uma gravação realizada sob a regência do compositor pela
Orquestra de Câmara SESIMINAS MUSICOOP de Belo Horizonte, MG. O poema nos
mostrará, sob o ponto de vista da Análise do Discurso, seus timbres, articulações, nuances,
andamentos, vozes e, claro, os silêncios. Os exemplos musicais recortados da partitura original
13

intenciona apontar-nos esses mesmos timbres, articulações, nuances, etc. traduzidos sonoramente
em um jogo parafrástico e polissêmico. O silêncio aqui também é apontado não somente pela
ótica da Análise do Discurso, como também da Semiótica peirceana, através da recuperação das
marcas do poema na música.
Como nos recorda Martinez (2000) em seu artigo “A Sinestesia da Música com o Visual e
o Verbal”, a música consta, entre as diversas artes, como uma das formas mais autônomas de
organização do signo estético, sendo, no Ocidente, muitas vezes tomada como paradigma da arte
pura – da ‘arte por excelência’. Porém, os estudos da significação musical na atualidade têm
mostrado que este paradigma somente funciona em uma concepção particular da música, a da
música absoluta2, uma vez que a música pode ser associada a outras formas artísticas visuais e
verbais como a canção, a ópera, o cinema, a multimídia e a hipermídia. Estas linguagens, nos diz
Martinez (2000), canalizam suas significações através dos dois principais sentidos humanos, a
audição e a visão, que são, segundo vários autores, incluindo estetas não-ocidentais, os principais
sentidos estéticos.
De acordo com Peirce, a natureza de todo pensamento é de signo, cujo propósito é ser
interpretado, transformado em outro signo (PEIRCE apud MARTINEZ, 2000, p. 1). Partindo
deste pressuposto, procuraremos mostrar a transformação/migração dos sentidos na obra de
Baudelaire e de Lanna, desde a leitura do poema “Les Bienfaits de la Lune” (signo), a impressão
provocada pelo mesmo (interpretante) gerando a inspiração para a composição da obra musical
“Sortilégios da Lua”.
Em suma, amparado pelos conceitos da semiótica peirceana e da análise de discurso,
procuraremos afirmar a música como linguagem, uma vez que o nosso corpus, por se tratar de
linguagem verbal e linguagem não-verbal, per se já compreende, encerra a estrutura de
linguagem, condição sine qua non que demanda a utilização destes dois arsenais teóricos.

2
Música Absoluta: tipo de música instrumental livre de qualquer conexão com um texto, quer dizer, que não se
apóia em idéias ou associações secundárias.
14

2 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

Ultimamente, a música tem freqüentemente sido entendida como uma forma de


comunicação, uma linguagem. A ela tem sido dado um status de linguagem universal (Rolvsjord,
2004), uma linguagem que não depende de uma aprendizagem mediada culturalmente, uma vez
que, a partir de um entendimento ontogenético e filogenético, se reconhecem aspectos biológicos
universais que definem uma capacidade comunicacional musical humana inata. Em seu artigo
“Do Babies Sing a Universal Song?” Gardner (1981) relata o fenômeno conhecido com o nome
de “canção-de-Ur”. Trata-se de um tipo fundamental de melodia que crianças de dezoito meses a
dois anos e meio de idade em todo o mundo parecem cantar espontaneamente, sem tê-la
aprendido dos pais ou da cultura que as rodeia. Neste estágio as crianças utilizam os intervalos
musicais de segunda, terça menor e terça maior. Posteriormente incluem os intervalos de quarta e
quinta. Gardner constatou que, somente após o terceiro ano de vida é que o estilo musical
particular da própria cultura começa a influenciá-las, pondo fim, desse modo, às suas expressões
espontâneas e independentes da canção-de-Ur.3 (GARDNER apud TAME, 1984, p. 250-251).
Para Kristeva (1986a), uma linguagem se torna significante ou com sentido como uma
conseqüência da dialética entre o semiótico e o simbólico. Estas duas modalidades são aspectos
interagentes e inseparáveis de qualquer linguagem. É através destas duas modalidades e através
da relação entre elas que a linguagem faz sentido para o sujeito. A modalidade semiótica se
processa de duas maneiras: primeiramente, envolve um processo no qual o sujeito preenche o
signo com significação. O processo semiótico é um processo inconsciente no qual o signo é
articulado a uma função psicossomática ou unido a seqüências de metáforas e metonímias.
Segundo, a modalidade semiótica é relacionada a experiências de sentido direto, não mediado, e
não confia em categorias mediadas culturalmente. O ritmo, o timbre, a entonação e as dinâmicas
da língua contribuem para a sua significância através de experiências totalizadoras. A
modalidade semiótica na língua é articulada através de marcas e do fluxo da língua em si e é
experienciada como uma “corrente pulsante de energia”.4

3
Ur é um prefixo alemão que significa original, primevo.
4
Kristeva utiliza aqui o termo “Semiotic chora”, onde “chora” – palavra de origem grega – pode significar “terra”,
“país” e mesmo, numa última instância, “possibilidade”.
15

Santaella (2001) nos diz que o pensamento é linguagem (grifo nosso). Baseada nas
postulações peirceanas que “todo pensamento se dá em signos”, Santaella afirma que não há
pensamentos sem signos. E explica que, para que não se entenda essa postulação como
logocêntrica, ou seja, para não restringir o pensamento à sua forma exclusivamente verbal ou até
mesmo proposicional, Santaella lembra que Peirce levou a noção de signo muitíssimo longe até o
ponto de uma mera reação física ou comoção psíquica poder funcionar como signo. Mais longe
ainda, uma mera qualidade incerta de sentimento também já está apta a funcionar como signo.
Dessa maneira, qualquer coisa que esteja presente à mente, seja ela de uma natureza similar a
frases verbais, a imagens, a diagramas de relações de quaisquer espécies, a reações ou a
sentimentos, isso deve ser considerado como pensamento. As bases para se compreender como
funciona cada uma das espécies de pensamento estão nas extensivas classificações dos signos de
Peirce, cujo objetivo é delinear as diferenças que vão do signo genuíno ou pensamento
puramente abstrato até um simples sentimento indefinido ou quase-signo, isto é, um signo
degenerado no seu mais alto grau.
Vislumbrando a ponte entre pensamento e linguagem, consideremos que os signos podem
ser internos ou externos, isto é, podem se manifestar sob a forma de pensamentos interiores ou se
alojar em suportes ou meios externos, materiais. Exemplificando: o aparelho fonador, que nos
permite articular a fala, e o aparelho auditivo, que nos permite captar a fala, já são suportes quase
externos, ou melhor, intersticiais, pois se localizam no próprio corpo. Já os desenhos, pinturas, os
diferentes tipos de escrita, notações musicais, fotografias, cinema, tevê, etc. são meios externos
nos quais diferentes tipos de signos se corporificam.
Os tipos de signos estudados por Peirce são extremamente gerais e abstratos. São tipos
lógicos fundamentais que estão subjacentes a quaisquer linguagens manifestas, tais como a
música, as diferenciadas formas de visualidade e o discurso verbal. Essas modalidades podem se
misturar, o que necessariamente acontece quando elas tomam corpo, isto é, quando se
concretizam em suportes ou mídias específicas, vindo daí a enorme profusão de linguagens.
A modalidade simbólica é a modalidade do processo de significação que relaciona os
signos às categorias que organizam e estruturam nossa percepção de mundo. O mundo é
estruturado à medida que reconhecemos e definimos os objetos como representações de uma
categoria. A linguagem é a articulação de tais categorias que são semânticas, lógicas e possíveis
16

de comunicação. Estas categorias são criadas através de práticas sociais e culturais, e são
estáveis, mas não invariáveis historicamente.
Embora a linguagem verbal e a música sejam descritas freqüentemente como pólos
opostos, ambas possuem alguns pontos comuns como linguagem; a linguagem verbal e a música
são modos de expressões humanos que são construídos em contextos culturais, ideológicos e
históricos. Segundo, elas coexistem e freqüentemente se entrelaçam, havendo situações em que a
música pode ser parte da linguagem verbal ou em que a linguagem verbal pode ser parte da
música.
A música ocidental, tanto é escrita (notada, grafada) como “falada” (transmitida oralmente
de geração para geração)5. De acordo com Pinto (2001), um mal-entendido comum entre
pesquisadores não familiarizados com a documentação musical é que pensam estar analisando e
falando de música, quando na verdade discorrem sobre a letra. Isso acontece muitas vezes e
principalmente em trabalhos que versam sobre a música popular e folclórica. A língua escrita,
como a maior parte das línguas, é uma aproximação razoável da forma falada. Uma vez que a
forma escrita da música ocidental cruza as barreiras da linguagem humana, a escrita da música
ocidental tem uma similaridade funcional aos ideogramas chineses6. A forma escrita é
praticamente uma linguagem dentro de si própria. Suas possibilidades e regras são também as
suas restrições: escrever música é limitar o que pode ser expresso. Aqui música não é entendida
apenas a partir de seus elementos estéticos mas, em primeiro lugar, como uma forma de
comunicação que possui, semelhante a qualquer tipo de linguagem, seus próprios códigos.
Música é manifestação de crenças, de identidades, é universal quanto à sua existência e
importância em qualquer que seja a sociedade. Ao mesmo tempo é singular e de difícil tradução,
quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural.
Porém, em sua forma escrita, notada, a música apresenta um alto índice de
convencionalidade e universalidade, fazendo com que seus caracteres internos possam ser
decifrados e utilizados por qualquer cultura do planeta. A ‘tradução’ a que nos referimos acima
diz respeito aos aspectos sócio/histórico/ideológico de uma determinada manifestação musical,

5
A música oriental, por sua vez, resguardadas as devidas exceções, é predominantemente transmitida na sua forma
oral.
6
Para Carone Netto (1974), o ideograma é uma combinação de signos capaz de produzir um terceiro elemento, de
dimensão e grau diferentes daqueles; cada um dos signos corresponde, separadamente, a um objeto ou fato, mas sua
articulação conjunta corresponde a um conceito. O ideograma nasce, portanto, da fusão de hieróglifos separados.
Nas palavras do cineasta russo Sergei Einsenstein, “a simples combinação de dois ou três detalhes de ordem material
proporciona uma representação perfeitamente acabada de outra ordem – psicológica”.
17

reforçando a idéia de que a sua possível interpretação se faz pela compreensão das formações
discursivas em que a mesma esteja inserida, assim como de suas condições de produção. São
situações como essa em que permeia o equívoco proposto pela Análise do Discurso, ou seja, a
ilusão, a impressão de que o sentido é único e verdadeiro.
Simplificando, consideremos a forma escrita da música ocidental quando comparada com a
forma escrita de uma língua: é uma linguagem alfabética baseada nos 12 semitons temperados de
uma oitava. Na prática, a notação acomoda confortavelmente um alfabeto expandido de oito
oitavas. O número de oitavas é, em qualquer nível prático, finito, visto que a faixa de audição
humana é finita; não faria, pois, sentido escrever uma música que não pode ser ouvida.
A semelhança entre a música escrita e a linguagem humana escrita aparece quando se
considera a formação de palavras. Em todas as línguas humanas, seja a forma escrita alfabética
ou silábica, ou uma combinação dos elementos descritos, a forma escrita é linear, ou, em uma
terminologia mais adequada, seqüencial e unidimensional. As línguas alfabéticas geralmente
utilizam espaços para separar as palavras; vírgulas para separar frases; e ponto, travessão e sinal
de exclamação para separar as sentenças. A forma escrita da música é vista, de imediato, como
sendo bidimensional, ou seja, é sobre um espaço bidimensional que o seu alfabeto expandido é
desdobrado.
As línguas humanas possuem tanto a sintaxe como a semântica. A sintaxe trata da
organização e combinação das palavras e de suas regras e morfologia. A semântica trata do
significado das expressões de uma determinada língua ou como são atribuídos tais significados
para expressões específicas.
De modo análogo, a linguagem musical também possui tanto a sintaxe como a semântica.
Vejamos adequadamente esta questão:
O que a música significa? Stravinsky (1942) teria respondido que “o seu significado é o
seu desdobramento dramático de sua própria estrutura arquitetural e de suas relações internas”,
ressaltando um importante ponto de que a música é “essencialmente auto-referencial”. O
professor de Composição Raoul Pleskow, do C.W. Post College of Long Island University certa
vez, ao se referir à obra de um de seus alunos, comentou: “a música não precisa sempre soar
como anjos cantando, mas tem que fazer sentido”. Este sentido está em sua estrutura interna de
auto-referência; a música fala somente de si própria e pode, naturalmente, adquirir significados
simbólicos extramusicais. Mas isto não é a sua essência: sem o seu sentido próprio estrutural, ela
18

não passa de “sons não organizados”. É precisamente a relação entre os seus elementos que faz a
música ser o que é. Não ouvir ou escutar, atentar para estas relações é não ouvir música
(HAMMEL, 1997).
O que é o status tonalidade? Um componente bastante amplo de uma gramática profunda.
É a forma mais primitiva e profunda de coesividade arquitetural e está presente em qualquer
música que tenha a diapasão como parâmetro. O que é o status harmonia? Harmonia como
determinada por qual período da história da música? A harmonia, em seu sentido mais amplo não
tem nada a ver com o que soa bem ou não (o que é muito efêmero e dependente culturalmente),
mas tem a ver com as convenções concernentes a como as notas musicais são combinadas tanto
verticalmente como horizontalmente. Assim, tanto a música tonal quanto a música atonal
possuem conceitos e interesses harmônicos.
Stravinsky (1942) analisa a efemeridade do sistema harmônico ao afirmar que o sistema
aposentado da tonalidade clássica que serviu como a base para construções musicais de interesse
forçoso teve a autoridade de lei entre músicos por um período curto de tempo - um período muito
mais curto que normalmente é imaginado, estendendo somente da segunda metade do século
dezessete à primeira metade do século XIX. Segundo Stravinsky, a partir do momento em que os
acordes já não mais serviam para meramente cumprir as funções que lhes eram nomeadas pela
interação dos tons, mas, ao invés, se livraram de todo os constrangimentos para se tornar
entidades novas, livres de todas as amarras – daquele momento em diante, pode-se dizer que o
processo foi completado: o sistema diatônico sobreviveu o seu ciclo de vida.
A música pode ser analisada como uma arquitetura onde as partes somente possuem função
e forma quando vistas em relação ao todo. Uma estrutura sintática precisa estar presente para a
forma fazer sentido, isto é, ter coesividade. Da mesma forma que a gramática da língua inglesa
não gera automaticamente um Hamlet ou um Rei Lear, a sintaxe, por si, não determina a
estrutura.
Na linguagem humana, a semântica através da metáfora7 é inevitável. Segundo Hammel

7
Por metáfora, Hammel não se refere à distinção técnica estreita de símile feita em análise poética, mas pretende
incluir a noção de símile, que é dizer, quase como traduz a sua origem grega. A preposição “meta” possui diferentes
significados dependendo do caso que é utilizado: com o genitivo, se traduz como “com, em companhia de, entre”;
com o acusativo, se traduz como lugar ou tempo como “atrás, depois, em seguida”. A raiz “fora” (‘phor’) é
traduzida como “símbolo”, que por si já é uma metáfora, uma vez que a raiz é derivada de ‘phoreus’ que significa
“portador”. De qualquer forma, o acoplamento implicado por uma metáfora é um compartilhamento onde um pode
agir como símbolo para o outro.
19

(1997), a música possui também as suas metáforas e elas são, livremente falando, de dois tipos:
intrínseca e extrínseca.
As metáforas intrínsecas unem coisas somente dentro de um contexto musical e podem ser
divididas em duas classes: interior e exterior. As metáforas intrínsecas interior, bem como as
repetições, variações e transformações são partes da estrutura musical: dispositivos estruturais da
composição. As metáforas intrínsecas exterior abundam nas obras musicais onde os
compositores fazem citação de suas próprias obras e de outros compositores. Por exemplo, nas
“Variações sobre um Tema de Paganini” de Sergei Rachmanninov; em Bach citando Vivaldi;
Wagner citando “Dresden Amen” em sua ópera “Parsifal”; Max Reger citando Bach citando
BACH8, etc. Bach faz uso de metáforas estilísticas no seu “Concerto Italiano”, nas “Suítes
Inglesas”, “Suítes Francesas” e nas “Suítes Alemãs”.
As metáforas extrínsecas unem coisas de dentro de um contexto musical com coisas de
fora de um contexto musical. Este dispositivo permite aos compositores criarem situações
musicais interessantes como, por exemplo, a simulação de canto de pássaros em peças
orquestrais por Mahler e Strauss; ou ainda no “Messias” de Haendel, mais especificamente na
ária “And He Shall Shake9” – a escrita da linha vocal realmente passa a sensação de tremor.
Beethoven simula uma bela tempestade em sua “Sexta Sinfonia”. Categorizada como “música de
programa”, esta sinfonia não conta uma história, mas deduz uma imagem familiar, e esta
familiaridade é crucial à compreensão da metáfora. Uma música de programa verdadeira tem que
contar uma história. Neste sentido, somente a ópera representa a categoria, visto que o libreto
conduz o ouvinte, revelando um elo metafórico distinto entre a música, a história e os
personagens.
Em suma, música não são somente sons estruturados, mas, “um fenômeno sinestésico que
age diretamente no sistema nervoso humano por todos os sentidos além de ter seu apelo
cognitivo à mente musical analítica” (HAMMEL, 1997 p. 6).

8
Em língua alemã é possível escrever os nomes das notas musicais com as letras do alfabeto. Bach gostava de fazer
palíndromos com as letras e transformá-las em notas musicais e, posteriormente, transformá-las em música. Ele
escreveu uma fuga utilizando como tema as letras do próprio nome, transformadas em notas musicais, no caso:
B=si; A=lá; C= do; H= si bemol. Vários compositores utilizaram em suas obras este tema sobre o nome de BACH.
A arte da criptografia musical remonta à Idade Média e vem atraindo a atenção dos compositores ao longo da
História.
9
“E Ele tremerá” – uma das árias do Oratório de Natal “O Messias” do compositor barroco alemão G. F. Haendel.
20

2.1 Os elementos constitutivos da música

“O ouvido, este órgão do medo, só alcançou tanta


grandeza na noite e na penumbra de cavernas obscuras
e florestas, bem de acordo com o modo de viver da era
do receio”...
“Na claridade do dia o ouvido é menos necessário. Foi
assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite
e da penumbra.” (Nietzsche: Aurora)10.

A música, de acordo com Brito (2003) é uma linguagem que organiza sons e silêncios no
universo. Porém, falar sobre os parâmetros do som, não implica necessariamente em falar sobre
música, visto que, dentro de um ponto de vista exclusivamente tradicional, as características do
som não podem ser interpretadas como sendo a própria música. Ainda assim, a passagem do
sonoro ao musical se dá pelo relacionamento entre os sons (e seus parâmetros) e o silêncio. É
necessário que fique patente que esta afirmação somente se pode referir a uma concepção
tradicional da música, uma vez que na elaboração da chamada “Música Eletroacústica” a
fronteira entre o sonoro e o musical se (con)-funde. Vejamos as palavras de Caesar (1992) sobre
este tópico:

Já que não consigo estabelecer uma fronteira nítida que justifique


objetivamente a diferença entre o sonoro e o musical, estas duas palavras serão
sempre usadas apenas em sua vetorialidade: há eventos que apontam mais na
direção do som, assim como há os que apontam na da música. (...) ‘Evento’
tanto pode remeter ao 'sonoro' quanto ao 'musical', dependendo do que e do
como se ouve (CAESAR, 1992, p.2).

De acordo com Lacerda (2001) os elementos que compõem música podem ser distinguidos
como: som, ritmo, melodia e harmonia. O som, por sua vez, pode ser decomposto em vários

10
- 'Nacht und Musik - das Ohr, das Organ der Furcht, hat sich nur in der Nacht und in der Halbnacht dunkler
Wälder und Höhlen so reich entwickeln können, wie es sich entwickelt hat, gemäβ der Lebensweise des
Furchtsamen, das heiβt, des allerlängsten menschlischen Zeitalter, welches es gegeben hat: im Hellen ist das Ohr
weniger nöthig. Daher der Charakter der Musik, als einer Kunst der Nacht und Halbnacht.' Friedrich Nietzsche.
Morgenröth, (1881), aforisma 250. Gesamte Aufgabe, COLI-MOLINARI, vol. v, 1982. p.116.
21

elementos, sendo: altura, duração, intensidade e timbre. Para Lacerda (2001), o som representa
tudo aquilo que impressiona o ouvido, sendo o resultado da vibração entre dois objetos ou dois
corpos. Do ponto de vista da acústica, o som é uma onda mecânica longitudinal cuja faixa de
audibilidade para o ser humano está, aproximadamente, entre 20 Hz e 20.000 Hz de freqüência11.
Se a onda longitudinal propagar-se com freqüência inferior a 20 Hz ela é denominada infra-som
e se a sua freqüência for superior a 20.000 Hz é denominada ultra-som.
A altura do som, usualmente expressa em ciclos por segundo (cps), em Hertz (Hz) ou
simplesmente pelas notas musicais, a saber, do, re, mi, fá, sol, la, si, é diretamente proporcional
ao comprimento da onda. Assim, quando mais alto (agudo) for o som, maior será a sua
freqüência e menor seu comprimento de onda.
A intensidade do som, usualmente expressa em decibéis (dB), depende da energia com a
qual um som é produzido e está diretamente relacionada com a amplitude sonora. Ou seja,
quanto maior for a energia de compressão e descompressão molecular, maior será a amplitude da
onda e a intensidade (volume) do som. Quanto maior for a quantidade de energia (por unidade de
tempo) que a onda sonora transporta até nossos ouvidos, maior será a intensidade do som que
perceberemos. Aceita-se o dB como unidade de medida por tratar-se de uma unidade logarítmica
que simplifica os cálculos, além de ajustar-se perfeitamente às medições psicofísicas, isto é, às
comparações quantitativas entre as sensações e os fenômenos físicos que as produzem.
A duração é a quantidade de tempo durante o qual determinado fenômeno persiste, ou
simplesmente um intervalo de tempo. Em música, a duração é o tempo em que uma nota é tocada
ou o tempo entre duas notas (pausa). As durações são os elementos constituintes do ritmo. Em
geral, o ritmo é o tempo que demora a repetir-se um fenômeno repetitivo qualquer, mas a palavra
é normalmente usada para falar do ritmo quando associado à música, à dança, ou a parte da
poesia, onde designa a variação (explícita ou implícita) da duração de sons com o tempo. A
duração de um fenômeno pode ser medida em unidades absolutas de tempo (segundos e seus

11
Freqüência é um termo empregado na Física para indicar a velocidade de repetição de qualquer fenômeno
periódico. Define-se como o número de vezes que se repete um fenômeno na unidade de tempo. A unidade de
medida da freqüência é o Hertz (Hz), em honra ao físico alemão Heinrich Rudolf Hertz, onde 1 Hz é um evento que
tem lugar uma vez por segundo. Alternativamente, podemos medir o tempo entre duas ocorrências do evento
(período) e então a freqüência é a inversa deste tempo:

, onde T é o período, medido em segundos. A freqüência de uma onda, por exemplo, é a quantidade de
vezes que ela atinge a sua amplitude máxima (ou mínima) pelo tempo gasto. Na Física, é chamado de período o
tempo necessário para que um movimento realizado por um corpo volte a se repetir.
22

múltiplos e submúltiplos), útil na descrição precisa deste evento. Em música, no entanto, a noção
de duração é relativa. Em uma estrutura rítmica, é mais importante a relação entre as durações
das notas do que sua duração absoluta.
Na notação musical ocidental, as durações são representadas pelos símbolos utilizados na
partitura, também chamados de figuras. Hoje em dia a maior figura é a semibreve.
A tabela 1 mostra a duração das notas como frações da semibreve:

Duração Nome da Figura


2 breve – (arcaica - não se usa desde a música medieval)
1 semibreve
½ mínima
¼ semínima
1/8 colcheia
1/16 semicolcheia
1/32 fusa
1/64 semifusa

Tabela 1: duração das notas musicais em uso atualmente. Fonte: Wikimedia

Temos, então, a seguinte representação gráfica das figuras, por ordem decrescente de
duração: semibreve, mínima, semínima, colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa. Cada uma
representa meio tempo da anterior:

Fig. 1: figuras positivas. Fonte: Wikimedia

As pausas se subdividem também como as notas em termos de duração, e representam o


silêncio, isto é, o tempo em que a voz não produz som nenhum. A correspondência é feita na
seguinte ordem:

Fig. 2: figuras negativas. Fonte: Wikimedia


23

A duração de cada uma destas figuras depende da fórmula de compasso12 que define qual
das notas será tomada como unidade de tempo (pulso) e quantas unidades existem em cada
compasso. Em um compasso 4/4, por exemplo, a unidade de tempo é a semínima (1/4 de uma
semibreve) e há 4 pulsos em cada compasso.
Outro fator que influencia a duração de uma nota13 é o andamento14, ou seja, a freqüência
dos pulsos que define quanto tempo dura o pulso. Usando o mesmo exemplo anterior, se tocamos
uma música em 4/4 com um pulso que dura cerca de 1s, isso resulta em um ritmo lento. Se a
unidade tiver metade dessa duração, o ritmo será duas vezes mais rápido. Por isso dizemos que,
em música, as durações são relativas.
Em música, chama-se timbre à característica sonora que define que um som foi produzido
por um determinado instrumento musical e que nos permite diferenciá-los. Quando ouvimos uma
nota tocada por um piano e a mesma nota (uma nota com a mesma altura) produzida por um
violino, podemos imediatamente identificar os dois sons como tendo a mesma freqüência, mas
com características sonoras muito distintas. O que nos permite diferenciar os dois sons é o timbre
instrumental. De forma simplificada podemos considerar o timbre como sendo a identidade
sonora de um instrumento.
Embora as características físicas responsáveis pela diferenciação sonora dos instrumentos
sejam bem conhecidas, a forma como ouvimos os sons também influencia na percepção do
timbre. Este é um dos objetos de estudo da psicoacústica, que estuda como as pessoas percebem
os sons, tentando explicar a resposta subjetiva de tudo o que ouvimos. A psicoacústica relaciona
12
Compasso é uma unidade métrica constituída de tempos agrupados em porções iguais, de 2 em 2 (compasso
binário), de 3 em 3 (compasso ternário) e de 4 em 4 (compasso quaternário) e suas combinações, sendo separados
um dos outros por um travessão ou barra de compasso.
13
Nota musical é o termo empregado para designar o elemento mínimo de um som, formado por um único modo de
vibração do ar. Sendo assim, a cada nota está associada uma freqüência cuja unidade mais utilizada é o Hz, a qual
descreverá em termos físicos se a nota é mais grave ou mais aguda.
14
Chama-se de andamento ao grau de velocidade do compasso. Ele é determinado no princípio da peça e faz uso de
terminologia universal em língua italiana:
• Largo, Grave e Lento: são os movimentos mais vagarosos. Exigem um estilo largo e severo.
• Larghetto: menos lento que os antecedentes
• Adágio: menos lento que o Larghetto. Sua expressão deve ser terna e patética.
• Andante: menos lento que o Adágio. Sua expressão é mais amável e elegante.
• Andantino: um pouco mais ligeiro que o Andante. Execução agradável e compassada.
• Allegretto: um pouco mais ligeiro que o precedente.
• Allegro: movimento alegre e vivo.
• Vivace: com maior rapidez que o Allegro.
• Presto: mais vivo que o precedente. Exige execução veloz e animada.
• Prestíssimo: é o último grau de velocidade. Emprega-se na execução toda a presteza possível.
24

as propriedades físicas dos sons com as respostas fisiológicas e psicológicas evocadas por elas.
Para isto utiliza conhecimentos sobre a anatomia do ouvido humano, os processos neurológicos
de transporte de informações, e até a interpretação da informação aural pelo cérebro.
Apesar de ser um fenômeno conhecido há séculos, somente há algumas décadas, com o
advento da eletrônica, foi possível compreender a fundamentação física do timbre com mais
precisão. O La central do piano possui a freqüência de 440 Hz. A mesma nota produzida por um
violino possui a mesma freqüência. O que permite ao ouvido diferenciar os dois sons e
identificar sua fonte é a forma da onda e seu envelope sonoro. Ou seja, quando uma corda, uma
membrana, um tubo ou qualquer outro objeto capaz de produzir sons entra em vibração, uma
série de ondas senoidais é produzida. Além da freqüência fundamental, que define a nota, várias
freqüências harmônicas também soam. O primeiro harmônico de qualquer nota tem o dobro de
sua freqüência. O segundo harmônico tem freqüência uma vez e meia maior que o primeiro e
assim por diante. Qualquer corpo em vibração produz dezenas de freqüências harmônicas que
soam simultaneamente à nota fundamental. No entanto o ouvido humano não é capaz de ouvir os
harmônicos com freqüência superior a 20.000 Hz. Além disso, devido às características de cada
instrumento ou da forma como a nota foi obtida, alguns dos harmônicos menores e audíveis
possuem amplitude diferente de um instrumento para outro.
Se somarmos a amplitude da freqüência fundamental às amplitudes dos harmônicos, a
forma de onda15 resultante não é mais senoidal, mas sim uma onda irregular cheia de cristas e
vales. Como a combinação exata de amplitudes depende das características de cada instrumento,
suas formas de onda também são muito distintas entre si.
A maior parte dos timbres sonoros é constituída por formas de onda complexas,
compostas basicamente por combinações das ondas básicas16. Na prática, qualquer forma de
onda complexa pode ser decomposta em uma série infinita de ondas senoidais sobrepostas.
Como estas ondas contribuem para definir a forma de onda, são chamados de formantes ou
parciais.
Vejamos alguns exemplos de forma de onda:

15
Forma de onda é a representação gráfica da forma com que uma onda evolui ao longo do tempo, obedecendo a
funções matemáticas periódicas. Para cada função, a evolução da amplitude da onda ao longo do tempo é diferente e
define uma forma de onda diferente. Esta característica das ondas é importante principalmente para a determinação
do timbre de um som.
16
As formas básicas são: senoidal, triangular, quadrada e ‘dente-de-serra’.
25

Fig. 3: Forma de onda produzida por uma flauta (senoidal).


Fonte: Wikimedia

Fig. 4: Forma de onda produzida por um xilofone. Fonte: Wikimedia

Existem formas de onda que são compostas de formantes não múltiplos da freqüência
fundamental. Normalmente isso produz um som sem altura definida e são típicos de instrumentos
de percussão, bem como da maioria dos sons não musicais. A esses sons dá-se o nome de ruído
branco. É o som mais complexo possível de ser obtido, porque possui todas as freqüências do
espectro sonoro audível soando simultaneamente.

Fig. 5: Ruído branco. Fonte: Wikimedia


26

Concomitantemente aos parâmetros apresentados acima, três outros parâmetros são


elementos constitutivos e importantes da música. São eles: o ritmo, a melodia e a harmonia.
De acordo com Lacerda (2001), o ritmo, a despeito de sua complexidade, pode ser definido
sumariamente como movimento que ocorre em intervalos regulares. É independente da música,
mas a música não dispensa o ritmo. Retomando o que já foi dito anteriormente, o ritmo é o
tempo que demora a repetir-se um fenômeno repetitivo qualquer, como por exemplo, o
movimento pendular de um metrônomo ou um relógio, ou ainda, nos batimentos cardíacos, mas
a palavra é normalmente usada para falar do ritmo quando associado à música, à dança, ou a
parte da poesia, onde designa a variação (explícita ou implícita) da duração de sons com o
tempo.
A melodia é, talvez, o parâmetro que possua o maior número de definições nos dicionários
técnicos, enciclopédias e livros de teoria geral da música. Talvez por isso mesmo, este parâmetro
possa apresentar algumas acepções que levam em conta contextos sócio-culturais. Vejamos:
Segundo o Compact Oxford English Dictionary, a palavra “melodia” surge no século XII,
proveniente do termo francês mélodie, que por sua vez, origina-se do grego melōidia (melos =
“membro”, “articulação” + ōidē = “canção”). Num sentido mais amplo, temos então as seguintes
acepções:
a. canção: uma série de notas musicais que formam uma unidade distinta. São reconhecíveis
como uma frase e normalmente possuem um ritmo distinto.
b. estrutura musical linear: é a estrutura linear de uma peça de música na qual notas simples
seguem uma às outras.
c. tema principal: a parte primária e mais reconhecível em uma peça harmônica de música.
d. qualidade musicalmente expressiva: a qualidade musicalmente expressiva de alguma
coisa, especialmente poesia.
e. lírico musical: um poema que empresta a si mesmo facilmente a ser musicado ou
cantado.

O Compact Oxford English Dictionary anota ainda que melodia “é uma seqüência de notas
que nos satisfaz musicalmente”. Somente a título de elucidação chamamos a atenção para um
sentido implícito nesta definição que é uma convenção cultural limitadora, marcada pelo verbo
“satisfazer”.
27

Por fim, temos a harmonia, cuja definição clássica diz que é “a arte ou ciência dos acordes
e de suas relações mútuas”. Ou seja, a harmonia trata da combinação de sons simultâneos. É um
elemento muito complexo dentro da música, sendo seu uso sujeito a regras institucionalizadas
desde o fim da Idade Média. Seu apogeu se deu no período Barroco, ou seja, entre os anos de
1600 e 1750. Seu desenvolvimento se deu paralelamente ao advento das barras de compasso.
Sem métrica regular, ficaria muito complicado qualquer tipo de harmonização ou de contraponto.
Enquanto a melodia define o desenvolvimento horizontal de uma música, isto é, a sucessão de
notas uma após as outras, a harmonia define o desenvolvimento vertical, ou seja, as notas que
serão tocadas simultaneamente.
Uma vez que todos os elementos constitutivos da música se inter-relacionam, temos, de
acordo com Brito (2003) as seguintes conexões: a altura é o parâmetro relacionado à criação de
linhas melódicas e harmonias. A duração conecta-se com a organização do ritmo. A intensidade
encontra correspondente musical na expressão dinâmica e também no ritmo. O timbre
personaliza, dá cor, caráter. O timbre é o elemento de identidade da música.
Todos estes elementos relacionados formam uma composição musical. Porém, como já
abordado antes, estes elementos per se somente se inserem em uma concepção particular da
música - a da chamada ‘música absoluta’, ou seja, uma composição instrumental livre de
qualquer conexão com um texto, idéias ou associações secundárias. É o caso de muitas obras
onde o compositor as identifica apenas como um número ou uma letra, sem nenhuma outra
referência extramusical. No nosso estudo, ao contrário, interessa-nos exatamente estes elementos
extramusicais. Neste caso, os elementos estimulantes que conduzem à criação de uma obra
artística. Na análise destes elementos, como veremos posteriormente, utilizaremos os
pressupostos teóricos da semiótica peirceana e da análise do discurso.
No que diz respeito à composição musical, analisemos um pouco mais detalhadamente
como se processa o ato criador.
De acordo com Brito (2003), a criação musical ocorre por meio de dois eixos – a criação e
a reprodução – que garantem três possibilidades de ação: interpretação, improvisação e
composição.
A interpretação é a atividade ligada à imitação e reprodução de uma obra. Mas interpretar
significa ir além da imitação por meio da ação expressiva do intérprete. De acordo com o
Compact Oxford English Dictionary, a palavra interpretação pode se referir a uma representação
28

mental do sentido ou significado de algo. É o ato de interpretar algo como expresso em uma
performance artística. Interpretar é, numa certa instância, capitular, retribuir, devolver. A
interpretação resulta em uma explicação – uma explicação de algo que não está imediatamente
óbvio. Peirce (apud SANTAELLA, 1983, p. 67) nos diz que há três elementos que constituem
todas as experiências. Eles são as categorias universais do pensamento e da natureza:
primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva, seu frescor, sua
originalidade irrepetível e liberdade. Secundidade é aquilo que dá à experiência seu caráter
factual, de luta e confronto. Terceiridade que aproxima um primeiro e um segundo numa síntese
intelectual, corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual
representamos e interpretamos o mundo. Conectando estes conceitos peirceanos à interpretação
de uma obra musical, temos:
• Primeiridade: a primeira impressão da obra grafada no papel; as primeiras
possibilidades sonoras, o ainda não soado prestes a irromper em uma experiência
sonora única e irrepetível.
• Secundidade: o real da obra grafada – a partitura. Fase de decodificação,
tradução, pré-interpretação, análise do material escolhido. Processo de escolhas,
caminhos, direções. Trajeto que vem da mera possibilidade, das pré-imagens para
a realização (tornar real) da obra em evento sonoro.
• Terceiridade: a performance da obra em si – transformação da notação musical
em sons, de acordo com a intenção do compositor, num processo de co-autoria
(qualquer intérprete, ao executar uma obra musical outra, está trabalhando com a
possibilidade da co-autoria. Este processo se dá pela capacidade interpretativa do
ser humano e pela necessária irrepetibilidade per se dos eventos).
Ainda dentro da Semiótica proposta por Charles S. Peirce, a interpretação de uma partitura
musical, ou seja, a realização ou transformação de seu aspecto notável, gráfico, em evento
sonoro somente se faz possível a partir da experiência colateral de um determinado sujeito.
Segundo Santaella (2000), é em virtude da diversidade irredutível entre signo e objeto que Peirce
introduz a noção de experiência colateral com aquilo que o signo denota, ou representa, ou se
aplica, isto é, seu objeto:
29

(...) O Signo cria algo na mente do intérprete, algo esse que foi também, de
maneira relativa e mediada, criada pelo Objeto do Signo, embora o Objeto seja
algo essencialmente diverso do Signo. Ora, essa criatura do Signo chama-se
Interpretante. É criada pelo Signo, mas não pelo Signo qua membro de
qualquer dos Universos a que pertence; mas foi criado pelo Signo na sua
capacidade de receber a determinação do Objeto. É criado numa Mente (em
que medida esta mente deve ser real, é o que veremos). Toda esta parte da
compreensão de um Signo para a qual a Mente interpretadora necessitou de
observação colateral acha-se fora do Interpretante. Com “observação colateral”
não quero dizer intimidade com o sistema de signos. O que assim é inferido
não é colateral. Pelo contrário, constitui o pré-requisito para conseguir
qualquer idéia significada do signo. Por observação colateral, refiro-me à
intimidade prévia com aquilo que o signo denota (...) (PEIRCE apud
SANTAELLA, 2000, p. 35).

Ao traduzir esta experiência colateral para transformar uma partitura musical em evento
sonoro, é necessário traduzir competentemente todos os ícones, índices e símbolos contidos na
obra em questão. Uma partitura musical é um complexo de signos com representações e funções
distintas, necessários à tradução de uma concepção mental de uma determinada música em
eventos sonoros físicos. Os símbolos, hipoícones e índices utilizados na grafia de uma obra
musical são convencionais e típicos da cultura ocidental. São também, de certa forma, universais,
pois abrangem, virtualmente, quase todas as culturas do planeta, devido à sua disseminação
através das migrações dos povos e processos colonizadores. São considerados símbolos, em uma
partitura, os elementos gráficos que remetem à precisão dos sons em relação às alturas como por
exemplo, as claves de Do, Sol e Fá (Fig. 1) e as notas musicais, a saber: do, ré, mi, fá, sol, la, si
e suas respectivas posições dentro do espectro sonoro, i.e. suas freqüências de oscilação por
segundo, numa escala que vai de La-2 a C+7 (Fig. 2 mostra parcialmente esta extensão):

Fig. 6: claves representando todas as alturas musicais. Fonte: Wikimedia


30

Fig. 7: extensão parcial das notas musicais. Fonte: Wikimedia

Sempre reforçando o caráter convencional e universal da escritura musical ocidental,


considera-se também como símbolos os signos indicadores de dinâmica que são sinais que se
referem à intensidade, som e bem como a "cor" que deve ser tocada cada nota de uma
determinada peça musical. O espaço sonoro compreendido entre os sons mais fortes e mais
fracos é articulado em música de acordo com esta escala:

ffffff ou ffff ou fff: para ser tocado com a maior intensidade possível
ff: fortíssimo
f: forte
mf: mezzo forte (meio forte)
mp: mezzo piano (meio suave)
p: piano (suave)
pp: pianissimo (muito suave)
ppp ou pppp ou pppppp: mais do que pianíssimo. Esta dinâmica beira a inaudibilidade.

A passagem de uma sonoridade para outra pode ser repentina ou gradual. Uma variação
repentina é expressa por meios como:

più : mais
meno: menos
subito: subitamente
Ex: più f subito p : tocar mais forte e subitamente variar para suave.

É possível também combinar duas indicações de dinâmica contrastantes, como fp. A


variação gradual é, ao contrário, indicadas pelos sinais gráficos < que indica o aumento
progressivo da sonoridade e > que indica a diminuição progressiva da mesma.
31

Reiterando, apesar de todos estes elementos mencionados poderem formar uma


composição pura, o nosso estudo envereda, ao contrário, pelos elementos extramusicais, ou como
denominamos, elementos estimulantes que conduzem à criação de uma obra artística. Visando
aprofundar um pouco mais esta questão, precisaremos compreender melhor o mecanismo de
funcionamento da semiótica peirceana. Assim, será necessário retomarmos os eixos básicos desta
semiótica para a sua posterior aplicação à análise musical.

2.2 A semiótica e a música

Peirce entende por fenômeno, palavra derivada do grego Phaneron, tudo aquilo, qualquer
coisa, que aparece à percepção e à mente. A fenomenologia tem por função apresentar as
categorias formais e universais dos modos como os fenômenos são apreendidos pela mente
(SANTAELLA, 2002, p. 7).
Os estudos que empreendeu levaram Peirce à conclusão de que há somente três elementos
formais e universais em todos os fenômenos que se apresentam à percepção e à mente. Num
nível de generalização máxima, esses elementos foram chamados de Primeiridade, Secundidade
e Terceiridade.
A Primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com o acaso, possibilidade,
qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada. A Secundidade está ligada às idéias de
dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida. A
terceiridade diz respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. A forma mais
simples de Terceiridade, segundo Peirce, manifesta-se no signo, visto que o signo é um primeiro
(algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou
representa) a um terceiro (o feito que o signo irá provocar em um possível intérprete).
Para Santaella (2002), de tudo isto se conclui que a fenomenologia peirceana fornece as
bases para uma semiótica anti-racionalista, antiverbalista e radicalmente original, visto que nos
permite pensar como signos, ou melhor como quase signos fenômenos rebeldes, imprecisos,
vagamente determinados, manifestando ambigüidade e incerteza, ou ainda fenômenos
irrepetíveis na sua singularidade. É por isso que qualquer coisa pode ser analisada
32

semioticamente, desde um suspiro, uma música, um teorema, uma partitura, um livro,


publicidades impressas ou televisivas, incluindo a percepção que temos dela, na sua natureza de
signos e mistura entre eles.
Tal potencialidade é, de fato, o resultado da ligação muito íntima da semiótica com a
fenomenologia. É desta que advém a possibilidade de se considerar os signos e interpretações de
primeira categoria (meros sentimentos, emoções), de segunda categoria (percepções, ações e
reações) e de terceira categoria (discursos e pensamentos abstratos), que tornam muito próximos
o sentir, o experimentar e o pensar. São estas misturas que estão muito justamente
fundamentadas nas diferentes classes de signo estudadas por Peirce. (SANTAELLA, 2002, p.7 -
11)
Nesta arquitetura filosófica, a Semiótica ou Lógica vem a ocupar uma importante posição
na obra peirceana, cujo interesse pela observação direta dos fenômenos, nos modos como eles se
apresentam à mente, fez com que as então chamadas ‘categorias universais’ – pudessem ser
divisadas. Essas categorias universais – que são elementos formais do pensamento, foram
construídas por Peirce a partir da Fenomenologia que na definição de Santaella (1983), trata-se
de um estudo que, suportado pela observação direta dos fenômenos, discrimina diferenças nesses
fenômenos e generaliza essas observações a ponto de ser capaz de sinalizar algumas classes de
caracteres muito vastas, as mais universais presentes em todas as coisas que a nós se apresentam.
Nessa medida, são três as faculdades que devemos desenvolver para essa tarefa: 1) a capacidade
contemplativa, isto é, abrir as janelas do espírito e ver o que está diante dos olhos; 2) saber
distinguir, discriminar resolutamente diferenças nessas observações; 3) ser capaz de generalizar
as observações em classes ou categorias abrangentes. Esse esforço intelectual de Peirce,
conforme ele confessou em várias cartas, mal interrompido sequer para o sono, vieram à luz em
um artigo intitulado “Sobre uma nova lista de categorias” – as suas três categorias universais de
toda experiência e todo pensamento. Essas categorias foram denominadas a princípio: 1)
Qualidade, 2) Relação e 3) Representação. Dessas categorias, Peirce viria a elaborar o seu estudo
da significação das coisas, culminando no conceito triádico de signo: Signo, Objeto e
Interpretante. Nas suas próprias palavras, Peirce assim conceitua o Signo:

Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto,


num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo
representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto
33

implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine
naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação
da qual a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a causa mediata é
o objeto, pode ser chamada o Interpretante (SANTAELLA, 1983, p. 78)

Em outras palavras, o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. O
signo não é o objeto, apenas está no lugar do objeto. Por fim, o signo só pode representar seu
objeto para um intérprete, e porque representa seu objeto, produz na mente desse intérprete
alguma outra coisa (um signo ou quase-signo) que também está relacionada ao objeto não
diretamente, mas pela mediação do signo (SANTAELLA, 1983, p. 79). Trataremos a partir daqui
da importante questão do interpretante peirceano e seu papel dentro da composição musical.
De acordo com Monelli (1992), Peirce considerava que a semiótica – o funcionamento de
algo que como um signo – estava presente quando três coisas entravam em jogo: um signo, um
objeto e um interpretante. Monelli exemplifica esta tríade da seguinte maneira: uma placa de
trânsito indica a proximidade de um cruzamento. Este signo-função requer que um motorista que
se aproxima faça a interpretação. Há pessoas que podem ser incapazes de interpretá-lo dessa
maneira. O motorista interpreta a placa – ele é o intérprete dela, mas não pode ser o interpretante
dela pois este é definido como um outro signo; neste caso, talvez, uma sentença ou frase no
código de uma rodovia (legislação). O signo-função pode ser sumarizado como: “A significa B
por virtude de C”.
Isto sugere uma regressão infinita; se o interpretante é por si mesmo um signo, então ao seu
turno, ele vai precisar de um interpretante. A placa de trânsito é interpretada por uma sentença
oficial; esta explicação verbal é significante em virtude de um signo mais amplo, o sistema
completo do código da rodovia (legislação). O interpretante vai precisar de um interpretante, e
assim por diante, ad infinitum. O diagrama 1 de G. G. Granger (1968) mostra esta relação:

S I1 I2 In

Onde: S = Signo I = Interpretante O = Objeto


Diagrama 1: rede infinita de interpretantes. Fonte: G.G. Granger (1968)
34

O Interpretante, então, não é uma pessoa que interpreta, mas “qualquer signo que
interpreta qualquer signo, seja este signo interpretante um pensamento na mente de alguém,
uma tradução escrita, uma sentença falada, ou qualquer outra coisa que seja interpretativa”
(grifo nosso) (GREENLEE apud MONELLI, 1992, p. 194).
Aprofundemos um pouco mais na teoria epistemológica de Peirce:
Na sua classificação de signos, Peirce (apud MONELLI, 1992, p. 194) faz uso de um
número de divisões triplas ou tricotomias. Tudo isso é governado pela sua idéia básica de
Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Temos aqui as fundações de sua teoria
epistemológica.
Primeiridade é a área da pura possibilidade. Nas palavras de Monelli (1992), “antes que
possamos perceber um homem, é necessário que coisas tais como homens possam existir, e que
seja possível percebê-los”.
Secundidade, o plano mais obviamente “real”, é a área do “trata de ser”17: não somente é
possível que um homem possa existir, mas ocorre de haver um homem na minha frente agora e
eu o percebo. “O real é aquilo que insiste em forçar sua direção para o reconhecimento como
sendo algo outro do que a criação da mente”. Este é o nível da “experiência”.
Terceiridade é a área da proposta, intenção, relação, desejo, entendimento, cognição.
Retomando as palavras de Monelli, “quando eu vejo que o homem é o porteiro, que ele pretende
dar um recado, que a sua chegada pode interromper meu trabalho ou elevar o meu espírito, eu
entro no domínio da Terceiridade” (MONELLI, 1992, p. 194).
No caso do signo enquanto função, inicialmente parece que os três elementos estão no nível
da terceiridade. Diz Monelli: “assim, tanto a placa de trânsito, o cruzamento e o código da
rodovia (legislação), são todos experiências reais que eu compreendo completamente em relação
a mim mesmo” (MONELLI, 1992, p. 194).
Peirce aplica esta consideração, entretanto, para um pensamento, que é um signo: um sonho
ou uma teoria científica. Dentro da mente,

‘o primeiro, o segundo e o terceiro são todos os três da natureza dos terceiros...


enquanto que em respeito um ao outro eles são primeiro, segundo e terceiro. O
primeiro é pensamento em sua capacidade como mera possibilidade; isto é,

17
No original: “happening-to-be” ·
35

mera mente capaz de pensar, ou uma mera vaga idéia. O segundo é pensamento
fazendo o papel de Secundidade, ou evento. Isto é, ele é da natureza geral da
experiência ou informação. O terceiro é o pensamento no seu papel de
governante da secundidade. Ele traz a informação para dentro da mente, ou
determina a idéia e a corporifica. Ele é o pensamento informe ou cognição’
(PEIRCE apud MONELLI, 1992, p. 195).

A Primeiridade mental é meramente a possibilidade de pensar; quando um pensamento nos


ocorre, essa possibilidade é realizada e nós nos movemos para a Secundidade. Mas esse
pensamento não é útil para nós até que o tenhamos entendido e o relacionado com outros
pensamentos; um pensamento que for compreendido e usado passa para o domínio da
Terceiridade. Mas, “se tirar o elemento psicológico ou o elemento humano acidental, então
veremos o signo operar dentro desta Terceiridade genuína” (MONELLI, 1992, p. 195).
Se imaginarmos que o signo é um pensamento, não na mente humana, mas na mente da
semiótica por si mesma, então este signo, como um objeto pré-semiótico, não significável, habita
a Primeiridade (a sua possibilidade de significar), o objeto Secundidade (algo-a-significar, a
realização da potencialidade do signo), e o interpretante Terceiridade, visto que ele adiciona
entendimento, relacionamento, propósito à significação do signo. Notemos que todos os três
níveis, nesta leitura, são lógicos ao invés de mentais ou psicológicos; o interpretante não é mais
um pensamento humano ou mente humana do que seja o signo ou o objeto, mas todos são partes
integrantes da estrutura da significação.
Peirce assim embarca na sua primeira tricotomia de signos:

“um signo é ou da natureza da aparência, quando eu o chamo de quali-signo;


ou segundamente, é um evento ou objeto individual, quando eu o chamo de
sin-signo...; ou terceiramente, é da natureza de um tipo geral, quando eu o
chamo de legi-signo” (PEIRCE apud MONELLI, 1992, p. 195).

Um quali-signo é ‘uma qualidade que é um signo’ – como, por exemplo, a cor vermelha.
Um sin-signo é um objeto real ou evento que funciona como um signo. O vermelho do
semáforo pode ser um quali-signo, mas o semáforo particular que eu vejo nesse momento é um
‘objeto individual’, e, portanto, um sin-signo.
Um legi-signo (uma lei que é um signo) não é um simples objeto, mas um tipo geral que, se
tem concordado, deve ser significante. Todo legi-signo significa através de um exemplo de sua
36

aplicação que pode ser denominada uma Réplica do mesmo. A Réplica é um sin-signo. Assim,
todo legi-signo requer sin-signos, que por sua vez, requerem quali-signos pois, como nos lembra
Greenlee (apud MONELLI, 1992, p. 196), é somente através de alguma qualidade que os sin-
signos são entendidos como signos. Aqui, como legi-signo, a cor vermelha pode ser interpretada
como sinal de perigo que se associa a uma convenção, como por exemplo, na indicação: Pare!
Na tricotomia peirceana em relação ao Interpretante, temos: a rema, um signo que
representa um objeto possível; o dicente (ou dicisigno), um signo que representa um objeto real;
e o argumento, que representa um objeto legal. No momento vamos tratar estes conceitos
somente do ponto de vista puramente semiótico. No decorrer deste capítulo, trataremos estes
conceitos sob o ponto de vista musical.
A mera possibilidade de significar algo é uma rema: um grito de uma criança que pode ser
de dor física ou pode, entretanto, significar outras coisas. Pela virtude de ter um objeto possível,
este signo (ou signo possível) é uma rema.
O dicente é mais familiar. Porque é entendido a estar para um objeto real ou evento, ele
pode ser verdadeiro ou falso. Para Peirce, o dicente ‘transporta informação, ao invés de ser um
signo [como a rema] a partir do qual a informação pode ser derivada’ (PEIRCE apud
MONELLI, 1992, p.197). Uma proposição ordinária como: “há um homem na sala” é um
dicente.
O argumento é mais bem representado por um silogismo lógico, uma condição na qual
aquele tal é o caso. Seu interpretante é então a conclusão a qual é pretendida ser retirada das
premissas que formam as suas condições. Tem que ser um legi-signo.
Na classificação final dos signos, se a relação de um signo para com seu objeto for de
semelhança, este signo é um ícone. Assim, a imitação de um rouxinol ou cuco por um
instrumento orquestral é um ícone.
Iconismo está potencialmente presente em qualquer coisa pois ‘qualquer coisa é ajustada
para ser um substituto para qualquer coisa que é seu semelhante’. Os ícones são divididos de
acordo com o modo de Primeiridade que eles participam de. Aqueles que participam de simples
qualidades, ou Primeira Primeiridade, são imagens; aqueles que representam as relações,
principalmente diádicas, ou assim vistas, de partes de uma coisa por relações análogas em suas
próprias partes, são diagramas; aqueles que representam o caráter representativo de um
37

representamen por representar um paralelismo em algo mais, são metáforas (PEIRCE apud
MONELLI, 1992, p. 198).
O segundo tipo, o índice, ‘é um signo que se refere ao Objeto que o denota pela virtude de
ser realmente afetado por aquele Objeto’. Ele está em ‘conexão dinâmica (inclusive espacial)
tanto com o objeto individual, por um lado, e com os sentidos ou memória da pessoa para quem
o índice serve como signo, por outro lado’. O índice depende de ‘uma associação por
contigüidade, não associação por semelhança ou operações intelectuais’. Um buraco de bala em
uma vidraça é um índice, significando que no passado ocorreu um tiro. Da mesma forma, uma
batida na porta, um galo do tempo18, um estado de espírito, tudo são índices (PEIRCE apud
MONELLI, 1992, p. 198).
O terceiro tipo de signo, de acordo com esta classificação, é o símbolo. Na definição de
Peirce,

Um símbolo é um Representamen cujo caráter representativo consiste


precisamente de ele ser uma regra que determinará seu Interpretante. Todas as
palavras, sentenças, livros, e outros Signos convencionais são Símbolos... [um
Símbolo] deve denotar um indivíduo, e deve significar um caráter. Um
símbolo genuíno é um símbolo que tem um sentido geral (PEIRCE apud
MONELLI, 1992, p. 199).

Exemplificando: quando se diz “Sócrates é um homem”, a palavra homem denota um


indivíduo, a saber Sócrates; mas ela (a palavra) significa uma categoria geral ou “caráter”. O
símbolo, dependente de um nexo cultural ou concordado apreendido pela mente, está totalmente
mergulhado na Terceiridade. Ele significa uma categoria; ‘não somente isso, mas ele é em si
mesmo um tipo e não uma coisa única’. Símbolos não são comumente inventados por uma mente
individual mas gerados por uma cultura. Eles vêem a existência através do desenvolvimento de
outros signos, particularmente dos ícones, ou de signos mistos que participam da natureza dos
ícones e símbolos (PEIRCE apud MONELLI, 1992, p. 199). Seus significados mudam em
resposta às pressões históricas e sociais.

18
Galo português, feito de material sensível à umidade do ar. Muda de cor dependendo das condições climáticas,
funcionando assim como um previsor do tempo.
38

Uma vez de posse dos conceitos básicos da semiótica peirceana, podemos retornar ao
aspecto semiótico da emoção sob a ótica de Peirce. De acordo com o fundamento do signo, uma
emoção é um quali-signo, ou um sin-signo ou um legi-signo. Para Savan (1981), as emoções
desempenham o papel de legi-signos, lembrando que legi-signos só podem ter existência através
de suas instâncias ou réplicas, que certamente incluem seus quali-signos correspondentes. As
emoções são legi-signos porque, em primeiro lugar, toda emoção segue um padrão que se
desenvolve em um certo período de tempo. Em segundo lugar, porque elas são gerais e só
existem através de suas instâncias. E em terceiro lugar, “aquilo que pode se enquadrar em um
sistema de explicação deve ter pelo menos algumas das características de uma lei. Emoções, de
fato, entram dentro da explicação sistemática do comportamento. Além disso, emoções podem
ser justificadas, mostradas como impróprias, desproporcionalmente fortes ou fracas, e assim por
diante” (SAVAN apud SANTAELLA, 2002, p. 161).
Relembrando a postulação peirceana: “a relação do signo para com seu objeto consiste no
fato do signo ter algum caráter em si mesmo, ou manter alguma relação existencial com esse
objeto, ou em sua relação com um interpretante” (PEIRCE apud MARTINEZ, 1992, p. 78), este
ponto de vista, ou melhor, de acordo com este plano semiótico, as representações musicais
variam da pura referência acústica (questão dos ícones Puros em música) e referência por
semelhança nas qualidades acústicas, de movimento ou formais (hipoícones musicais); aos
existentes ou signos de existentes (índices e signos indiciais); e, por fim, referência convencional
ou habitual (Símbolos).
Para Savan, a teoria do Interpretante é a parte mais extensa da teoria peirceana dos signos.
Complementando esta afirmação, Santaella coloca que “é impossível se chegar a entender a
concepção de signo em Peirce sem uma visão rigorosa e elucidadora da noção de Interpretante”.
Prossegue dizendo que “isso é pelo simples fato de que tanto o objeto quanto o Interpretante são
partes constitutivas do signo (ou processo de representação), de modo que este só pode ser
definido na relação com o Objeto e o Interpretante” (SAVAN apud SANTAELLA, 2000, p. 61).
Como foi abordado antes, Peirce divide o Interpretante em três tipos: o imediato =
potencial significativo. O dinâmico – efeito realmente produzido. Este se subdivide em
emocional, energético e lógico. E o final que tem a ver com a incompletude da linguagem.
O Interpretante imediato, em uma das inúmeras definições de Peirce é “uma abstração
consistindo numa possibilidade” (PEIRCE apud SANTAELLA, 2000, p. 71). Esta citação põe
39

em evidência o caráter do interpretante imediato, na sua imediaticidade, isto é, isento de


mediação e análise. Aqui já começa a se confundir a linha divisória que distingue o Interpretante
imediato em relação ao Interpretante dinâmico.
De extrema importância para o objeto de reflexão desta análise, o Interpretante dinâmico,
segundo as diversas definições de Peirce “consiste no efeito direto realmente produzido por um
Signo sobre um intérprete [...] Efeitos do Signo sobre uma mente individual, ou sobre um
número de mentes individuais reais através de ação independente sobre cada uma delas”
(PEIRCE apud SANTAELLA, 2000, p. 73). Pode-se dizer também que o Interpretante dinâmico
é uma “determinação de um campo de representação exterior ao Signo (sendo tal campo a
consciência de um intérprete), determinação essa que é afetada pelo Signo” (PEIRCE apud
SANTAELLA, 2000, p. 73).
Vejamos o papel do Interpretante dinâmico para a composição musical:
Em música, primordialmente é função do regente/intérprete/musicista decodificar a notação
musical de um determinado autor, transformando-a em evento sonoro, através da ação do (s)
instrumentista (s). Uma vez realizada a ação, o processo se abre para a manifestação do
interpretante dinâmico. Num jogo cinético e sinestésico, de ação e reação, o (s) músico (s) afeta
(m) e é (são) afetado (s) pela (re)-criação da obra. O ato da (re)-produção de uma peça musical
exige uma concentração própria e faz uso das três subdivisões do Interpretante dinâmico
proposto por Peirce: o emocional (tensão pura), o energético (movimento, gesto) e lógico
(raciocínio, intelecto). Paradoxalmente, apesar da clareza de atuação de cada um dos elementos,
a capacidade de ubiqüidade dos elementos constitutivos do interpretante dinâmico dá ao mesmo
um caráter uno, imediato e de (re)-novação. Esta possibilidade de estar ad infinitum em aberto
faz-se concluir, como o faz Ransdell (apud SANTAELLA, 2000 p. 73), que o Interpretante
dinâmico é “o interpretante do signo que realmente ocorre, quer dizer, o interpretante que ocorre
como uma ligação distinta numa cadeia semiótica, dando prosseguimento ao signo que
semioticamente o determina”. A partir disto, o interpretante deslancha para o final.
Para Martinez (1992), qualquer coisa, de natureza acústica ou não, pode ser um signo
musical, desde que esteja, obviamente, relacionada com algum tipo de semiose musical. Para
complementar este tópico sobre a composição musical dentro da ótica peirceana, vamos reforçar
alguns pontos:
40

A primeira ordem de signos musicais situa-se, naturalmente, no domínio dos fenômenos


acústicos. Mas há outras possibilidades, como partituras, gravações, instrumentos, culturas
musicais e etc.
Como nos lembra Martinez (1992), a estrutura do signo e a natureza de sua ação, ou
semiose, desdobra-se em uma classificação tricotômica, de acordo com a elaboração que Peirce
realizou em 1903. Trata-se das relações básicas entre os três relatos da semiose, como já
mencionado neste capítulo: o Signo em relação a si mesmo, o Signo em relação ao seu Objeto, e
o Signo em relação ao seu Interpretante. Na tabela 2, pode-se verificar como as tricotomias
básicas estão relacionadas com os conceitos de Signo, Objeto e Interpretante, estando submetidos
à arquitetura lógica da Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Na seqüência, vamos
exemplificar musicalmente cada uma dessas tricotomias:

1. o Signo em relação a si 2. o Signo em relação ao 3. o Signo em relação ao


mesmo Objeto Interpretante

1. [Primeiridade] Quali-signo Ícone Rema


2. [Secundidade] Sin-signo Índice Dicente
3. [Terceiridade] Legi-signo Símbolo Argumento
Tabela 2 – Tricotomias. Fonte: Martinez (1992)

Martinez (1992) nos dá uma exemplificação musical simples, à qual adicionaremos alguns
complementos e faremos, na medida do possível, uma ligação com a obra “Sortilégios da Lua”
que é o escopo desta dissertação.
Para a primeira tricotomia (o Signo em relação a si mesmo):
Quali-signo: uma qualidade, e.g. um timbre (um som de piano, ou de violino, ou oboé e etc);
esta qualidade é a que nos faz identificar um instrumento em questão, isto é, o que diferencia, em
termos estritamente sonoros, um violino de um piano ou oboé ou violão. A propósito, os
instrumentos de cordas da família dos violinos (a saber: violinos, violas, violoncelos e
contrabaixos) foram os instrumentos escolhidos por Lanna para a sua criação musical.
Sin-signo: um existente individual, e.g. uma execução da “Sortilégios da Lua” de Oiliam
Lanna; para esta categoria, virtualmente não só uma execução de “Sortilégios da Lua” é um sin-
signo como um exemplar da partitura da mesma também o é. Entretanto, lembremos as palavras
41

de Santaella (2000) que todo sin-signo é, em alguma medida, uma atualização de um legi-signo.
Assim, um exemplar da partitura de “Sortilégios da Lua” só pode ser analisada e funcionar como
tal através das leis musicais que a atualiza.
Legi-signo: uma lei ou convenção, e.g. a forma sonata, a forma rondó, um movimento de
suíte, uma sinfonia de câmara, etc. Porém, recordemos que nem todo signo, que tem um caráter
geral ou de lei, é necessariamente um legi-signo. Ele só funciona como legi-signo na medida em
que a lei é tomada como propriedade que rege seu funcionamento sígnico (SANTAELLA, 2000,
p. 101). Portanto, fica patente que tanto a forma sonata, quanto a forma rondó ou um movimento
de suíte, para citar alguns exemplos, somente funcionam como legi-signos a partir de
determinadas convenções que passam a atuar como leis, explicitando, por assim dizer o seu
mecanismo de atuação. A partir deste ponto de vista, um exemplar da partitura de “Sortilégios da
Lua” funcionará como um legi-signo pois deterá em si as leis que fará com que esta seja uma
composição musical. Formalmente, “Sortilégios da Lua” é uma sinfonia de câmara cuja
definição dada pelo Dicionário Eletrônico Aurélio Século XXI é: obra musical escrita para
pequenos conjuntos instrumentais virtuosísticos.
Para a segunda tricotomia (o Signo em relação a seu objeto):
Ícone: um Signo que representa seu Objeto pelo fato de, por si próprio, possuir qualidades
semelhantes a ele. Peirce dividiu os signos icônicos em Imagens, Diagramas e Metáforas.
Imagens são ícones que representam o caráter de aparência de seus objetos, e.g. os cantos de
pássaros na “Cena à beira de um riacho” da “Sinfonia Pastoral” de Beethoven. Diagramas
representam algum aspecto formal ou estrutural de seus objetos. Para Martinez (1996), este é um
dispositivo semiótico comum para representar as qualidades dos movimentos em formas, como
os signos musicais em óperas e música de programa. Um bom exemplo é a peça para orquestra
de Debussy “La Mer”, que ao invés de representar os sons do oceano, prefere sugerir suas
ondulações e fluxos. Apesar do ícone ser um elemento representativo em música, em
“Sortilégios da Lua” este elemento aparece de forma parcimoniosa, não fazendo nenhuma
referência direta a sons ou ruídos da natureza ou de pessoas. Em outras palavras, não apresenta
uma semelhança direta com seu objeto, apenas sugere climas, se comportando da mesma
maneira que a obra “La Mer” de Debussy. Para completar o quadro, Metáforas em música
constituem interações icônicas de significados, cuja idéia mais geral é a da metalinguagem.
Paráfrases e paródias, citações e referências alegóricas em música são mais do que casos desta
42

espécie de Hipoícones. Constituem níveis distintos de Metáforas. Para exemplificar esta questão,
pode-se pensar em autores como Charles Ives, Igor Stravinsky (para quem o único comentário
verdadeiro sobre uma peça musical é uma outra peça musical), entre muitos outros. Martinez nos
dá como exemplo a obra “Sinfonia”19 do compositor italiano Luciano Berio.
Índice: um Signo que representa seu Objeto pelo fato de se relacionar dinamicamente com ele,
e.g. um solo de Sitar como Signo da música da Índia. Neste caso, a própria obra de Lanna atua
como um índice em duas situações: 1) a música de Lanna aponta para um texto (que é o poema
de Baudelaire) e 2) ao apontar para Baudelaire, a música aponta para uma determinada época, ou
seja, ela remonta aos elementos estilísticos da época em questão.
Símbolo: um Signo que será interpretado como referindo a seu Objeto meramente por força de
hábito ou convenção, e.g. um hino nacional, um leitmotiv20. No caso de “Sortilégios da Lua”,
Lanna faz uso de um leitmotiv que se apresenta na forma de um complexo melódico ascendente
cuja duração é uma quintina. Aparece nos compassos 5, 14, 48, 59, 65 e 66. Pequenas variantes
deste leitmotiv aparece virtualmente em toda a composição. Nos compassos 50 e 84, a quintina
se apresenta em forma dilatada, ocupando a duração global dos mesmos.
Para a terceira tricotomia (o Signo em relação ao seu Interpretante):
Rema: um Signo que para seu Interpretante constitui apenas uma possibilidade, e.g. a audição
de um concerto de música aleatória, como as de John Cage ou LaMonte Young. “Sortilégios da
Lua” por ser uma obra de notação precisa, não se encaixa nesta modalidade.
Dicente: um Signo que para seu Interpretante é um Signo de fato, e.g. o reconhecimento de
uma determinada composição num concerto. De fato, a partir da assimilação e memorização de
uma obra musical, torna-se mais fácil o seu reconhecimento em concertos. Para que “Sortilégios
da Lua” tenha o seu aspecto dicente em atuação, é necessária uma maior divulgação da mesma
nos centros de produção de conhecimento e entretenimento.
Argumento: um Signo que para seu Interpretante é um Signo de lei, e.g. uma análise musical
numa revista especializada. O maior exemplo desta modalidade é esta própria dissertação, cujo
objeto de estudo e análise é a obra musical “Sortilégios da Lua” de Oiliam Lanna.

19
Nesta obra, escrita para oito vozes e orquestra em cinco movimentos, entre 1968 e 1969, Berio realiza sua máxima
expressão, através da técnica de collage, assemblage, citação e etc., com textos que vão de Samuel Beckett até
James Joyce, passando por Claude-Lévy Strauss. As citações musicais vão do próprio Berio, passando por Boulez,
Stockhausen, Stravinsky, Mahler, Alban Berg, Bach, Brahms, Schönberg, Pousseur, Webern, entre outros.
20
Do alemão, ‘motivo condutor’. Segundo o Dicionário Eletrônico “Aurélio Século XXI”, é um tema associado, no
decurso de todo o drama musical, a uma personagem, uma situação, um sentimento, ou um objeto. Por extensão, é
um tema ou idéia sobre a qual se insiste com freqüência.
43

Para Martinez (1992), a multiplicidade da Semiose musical não pode ser avaliada, no
entanto, brevemente. Como é possível perceber, através de uma leitura atenta, Signo, Objeto e
Interpretante imbricam-se em relações e inter-relações. Na fig. 8 dada a seguir, o aspecto
material do signo já está bastante formalizado pela notação musical. Sua execução, num
instrumento qualquer, desperta um certo aspecto acústico. Em verdade, seria apenas uma das
diversas possibilidades de interpretação que a codificação gráfica oferece. Tanto a configuração
gráfica (partitura) como a acústica são Signos. Há um amplo leque de possíveis Interpretantes
para esses Signos que, por sua vez, referem-se diferentemente aos seus possíveis Objetos,
dependendo exclusivamente da experiência colateral do intérprete.

Tambores:

eee e ee e e e ‰ ‰ ‰ e ‰ ‰ ‰ ‰ e‰ ‰ ee e e e

‰ ‰ ‰ ‰ ‰‰ ‰ ‰ ‰ E EE‰ E E EE ‰E E ‰ ‰ ‰ ‰ ‰
Fig. 8 – Nova Guiné: Nor-Papua, convite para fumar tabaco.
Fonte: Schmidt in Schneider (apud MARTINEZ, 1992, p. 76)

Considere-se a realização acústica do exemplo dado na fig. 8. Em sua talidade, isto é, sem
nenhuma outra referência a qualquer Objeto, exceto suas próprias qualidades timbrísticas e
rítmicas, aquilo que aflora é a sua materialidade musical. Para um ouvinte que desconheça o que
seja capaz de abstrair a origem e a organização musical do exemplo acima, isto é, concentrar na
materialidade, o Signo será um Quali-signo. Em relação a seu Objeto, neste caso, suas próprias
qualidades acústicas, é um ícone quase puro. Um signo que refere a si mesmo. Nessas condições,
seu Interpretante será um Rema, isto é, um Signo de possibilidade; provavelmente, Qualidades
de Sentimento.
Já para um etnomusicologista, ou para quem compreenda que o exemplo dado é uma
manifestação da cultura dos Nor-Papua da Nova Guiné, o Signo será um índice em relação a seu
Objeto, essa particular cultura. Ambos constituem existentes de fato, a execução do nosso
exemplo (Signo) relaciona-se com os Nor-Papua (Objeto) de maneira fatual. A notação resulta de
pesquisa de campo, possivelmente de uma gravação in loco (a rigor, esta manifestação original
44

registrada graficamente ou congelada pela gravação constitui um existente singular, um Sin-


signo). Seu Interpretante será um Dicente, constatando a relação dinâmica entre Signo e Objeto.
Tomemos, agora, um indivíduo daquela cultura, familiarizado com o significado
convencional do Signo, enquanto ‘convite para fumar tabaco’. Aqui, o signo refere a seu Objeto
(o convite) não em relação para com sua materialidade acústica, nem pelo fato de ser um índice
para os Nor-Papua, mas devido a uma relação estabelecida por hábito. Deste ponto de vista, é um
Legi-signo. Em relação a seu Objeto, um Símbolo. Seu Interpretante atual (Dinâmico) poderia
ser do tipo Emocional (uma sensação de euforia, por exemplo), Energético (a atitude de se dirigir
à aldeia que emitiu o Símbolo) ou Lógico (um silogismo parcial como ‘se há convite, haverá um
ritual ou uma festa’). Neste último caso, o Signo Interpretante seria um Argumento.
Deve-se notar que cada situação semiótica destacada acima é uma complexidade
dependente de muitos fatores e pontos de vista (Martinez, 1992). As diversas modalidades de
Semiose, num caso concreto, não estão isoladas uma das outras. Há várias linhas e planos de
interdependência entre os modos de significação. Pode-se dizer que o Símbolo inclui o índice, e
que o índice inclui o ícone. Assim, numa ocorrência efetiva do exemplo dado anteriormente, um
indivíduo Nor-Papua poderia perceber simultaneamente o timbre particularmente brilhante dos
novos instrumentos (ícone), assim como o fato dos sons estarem vindo da região norte (índice),
além da significação convencional do convite para fumar (Símbolo).
Temos aqui a necessidade de uma breve reiteração para consolidarmos nossas reflexões
sobre a semiótica e a música.
Considerando as relações semióticas entre o Signo, seu Objeto e o Interpretante, e ainda
considerando-se as três tricotomias básicas, pode-se inferir os principais campos de análise que a
semiótica da música deve considerar. A hipótese fundamental desta linha de pesquisa parte do
pressuposto de que os campos de análise semiótica musical correspondentes às relações acima
são:

a) Semiose Musical Intrínseca; b) Representação Musical; e c) Interpretação Musical

a) O campo Semiose Musical Intrínseca, ou o estudo do Signo musical em relação a si mesmo,


abordará os aspectos e as maneiras de significação internas ao discurso musical. Constituirá a
semiótica da materialidade musical e terá como disciplinas correlatas a acústica e as diversas
teorias musicais (referentes aos possíveis sistemas). Este campo suportará estudos em questões
45

como: qualidades musicais ou Quali-signos (envolvendo o estudo das qualidades timbrísticas,


melódicas, rítmicas, formais, etc), individualidades ou Sin-signos (obras, diferenças de execução
entre estas obras, manifestações particulares de normas particulares ou Réplicas de Legi-signos),
e hábitos ou leis musicais, isto é, Legi-signos de fato (sistemas musicais, gêneros, formas, regras
de improvisação e desenvolvimento, tais como imitação, variação, recorrência, etc.). Cada um
desses planos, enquanto unidades complexas de fenômenos musicais, serão não somente
compreendidos como Quali-signo, Sin-signo ou Legi-signo, mas sujeitos ao escrutínio de todo
instrumental semiótico disponível, adequado à cada situação particular.

b) Representação Musical, ou o estudo do Signo musical em relação a seu Objeto, aborda a


questão da referência a possíveis Objetos de representação, sejam eles acústicos ou não. Para
Martinez (1992), aqui se toca em uma questão controvertida: sabe-se que é bem verdade que o
discurso musical basta por si mesmo, prescindindo de referência externa à sua materialidade.
Mas, verifica-se que, na maior parte das concepções musicais, em suas diversas linguagens,
estilos e gêneros que o ser humano tem produzido em diferentes períodos históricos e em
diferentes culturas ao redor do globo, se relaciona aos dados puramente acústicos, idéias diversas
(concepções estéticas, filosóficas, políticas etc.), fatos e coisas, existentes ou imaginárias. A
representação musical é uma realidade que não pode mais ser ignorada, ou abordada como uma
questão secundária.
Trata-se, não apenas dos aspectos extradiscursivos ou extrínsecos à materialidade musical
mas, principalmente, de como o Signo musical refere a um Objeto; quais as relações entre um
possível Objeto e o modo como é representado no Signo musical; quais são os possíveis Objetos
em música e qual é a sua natureza. Essas questões pertencem ao domínio geral dos Signos da
segunda tricotomia, isto é, Ícone, Índice e Símbolo e serão exploradas na análise da obra “Os
Sortilégios da Lua” de Oiliam Lanna.
c) Interpretação Musical, ou o estudo do Signo musical e sua relação com o Interpretante (em
sentido peirceano), colocará em pauta a ação dos Signos musicais numa mente atual ou
potencial. Será, de forma geral, coordenado pelo conceito e divisões do Interpretante e pela
terceira tricotomia (Rema, Dicente e Argumento). Possivelmente as questões relativas a este
campo podem ser subdividas em três: 1. Percepção Musical (ou “maneiras de ouvir”, de acordo
com a sugestão de J.J. de MORAES que será abordado logo mais) 2. Execução ou modos de
tocar, cantar e reger; e 3. Inteligência Musical, isto é, análise, crítica, ensino, teorificação
46

musical, semiótica musical; e composição musical (enquanto elaboração intelectual baseada em


todos os três campos acima).
É deveras importante perceber que essa possível arquitetura semiótica para o estudo da
música constitui estrutura flexível e interdependente. Os campos de análise não são áreas
isoladas, pois a Semiose consiste na interação dos três relatos. Uma teoria semiótica da música
não estará completa sem avaliar as inter-relações de seus diversos campos. De fato, como nos
aponta Martinez, trabalhando-se em um campo naturalmente se é obrigado a considerar as
implicações correspondentes nas duas outras áreas de estudos. Deve-se isso à própria concepção
epistemológica da teoria de Peirce.
Um Signo pode ser suficiente nele mesmo. Existem músicas que nada significam além de
suas puras qualidades sonoras. Trata-se da concepção da já mencionada música absoluta, ou a
discutida questão da autonomia musical, que pode ser compreendida semioticamente como ação
do ícone. Em qualquer tipo de estética musical, passível de representação por diversos meios
semióticos (Martinez, 1992, p. 79), há sempre os aspectos acústicos, a materialidade musical,
que dá início ao primeiro nível de Semiose. Pode-se afirmar que, neste caso, a apresentação das
qualidades sobrepõe-se à idéia de representação.
Concluindo, música é uma entidade complexa e pode, portanto, ser estudada de acordo
com diferentes pontos de vista. A estrutura de uma teoria semiótica da música baseada na teoria
geral dos signos de Charles S. Peirce parece cercar todo o pensamento musical. A proposta de
Martinez não é um sistema dogmático ou rígido, mas uma teoria que pretende ser flexível e em
permanente estado de desenvolvimento. A visão epistemológica adotada por Martinez é que
uma teoria, por mais completa que possa ser, suportará características particulares diretamente
relacionada a cada aplicação de seus princípios.
De fato, a ciência também é um signo e o signo uma interpretação da realidade. Assim, não
é o signo que determina o objeto, mas, de preferência, é o objeto, neste caso, o fato musical
complexo, que determina o signo e seus interpretantes determinam a teoria semiótica da música.
Uma vez que estamos referindo ao interpretante, é necessário refletir sobre as
conseqüências que a sua atuação tem sobre um sujeito em potencial quando num processo de
audição de uma obra musical. Em outras palavras, procuraremos observar papel da emoção em
um determinado ouvinte em relação a uma composição musical específica. Para tanto,
47

pretendemos relacionar a semiótica da emoção tal como foi postulada por Peirce com as
maneiras de ouvir propostas por J.J. de Moraes e Santaella.
Para iniciar essa sessão, retomemos as palavras de Hanslick (1974) que, embora sendo um
oponente da expressão emocional em música, admite que haja uma conexão natural entre sons e
sentimentos, ecoando de perto as palavras de Herder:

Cada nota musical forjada carrega – mesmo que indeterminadamente – uma


carga semântica (...) Os tons possuem fundamentalmente e individualmente,
como as cores, significados simbólicos que produzem um efeito exterior e
primário em qualquer manifestação artística (...) [eles possuem] uma força,
colocadas pela natureza em associação simpatética com certos humores
(KARBUSICKY apud MONELLI, 1992, p. 212).

J.J. Moraes (1983a) divide essas maneiras em três grandes níveis: (1) ouvir
emocionalmente, (2) ouvir com o corpo e (3) ouvir intelectualmente. A partir dessa classificação,
Santaella (2001) faz uma analogia desses três modos com as categorias fenomenológicas de
Peirce, a primeiridade, a secundidade e terceiridade, respectivamente. Naturalmente, esses três
níveis se entrelaçam, e são inseparáveis, pois todo ser humano é ao mesmo tempo emoção, corpo
e intelecto, mas há, no entanto, de acordo com Santaella, um princípio de dominância que
permite determinar um dos níveis como caracterizador de um modo de ouvir. Como se trata de
um processo de recepção da música que incorpora necessariamente as peculiaridades individuais
de um intérprete particular – a experiência colateral – na linguagem semiótica de Peirce, não se
pode estabelecer de antemão quais são os tipos de música que caberiam em cada um desses
modos, visto que certos tipos de músicas estão mais aptos a produzir emoção do que outras.
De uma maneira sucinta podemos dizer que as maneiras de ouvir correspondem aos efeitos
que a música pode provocar no ouvinte e, neste ponto, resgatamos os Interpretantes peirceanos.
Retomando a classificação de J.J. de Moraes, ouvir emotivamente corresponde ao primeiro
efeito que a música está apta a produzir no ouvinte (Interpretante emocional); ouvir com o corpo
entra em correspondência com o interpretante energético, visto que este diz respeito a um certo
tipo de ação que é executada no ato de recepção de um signo (Interpretante energético); ouvir
intelectualmente significa incorporar princípios lógicos que guiam a recepção da música
(Interpretante lógico).
48

Reaplicando essas três classes de interpretante no interior de cada um dos níveis da divisão
tripartite de Moraes, Santaella (2001) obteve uma subdivisão em nove modalidades: três
modalidades para o ouvir com emoção, três modalidades para o ouvir com o corpo e três
modalidades para o ouvir intelectualmente. No momento interessa-nos somente as três
modalidades para o ouvir com emoção. Vejamos:
De acordo com Santaella (2001), na modalidade primeira da emoção (1.1), tem-se pura e
simplesmente uma qualidade de sentir. Em situações de audição como essa, o receptor fica bem
perto de se transformar em uma mera cápsula de sentimento flutuando fora do tempo e do
espaço. São estados excepcionais, obviamente, mas, se a música nos colhe em momentos como
esse, ela nos converte em uma pura qualidade de sentir. Nos convertemos em cápsulas de
sentimento porque nosso eu fica passivo, incerto, errante, um eu que não interpreta e não julga
porque, nesses raros instantes de imantação do som, nossa consciência não passa de um todo
indiscernível, qualidade de sentir que é só sentir.
A segunda modalidade (2.1) é aquela da comoção, quer dizer, aquilo que nos move, que
nos movimenta interiormente. Trata-se, pois, de um dinamismo interno, de um sentir que é posto
em movimento, em estado de comoção, quando a corrente sangüínea se aquece, a pulsação
acelera, o coração estremece. Para Santaella, cada pessoa tem um tipo particularíssimo de música
capaz de produzir esse efeito de comoção, efeito que funciona como uma espécie de impressão
digital de nossa sensibilidade.
Já no terceiro nível do sentimento (3.1), tem-se a tão falada emoção. E a emoção é tão
falada porque ela apresenta características gerais. Por isso a nomeamos: alegria, espanto, raiva,
etc. Neste caso, podemos nomear o que sentimos porque se trata de um sentimento codificado,
repetível. É nesse nível que costumamos dizer que tal música é alegre, tal música é triste, tal
música é melancólica, etc. É claro que a música em si mesma não é nada disso. Na maior parte
das vezes são os nossos hábitos ou convenções culturais que nos fazem projetar esses rótulos
sobre a música. Reforçando as palavras já ditas de Neubauer: “O sentimento de tristeza não é um
resultado da música, mas uma qualidade que atribuímos a ela”.
Todavia, como já mencionado anteriormente, é interessante lembrar que certos modos
musicais são ligados a certos pathos e certos ethos: os gregos atribuíam efeitos morais a cada
um dos modos musicais. Da mesma maneira, as indicações de andamento como allegro, adágio,
moderato têm relação com certos estados de espírito. Essas formas expressivas evocam emoções
49

porque provavelmente as diferentes cadências e ritmos, os tons graves e agudos, os diferentes


coloridos ou timbres dos instrumentos apresentam correspondências com os ritmos vitais,
sensações viscerais e pulsações biológicas que são também diferentes, mais rápidas ou mais
lentas, dependendo de estarmos sentindo alegria ou desgosto, euforia ou tédio, placidez, etc. Sob
esse aspecto, a música provoca aquilo que Santaella denomina de ‘emoção instintiva’,
ressonância, correspondências que são atraídas por semelhanças de pulsação. Resumindo,
Santaella postula que há ritmos sonoros que apresentam correspondências com os ritmos
biológicos que acompanham diferentes estados de sentir. Desse modo, os rótulos culturais de
emoção que se costuma colar a certos tipos de música não são inteiramente arbitrários, mas têm
seus vínculos de motivação nas similaridades entre a música e as pulsações biológicas.
Peirce considerou que uma emoção começa com uma situação de confusão e desordem
inesperadas.

Ficamos perturbados com as causas de alguma situação nova, e alertas ao fato


de que nosso controle normal sobre os fatos se rompeu. O futuro, de repente, se
torna incerto. Nossa segurança usual perdeu seu suporte. Somos colhidos em
correntes cruzadas de propósitos e sentimentos conflitantes. Nessa situação
caótica, o interpretante imediato introduz a emoção como uma hipótese
simplificadora (SAVAN apud SANTAELLA, 2002, p.152).

Peirce argumentou também que as emoções não podem ser qualidades de sentimento
imediatas. Um sentimento imediato, que não é mediado por um conceito, deve ser considerado
em si mesmo, como sui generis (SAVAN apud SANTAELLA, 2002, p. 157). É possível ter
indicações dos objetos que determinam, evocam ou diferenciam emoções específicas, mas dos
sentimentos imediatos, todos os sentimentos se assemelham. Neste nível, não se pode distinguir
irritação de alegria. Assim sendo, sentimentos imediatos não podem ser emoções, e emoções não
podem ser eventos de sentimento ou ocorrências de sentimento. Vejamos:

Um evento mental existe em um determinado período de tempo. Quando esse


período termina, o evento passou. Um evento idêntico não se repete. Mas as
emoções, elas sim, se repetem. Minha indignação contra a tortura é a mesma
hoje como ela foi ontem. Para comparar duas ocorrências temporalmente
50

distintas, elas devem ser colocadas juntas, lado a lado e isso só pode acontecer
se as duas ocorrências são representadas. Uma emoção é, então, um
representamen, um signo (SAVAN apud SANTAELLA, 2002, p. 158).

Peirce também argumentou que toda emoção é atribuída como o predicado de algum
sujeito:

Toda emoção tem um sujeito. Se um homem está com raiva, ele está dizendo a
si mesmo que isto ou aquilo é vil e escandaloso. Se ele está alegre, está dizendo
“isto é delicioso”. Se está pensativo, está dizendo “isto é estranho”. Em suma,
quando alguém sente, esse alguém está pensando em algo. Mesmo aquelas
paixões que não tem objeto definido – como a melancolia – só vêm à
consciência ao dar cor aos objetos do pensamento. Aquilo que nos faz olhar
para as emoções mais como afeições do eu do que como outras cognições, é o
fato de que as consideramos mais dependentes de nossa situação acidental no
momento do que outras cognições; mas isso só quer dizer que elas são
cognições muito estreitas para serem úteis. As emoções, e isso pode ser
demonstrado por uma pequena observação, surgem quando nossa atenção se
volta fortemente para circunstâncias complexas e inconcebíveis. [...] Quando
algo acontece para o qual não posso atentar, fico curioso. Quando me dou conta
de algo que não posso fazer por mim mesmo, um prazer no futuro, eu tenho
esperança. “Eu não o compreendo” é a frase de alguém raivoso. O indescritível,
o inefável, o incompreensível, comumente excitam a emoção; [...] assim, uma
emoção é sempre um predicado simples substituído, através de uma operação
mental, por um predicado altamente complexo (PEIRCE apud SANTAELLA,
2002, p. 159).

Peirce conclui que a emoção não pode, portanto, ser fruto da intuição. Também não podem
ser sentimentos imediatos. Emoções são signos e, como tais, elas assentam em um fundamento,
isto é, em algum aspecto (qualitativo, existencial, legal) por um objeto e para um interpretante. E,
para Peirce, um signo pode estar corporificado não apenas na forma de uma página impressa ou
em uma tela pintada, mas também no sistema nervoso e nos sentimentos de um ser humano.
Disto Savan (1981) concluiu que os sentimentos imediatos são as qualidades materiais não
cognitivas e não representativas das emoções.
A associação da música com certos aspectos grotescos da resposta emocional, a
correspondência tradicional entre o gesto musical e os movimentos do corpo humano, os
51

aspectos referenciais e imitativos de certos tipos de música (como por exemplo, a imitação do
canto dos pássaros) – tudo isso tem tornado convincente a noção de que a música seja um tipo de
código. Esta visão da mensagem musical é ainda suportada por muitos autores. Como resultado,
eles não podem conceber uma maneira de entendimento musical que não comece pela
decodificação da mensagem, e, portanto, qualquer outro tipo de música que fuja dos padrões do
sistema tonal permanece ininteligível para eles (FORTES, 1963).

2.3 A música como a linguagem das emoções

Uma extensão especial da noção de música como linguagem é a visão que a música é a
linguagem das emoções.
A música como linguagem das emoções é uma teoria antiga. Com uma história longa e
interessante, essa teoria se originou na Grécia antiga e tomou corpo no século XVIII sendo
chamada de “Doutrina dos Afetos”21 ou “Teoria dos Afetos”. Derivou-se das idéias clássicas da
retórica e oratória, baseando-se na teoria que certos dispositivos usados no discurso
influenciariam a audiência. Assim, certas figurações musicais poderiam comover o público.
Tratados barrocos discutem isso. No final do século XVI e início do século XVII, músicos,
poetas e scholars italianos estavam lendo tratados sobre os gregos no que concerne à música e
ficaram atônitos com o poder que os gregos atribuíam a ela. Platão, por exemplo, na “A
República” diz que, quando educar os futuros cidadãos da república, eles não deveriam ouvir
determinados tipos de música, porque elas poderiam transformá-los em pessoas ruins ou
reciprocamente, ouvir boa música poderia transformá-los em pessoas boas (PALISCA, 1981).
Pelas observações de Palisca, está bem claro como os italianos do século XVII viam um
processo físico, real, sobre o poder da música no comportamento dos indivíduos, acreditando que
ouvir a música certa (grifo nosso) poderia realmente mudar os ânimos de uma pessoa enferma,
fazendo com que ela se sentisse bem. Conclui Palisca que a música no período barroco era a
panacéia social.

21
O termo musicológico alemão é “Affektenlehre”.
52

Por volta da metade do período barroco, os teóricos começam a nomear os vários afetos e
suas manifestações musicais. A terminologia será emprestada da arte da retórica, sendo esta aqui
entendida como “o uso da linguagem como arte baseada em um corpo de conhecimento
organizado” (BUELOW, 1980, p. 793). A doutrina dos afetos estaria também vinculada com a
antiga doutrina dos humores – os quatros humores ou temperamentos de acordo com a teoria
fisiológica de Hipócrates22. Acreditava-se que cada humor liberava vapores que ascendiam para
o cérebro; as características pessoais de um indivíduo (física, mental, moral) eram explicadas
pelo seu temperamento. O temperamento perfeito resultava quando nenhum desses humores
dominava. Por detrás disso estava o conceito renascentista de associar as emoções com os
modos (tonalidades, formas e estilos musicais). No ato da criação os compositores levavam em
consideração as cores tonais propiciadas pelas escalas musicais. Assim, por exemplo, felicidade
surgiria através do uso de notas rápidas e tonalidades maiores; tristeza através de tonalidades
menores e movimentos lentos; ira através de dinâmicas fortes e da rudeza das harmonias
dissonantes. A Doutrina dos Afetos foi promulgada pela primeira vez no fim do Renascimento
quando um grupo de acadêmicos florentinos tentou restaurar o que eles perceberam como sendo
as relações puras entre palavra e música, advogadas pelos filósofos clássicos gregos como
Platão. A doutrina se revelou nos séculos XVII e XVIII como uma pressuposição que o embrião
motívico de uma composição (aqui denominada de inventio – a sua invenção), era mais do que
uma mera representação, mas uma incorporação tangível do Affekt: um estado emocional de ser.
Acreditava-se, por exemplo, que o lamento bass (uma linha de baixo descendente por semitons)
era a expressão palpável da tristeza, ao passo que uma seqüência rápida de terças ascendentes era
o oposto – a euforia (BUELOW, 1980). A regra mais importante ditava que cada composição (ou
seção principal) deveria expressar somente um “afeto”. Os recitativos carregavam ação

22
Esta teoria assegurava que o estado de saúde do corpo – e por extensão o estado da mente, ou caráter – dependia
de um equilíbrio entre os quatros elementos fluidos: sangue, bílis amarela, fleuma e bílis negra. Os quatros
temperamentos humanos básicos fleumático, sanguíneo, colérico e melancólico eram, cada um deles, causados pelo
predomínio de um dos quatros humores. Os humores e seus temperamentos correspondentes eram intimamente
associados com os quatro elementos (água, terra, fogo e ar) e às dualidades quente/frio, úmido/seco como descrito
abaixo:
Flegmaticus: temperamento tranqüilo e forte influenciado pelo excesso de fleuma. Intimamente associado com a
água, o frio e a umidade. Características: estúpido, pálido, covarde;
Sanguinicus: temperamento jovial e vivo, resultado da predominância do sangue. Intimamente associado com o ar,
o calor e a umidade. Características: amoroso, feliz, generoso;
Melancholicus: a preocupação e a obscuridade eram devidas ao excesso de melancolia. Intimamente associado com
a terra, o frio e a secura. Características: glutônico, preguiçoso, sentimental;
Cholericus: temperamento enérgico. Tinha muita cólera em seu sistema. Intimamente associado com o fogo, o calor
e a secura. Características: violento, vingativo, bilioso.
53

dramática (recitativo secco, recitativo acompagnato). As árias carregavam os afetos, ou seja, a


emoção e eram adjetivadas propriamente:

aria da capo (ou dal segno): principal comunicadora dos afetos


aria di bravura: requeria grande comando da voz
aria d’agilita: também requeria grande comando da voz
aria parlante: declamatória
aria di portamento: era cantada com progressões suaves de uma nota para outra
aria cantabile: lenta e suave
aria di mezzo carattere: mais apaixonada, com acompanhamento orquestral elaborado

As árias barrocas sempre tinham um tema inicial para antecipar a emoção ou afeto. O
cantor começava cantando o tema ou motivo de abertura, então uma seção instrumental repetiria
o motivo, completando a introdução. Finalmente o cantor começaria a aria propriamente dita.
De acordo com Monelli (1992), no século XVIII a teoria da imitação, com suas raízes em
Aristóteles e a idéia de expressão (derivada desta teoria) eram com freqüência confundidas.
Assim, a então chamada Affektenlehre, certamente é baseada nesta confusão. André Morellet
(1771) em seu livro “De l’Expression en Musique et de l’Imitation dans les Arts” não faz
nenhuma tentativa em distingui-las:

Eu considero como sinônimos, ao menos na presente questão, os termos


expressar e representar (que são talvez sempre assim); e como toda
representação é imitação, perguntar se a música tem expressão, e no que a
expressão consiste, é perguntar se a música imita e como imita (MORELLET
apud LIPPMAN, 1986, p. 269).

Os escritores, segundo Monelli (1992) estavam preocupados, entretanto, pelo aparente


estresse na onomatopéia musical que veio com a teoria da imitação. James Harris (1765) cita que
a imitação “de vôos dos pássaros, murmúrios e agitações de águas, rugidos e vozes de alguns
animais mas principalmente do canto de pássaros” parecia somente uma parte marginal da
função da música. O negócio da música não era a imitação, mas a expressão (grifo nosso):
54

A imitação musical está muito abaixo da [imitação] da pintura... na melhor das


hipóteses não passa de uma coisa imperfeita... Para que a música seja eficaz,
ela deve ser derivada de outra fonte que imitação. Agora para fazer isto, deve
ser observado primeiro que há vários afetos que podem ser elevados pelo poder
da música. Há sons para nos fazer alegres, ou triste; marcial, ou terno; e assim
para quase todos os outros afetos que sentimos (HARRIS apud MONELLI,
1992, p. 2).

Rousseau23 dizia que a música se originou do estresse e do ritmo da linguagem natural. Na


Grécia antiga, o ritmo da fala estava mais próximo da melodia que é o caso em idiomas
modernos, e o som do idioma era mais diretamente uma expressão dos sentimentos do orador:

Com as primeiras vozes se formaram as primeiras articulações ou os primeiros


sons, de acordo com os vários tipos de paixão que as ditavam. A raiva desperta
gritos ameaçadores articulados pela língua e pelo palato; mas a voz da ternura é
mais suave – é a glote que a modifica, e esta voz se torna um tom; somente seu
acento se torna mais raro, e as inflexões mais ou menos agudas, de acordo com
o sentimento que é ajuntado a ela. Deste modo, cadência e sons nascem com as
silabas; a paixão faz com que todos os órgãos falem, e dota as vozes com todos
os lustres; assim, verso, canção e fala têm uma origem comum (ROUSSEAU
apud NEUBAUER, 1986, p. 98).

Isto sugere que todas as expressões vocais humanas são fundamentalmente expressivas de
sentimento, e os aspectos rítmicos e melódicos da expressão passaram para a música
(NEUBAUER, 1980). Não obstante, Rousseau persistia em considerar a música como uma arte
imitativa – imitativa não dos movimentos da natureza, mas dos sons apaixonados da fala.

Ao imitar as inflexões da voz, a melodia expressa as lamúrias, os choros de dor


ou alegria, as ameaças e os gemidos; todos os símbolos vocais de paixão estão
à sua disposição. Ela [a melodia] imita os acentos nas línguas e os turnos
lingüísticos que certos movimentos da alma criam em todo idioma; ela fala em
vez de somente imitar, e sua linguagem fervorosa, inarticulada, mas rápido e
ardente, tem cem vezes mais energia que a própria palavra (ROUSSEAU apud
NEUBAUER, 1986, p.100).

Espera-se dos intérpretes que eles sintam e experenciem as paixões que eles carregam:

23
“Essai sur l’Origine des Langues” (Ensaio sobre a Origem das Línguas) – 1753.
55

Desde que um músico não pode comover a não ser que ele seja comovido, ele
deve ser capaz de projetar em si mesmo todos os afetos que ele deseja despertar
nos ouvintes; ele os faz entender a sua paixão, comovendo-os assim melhor por
simpatia (C. P. E. BACH24 apud NEUBAUER, 1986, p.157-158).

Segundo Fortes (1963) proponentes modernos deste ponto de vista (sobre a teoria dos
afetos) têm sido mais cautelosos, invocando, em muitos casos, teorias psicanalíticas modernas
para emprestar validez a suas formulações. Monelli (1992) reforça a proposição de Fortes:
“deveria ser notado que nenhuma das visões – que a música imita a natureza, ou que a música
expressa sentimentos – é corrente atualmente”. A teoria moderna da expressão parte da
suposição que uma emoção, sentida pelo compositor, é transmitida para o ouvinte. A música é
uma mais uma apresentação do sentimento do que uma expressão direta (MONELLI, 1992, p.
5). De acordo com Peter Kivy (1980), “uma música é ‘expressiva de tristeza’ em lugar de
somente ‘expressar’ tristeza” (apud MONELLI, 1992, p. 5). Em outras palavras, “o sentimento
de tristeza não é um resultado da música, mas uma qualidade que atribuímos a ela”
(NEUBAUER, 1986 p. 151). Esta visão é reforçada pelo frágil poder referencial da linguagem
sonora. Explicando: o som não tem poder para explicar algo que está fora dele. Pode, no
máximo, indicar sua própria proveniência, mas não tem capacidade de substituir algo, de estar no
lugar de outra coisa que não seja ele mesmo. Assim, esta falta de capacidade referencial do som
é compensada pelo seu alto poder de sugestão, o que fundamentalmente o coloca no universo
icônico, onde operam as mais puras associações por similaridade.
A visão da significação musical do século XIX ocupou uma parte diferente do universo
intelectual. A nova geração de escritores estava convencida de que a música carregava um tipo
especial de sentimento, ou pelo menos que ela revelava uma ordem especial e significância
dentro do mundo do sentimento. A estética de Schopenhauer era um novo tipo de platonismo; a
música era capaz de evitar a representação dos sentimentos reais e estar em contato com suas
essências interiores. O significado da música, em termos filosofais, era transcendente – algo não
acessível para a experiência ordinária.
Como Schopenhauer, Hegel acreditava que a música era uma arte da emoção, a arte do
conhecimento ou consciência interior (Kunst der Innerlichkeit). O conhecimento interior pode,
de fato, expressar a si mesmo em palavras, mas a música comunica com ele num nível mais

24
“Versuch über die wahre Art, das Clavier zu spielen” (Tentativa para a verdadeira arte de tocar piano)
56

profundo, que é o da emoção – a subjetividade auto-extendida do ego. (LE HURAY and DAY,
1981, p. 344). Emoção, então, é o traço vivo da Innerlichkeit, e na sua forma mais pura não está
conectada com nenhum objeto ou conteúdo. A música procede da consciência interior e
comunica com a consciência interior. O seu ‘significado’ é, deste modo, anterior a qualquer coisa
que possa ser colocada em palavras (MONELLI, 1992).
À guisa de conclusão, repensando a idéia de representação, ou, como estamos tratando, de
sentimento ou emoção que a música pode proporcionar, precisaremos levar em conta outros
fatores que estão além da música per se. Estamos falando da performance – o gesto primordial
que dá vida à partitura. Retomamos brevemente aqui as palavras de Takemitsu (1995) ao se
referir ao papel do regente na execução de uma obra musical:

O ensaio de Hiroyuki Iwaki “A Paisagem da Partitura Musical” [...] revela um


senso agudo de um regente que tenta enxergar além da realidade do som na
paisagem transitória da partitura. [...] Parte do seu papel é o de um médium na
fronteira entre o compositor e o performer. É uma posição diferente de um
tradutor, muito mais ainda diferente da de um mestre de obras checando as
plantas de um arquiteto, no sentido que os padrões para a interpretação de uma
partitura não são tão precisamente ou objetivamente definidas. Alguém poderia
acrescentar que a essência real da música é protegida pelas ambigüidades da
escrita. Apanhados no momento da performance, altura, ritmo e mesmo
dinâmicas são todos relativos. [...] (o regente) em mil performances deverá
revelar mil expressões diferentes. É isto que dá à música aquela qualidade
especial na qual uma simples composição pode ser repetidamente executada
(TAKEMITSU, 1995, p. 46).

As palavras de Takemitsu não nos deixam de remeter ao papel do silêncio, principal escopo
desta dissertação. Antecipamos aqui o silêncio que gera outros sentidos (outras interpretações),
outras possibilidades, outras emoções, outros sentimentos. Como vemos, defrontamos aqui com
a incompletude, com o não-fechamento, com os deslocamentos, com a atuação dos interpretantes
ad infinitum. E é este mesmo silêncio que garante a continuidade da existência das obras de arte
ou do conhecimento humano, que trataremos um pouco mais detalhadamente na seqüência deste
estudo.
57

3 A PRIMEIRIDADE PEIRCEANA E O SILÊNCIO FUNDADOR

Primeiridade tem a ver com presentidade e consciência. É um estado de imediaticidade, ou


seja, tudo aquilo que se apresenta na consciência de alguém. Como nos lembra Santaella (1983),
se pudéssemos, num determinado momento parar para examinar de que consiste o todo de uma
consciência, ela não seria senão presentidade como está presente. É uma consciência imediata tal
qual é, nenhuma outra coisa senão a pura qualidade de ser e de sentir – uma impressão in totum,
indivisível, não analisável, inocente e frágil. É um presente constante, que, ao perguntarmos
sobre o que está lá, já é tarde demais: o presente já se foi e o que resta dele já está totalmente
transformado, pois já estamos em outro presente. E se questionarmos este novo presente, ele
também já terá evanescido e transmutado em outro presente. E assim seguirá o processo ad
infinitum.
Primeiridade enfim, é o começo, correspondendo às noções de acaso, indeterminação,
vagueza, indefinição, possibilidade, originalidade irresponsável e livre, espontaneidade, frescor,
e, de modo especial, potencialidade, na sua acepção mais simples, embora nem por isto menos
complexa, do caráter do que pode ser produzido, ou produzir-se, mas que ainda não existe. Esta
potencialidade opõe-se ao conceito de virtual, daquilo que está predeterminado e contém todas as
condições essenciais à sua realização, e também ao conceito de atual, daquilo que está em ato.
Em uma de suas melhores referências à Primeiridade, Peirce diz:

... o primeiro deve ser presente imediato, de modo a não ser segundo para uma
representação. Ele deve ser fresco e novo, porque se velho já é um segundo em
relação ao seu estado anterior. Ele deve ser iniciante, original, espontâneo e
livre porque senão seria um segundo em relação a uma causa. Ele também é
algo vívido e consciente porque só assim pode evitar ser o objeto de alguma
sensação. Ele precede toda síntese e toda diferenciação; ele não tem nenhuma
unidade e nem partes. Ele não pode ser articuladamente pensado; afirme-o e ele
já perdeu toda sua inocência característica porque afirmações sempre implicam
a negação de outra coisa. Pare para pensar nele e ele já voou. O que o mundo
era para Adão no dia em que ele abriu seus olhos para ele, antes que ele
estivesse estabelecido quaisquer distinções ou se tornado consciente de sua
própria existência – isso é primeiro, presente, imediato, fresco, novo, iniciante,
original, espontâneo, livre, vívido, cônscio e evanescente. Mas não se esqueça.
Qualquer descrição dele deve necessariamente falseá-lo. A idéia do primeiro é
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tão tenra que você não pode tocá-lo sem estragá-lo (PEIRCE apud
SANTAELLA, 2001, p. 104).

Enfim, apesar da impossibilidade de descrição dessa experiência, não significa que ela não
possa ser indicada ou imaginativamente criada. Além do mais, como nos reforça Santaella, há
necessariamente uma consciência imediata e conseqüentemente um sentimento. E, qualidades de
sentimento estão, a cada instante, lá, mesmo que imperceptíveis. Não são nem pensamentos
articulados, nem sensações, mas partes constituintes da sensação e do pensamento, ou de
qualquer coisa que esteja imediatamente presente em nossa consciência.
Neste universo de puras possibilidades qualitativas, altamente indeterminadas, isto é,
libertas de quaisquer regras ou leis regendo suas ocorrências, temos o domínio do acaso. Para
Peirce, o acaso é um evento ontológico real, sendo responsável não só pela infinita variabilidade
e heterogeneidade do universo, mas também pelo crescimento de sua complexidade. Algo só
pode crescer através do poder da espontaneidade que abre espaço para a variação criativa. Assim,
se não houvesse acaso, não haveria crescimento. Assim também, a transição do menos complexo
ao mais complexo só pode ocorrer através do surgimento de novas opções. Essas opções são
produtos do acaso. Portanto, onde houver frescor, espontaneidade, indeterminação, possibilidade
em aberto, aí estará o acaso (SANTAELLA, 2001, p. 121).
Analogamente ao conceito de Primeiridade postulado por Peirce, a Análise do Discurso de
Linha Francesa também vai cultivar certas qualidades que estão/são (n)o âmago da criação,
nascedouro primeiro das idéias. Tomando por base o trabalho incomum de Eni Orlandi, que vem
a introduzir a noção de Silêncio Fundador e Silêncio Constitutivo dentro da Análise do Discurso,
Orlandi (2001) parte de M. Pêcheux (1980) em relação ao histórico das revoluções, a
concernência do contato entre o visível e o invisível, o existente e o inexistente, o não realizado e
o impossível, o presente e as diversas modalidades de ausência. Queremos dizer com isso que a
Análise do Discurso constitui um excelente dispositivo teórico para se ocupar do inexistente, do
que está além, do irrealizado. Além do mais, a introdução da noção de silêncio será necessária
para a compreensão de como se constituem, são formulados e circulam os sentidos – três
instâncias indissociáveis no processo de produção dos sentidos – visto que, através das
estruturas que lhe são próprias, toda língua está necessariamente em relação com o não-lá, com o
não-mais-lá, com o ainda-não-lá e com o jamais-lá da percepção imediata. Esta percepção
imediata nos remete ao conceito inicial de Primeiridade: que tem a ver com presentidade e
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consciência. Como já dito antes, é um estado de imediaticidade, ou seja, tudo aquilo que se
apresenta na consciência de alguém.
Em seu trabalho sobre o silêncio, Orlandi (1992) desenvolve o entendimento de que o
silêncio tem muitas formas:
1. O Silêncio Fundador – que não há significação possível sem silêncio: é o silêncio
que existe nas palavras, o que significa o não-dito e o que dá espaço de recuo significante,
produzindo as condições para significar;
2. A Política do Silêncio que se subdivide em 2.1: Silêncio Constitutivo ou
antiimplícito, o que nos indica que para dizer é preciso não-dizer (uma palavra apaga
necessariamente as “outras”) e 2.2: o Silêncio Local, que refere à censura propriamente,
compreendida como aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura, ou melhor, a
interdição para um sujeito de circular por certas regiões de sentidos e, portanto, por certas
regiões de constituição de sua identidade.
Interessa-nos, pelo momento, o Silêncio Fundador. Para Orlandi, há modos absolutamente
distintos de significar que é estar em sentido com as palavras e estar em sentido sem elas (em
silêncio). Ressalta que “não se pode traduzir o silêncio em palavras sem modificá-lo, pois a
matéria significante do silêncio e a das palavras diferem.” Com esta afirmação, se quer dizer que
há uma necessidade do sentido que só significa pelo silêncio, e não por palavras. Há uma
necessidade no sentido, em sua materialidade, que só significa por exemplo na música, ou na
pintura etc. São diferentes posições do sujeito, são diferentes sentidos que se produzem. A
significação é um movimento, um trabalho na história e as diferentes linguagens com suas
diferentes matérias significantes são partes constitutivas dessa história. Mais uma vez se reafirma
o caráter de incompletude das linguagens. O múltiplo e o incompleto se articulam materialmente:
a falha e a pluralidade se tocam e são função do não fechamento do simbólico; e a necessidade
das múltiplas linguagens e das distintas matérias significantes é um dos elementos que atestam
esse não fechamento.
O silêncio que Orlandi nos coloca não é a ausência de sons ou de palavras. Trata-se do
Silêncio Fundador, ou fundante, princípio de toda significação. Parte da hipótese de que o
silêncio é a própria condição da produção de sentido. Assim ele aparece como o espaço
“diferencial” da significação: “lugar” que permite à linguagem significar. Então, o silêncio não é
o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa, o que nos
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leva à compreensão do “vazio” da linguagem como um horizonte e não como falta. Não se trata
aqui, evidentemente, do silêncio em sua qualidade física, mas do silêncio como sentido, como
história (silêncio humano), como matéria significante. É o silêncio que instala o limiar do
sentido.
Quando dizemos que há silêncio nas palavras, dizemos que elas são atravessadas de
silêncio. Elas produzem silêncio. O silêncio fala por elas. Elas silenciam. Então, o silêncio não
está apenas entre as palavras (ORLANDI, 2002). As palavras estão cheias de sentido a não se
dizer. Ao procurar entender a materialidade simbólica específica do silêncio pôde-se alargar a
compreensão da nossa relação com as palavras: não estamos nas palavras para falar delas ou de
seus ‘conteúdos’ mas para falar com elas.
Em nossas reflexões, ao aprofundarmos a compreensão do modo de significar do silêncio,
observamos que não há um sujeito tão visível e nem um sentido tão certo, por causa das várias
posições-sujeitos e a migração dos sentidos: o sentido não pára, ele muda de caminho. O silêncio
é o reduto do possível, do múltiplo, abre espaço para o que não é ‘um’, para o que permite o
movimento do sujeito. De novo nos remetemos ao status da Primeiridade peirceana – que, por
analogia – é também o reduto do possível, do múltiplo.
Onde se situa o trabalho do silêncio? Vejamos: diz-se que sujeito e sentido se constituem
ao mesmo tempo. Assim, à errância do sentido, à sua capacidade de migração, corresponde a
errância do sujeito que muda de posição, que falha, etc. Então, “todo sentido é efeito de uma
refração, todo discurso se funda no equívoco” (ORLANDI, 2001). O discurso é efeito de
sentidos entre locutores. O sentido não está alocado em lugar nenhum, mas se produz nas
relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isto só é possível, já que sujeito e sentido se constituem
mutuamente pela sua inscrição no jogo das múltiplas formações discursivas. Compreender o que
é efeito de sentidos é compreender a necessidade da ideologia na constituição dos sentidos e dos
sujeitos. É da relação regulada historicamente entre as muitas formações discursivas (com seus
múltiplos sentidos possíveis que se limitam reciprocamente) que se constituem os diferentes
efeitos de sentido entre locutores, e também das suas posições-sujeito. O limite de uma formação
discursiva é o que a distingue de outra formação discursiva mostrando que, segundo Courtine
(1982), a formação discursiva é heterogênea em relação a ela mesma, pois já evoca por si o
‘outro’ sentido que ela não significa. Daí a necessidade do equívoco, do sem-sentido, do sentido
‘outro’ e do investimento em ‘um’ sentido. Aí se situa o trabalho do silêncio (grifo nosso).
61

É assim que podemos compreender o silêncio como fundador como o não-dito que é a
história, e que, dada a necessária relação do sentido com o imaginário, é também função da
relação (necessária) de língua e ideologia. O silêncio trabalha então essa necessidade. Orlandi
nos coloca também que essa reflexão sobre o silêncio nos ensina que, embora seja preciso que já
haja sentido para se produzir sentidos (falamos com palavras que já têm sentidos), estes não
estão nunca completamente lá. Eles podem chegar de qualquer lugar e eles se movem e se
desdobram em outros sentidos.
“No início é o silêncio. A linguagem vem depois”. Para Orlandi (2002, p.29), quando o
homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem para retê-lo.
Temos aqui um interessante silogismo: a Primeiridade é o início. Se o início é o silêncio, então o
silêncio é Primeiridade. A Primeiridade é o silêncio. Eis aqui o ponto de contato entre a
Primeiridade e o Silêncio Fundador.
Nas reflexões de Orlandi (2002), alguns pontos sobre o silêncio foram atestados:
a) O silêncio, assim como a linguagem, não é transparente;
b) O silêncio não é interpretável, mas compreensível;
c) Se não se pode traduzir o silêncio em palavras sem modificá-lo, já que a matéria
significante do silêncio e a das palavras diferem, também não se pode recuperar o sentido
do silêncio só pela verbalização. A tradução do silêncio em palavras é uma relação
parafrástica. Lembremos que os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo
dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória (ORLANDI, 2003).
d) O Silêncio Fundador é múltiplo e disperso. Constitutivo em primeira e múltiplas
instâncias, ele tem primazia sobre as palavras. A linguagem, por seu lado, já é
categorização (grifo da autora) do silêncio. É movimento periférico, ruído. Daí, não só a
competência, mas a necessidade da linguagem para domesticá-lo, para retê-lo.
Há um trabalho silencioso na relação do homem com a realidade que lhe propicia a sua
dimensão histórica, já que mesmo o silêncio é sentido. O que nos leva a concluir que não se pode
estar fora do sentido assim como não se pode estar fora da história.
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3.1 Música de silêncios filosóficos e silêncios pragmáticos: analogias

Santaella (2001) nos lembra que a materialidade sonora é evanescente. O som não tem
bordas nem arestas, não ocupa espaço. Então, qualquer som pode conviver com qualquer outro
som, podendo se superporem, se sincronizarem, se misturarem indefinida e infinitamente. A
partir deste pressuposto, é verdadeiro dizer que esta materialidade sonora é provida de
qualidades e sentimentos emanantes da primeira categoria do pensamento e da natureza
postulada por Peirce: a primeiridade. Além disso, no mundo do som, onde sons e ruídos podem
se combinar a qualquer momento, as possibilidades do acaso estão continuamente em aberto,
para continuamente irem se transformando em evento na medida mesma em que vão se
atualizando (SANTAELLA, 2001, p. 122). Neste ponto, concordamos com John Cage (apud
COBUSSEN, 2000?, p. 19) sobre a ubiqüidade do som.
Estas considerações nos levam a estabelecer paralelos entre o silêncio
filosófico/pragmático defendido por John Cage, com os princípios da Análise do Discurso. Para
tal, é necessário uma retomada da noção estrutural do silêncio proposto por Cage, tal como foi
colocado por Cobussen (2000 ?) em sua “Interactive Dissertation”.
A princípio, Cage concebe o silêncio em uma maneira tradicional, como a ausência de som,
ou como uma atividade sonora mínima. A atenção ao silêncio ajuda no descobrimento da
estrutura musical uma vez que o silêncio só pode ser determinado por sua duração. Ao atribuir a
primazia da duração como parâmetro musical, Cage não somente abre a música para o silêncio,
mas para todos os sons de qualquer qualidade ou diapasão. A música torna-se um conceito vazio
(silente?) do qual qualquer som pode emergir. O silêncio adquire um importante papel: somente
através do silêncio é que pode o material musical adotar muitos tipos de sons.
A partir disso, cremos que podemos levantar as seguintes analogias:
Primeira Analogia: temos então aqui o mesmo princípio do Silêncio Fundador como
proposto por Orlandi (2002) neste capítulo: – que não há significação possível sem silêncio: é o
silêncio que existe nas palavras, o que significa o não-dito e o que dá espaço de recuo
significante, produzindo as condições para significar.
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Segunda Analogia: Estar no sentido com as palavras (podemos substituir as palavras


grifadas por sons) e estar no sentido sem elas (ou em silêncio), são modos absolutamente
distintos de significar, de nos relacionarmos com o mundo, com as coisas, com as pessoas e com
nós mesmos.
Terceira Analogia: não se pode traduzir o silêncio em palavras (não se pode traduzir o
silêncio em sons) sem modificá-lo pois a matéria significante do silêncio e a das palavras (dos
sons) diferem; além disso, o silêncio significa por si mesmo, ou seja, o silêncio não fala, ele
significa.
Quarta Analogia: as palavras são atravessadas de silêncio. Uma noção espacial de
silêncio: o silêncio não mais é uma ausência de som; o silêncio por si consiste de sons. O silêncio
procria os sons. Através do entrelaçamento do silêncio com o som, a penetrabilidade mútua deles
agora se torna apreciada. Cada um retém a parte de sua antípoda; cada um requer o outro como
sua estrutura. A necessária interdependência entre som e silêncio se refere a dois aspectos
principais: o silêncio não é somente a pré-condição para o som – isto significa que o silêncio
contém sons – cada som, por sua vez abriga, da mesma maneira, o silêncio.
Quinta Analogia: o silêncio funcionando como pré-significação para as palavras (o
silêncio funcionando como pré-significação para os sons). O segundo aspecto se manifesta
principalmente nas obras musicais que estão no limite extremo da audibilidade. Nestas peças, o
silêncio não desaparece quando o som ressoa, ao contrário, ele ressoa continuamente junto com o
som. Aqui, um conceito vertical de silêncio entra em jogo. Som e silêncio se desenvolvem em
um modo paralelo sem exclusão mútua; um já está sempre presente em outro (VISSCHER, 1991,
p. 49-50)
Sexta Analogia: as palavras estão impregnadas de silêncio. Martin Zenck (1976), ao
referir à “Lectures on Nothing”1 de Cage, aponta que as palavras da língua falada na qual o
silêncio é demarcado são, na verdade, a pré-condição para o silêncio.
Um conceito espacial de silêncio: silêncio como um espaço que está sempre impregnado de
sons, e vice-versa. A relação entre som e silêncio se torna mais complexa. Para Cage (cujas
idéias estão sempre em contínua transformação), não mais basta fundamentar que o silêncio e o
som são mutuamente dependentes para que possam existir, ou que o som emerge do silêncio.
Cage reverte esta idéia: o silêncio ressoa nos sons. O silêncio se torna mais proeminente quando

1
“Leituras sobre Nada” – uma das principais obras teóricas de Cage.
64

traços de silêncio nos sons são detectados. “A música já aprecia a inaudibilidade (silêncio)”,
escreve Cage (KOSTELANETZ, p. 116). Após a sua “Lectures on Nothing”, o pensamento de
Cage sobre silêncio e som se direciona sobre um turno que se incorpora em seu “Lectures on
Something”2. (A oposição de som-silêncio, junto com oposições tais como nada-algo, morte-
vida, lei-liberdade, etc., forma uma corrente inteira de oposições aparentes no universo de Cage
que não mais pode ser pensada como oposições. Como tal, eles são objetos de uma estratégia de
des-construção3 em música).
Diz Cage:

É o nada que vai continuamente sem começo, meio, ou significado, ou fim.


Algo está sempre começando ou parando, ascendendo e caindo. O nada que
continua é o que Morton Feldman fala quando ele fala de ser submerso no
silêncio. A aceitação da morte é a fonte de toda a vida. Assim, ao ouvir esta
música, se pega como um trampolim o primeiro som que surge; o primeiro
algo salta dentro do nada e fora deste nada surge o próximo algo; etc. como
uma corrente alternada. Nem um único som teme o silêncio que o extingue. E
não existe nenhum silêncio que não esteja impregnado de som (CAGE apud
KOSTELANETZ, 1961, p. 116).

Sétima Analogia: as palavras estão impregnadas de silêncio; o silêncio está impregnado de


significações. O silêncio não fala, ele significa (ORLANDI, 2002).
O silêncio como ausência de qualquer intenção: Cage nos diz que a diferença entre som e
silêncio não pode ser uma propriedade de um objeto ou uma situação desde que o som é ubíquo o
tempo todo. Portanto, a divisão entre os dois repousa na distinção entre sons intencionados e
sons não-intencionados.
Formalmente, o silêncio seria o lapso de tempo entre sons, útil em uma variedade de fins,
entre elas, a separação de dois sons ou grupos de sons, cuja relação seria, assim, enfatizada; ou
como expressividade, onde os silêncios em um discurso musical poderiam prover pausa ou
pontuação; ou ainda, como arquitetura, onde a introdução ou interrupção do silêncio poderia dar
definição tanto para uma estrutura pré-determinada quanto para uma em orgânico
desenvolvimento. Quando nenhuma destas metas estão presentes,

2
“Leituras sobre Algo”
3
Jacques Derrida devota uma grande parte de sua obra sobre a des-construção como estratégia literária. Seus
princípios são amplamente aplicados na música da segunda metade do século XX, incluindo a de Cage.
65

o silêncio torna-se algo mais – não silêncio absolutamente, mas sons, os sons
ambientes. A natureza destes sons é imprevisível e mutável. Estes sons (que
são chamados de silêncio porque eles não fazem parte de uma intenção
musical) podem ser dependentes em existir. O mundo está abundante deles, e
está, na verdade, de maneira alguma livre deles (KOSTELANETZ, 1961,
p.116).

Por respeito a estes sons, Cage cuida para que suas composições não perturbem este estado
de não intencionalidade ou silêncio:

“Quando eu escrevo uma peça, eu tento escrevê-la de tal maneira que ela não
vá interromper esta outra peça que já está em atividade” (CAGE apud
DUCKWORTH, 1995, p. 1).

Oitava Analogia: as formações discursivas – segundo Orlandi (2002), elas não têm
fronteiras categóricas. Vejamos: o fechamento de uma formação discursiva, segundo Courtine

é fundamentalmente instável, e, de uma vez por todas, não consiste em um


limite traçado que separa um interior de um exterior de seu conhecimento, mas
se inscreve entre diversas formações discursivas como uma fronteira que se
desloca em função da luta ideológica4 (COURTINE apud ORLANDI, 2002, p.
88).

Assim, temos que o silêncio faz parte da constituição do sujeito e do sentido. A relação do
sujeito às formações discursivas tem o silêncio como componente essencial. Este permite a
constituição da história do sujeito não apenas como reprodução mas como transformação dos
sentidos (ORLANDI, 2002).
Retomando Cage, o silêncio (não) é nada; não mais é a ausência de som. Ele consiste de
todos os sons ambientes que produzem um espaço musical, um espaço onde as fronteiras nem

4
Est fondamentalement instable, elle ne consiste pas en une limite tracée un fois pour toutes séparant un intérieur
et un extérieur de son savoir, mais s’inscrit entre diverses formations discursives comme une frontiére qui se
déplace en fonction de la lutte idéologique.
66

sempre podem ser claramente definidas. O silêncio é o espaço no qual os sons ocorrem. O
silêncio reside nas fronteiras das formações discursivas que o compõem, intervindo como
parte da relação do sujeito ao dizível, permitindo os múltiplos sentidos ao tornar possível, ao
sujeito (o ouvinte), a elaboração de sua relação com os outros sentidos. O silêncio, não importa
em qual formação discursiva que esteja inserido, é, portanto, polissêmico.
Independente da(s) formação(ões) discursiva(s) que o silêncio possa se inserir, se se pensa
(ORLANDI, 2002) o silêncio como constitutivo de todo processo significativo, a determinação
histórica desses processos não se apresenta apenas como injunção ao mesmo.
Nona Analogia: em face da história, o silêncio pode significar em relação ao futuro, o
“projeto” do discurso, a multiplicidade dos sentidos. Temos aqui os sons que ainda não temos
acesso, mas que já estão em atividade no mundo.
Décima Analogia: em face da história, o silêncio pode significar em relação ao passado, o
já-dito que retorna sob a forma do interdiscurso, e que se re-formula. Temos aqui os sons que já
não soam mais, que não temos mais acesso, a não ser pela memória.
Décima Primeira Analogia: levando em conta a dimensão histórico-política do sentido,
ou seja, a partilha entre o que significa e o que não significa, temos que, independente de pensar
a autonomia dos sons, que na sua natureza é também polissêmico, eles dependem
exclusivamente da formação discursiva em que se inserem.
Décima Segunda Analogia: levando em conta a historicidade do sujeito, isto é, a relação
entre os distintos processos de identificação de que resulta a identidade dependendo aqui da
memória, da história do ouvinte em relação aos sons e em relação a si próprio.
Décima Terceira Analogia Deste modo, podemos considerar o silêncio como parte da
incompletude que trabalha os limites das formações discursivas, produzindo tanto a polissemia
(o a-dizer) quanto o já-dito, isto é, o silêncio trabalha nos limites do dizer (soar), o seu horizonte
possível (a soar, a significar – expectativa) e o seu horizonte realizado (já soado, já significado
– memória).
Concluindo, reforçamos os pontos em comum entre o Silêncio Fundador, a Primeiridade e
o silêncio para John Cage. Vejamos:
Lembremos que a Primeiridade é começo, possibilidade, espontaneidade, potencialidade,
liberdade. Assim também o é o Silêncio Fundador – âmago da criação, nascedouro primeiro das
idéias. Tanto a primeiridade quanto o silêncio fundador não são interpretáveis, mas
67

compreensíveis. Ambos são reduto do possível e do múltiplo. A Primeiridade, como vimos, traz
dentro de si a fragilidade, a fugacidade, a evanescência. Retomando as palavras ditas no início
dessa seção, onde Santaella (2001) nos recorda que a matéria sonora também é evanescente,
visto que o som não tem bordas, nem arestas e não ocupa espaço, por esse fato temos que, assim
como a matéria sonora contém por natureza o dom da ubiqüidade, também o silêncio é ubíquo.
Pelo menos assim nos propõe John Cage, ao fundamentar seus conceitos sobre o silêncio
musical. Retomando nossas palavras, Cage não somente abre a música para o silêncio, mas para
todos os sons de qualquer qualidade ou diapasão. A música torna-se um conceito vazio (silente?)
do qual qualquer som pode emergir. O silêncio adquire um importante papel: somente através do
silêncio é que pode o material musical adotar muitos tipos de sons.
Enfim, sendo tanto a Primeiridade como o Silêncio Fundador reduto do possível e do
múltiplo, também o silêncio pragmático, tal como proposto por Cage, é reduto do possível,
atestado por sua posição colocada acima: do silêncio qualquer som pode surgir. Da mesma
forma, este silêncio cageano também é múltiplo gerando infinitos sentidos.
Por esta razão, podemos aferir que o silêncio cageano, o silêncio fundador e a primeiridade
são focos de polissemia, onde os sentidos migram irresponsavelmente, contribuindo para a
incompletude da linguagem, o seu não-fechamento. Em outras palavras, contribuindo para a
manutenção das memórias e a conseqüente perpetuação do conhecimento.
Para Orlandi (1995), a nossa formação social é povoada com uma abundância excessiva de
linguagens, que, o tempo todo disponíveis e amplificadas ao infinito, faz com que fiquemos
cegos e surdos aos sentidos. Isto se dá, pois, como nos lembra Jenny (apud ORLANDI, 1995 p.
37), a profusão de significações torna as linguagens insignificantes. Lembrando que estas
linguagens que são de naturezas distintas, isto é, verbal e não-verbal, somente o silêncio pode
apagar as diferenças entre elas. Procuraremos sustentar a nossa análise partindo deste
pressuposto, uma vez que o objeto de nosso estudo é constituído pela linguagem verbal e pela
linguagem não-verbal, cuja raison d’être está no silêncio.
Finalizando, entendemos que dificilmente escapamos aos sentidos tal como eles se
apresentam e se representam. “E eles não são por isso uma ameaça: são antes um convite à vida,
à experiência, à história, à interpretação” (ORLANDI, 2002, p. 173).
E assim cremos que é, pois não se pode pensar o sentido sem silêncio, e tampouco o
silêncio sem sentido.
68
68

4 O SILÊNCIO COMO PRÉ-SIGNIFICAÇÃO EM “SORTILÉGIOS DA LUA”

Silêncios são pedaços de eternidade, que


não duram, mas perduram... em si
mesmos; nascem, se auto-sustentam e se
extinguem. São absorvidos pela matéria
sonora e são liberados quando se fizer
necessário1

“Only silence flows into the stream of


eternal time”2

4.1 Introdução

O presente capítulo procurará confrontar a obra de Baudelaire “Les Bienfaits de la Lune”


com a obra de Lanna “Os Sortilégios da Lua” sob o ponto do silêncio: o silêncio como pré-
significação como instituído por Eni Orlandi (2002). Para que possamos compreender melhor o
papel do silêncio nas obras em questão, retomaremos, a partir da visão da Análise de Discurso de
Linha Francesa, as condições de produção tanto da obra de Baudelaire quanto da obra de Lanna,
assim como o conceito e a tensão entre paráfrase e polissemia.
Para tal, o nosso corpus constará dos seguintes materiais:
a. Fragmentos do manuscrito autógrafo da partitura “Sortilégios da Lua”
b. Poema original de Charles Baudelaire “Les Bienfaits de la Lune” com uma tradução
literal feita por Antonio Celso Ribeiro
c. Gravação da obra realizada sob a regência do compositor pela Orquestra de Câmara
SESIMINAS MUSICOOP (Belo Horizonte – MG)

1
De uma reflexão de Antonio Celso Ribeiro sobre o silêncio em música (2005, não publicado)
2
“Somente o silêncio flui nas correntezas do tempo eterno”. Pierre Reverdy (apud TAKEMITSU, 1995, p. 16).
69

4.1.1 Les Bienfaits de la Lune3

La Lune, qui est le caprice même, regarda par la fenêtre pendant que tu dormais dans ton
berceau, et se dit: «Cette enfant me plaît.»
Et elle descendit moelleusement son escalier de nuages et passa sans bruit à travers les
vitres. Puis elle s'étendit sur toi avec la tendresse souple d'une mère, et elle déposa ses couleurs
sur ta face. Tes prunelles en sont restées vertes, et tes joues extraordinairement pâles. C'est en
contemplant cette visiteuse que tes yeux se sont si bizarrement agrandis; et elle t'a si tendrement
serrée à la gorge que tu en as gardé pour toujours l'envie de pleurer.
Cependant, dans l'expansion de sa joie, la Lune remplissait toute la chambre comme une
atmosphère phosphorique, comme un poison lumineux; et toute cette lumière vivante pensait et
disait: «Tu subiras éternellement l'influence de mon baiser. Tu seras belle à ma manière. Tu
aimeras ce que j'aime et ce qui m'aime: l'eau, les nuages, le silence et la nuit; la mer immense et
verte; l'eau informe et multiforme; le lieu où tu ne seras pas; l'amant que tu ne connaîtras pas;
les fleurs monstrueuses; les parfums qui font délirer; les chats qui se pâment sur les pianos, et
qui gémissent comme les femmes, d'une voix rauque et douce! »
«Et tu seras aimée de mes amants, courtisée par mes courtisans. Tu seras la reine des
hommes aux yeux verts dont j'ai serré aussi la gorge dans mes caresses nocturnes; de ceux-là
qui aiment la mer, la mer immense, tumultueuse et verte, l'eau informe et multiforme, le lieu où
ils ne sont pas, la femme qu'ils ne connaissent pas, les fleurs sinistres qui ressemblent aux
encensoirs d'une religion inconnue, les parfums qui troublent la volonté, et les animaux
sauvages et voluptueux qui sont les emblèmes de leur folie.»
Et c'est pour cela, maudite chère enfant gâtée, que je suis maintenant couché à tes pieds,
cherchant dans toute ta personne le reflet de la redoutable Divinité, de la fatidique marraine, de
la nourrice empoisonneuse de tous les lunatiques.

3
Les Bienfaits de la Lune foi publicado por Charles Baudelaire (Paris, 1821 – 1867) no livro Le Spleen de
Paris.Edition Gallimard, Paris, 2000.
70

4.1.2 Os Favores4 da Lua

A lua, caprichosa, observava pela janela enquanto você estava dormindo em seu berço, e
disse a ela mesma: “Aquela criança me agrada".
E então ela suavemente desceu a sua escadaria de nuvens e passou silenciosamente pelas
janelas. Então ela se cobriu em cima de você com a submissa ternura de uma mãe, e ela deixou
as cores dela em sua face. Seus olhos permaneceram verdes, e suas bochechas
extraordinariamente pálidas. Foi enquanto contemplava aquele visitante que seus olhos ficaram
tão grotescamente grandes; e ela esmagou sua garganta tão ternamente que você reteve o desejo
de chorar para sempre.
Enquanto isso, na expansão de sua alegria, a Lua preencheu todo o quarto como uma
atmosfera fosfórica, como um veneno luminoso; e toda aquela luz viva pensou e disse: “Você
estará eternamente sujeita à influência de meu beijo. Você será bela à minha maneira. Você
amará o que eu amo e os que me amam: a água, as nuvens, o silêncio, e a noite; o mar imenso e
verde; a água sem forma e multiforme; o lugar onde você não estará; o amante que você não
conhecerá; flores monstruosas; perfumes que o fazem delirante; gatos que desmaiam em pianos,
e que gemem como mulheres, com uma voz rouca, suave!”.
“E você será amada por meus amantes, cortejados por meus cortesãos. Você será a rainha
dos homens de olhos verdes cujas gargantas eu também tenho apertado com minhas carícias
noturnas; daqueles que amam o mar, o imenso mar, tumultuoso e verde, a água sem forma e
multiforme, o lugar onde eles não estão, a mulher que eles não conhecem, flores sinistras que se
assemelham aos incensários de uma religião desconhecida, perfumes que perturbam o desejo, e
animais selvagens e voluptuosos que são os emblemas da loucura deles".
E é por isso, maldita criança amada, mimada, que eu estou me deitando agora a seus pés,
buscando em toda a sua pessoa o reflexo da formidável Divindade, da deusa-mãe profética, da
ama-de-leite que envenena a todos os lunáticos.

4
Lanna interpreta a palavra francesa bienfaits como “Sortilégio” – do latim medieval sortilegiu: 'escolha de sortes',
ou seja, de objetos destinados a predizer o futuro. O Micro Robert Dictionnaire du Français Primordial aponta os
seguintes sentidos para o vocábulo bienfait: Acte de générosité, bien que l’on fait à qqn. V. Faveur, largesse,
service. Na língua portuguesa, a palavra bienfait pode ser traduzida como “favor” e “benefício” que são de uma
mesma cadeia de significantes.
71

De acordo com o encarte que acompanha o CD da Orquestra de Câmara SESIMINAS


MUSICOOP,

“Sortilégios da Lua” foi escrita sob a profunda impressão deixada pela leitura
do poema “Les Bienfaits de la Lune” de Baudelaire. Outra motivação
fundamental para a composição de “Sortilégios da Lua” foi o aprimoramento
da sonoridade e o refinamento interpretativo da Orquestra de Câmara
SESIMINAS MUSICOOP. O compositor tem acompanhado a sua atuação ao
longo dos últimos quatro anos, seja como regente na série ‘Concertos BDMG’,
seja como parte de um público cativo, e pôde explorar nesta obra as mais
diversas combinações de timbres e texturas.5

“Sortilégios da Lua” foi composta em Belo Horizonte, MG em 1998. É dedicada à Zanja


(esposa do compositor6) e sua duração é de aproximadamente 6’:57”. Sua orquestração
compreende exclusivamente instrumentos da família das cordas friccionadas, a saber:

• Violinos I: solo e tutti, com divisi ou polifonia máxima de até cinco vozes;
• Violinos II: solo e tutti, com divisi ou polifonia máxima de até cinco vozes;
• Violas: solo e tutti, com divisi ou polifonia máxima de até quatro vozes;
• Violoncelos: solo e tutti, com divisi ou polifonia máxima de até três vozes;
• Contrabaixo: solo, com polifonia máxima de até duas vozes.

5
A obra “Sortilégios da Lua” foi gravada no CD homônimo pela Orquestra de Câmara SESIMINAS MUSICOOP,
patrocinado pela FIEMG – SESI Minas Gerais e Centro de Cultura Nansen Araújo, em Agosto de 1998, em Belo
Horizonte, MG. Regência do compositor Oiliam Lanna.
6
Oiliam Lanna (Visconde do Rio Branco, 1953) é graduado em Composição pela Escola de Música da UFMG, onde
estudou com Arthur Bosmans, Dante Grela e H.J. Koellreutter. Na mesma área, cursou o Mestrado na Faculté de
Musique de l’Université de Montreal, Canadá, sob a orientação de André Prévost (1986). Atualmente, é professor
de composição e matérias afins na Escola de Música da UFMG. Tem atuado como regente e instrumentista em
concertos dedicados a um amplo repertorio. Nesses concertos e sobretudo, em bienais e encontros de música
contemporânea tem sido responsável por diversas primeiras audições de obras do repertório brasileiro e
internacional. Em agosto de 2005 defendeu a tese de doutoramento “Dialogismo e Polifonia no Espaço Discursivo
da Ópera” na Faculdade de Letras da UFMG, sob a orientação da prof. Dra. Maria Sueli de Oliveira Pires.
72

4.2 As condições de produção de “les bienfaits de la lune” e de “sortilégios da lua”

Orlandi (2003) ao questionar o que são as condições de produção, chega à compreensão


que elas são, fundamentalmente os sujeitos e a situação, incluindo aí também a memória que faz
parte da produção do discurso.
Se considerarmos as condições de produção em sentido estrito, teremos as circunstâncias
da enunciação: é o contexto imediato. Mas, se as consideramos em sentido amplo, as condições
de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.
A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso,
sendo, nesta perspectiva, tratada como interdiscurso, isto é, como aquilo que fala antes, em outro
lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo
que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na
base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. Em suma, o interdiscurso disponibiliza
dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. Vejamos,
pois, as condições de produção em Baudelaire:
Para que possamos compreender melhor a obra de Baudelaire, vamos traçar sumariamente
a época em que ele viveu.
Charles-Pierre Baudelaire nasceu em Paris em 9 de abril de 1821, falecendo nesta mesma
cidade em 31 de agosto de 1867. Muito cedo revela a sua vocação literária.
Baudelaire é o pioneiro da lírica regida pela filosofia parnasiana. Como resposta ao
romantismo, que considera uma saturação do sentimentalismo na expressão escrita, seus versos
expressam sua posição estética. Retrata a vida e as coisas cotidianas de uma maneira crua e
descarnada para mostrar que no feio há beleza, embora preste atenção à métrica e aos aspectos
formais. Este sentimento de rebeldia e desengano, próprio dos poetas de sua geração, está
acentuado em Baudelaire pelas vivências de sua infância. Sua mãe se casa pela segunda vez,
depois de se enviuvar, fato que provoca nele a rejeição do padrasto que mais tarde o persegue e
o despoja de sua fortuna.
Para Berenguer (2005), sua produção literária é influenciada por Edgar Allan Poe, de quem
toma o espírito fatalista e o sentido de irreversibilidade do destino. Uma de suas obras mais
73

importantes, “As Flores do Mal”, uma coleção de poemas editada em 1857, não só por seu
simbolismo, mas também pelo deleite de suas imagens, e a elaboração de sua métrica, foi
rejeitada e criticada no momento de sua publicação por atentar contra o sentido estético reinante
no momento: o romantismo. Assim, imediatamente após a sua publicação, o Governo francês
acusou Baudelaire de atentar contra a moral pública. Sofreu multa, censura e recolhimento das
edições, sendo que alguns de seus poemas somente puderam voltar a serem lidos a partir de
1949.
Outra de sua obra igualmente importante trata-se dos pequenos poemas em prosa
denominados “Le Spleen de Paris”, que traduzimos grotescamente por “O Rondador de Paris”, e
de onde foi extraído o poema “Les Bienfaits de la Lune” – ponto de partida para a composição
da obra de Lanna “Sortilégios da Lua” – tema desta dissertação. “Le Spleen de Paris” cumpre
fielmente com seu título: são verdadeiros poemas por seu conteúdo emocional, pela aura de
mágico feitiço que os circunda; pela profundidade da perspectiva que abre ante a surpresa do
olhar; e estão escritos em verdadeira prosa, rica, porém austera.
Pleno até as bordas de uma força dolorosa, de uma intensidade angustiosa, de um
sugestionamento potencial, “Le Spleen de Paris” constitui também um livro único, como são
únicos, cada um em seu gênero, “As Flores do Mal” e “Os Paraísos Artificiais”. Para Berenguer
(2005), “Le Spleen de Paris” é o livro da humanidade de Charles Baudelaire. Vejamos:
No meio das multidões, o caminhante solitário descobre com olhos experientes os
desafortunados que vivem na insatisfação e no desejo. Que seja o desejo das carícias infantis,
como a velhinha desesperada; que seja o desejo de sentar-se à mesa de um café luxuoso, como o
pai pobre, de olhos imensos, com seus dois filhos pequenos; que seja o desejo de escutar um
pouco de música, como a viúva miserável e majestosa, perfumada de “arrogante virtude”. Outras
vezes se trata de uma mulher solitária, madura, “que não sai nunca”. O poeta imagina a história
dessa mulher e, ocasionalmente, a conta a si próprio, chorando. Crianças pobres, saltimbancos
arruinados e decrépitos, velhas abandonadas, loucas, mendigos, cães vagabundos, essas são as
imagens sobre as que se inclina, estremecido de piedade.
Como sempre, ele está totalmente comprometido, por detrás de cada uma dessas imagens
de dor, de insatisfação ou de derrota. O sonho em estado puro, corrosivo, cai como um ácido
sobre as páginas do dia ou da noite, mordendo as formas da realidade e as escórias da aparência
caem consumidas e uma nova ordem de beleza substitui a desordem do mundo. O rosto do poeta
está aí, sempre presente. Ele está aí entre a multidão dos necessitados, dos insatisfeitos, dos
humildes. Tem os olhos elevados ao céu e fala: está rezando. Está no centro mesmo do
redemoinho, tão necessitado como os pobres, tão abandonado como os velhos, tão triste como os
74

vencidos, destroçados; mas não implora dinheiro, nem companhia, nem glória futura, nem
consolo material algum: pede às almas intercessoras que o liberem da mentira e da corrupção do
mundo, e a Deus, que o conceda a graça de escrever alguns versos bonitos, ou seja, a vitória
máxima (BERENGUER, 2005).

4.2.1 Os “poèts maldits” e o simbolismo

Baudelaire, juntamente com Rimbaud, Verlaine e Mallarmé, cognominados “Poetas


Malditos”, são os principais representantes do Simbolismo, um movimento que renovou a
poesia na França no final do século XIX. O nome do movimento vem da tendência de seus
poetas em expressar a realidade através de símbolos. Opunham-se assim a uma corrente
imediatamente anterior, chamada Parnasianismo, que defendia veementemente a volta às formas
clássicas. Ao contrário, o Simbolismo introduziu um aspecto totalmente revolucionário: o verso
livre. Os poetas deixavam assim de estar sujeitos às normas da métrica. Estavam mais
interessados em perceber a realidade através dos sentidos e em transformá-la em poemas
repletos de símbolos, sugestões e ressonâncias musicais.
A grande figura deste movimento foi, sem dúvida, Charles Baudelaire, que precedeu a um
grupo de poetas brilhantes: Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, Tristán Corbière, Jules Laforgue e
Charles Cros. Com eles nasceu também mito do artista boêmio, decadente e profundamente
crítico com a sociedade de seu tempo. Ou, em outras palavras, os poetas malditos. Esta
expressão foi na realidade inventada por Paul Verlaine que, em 1884, publicou uma série de
esboços biográficos de um grupo de poetas simbolistas e intitulou “Os Poetas Malditos”.
Vamos procurar deixar claro que a definição de simbolismo enquanto movimento literário
do século XIX, como já dito antes – denominado assim pela tendência de seus poetas em
expressar a realidade através de símbolos, é totalmente distinta da definição de simbólico
clamado pela Análise de Discurso de Linha Francesa. Mariani (1999) nos lembra que para Henry
(1992), a noção de simbólico, “é aquilo que, na linguagem é constitutivo do sujeito como
efeito.” Ou seja, enquanto estruturado por linguagem, o simbólico está relacionado ao processo
do significante e do sócio-histórico na constituição do sujeito de tal forma que, posto em relação
75

à experiência no mundo, possibilita que sentidos sejam sempre produzidos. Desta forma, mais
especificamente, é com a noção de efeito-sujeito, enquanto efeito de linguagem, e não com a de
‘sujeito da linguagem’, que a Análise do Discurso opera.
Como as condições de produção, do ponto de vista da Análise de Discurso de Linha
Francesa, compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação, podemos compreender o
processo de composição da obra “Sortilégios da Lua” sob os seguintes estímulos: 1) a impressão
profunda produzida ao ler o poema “Les Bienfaits de la Lune” de Baudelaire e, 2) a melhoria da
qualidade da orquestra: condições técnicas para expressar a vontade do compositor; veículo para
difusão e divulgação da produção artística etc. Esta situação, ou melhor, estímulo, é importante,
pois de certa forma toda pessoa que cria, seja um músico, um poeta, um pintor ou um bailarino,
precisa dar vazão à sua forma de arte. Desde o gesto da concepção mental, até a sua
materialização ou corporificação em um tipo de mídia qualquer, até a sua chegada (ou não) a um
leitor/ouvinte/consumidor potencial, estes processos todos são necessários para a concretude de
uma obra de arte. Ter um veículo final para o escoamento de um trabalho de arte (edição de
livro, exposição de gravuras, gravação de áudio e videoclipes, espaço para dança/atuação e etc) é
condição sine qua non para a subsistência e (re) significação do indivíduo enquanto sujeito
criador.
Vejamos um pouco mais detalhadamente a situação nº 1:
Pela ótica peirceana, temos aqui a atuação do Interpretante dinâmico, que, como já
abordado antes nesta dissertação, “consiste no efeito direto realmente produzido por um Signo
sobre um intérprete (...) Efeitos do Signo sobre uma mente individual, ou sobre um número de
mentes individuais reais através de ação independente sobre cada uma delas” Pode-se dizer
também que o interpretante dinâmico é uma “determinação de um campo de representação
exterior ao Signo (sendo tal campo a consciência de um intérprete), determinação essa que é
afetada pelo Signo” (PEIRCE apud SANTAELLA, 2000, p. 73).
Assim, ao ler “Les Bienfaits de la Lune”, Lanna sentiu-se motivado a transportar as
sensações obtidas para a música, escolhendo como veículo para materializar essas sensações
uma camerata de cordas, mais especificamente, a Orquestra de Câmara SESIMINAS
MUSICOOP de Belo Horizonte, MG. Esta realização, como veremos, se dará por um jogo
paráfrastico e polissêmico através da transposição de uma linguagem verbal (o texto de
Baudelaire) para outra linguagem não-verbal (a música instrumental de Lanna).
76

Pensando como Orlandi (2003), na constituição do corpus, Lanna, ao ler “Les Bienfaits de
la Lune”, decidiu o que fazer parte de seu processo criativo, isto é, decidiu acerca das
propriedades discursivas do que denominamos elemento estimulante. Orlandi considera que,
atualmente a melhor maneira de atender à questão da constituição do corpus é construir
montagens discursivas que obedeçam a critérios que decorrem de princípios teóricos da análise
de discurso, face aos objetivos da análise, e que permitam chegar à sua compreensão. Esses
objetivos, em consonância com o método e os procedimentos, não visa a demonstração, mas a
mostrar como um discurso funciona produzindo (efeitos de) sentidos (ORLANDI, 2003, p. 63).
Desde as impressões causadas pela obra de Baudelaire até a concepção da obra “Sortilégios
da Lua” para orquestra de cordas, há um longo percurso realizado pelo autor. Processo
semelhante ocorreu com o compositor húngaro Franz Liszt (1811-1886) em seu ciclo de
composições intitulado “Années de pèlerinage” (Anos de Peregrinação) – uma espécie de diário
de viagem musical – com retornos às fontes literárias recontadas em música, ocorrido entre os
anos de 1837 a 18777. A este estilo de composição foi dado o nome de “Música Programática”,
que, de acordo com The Norton/Grove Concise Dictionary of Music é

Música de natureza descritiva ou narrativa. O termo foi introduzido por Liszt,


que definiu música programática como sendo “um prefácio adicionado a uma
peça de música instrumental (...) para direcionar a atenção (do ouvinte) para
uma idéia na totalidade ou numa particularidade dela” (SADIE, 1988, p. 752).

Música de programa é, por assim dizer, uma música que pretende evocar idéias
extramusicais, evocar imagens na mente de um ouvinte através da representação musical de uma
cena, imagem ou estado de espírito, ou mesmo fazer o ouvinte lembrar certos eventos.
Mas, seria o caso de “Sortilégios da Lua” evocar algum tipo de imagem, evento,
sentimento em um ouvinte potencial? Seria essa a intenção do compositor? Antes de tentar
responder essas e outras questões, sigamos os dispositivos analíticos que nos fornece a Análise
de Discurso para a compreensão das condições de produção da obra mencionada. Como já dito
neste texto, Lanna percorreu um longo caminho desde a inspiração provocada pela obra de

7
Entre as confidências feitas ao piano, neste ciclo, está a “Fantasia quasi sonata Après une Lecture de Dante” – um
impressionante poema quase sinfônico, tanto pela proposta musical, quanto pela escritura grandiosa.
77

Baudelaire (inspiração essa que acabamos por denominar elemento estimulante), até a concepção
formal da obra musical para orquestra de cordas.
Estaremos lidando, no momento, com a transposição da linguagem verbal (poema de
Baudelaire) para a linguagem não-verbal (composição da música instrumental). Para isto, vamos
tomar como referência os pressupostos teóricos da Análise do Discurso, mais especificamente,
um texto sobre a transposição da linguagem verbal para a linguagem não-verbal escrito por Eni
Orlandi e publicado na Revista Rua nº 1 (Campinas, 1995).
De acordo com Orlandi,

Há um momento na história da reflexão sobre a linguagem em que o lingüístico


se identifica com a Lingüística, ou seja, se reduz diretamente o fato (de
linguagem) à disciplina (que trata da linguagem). Concomitantemente a esta
redução, outra se sobrepõe a ela: reduz-se a significação ao lingüístico, ou seja,
ao fato de linguagem definido pela perspectiva da Lingüística. E assim se
apagam as diferenças entre o verbal e o não-verbal, ou então se submete um (o
não-verbal) ao outro (ao verbal) [grifo nosso] (ORLANDI, 1995, p. 35)

Esta afirmação vem a nos remeter en passant ao ensaio de Theodore Gracyk (2004),
onde, refletindo sobre o sentimento nas artes e, principalmente, na música conclui que

Toda arte tem uma gama de idéias que expressa segundo a sua própria maneira
em som, idioma, cor, pedra, etc. Assim, cada obra de arte encarna uma idéia
definida de beleza em forma material. Esta idéia, sua incorporação, e suas
unidades são as condições de beleza envolvidas em um exame crítico de cada
arte. A temática de um poema, uma pintura ou uma estátua pode ser expressa
em palavras que expressam conceitos (grifo nosso) (GRACYK, 2004, p. 1).

Para Orlandi (1995) , a Análise do Discurso restitui ao fato de linguagem sua complexidade
e sua multiplicidade (aceita a existência de diferentes linguagens) e busca explicitar os caracteres
que o definem em sua especificidade, procurando entender o seu funcionamento. Isto porque a
Análise de Discurso trabalha não só com as formas abstratas mas com as formas materiais de
linguagem. E todo processo de produção de sentidos se constitui em uma materialidade que lhe é
própria. Assim, conclui a autora, a significância não se estabelece na indiferença dos materiais
78

que a constituem, ao contrário, é na prática material significante que os sentidos se atualizam,


ganham corpo, significando particularmente. Orlandi nos fala sobre alguns “mitos” como o da
linguagem como transmissão de informação ou o da linguagem como comunicação; são mitos
que definem a linguagem para o discurso social, para o senso comum. E esses mitos, produzidos
na relação do senso comum com a linguagem, garantem o funcionamento dessa redução, ou
melhor, do apagamento da diferença entre o verbal e o não-verbal (grifo nosso), encurtando a
distância que vai de um a outro. Então, se procede inicialmente a uma divisão – como se fossem
trabalhar as diferenças – mas se reabsorve a diferença pelo encurtamento das distâncias,
sobredeterminando o não-verbal pelo verbal (assim como, por exemplo, em nossa formação
social se sobredetermina o rural pelo urbano e etc.)
De acordo com Orlandi (1995), essas considerações resultam do trabalho da autora com o
silêncio, o mesmo silêncio abordado na segunda seção desta dissertação e que é a base de nosso
trabalho. Nas reflexões de Orlandi, conclui a autora que estar no sentido com as palavras e estar
no sentido sem elas, ou em silêncio, são modos absolutamente distintos de significar, isto é, de
nos relacionarmos com o mundo, com as coisas, com as pessoas e com nós mesmos. Estes
modos distintos de significar, esta diferença, deve mesmo ser tomada como diferença visto que
“não se pode traduzir o silêncio em palavras sem modificá-lo pois a matéria significante do
silêncio e a das palavras diferem”. Partindo daí, Orlandi desenvolve toda uma reflexão para
mostrar que há um ritmo no significar que supõe o movimento entre silêncio e palavras, entre
silêncio e linguagens, pois a nossa formação social é povoada por uma abundância excessiva de
linguagens que, o tempo todo disponíveis e amplificadas ao infinito (grifo nosso), acabam por
transformar o que seria uma disponibilidade em uma indisponibilidade radical: nas palavras de
Jenny “a profusão dessas significações as torna insignificantes”, fazendo com que fiquemos,
como nos diz Orlandi, cegos e surdos aos sentidos (JENNY apud ORLANDI, 1995, p. 37).
Esta assertiva nos mostra que as diferenças entre as linguagens, incluso aqui a diferença
entre a verbal e a não-verbal são apagadas pelo silêncio.
Concordando com Orlandi (1995) que o silêncio é, em suma, a possibilidade do dizer vir a
ser outro, podemos compreender como que o poema “Le Bienfaits de la Lune” de Baudelaire
(linguagem verbal) pôde ter sido transformado na criação musical “Sortilégios da Lua” por
Oiliam Lanna (linguagem não-verbal). Comprovamos esta assertiva com os dizeres da autora:
79

Quando, na reflexão sobre o silêncio, afirmei a diferença entre a matéria


significante dele e a da linguagem verbal, e alertei para o fato de que não se
traduz o sentido do silêncio em palavras sem modificá-lo, não estava, como
disse, fazendo o elogio do inefável. Não é que há sentidos que não se possa
significar. Há, sim, uma necessidade do sentido que só significa pelo silêncio, e
não por palavras. Pois bem, há uma necessidade no sentido, em sua
materialidade, que só significa por exemplo, na música, ou na pintura etc. Não
se é pintor, músico, literato, indiferentemente. São relações com os sentidos
que se instalam. São diferentes posições do sujeito, são diferentes sentidos que
se produzem (ORLANDI, 1995, p. 39).

A noção de consistência significativa é fundamental para se entender a necessidade


material das diferentes linguagens. Há sentidos que precisam ser trabalhados na música, outros,
na pintura, outros na literatura. Para que signifiquem consistentemente. E isto tem um efeito
sobre o “autor”. Ele se constitui diferentemente como pintor, como músico, ou como literato.
Conforme Orlandi (2003), quando se pensa discursivamente a linguagem, é difícil traçar
limites estritos entre o mesmo e o diferente. Daí se considera que todo o funcionamento da
linguagem se assenta na tensão entre processos parafrásticos e polissêmicos. Definindo melhor
estes conceitos, enunciamos que os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer
há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o
retorno aos mesmos espaços de dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer
sedimentado. Em suma, a paráfrase está do lado da estabilização.
No poema original de Baudelaire, a rede parafrástica se dá com o jogo complexo da relação
extremamente sedutora entre os três caracteres que a obra apresenta, a saber: a Lua, a criança e o
espectador da visão. O jogo de sedução trianguloso entre a Lua e a criança, entre o espectador e
a Lua e entre o espectador e a criança se revela nas marcas discursivas ou propriedades e são
apresentados a seguir:
Da relação de sedução entre a Lua e a criança:
A lua, caprichosa, observava pela janela enquanto você estava dormindo em seu berço, e disse
a ela mesma: “Aquela criança me agrada”.
Foi enquanto contemplava aquele visitante [...] (aqui vemos claramente a resposta da criança
em relação ao jogo de sedução da Lua).
[...] então ela se cobriu em cima de você com a submissa ternura de uma mãe. [...] e ela
esmagou sua garganta tão ternamente que você reteve o desejo de chorar para sempre.
80

Enquanto isso, na expansão de sua alegria [...] e toda aquela luz viva pensou e disse: “você
estará eternamente sujeita à influência do meu beijo. Você será bela à minha maneira. Você
amará o que eu amo e os que me amam:” [...]
“E você será amada por meus amantes, cortejados por meus cortesãos. Você será a rainha
dos homens de olhos verdes [...]”
Da relação de sedução entre o espectador e a Lua:
E é por isso, maldita criança amada, mimada, que estou me deitando agora a seus pés,
buscando em toda a sua pessoa o reflexo da formidável Divindade, da deusa-mãe profética, da
ama-de-leite que envenena a todos os lunáticos.
Da relação de sedução entre o espectador e a criança:
E é por isso, maldita criança amada, mimada, que estou me deitando agora a seus pés,[...]
Vejamos como a paráfrase se comporta na criação de Lanna. Se, no poema original de
Baudelaire tratamos por processo estabilizado a relação (jogo) de sedução entre os personagens,
poderíamos tentar recuperar esta estabilização na composição de Lanna. Neste caso, não se trata
aqui de buscar vestígios ou reiterações dos aspectos da sedução baudelairiana na obra de
Lanna, mesmo porque, sob certos aspectos, nos é impossível resgatar certos estados
comportamentais ou psicológicos em obras de natureza estritamente musical. Esta
impossibilidade nos é legitimada pela conceituação de Gracyk:

“o som e a sua elaborada combinação é somente o material, o meio de


expressão, pelo qual o compositor representa o amor, a coragem, a piedade e o
deleite. Estas várias emoções constituem a idéia que, ao ser encarnada no som
físico, assume a forma terrestre de uma composição musical. A melodia
agradável ou a hábil harmonia não nos encanta pelas suas próprias artes, mas
somente pelo que elas se referem: o sussurrar do amor, a violência dos
combatentes. Para que possamos progredir, é importante nos livrarmos de
todos estes clichês antigos. O sussurro pode estar presente na música, mas não
o sussurro do amor; a violência pode, indubitavelmente, ser reproduzida [na
música] mas não a batalha de dois combatentes. Música pode reproduzir
sussurros, tempestades, rugidos. Mas o sentimento de amor ou raiva somente
está presente na mente do ouvinte” (GRACYK, 2004, p. 1).

De fato, é da competência dos ouvintes potenciais de “Sortilégios da Lua” recuperarem


(ou não) o jogo de sedução, reiteramos, não o jogo de sedução baudelairiano espalhados
81

indisciplinadamente entre os seus caracteres, mas uma sedução outra que se faz presente através
de uma memória musical que remonta, mesmo que en passant, ao estilo musical da época em
que Baudelaire escreveu “Les Bienfaits de la Lune”. Estamos falando de uma época que na
crítica de arte se tornou comum denominar fin-de-siècle, sempre conotando a idéia de um estilo
ou movimento em decadência8. Em outras palavras, à memória onde se inscreve a existência de
“Les Bienfaits de la Lune”, corresponde uma outra memória, a da existência de “Sortilégios da
Lua”, com seu sentido outro, migrante, errante, à deriva.
Para entendermos melhor, retomemos Orlandi (2003): para a autora, as palavras falam com
outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso. E todo discurso se delineia na
relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória. Conseqüentemente,
podemos dizer que o sentido não existe em si mas é determinado pelas posições ideológicas
colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As palavras
mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam, extraindo seu sentido dessas
posições, isto é, em relação às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem.
Orlandi (2003) nos lembra que a noção de formação discursiva, ainda que polêmica, é
básica na Análise de Discurso, pois permite compreender o processo de produção dos sentidos, a
sua relação com a ideologia.
A formação discursiva, de acordo com a autora, se define como aquilo que numa formação
ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada
– determina o que pode e deve ser dito. O discurso, então, se constitui em seu sentido porque
aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não em outra para ter um
sentido e não outro.
Desta maneira podemos compreender que “Sortilégios da Lua” passa a pertencer a uma
formação discursiva distinta (e não outra), ideologicamente determinada, onde Lanna, então na
posição sujeito leitor, passa para posição sujeito criador (que na Análise de Discurso
chamaríamos de função-autor), apropriando-se dos sentidos que estão na superfície da obra
literária de Baudelaire (linguagem verbal), materializando-os em eventos sonoros ordenados sob
uma convenção estética pessoal, personalizada que, como já mencionado anteriormente, evoca

8
Este movimento, também conhecido com Simbolismo, para descrever os símbolos das idéias rejeitava o realismo
puramente visual dos Impressionistas, e o racionalismo da Era Industrial. Em lugar de se passar por equivalentes
precisos de idéias e emoções, estes símbolos tinham a intenção de serem sugestões de significados mais ambíguos e
misteriosos.
82

uma “memória musical que remonta, mesmo que en passant, ao estilo musical da época em que
Baudelaire escreveu ‘Les Bienfaits de la Lune’”.
Ao escrever “Sortilégios da Lua”, Lanna acabou por buscar uma estabilização de sentidos,
possível graças às redes parafrásticas que rodeiam o processo de (re) criação. Bem sabemos que
os sentidos (PÊCHEUX, 1999) são produzidos por relações parafrásticas e disponibilizados para
discursos futuros. Assim, um discurso é sustentado por outros e aponta para o futuro. Os sentidos
são produzidos a partir de posições, presumindo-se a memória discursiva e um contexto sócio-
histórico. Estas posições são de caráter ideológico. Assim, os sentidos não dependem de
intenções, mas de relações com uma formação discursiva e uma memória. De maneira geral, as
palavras mudam de sentido conforme as posições em que são enunciadas. Então, as “mesmas”
palavras “significam” diferentemente se as formações discursivas forem diferentes (PÊCHEUX,
1999).
A partir deste ponto de vista, podemos compreender as diferenças, ou melhor, a migração
de sentidos que se dá entre “Les Bienfaits de la Lune” e “Sortilégios da Lua”.
É atestado que a linguagem (ORLANDI, 2003) funciona na tensão entre processos
parafrásticos e polissêmicos. Se a paráfrase, como já vimos acima, trabalha pelo lado da
estabilização do sentido (o mesmo), a polissemia, por sua vez, trabalha com a multiplicidade (o
diferente), o deslocamento, a ruptura dos processos de significação. Aqui entra a possibilidade do
sentido vir a ser outro. Ainda, se a paráfrase, em suas consecutivas repetições e reiterações nos
traz o conceito de produtividade, ou seja, no processo de produção de sentidos se encontra uma
série de variedades que estão sempre no mesmo lugar, como por exemplo, as novelas de T.V., é
verdadeiro que a polissemia, por seu turno, nos traz o conceito de criatividade, visto que esta
implica na ruptura do processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras,
fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua
relação com a história e com a língua. Irrompem assim sentidos diferentes (ORLANDI, 2003).
Desta forma, “Sortilégios da Lua” vem acrescentar sentidos outros ao poema “Les Bienfaits
de la Lune”, pela natureza da música per se, com suas cores, timbres, tensões, relaxamentos e
mudanças de densidade. E ainda, em “Sortilégios da Lua”, irrompe uma certa estabilização do
mesmo, pela presença da produtividade. Em outras palavras, pelo fato de “Sortilégios da Lua”
trazer em si uma memória do fin-de-siècle, através das harmonias e sonoridades, esta obra, per se
vem a engrossar um certo estilo e/ou convenção musical reconhecível, justamente por retomar
83

alguns clichês composicionais do séc. XIX. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, “Sortilégios da


Lua” irrompe com o conceito de criatividade, pela mera questão de deslocar determinadas regras
(os clichês já mencionados), fazendo, por assim dizer, intervir o diferente. Reiterando que este
deslocamento de regras produz movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação
com a história e com a língua temos então duas situações: a primeira é a possibilidade de
sentidos diferentes; a segunda é um certo distanciamento do texto original (no caso, “Les
Bienfaits de la Lune”). Este deslocamento é necessário, até mesmo porque vai haver diferentes
graus de saturação de linguagem entre as duas formas, a saber:
Alto índice de saturação de linguagem verbal na forma original (“Les Bienfaits de la
Lune”); e, em contrapartida, alto índice de linguagem não-verbal na forma derivada (“Sortilégios
da Lua”). Este tópico será retomado um pouco mais aprofundado à frente.
Concordamos com Furlanetto (2001), ao retomar Pêcheux (1999) de que não há sentido
sem interpretação. Interpreta-se ideologicamente. A interpretação se faz com determinações de
memória: arquivo e interdiscurso. Assim, não é livre, e é desigualmente distribuída na formação
social. A memória se dá com dois aspectos: memória institucionalizada (arquivo) e memória
constitutiva (interdiscurso). Dada essa divisão e a atuação conjunta, os sentidos se estabilizam
(estamos no domínio da paráfrase, das repetições) ou se deslocam (estamos no domínio da
polissemia, da disseminação, do deslizamento de sentidos). Em suma, o processo de significação
se move entre a paráfrase e a polissemia. Como nos diz Orlandi (2003), sentidos e sujeitos
sofrem deriva, produzindo-se, com as várias posições, o efeito metafórico.
A memória institucionalizada, no nosso caso, se faz presente na rica documentação legada
pelos poetas simbolistas franceses tais como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé e
Maeterlinck, bem como pelos compositores Debussy, Satie, Fauré e Ravel, dentre tantos outros.
A memória constitutiva, por outro lado, se faz presente nas escolhas diretas de Lanna ao
buscar a inspiração, ou, como denominamos, os elementos estimulantes para criar sua obra
“Sortilégios da Lua”. Estas escolhas se fazem presentes nas sonoridades (timbres) e articulações
da composição, e apontam diretamente tanto para o texto de Baudelaire – transferindo sua carga
de sedução para as cordas que vibram intensa e freneticamente na execução dos performers – e,
analogamente espalhando o “luar” que timidamente invade o quarto da criança (no poema em
questão), transformando esta sensação em ondas sonoras que se movimentam entre a tensão
(grau máximo de articulação, dinâmica e velocidade) e o repouso (grau mínimo de articulação,
84

dinâmica e velocidade). Dizemos, pois, que a obra de Lanna possui um aspecto indicial (dentro
da teoria semiótica peirceana) muito forte, pois aponta duplamente para o texto (poema) de
Baudelaire e também para uma época em questão (fin-de-siècle), (re) buscando as memórias
musicais desta época (estilo cultural, convencional), suscitando-o em uma outra circunstância (a
época hodierna).

4.3 A migração dos sentidos de Baudelaire a Lanna

Como temos visto, Lanna percorre um longo trajeto desde a leitura de “Les Bienfaits de la
Lune” até a concepção de “Sortilégios da Lua”. Nesta seção procuraremos compreender um
pouco mais detalhadamente, o processo de migração dos sentidos, desde o primeiro
interpretante, no caso, o primeiro contato com o poema em sua língua original. Antes mesmo de
se decidir a utilizar o poema como elemento estimulante para a criação de uma obra musical, a
poesia baudelairiana em si já é repleta de elementos musicais. Outro fator condicionante também
é a musicalidade inerente da língua francesa. Este idioma, cheio de sutilezas e entonações,
associado às imagens abundantes do poema formam a combinação ideal para inspirar um tipo de
composição mais complexa, sofisticada, igualmente repleta de imagens, sutilezas e entonações.
O processo de migração dos sentidos e a composição propriamente dita se dará em fases
distintas, o que não impede que algumas delas possam ocorrer simultaneamente, ou pelo menos
aparentemente.
A tabela 3 apresentada a seguir possibilitará a compreensão deste processo:
85

1
Baudelaire:
“Les Bienfaits de la Lune”
[elemento estimulante]

2
Impressão Profunda no Compositor
[Interpretante Dinâmico I]

3
Concepção Intelectual Sônica:
“Sortilégios da Lua”
[Música em estado mental – primeiridade]

4
Concretização: grafagem da música (partitura)
Escolha/eleição dos elementos sonoros e ferramentas

5
Performance [execução ao vivo]
Registro [gravação em mídia digital]

6
Ouvinte potencial virtual ou real
[Interpretante Dinâmico II]

7
Análise (argumento)
Recuperação (ou não) dos
elementos primordiais da
obra de Baudelaire em Lanna

Tabela 3: processo de migração dos sentidos

Na etapa 1 (contato com o elemento estimulante), temos o máximo de saturação da


linguagem verbal, ou seja, temos aqui palavras que podem explicar outras palavras, gerando
metáforas ou, conforme resumiria Lacan, temos então “uma palavra por outra”. Entendemos
aqui a metáfora não como figura de linguagem, mas como transferência. Ou ainda, retomemos a
idéia de metáfora como uma forma de romper com a regularidade que condiciona o aparecimento
de estereótipos, conforme diz Pêcheux, com base em Achard (apud FURLANETTO, 2001, p. 5):
86

As “mesmas” palavras “significam” diferentemente, se as formações discursivas forem


diferentes. Como conseqüência, a transição da etapa 1 para a etapa 2 (impressão profunda no
compositor – interpretante dinâmico I), nos aponta para uma mudança de formação discursiva. É
entre uma e outra formação discursiva, ou seja, no espaço entre uma e outra que o sujeito se
formula (dá forma)9. O deslocamento em relação a uma outra formação discursiva faz com que o
sujeito se (re) posicione, passando de uma primeira ou segunda para uma terceira ou quarta
posição. Temos aqui uma oscilação: o sujeito não está plenamente em uma posição e não está
plenamente em outra posição no texto. Esta oscilação torna-se evidente no texto.
Para Pêcheux, a formação discursiva é o lugar da estabilidade para o sujeito. E é no
deslocamento de sentidos (considerado por Pêcheux como uma transgressão) que o novo pode
vir a tomar forma. Se o deslocamento de sentidos somente pode ocorrer entre uma formação
discursiva e outra e, considerando que a aprendizagem só pode existir com o deslocamento,
concluímos que este lugar (o do deslocamento, entre uma formação discursiva e outra) está
repleto de potencialidades, de possíveis, isto é, o nascedouro da criação. Aqui se situa o sujeito
autor enquanto criador de obras artísticas ou de linguagens artísticas. Temos então uma ruptura,
pois ela é indispensável para que o deslocamento ocorra (PÊCHEUX, retomado por ORLANDI,
2004).
Da etapa 3 para as etapas 4 e 5, Lanna (estimulado pela obra de Baudelaire) concebe sônica
e mentalmente “Sortilégios da Lua”. A seguir, textualiza sua concepção transformando as
imagens sonoras e mentais em símbolos musicais que vão sendo grafados (anotados) em forma
de partitura e que mais tarde serão executados (ao vivo) e registrados (gravados em mídia
digital). Dentro da ótica peirceana, o processo começa em estado de primeiridade (música em
imagem mental – quali-signo), passando pelo estado de secundidade, que é o estágio inicial de
materialização, (notação – sin-signo) até chegar ao estado de terceiridade, ou seja, à sua forma
final (música notada/executada/registrada – legi-signo).
Da etapa 5 para a etapa 6, as possibilidades são infinitas para se chegar a um ouvinte real
e/ou potencial. Podemos confirmar que o ouvinte potencial tem estado presente desde os
estágios iniciais da criação de “Sortilégios da Lua”. Baseamos este pressuposto na assertiva da
Análise do Discurso sobre o papel do leitor potencial.

9
Observações feitas a partir de anotações em sala de aula, ministrada pela prof. Dra. Eni Pulcinelli Orlandi no
Mestrado em Linguagem e Sociedade da Universidade do Vale do Sapucaí (Pouso Alegre, MG) em 04/06/04.
87

Vejamos: para a Análise do Discurso, a assunção da autoria (ORLANDI, 1988/2003)


implica na inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto histórico-social. O
sujeito precisa passar da multiplicidade de representações possíveis para a organização dessa
dispersão num todo coerente, apresentando-se como autor, responsável pela unidade e coerência
do que diz.
Essa representação do sujeito, ou melhor, essa sua função, tem seu pólo correspondente que
é o leitor. De tal modo isso é assim que se cobra do leitor um modo de leitura especificado pois
ele está, como o autor, afetado pela sua inserção no social e na história. O leitor tem sua
identidade configurada enquanto tal pelo lugar social em que se define “sua” leitura, pela qual,
aliás ele é considerado responsável. Isso varia segundo a forma histórica, tal como para a autoria:
não se é leitor do mesmo modo na Idade Média e hoje. Entre outras coisas, porque a relação com
a interpretação é diferente nas diferentes épocas, assim como também é diferente o modo de
constituição do sujeito nos modos como ele se individualiza (se identifica) na relação com as
diferentes instituições, em diferentes formações sociais, tomadas na história. Trabalham aí as
diferentes formas do confronto do político com o simbólico.
Em outras palavras, quando se cria uma obra de arte (música, poesia, pintura, dança e etc),
o autor tem em mente um ouvinte/leitor/espectador potencial – um sujeito capaz de resgatar –
com sua memória, ou, como diria Peirce, a sua experiência colateral, a essência/intenção da obra
em si. Este ouvinte/leitor/espectador potencial deveria de ser capaz de gestos interpretativos no
intuito de tornar o sujeito (neste caso o autor) visível (enquanto autor) com suas intenções,
objetivos, direção argumentativa. Como nos lembra Orlandi (2003), um sujeito visível é
calculável, identificável, controlável. Como autor, o sujeito ao mesmo tempo em que reconhece
uma exterioridade à qual ele deve se referir, ele também se remete a sua interioridade,
construindo desse modo a sua identidade como autor.
A última etapa (mas não a final), refere-se a um processo estritamente intelectual que
compete ao analista de discurso ou semioticista: trata-se da análise (ou argumento, se
considerarmos como referencial teórico a Semiótica peirceana) da obra de Lanna, seja sob a ótica
da Semiótica, seja pela ótica da Análise do Discurso de Linha Francesa, onde se procura
compreender o processo de criação musical (linguagem não-verbal) a partir do estímulo recebido
pela leitura de um poema (linguagem verbal), observando a recuperação (ou não) dos elementos
primordiais da obra de Baudelaire em Lanna. A tabela 4 nos mostra o trajeto percorrido entre o
88

início do processo de criação (leitura do poema de Baudelaire), passando pela criação da


contraparte musical (“Sortilégios da Lua”) até chegar na análise propriamente dita (cf. Tabela 1):

Etapas:

1 2 3 4 5 6 7

ling. verbal  transposição para o não-verbal  recuperação da verbalização  ling. verbal


Tabela 4: transposição da linguagem verbal para a linguagem não-verbal e vice-versa.

4.4 O silêncio como base para a criação

Para refletirmos melhor sobre esta transição da linguagem verbal para a linguagem não-
verbal e sua conseqüente recuperação para a (novamente) linguagem verbal, conforme
explicitado na Tabela 2, vamos recorrer a uma analogia sobre a importância do silêncio como
matéria prima para a criação. Neste caso, teríamos um silêncio funcionando como pré-
significação ou melhor, pré-construído, definido pela Análise do Discurso como “o saber
discursivo que torna possível todo o dizer”.10
De acordo com Orlandi (2002), quando se traduz o silêncio com palavras há outro sentido
aí, devido à materialidade das palavras. Não há nem uma conceituação em relação ao verbal ou
não-verbal. O silêncio simplesmente significa. Mas, vejamos a primeira situação, a da tradução
do silêncio com palavras: essa tradução se faz necessária para que possamos compreender o
processo de migração dos sentidos na criação de Lanna.
Retomando Orlandi (2002), há uma ideologia da comunicação, do apagamento do silêncio,
muito pronunciada nas sociedades contemporâneas, que se expressa pela urgência do dizer e pela
multidão de linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo tempo, segundo a
autora, espera-se que esteja produzindo signos visíveis (audíveis) o tempo todo. [...] Temos de
estar emitindo sinais sonoros (dizíveis, visíveis) continuamente. Entretanto, nos lembra Orlandi,

10
Observações feitas a partir de anotações em sala de aula, ministrada pela prof. Dra. Eni Pulcinelli Orlandi no
Mestrado em Linguagem e Sociedade da Universidade do Vale do Sapucaí (Pouso Alegre, MG) em 18/06/04.
89

parece que não tenha sido sempre assim, lançando a hipótese de que há, na relação com a
linguagem, uma progressão histórica do silêncio para a verbalização, o que se reflete não só na
prática geral da linguagem como no discurso da ciência. Assim, teríamos:

+ silêncio - silêncio

mito tragédia filosofia Ciências Humanas e Sociais

Tabela 5: progressão histórica do silêncio para a verbalização. Fonte: Orlandi (2002)

Explicando: no mito, a significação prescinde da explicitação cabal de seus modos de


significar; na tragédia, esta explicitação começa a alargar o seu lugar; na filosofia, se passa para
um outro discurso, em que se tematiza vastamente o sentido em sua relação com o ser; este
percurso desemboca nas Ciências Humanas e Sociais que se instituem em várias disciplinas
diferentes com distintos objetos e discursos diversos para falarem da mesma coisa. Dominado
pelas múltiplas metalinguagens, o fato tem de significar nas diferentes “explicações” que, por
sua vez, o povoam de muitos signos. Chegamos então ao exílio do silêncio: do séc. XIX para cá
se acelera a produção de linguagens e a contenção do silêncio. As palavras se desdobram
indefinidamente em palavras, na maior parte das vezes, ecos do mesmo, sem sair do lugar
(repetição iterada do mesmo, as redes parafrásticas, a saturação).
Analogamente, podemos fazer uso dos elementos estruturais da Tabela 3 no intuito de
observar (compreender) como o silêncio como pré-significação (aquele saber discursivo que
torna possível todo o dizer) funciona no ato de criação de “Sortilégios da Lua”.
Partiremos dos seguintes pressupostos:
1) quanto maior a quantidade de silêncio, menor o grau de saturação de linguagem verbal (a
recíproca é verdadeira);
2) inversamente, quanto maior o grau de concretude do elemento estimulante (“Les Bienfaits de
la Lune”), a saber, as condições de produção que englobam:
Sujeito (quem fala, em que circunstâncias);
Situação estrita (circulação do enunciado, circunstâncias imediatas)
Situação lato (sócio-histórica – ideológica, situação material)
Memória discursiva ou interdiscurso (o já – dito que vai construir o sentido, a paráfrase),
proporcionalmente maior será o grau de abstração da obra a ser construída (“Sortilégios da
90

Lua”), devido à natureza sui generis da linguagem não-verbal (neste caso, a polissemia, isto é, a
possibilidade do sentido vir a ser outro, através do silêncio que faz esta possibilidade – o silêncio
e o pré-construido).
Assim, teríamos:

ETAPAS:
1 – Baudelaire Les Bienfaits de la Lune
2 – Impressão profunda
3 – Lanna Sortilégios da Lua
4 – Notação da partitura
5 – Performance & registro de Sortilégios
6 – Ouvinte potencial
7 – Análise em si da obra Sortilégios

Diagrama 2 (a partir do pressuposto nº 1):

+ silêncio - silêncio

1 2 3 4 5 6 7
Diagrama 2: progressão do silêncio de Baudelaire para Lanna
91

Diagrama 3 (a partir do pressuposto nº 2):

Les Bienfaits de la Lune


concretude (linguagem verbal)

polissemia

abstração (linguagem não-verbal) Sortilégios da Lua

paráfrase

Diagrama 3: progressão do grau de abstração de “Les Bienfaits de la Lune” para “Sortilégios da Lua”

4.4.1 Silêncios discursantes, musicais e pragmáticos: confrontando Baudelaire e Lanna

É notável a presença de silêncios no poema de Baudelaire: do Silêncio Fundador – que não


há significação possível sem silêncio, ou seja, é a própria condição para a existência do poema; e
também do Silêncio Constitutivo ou antiimplícito, aquele que nos indica que para dizer é preciso
não-dizer (uma palavra apaga necessariamente as “outras”). Este silêncio nos remete a outros
silêncios, que por sua vez, remetem a outros textos e assim ad infinitum.
No nosso recorte, interessa-nos este Silêncio Constitutivo que impregna a obra de
Baudelaire de magia, mistério, poder e sedução. Flagramos nele o silêncio da antítese e da
contradição ao descrever o gesto de opressão da Lua em relação à criança:
“e ela esmagou sua garganta tão ternamente que você reteve o desejo de chorar para sempre”
“Você amará [...] a água sem forma e multiforme”
“[...] com uma voz rouca, suave”
92

“[...] o lugar onde você não estará”


“[...] o amante que você não conhecerá”
Flagramos também o silêncio do poder, da vontade outra da Lua em relação ao seu objeto
de afeto:
“Você estará eternamente sujeita à influência do meu beijo”
“Você amará o que eu amo e os que me amam”
“E você será amada por meus amantes, cortejados por meus cortesãos”
Por fim, flagramos o silêncio da blasfêmia aduladora na visão do espectador do poema:
“E é por isso, maldita criança amada, que eu estou me deitando agora a seus pés, buscando
em toda a sua pessoa o reflexo da formidável Divindade, da deusa-mãe profética, da ama-de-
leite que envenena a todos os lunáticos”.
Em “Les Bienfaits de la Lune”, os vários tipos de silêncio já aparece logo de início, no
descarado voyeurismo que a caprichosa Lua faz à criança. Ainda no início, temos aqui o Silêncio
Constitutivo expresso na intenção daquela, que diz a ela mesma o quanto a criança lha agrada.
Diz uma coisa para silenciar outra.
Na seqüência, temos o silêncio daquele (no caso, a Lua) que invade sorrateiramente o
quarto de sua vítima, como um ladrão na calada da noite, cobrindo a mesma com seu luar,
esmagando a garganta desta tão ternamente a ponto da vítima reter o desejo de chorar para
sempre. Aqui o poema nos aponta o silêncio da dominação, do subjugo e da predestinação.
A próxima frase, profética, nos mostra o silêncio que aponta para uma outra função: muda-
se a (s) posição (ões) sujeito (s), de amante (“Você amará o que eu amo e os que me amam”)
para rainha (“Você será a rainha dos homens de olhos verdes [...]”). Silencia-se uma função
para que outra tome o seu lugar.
Por fim, a última frase do poema nos mostra um tipo de silêncio especial – o da ocultação
de um personagem sob o outro. Em outras palavras, o silêncio da Lua por detrás da criança –
objeto de seu desejo.
“Sortilégios da Lua” é uma obra repleta de silêncios significantes. Analisemos, pois, o
modo de funcionamento destes silêncios. Em uma primeira instância, temos a presença
necessária, do chamado Silêncio Pragmático, representado musicalmente pelas “figuras
negativas de valor” ou pausas. Estes elementos são de crucial importância para a estrutura global
da obra.
93

Entendamos primeiramente a noção de pragmático: Peirce (apud SANTAELLA, 1983 p.


73) afirma que o conceito que temos de um objeto nada mais é que a soma dos conceitos de
todos os efeitos concebíveis como decorrentes das implicações práticas que podemos conceber
para o referido objeto. Estendendo esta definição para o silêncio pragmático, teremos:
Uma obra musical, grosso modo, é formada pela presença e ausência in tempore de sons.
Então, é o jogo de presença e ausência, alternância e concomitância de sons e silêncios que
estrutura uma criação musical, fazendo-a discursar em um espaço determinado, garantindo sua
existência.
Aprofundemos um pouco mais. Compassos vazios ou parcialmente vazios ocorrem
virtualmente em toda obra musical. As pausas são, por conseguinte, uma parte inseparável de
qualquer composição. Em níveis mais sutis e modestos, silêncios marcam a transição de uma
sentença para a próxima à maneira de uma cesura11. O silêncio também demarca o início e o fim
de uma peça musical.
Em “Sortilégios da Lua”, este Silêncio Pragmático se apresenta, primeiramente, como já
falado acima, na forma das “figuras negativas de valor” ou pausas. Vejamos como estas pausas
atuam na obra de Lanna. Todos os fragmentos mostrados a seguir são retirados do manuscrito
autógrafo cedido pelo compositor.
Independentemente do caráter universal da pausa, isto é, seus constituintes internos são os
mesmos qualquer que seja a sua duração ou função, as pausas nesta obra se apresentam de
maneiras distintas, a saber:
1) Em estado de contigüidade, por justaposição:
a) Pausa total, abrangendo de um a até 5 compassos. Aparece em naipes distintos, isto é,
nos Violinos I (já no início da peça) e um pouco depois, no naipe dos contrabaixos.
Estas pausas maiores funcionam discursivamente de várias maneiras:
a.1) o “ainda-não-soado”: como já abordado antes, em face da história, o silêncio (marcado
aqui pela presença das pausas) significa de várias maneiras, apontando em direção ao futuro,
ou seja, o “projeto” do discurso, a multiplicidade dos sentidos (dá lugar a), enfim, os sons
que ainda não temos acesso, mas que já estão em atividade no mundo. No exemplo a seguir,
(fragmento 1) extraído da página inicial do manuscrito autógrafo, temos as pausas do violino
I (o primeiro pentagrama de cima para baixo) exemplificando o “ainda-não-soado”, o que

11
Corte, ruptura.
94

ainda não concebemos e que virá oportunamente se encaixar como uma peça importante
neste intricado ‘quebra-cabeças’:

Frag. 1: – compassos 1 a 4. Pausas funcionando como o “ainda-não-soado”.

a.2) o “que-já-não-soa-mais”: aponta em direção ao passado, ao já-dito que retorna sob a forma
de interdiscurso, e que se re-formula, ou seja, aqui temos os sons que já não soam mais, que
não temos mais acesso, a não ser pela memória. No exemplo a seguir, extraído do manuscrito
autógrafo, temos os três compassos finais da composição. O último compasso em questão
pede a extinção dos sons por decrescimento (grafado pelas duas linhas paralelas convergentes
[>]) e em seguida, a barra dupla anuncia o fim da obra. A partir daí, o que se tem são as
ressonâncias destas últimas notas que ainda ecoam pelo ambiente, e que serão revisadas pela
memória (fragmento 2):

Frag. 2 – compassos 86 a 88. Pausas funcionando como o “que-já-não-soa-mais”.


95

a.3) marcando etimologicamente a presença do silêncio: silentium – do latim medieval: que está
em repouso, (in) ativo. Neste caso, as pausas contribuem para a mudança de densidade da obra,
através de efeitos de rarefação. É o que podemos perceber no exemplo abaixo, bem próximo do
fim da composição. O jogo de rarefação presente nos quatro compassos apresentados na nossa
exemplificação se faz de maneira quase gradual, atingindo o ápice no terceiro compasso do
mesmo, através do solo de um violino do naipe dos violinos I (que por si só já contribui para o
aumento da rarefação da sonoridade) em combinação com um acorde das violas. Junta-se a tudo
isso as dinâmicas em grau mínimo tanto para o solo quanto para as violas. Os outros naipes estão
temporariamente em pausa total (fragmento 3):

Frag. 3 – compassos 82 a 85. Pausas funcionando como “rarefação”, marcando a presença do silêncio.

b) As pausas entre um naipe e outro:


b.1) como elemento de marchetaria musical, ou seja, elemento de concatenação melódica e
timbrística entre as diferentes vozes. Este dispositivo, exemplificado abaixo, é usado
abundantemente em toda a composição. Podemos observar nestes três compassos a alternância
entre as pausas (de um naipe para o outro) e os sons articulados num jogo de incrustação sonora
e rítmica (fragmento 4):
96

Frag. 4: compassos 64 a 6612. Pausas funcionando como marchetaria musical (concatenação tímbrica).

b.2) como elemento espacializador das vozes, criando efeitos de estereofonia. Embora a
estereofonia seja um conceito ligado a procedimentos tecnológicos, como aqueles utilizados em
estúdios de gravação, visando à separação das fontes sonoras (instrumentos musicais) em canais
distintos, as pausas aqui são utilizadas de modo semelhante: propiciando o deslocamento de
complexos melódicos entre os naipes, num jogo sutil de “perguntas e respostas”, criando,
conseqüentemente um efeito de movimento destas fontes sonoras no espaço acústico.
Naturalmente, a disposição espacial dos naipes durante a performance também contribuirá
sobremaneira para a estereofonia. No exemplo de três compassos abaixo, o jogo de
espacialização se dá, no segundo compasso, através dos tremuli nos naipes dos Violinos I, II e
violas. Neste caso, o nível sonoro estaria pendendo para uma determinada direção visto que os
naipes restantes (violoncelo e contrabaixo) estão silenciados. Tomando emprestado a
terminologia referente à estereofonia, poderíamos dizer, grosso modo, que a fonte sonora pendeu
para o ‘canal esquerdo’ (ou ‘canal direito’ dependendo do ponto de vista). Em outras palavras,
trata-se aqui de um jogo complexo de balanço entre as fontes. Por fim, no terceiro e último

12
Na verdade, os compassos são 63 a 65, e não 64 a 66 como indica a partitura. Trata-se de um erro do compositor.
97

compasso deste exemplo, temos a atuação do mecanismo da estereofonia, através do método de


‘perguntas e respostas’ ou, em outras palavras, através de fragmentação temática: no último
tempo deste compasso há um complexo rítmico-melódico em quintina que se inicia no Violino II
e se completa no Violino I (fragmento 5):

Frag. 5: compassos 12 a 14. Pausas funcionando como produtoras de estereofonias.

b.3) como elemento de ruptura em uma determinada voz ou naipe, concorrendo para a
abertura (mudança, migração, deslocamento) de sentidos. Vemos aqui a possibilidade do novo,
da (re) significação, da possibilidade dos sentidos poderem vir a serem outros. Expliquemos
melhor: a condição da linguagem é a incompletude, pois nem sujeitos nem sentidos estão
completos, já feitos, constituídos definitivamente. Orlandi (2003) nos lembra que sujeitos e
sentidos constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do
movimento. Essa incompletude atesta a abertura do simbólico, pois a falta é também o lugar do
possível. Fazendo uso de analogias, podemos prenunciar que a pausa musical pode perfeitamente
funcionar como elemento de articulação para a atuação da polissemia. Mesmo porque, a
linguagem (Orlandi) não é transparente, e os sentidos não são conteúdos. No exemplo dado a
seguir vemos as ressonâncias se extinguirem, fundindo com a pausa (no divisi dos Violinos I e
no harmônico emitido pelo naipe dos contrabaixos). Há um esvaziamento súbito que conduz a
um outro sentido – idéia, estado ou sensação (fragmento 6):
98

Frag. 6: compassos 8 a 11. Pausas funcionando como elemento de ruptura, migração de sentidos.

b.4) como elemento de repetição para estabilização do sentido musical dentro da obra em si:
Orlandi (2003) nos diz que, pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do
simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode ser um
deslocamento nessa rede. Entretanto, há também injunções à estabilização, bloqueando o
movimento significante. Nesse caso, o sentido não flui e o sujeito não se desloca. Ao invés de se
fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num
imaginário em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete. Partindo dessa assertiva, a
autora distingue três formas de repetição, onde duas delas se aplicam à nossa situação:
b.4.1) a repetição empírica (mnemônica) que é a do efeito papagaio, só repete;
b.4.2) a repetição formal (técnica) que é um outro modo de dizer o mesmo;
b.4.3) a repetição, que é a que desloca, a que permite o movimento porque historiciza
o dizer e o sujeito, fazendo fluir o discurso, nos seus percursos, trabalhando o equívoco, a falha,
atravessando as evidências do imaginário e fazendo o irrealizado irromper no já estabelecido.
Em nosso caso se aplica a segunda e a terceira situação. É evidente que a repetição
estabiliza o sentido, e essa estabilização é, de certo modo, necessária, em se tratando de uma obra
musical, como elemento de impressão da marca (estilo) de um determinado autor (compositor).
Finalmente, o deslocamento que provoca a repetição é o que faz possível as diferentes leituras de
99

uma determinada obra, contribuindo para a multiplicidade de sentidos e mesmo para a


sobrevivência da mesma. Por analogia, podemos dizer que as pausas na obra de Lanna
funcionam também como elemento de deslocamento e estabilização dos sentidos. Nos exemplos
a seguir, vemos a repetição com variantes de um complexo melódico com pausas em quatro
momentos distintos da partitura: compasso 15 (pausa de semicolcheia no último quarto de tempo
do último tempo do compasso); compasso 20 (dobramento de valor da pausa anterior [de
semicolcheia para colcheia] mantendo a mesma posição estrutural que no compasso 15);
compasso 21 (pausa de colcheia e deslocamento da mesma para o tempo forte do último tempo
do compasso [contratempo]) e, compasso 23 (dobramento de valor da pausa anterior [de colcheia
para semínima] e deslocamento da mesma para tempo forte do penúltimo tempo do compasso).
Vejamos os compassos 15 (fragmento 7) e 20 (fragmento 8):

Frag. 7: compasso 15. Frag. 8: compasso 20.

Vejamos os compassos 21 (fragmento 9) e 23 (fragmento 10):

Frag. 9: compasso 21. Frag. 10: compasso 23.


100

2) Em estado de simultaneidade, por sobreposição:


a) Como elemento indicial: o complexo simultâneo de pausas provoca um recorte, um
congelamento do momento. Esse congelamento, inevitavelmente aponta para um estado,
um sentimento, uma idéia, uma tensão ou uma sensação. No exemplo dado a seguir, as
pausas, em contratempo dão espaço (sentido) para uma única articulação de nota no
violoncelo, sutil e quase imperceptível. O complexo de pausas no final deste compasso é
indicial: chama a atenção para a mudança de timbre no compasso subseqüente, além da
mudança de andamento (fragmento 11):

Frag. 11: compasso 29. Elemento indicial.

b) Como elemento de ruptura: da mesma forma que as pausas usadas de modo contíguo, um
complexo simultâneo de pausas pode provocar um desvio de sentidos, chamar atenção
para algo interno ou externo, bem como criar situações de expectativas e/ou conflito. No
exemplo dado a seguir, este elemento é reforçado pelas dinâmicas em fortíssimo
(fragmento 12):

Frag. 12: compasso 73. Elemento de ruptura.


101

c) Pausa como função de eco: não o eco acústico, a mera repetição (im) parcial de uma frase
ou complexo melódico, mas a pausa como espaço e tempo combinados para dar ao
ouvinte potencial a capacidade de “assimilação” daquilo “que-já-foi-dito” (o que já soou
ou acaba de soar). Trabalha diretamente conectada com a memória. No exemplo dado a
seguir, o complexo de pausas situadas no final do compasso mostrado recebem a
indicação de tenuto, isto é, elas devem ser sustentadas um pouco mais do que as outras
pausas justamente para prover o tempo necessário de assimilação do que já soou ou
acaba de soar (fragmento 13):

Frag. 13: compasso 58. Pausas como elemento de “assimilação”.

d) Por fim, mas não por último, a pausa como comentário. Aqui levamos no sentido
lingüístico da acepção, ou seja, se a definição de comentário passa por “parte de uma
sentença que veicula informação acerca de outro elemento nela presente”, a pausa
musical, como comentário funciona à maneira do rema peirceano em relação a um
Interpretante: essa veiculação de informação é uma mera possibilidade e pode,
eventualmente, apontar para um sentido primeiro (mais proeminente) ou para outros
sentidos derivados. É o caso do compasso 70 onde as pausas atuam como comentadoras a
ação precedente. Ainda neste compasso, mais especificamente no naipe das violas, a
pausa interrompe uma determinada articulação para, em seguida fazê-la soar à guisa de
eco. Neste caso, a interrupção funciona como um comentário da ação das violas,
102

reforçando o seu caráter de tensão, clarificando a dissonância do complexo melódico


após a referida interrupção no efeito do eco (fragmento 14):

Frag. 14: compassos 70 e 71. Pausas como comentadoras.

4.5 As marcas recuperadas

Se tomarmos as pausas pelo ponto de vista da semiótica, observaremos que as mesmas


também espalham as frases musicais por toda a composição, sugerindo a atmosférica fosfórica
do poema, isto é, a Lua adentrando magicamente pelo quarto da criança, suave e
misteriosamente. No poema original, estas pausas (silêncios) estão presentes logo no início do
poema nas seguintes situações:
A lua observando a criança pela janela;
A lua descendo suavemente a sua escadaria de nuvens;
A lua passando silenciosamente pela janela;
A lua cobrindo a criança com a submissa ternura de uma mãe;
A lua preenchendo o quarto como uma atmosfera fosfórica, como um veneno luminoso.
A lua dominando o seu objeto de desejo.

Se em Baudelaire, a sedução é silente, ou se faz silente entre as palavras e os seus sentidos,


permitindo, conseqüentemente a polissemia, em Lanna, este silêncio, mesmo que, em certa
103

extensão, se apresente de modo pragmático, funciona como elemento estruturador, como leito
para as articulações tímbricas que entranham na obra. Vejamos como funciona esta relação:
A poesia é feita de palavras e silêncios. O ritmo dos versos tanto é música como pausa. Dos
poetas gregos a Dante Alighieri, são inumeráveis os silêncios que habitam a alta poesia. Há
tantos silêncios como formas poéticas. Existe o silêncio romântico, saturado de emoção, que é o
silêncio simbolista, através do qual Baudelaire atravessa a natureza, que o contempla, em
silêncio, com suas florestas de símbolos. Explicando: Charles Baudelaire, poeta simbolista
francês, sensível às transformações que a explosão demográfica estava trazendo para os centros
urbanos, via a cidade de Paris como uma floresta de símbolos. Símbolos que lhe lançavam
olhares familiares (Santaella, 2000, IX).
Música se faz igualmente com sons e silêncios. Os silêncios (tomados aqui sob o ponto de
vista pragmático, ou seja, das pausas) em “Sortilégios da Lua” se estruturam através de um
intricado jogo de aposições com suas justaposições, sobreposições e binarismos. Explicando:
O ato de apor elementos em uma criação artística é, no mínimo, o ato de fazer certas
escolhas estruturais para a sustentação da mesma. No caso de “Sortilégios da Lua”, as pausas ou
figuras negativas (como também são conhecidas na linguagem técnico-musical) fazem parte
deste elemento estrutural e vão funcionar em simbiose com os eventos sonoros. Falando de outro
jeito, as pausas não vão atuar somente como meras ausências de som, mas também, como
elementos significantes que serão esmiuçados a seguir.
As ferramentas básicas para dispor o material musical são as já mencionadas justaposições
(ferramenta de contigüidade – ato de colocar um elemento após o outro), as sobreposições
(ferramenta de simultaneidade – ato de combinar um elemento em cima de outro) e o binarismo
– ferramenta de contraste genuinamente dialógica – ato de opor, confrontar, afirmar um elemento
em relação a outro. Esta última ferramenta vai trabalhar simultaneamente nos dois níveis: no da
justaposição e no da sobreposição.
As justaposições ou ferramentas de contigüidade, marcam presença na composição não
somente na articulação dos silêncios (pausas) mas nas articulações tímbricas, dinâmicas, de
densidade e de andamento. É certo que estas justaposições trabalham primordialmente por
contrastes, assim podemos antecipar que a justaposição é uma ferramenta binarista. Vejamos um
pouco mais detalhadamente a justaposição em “Sortilégios da Lua”:
104

3.a) Justaposição de silêncios: esta articulação aparece isoladamente em cada naipe da


composição. A intercalação de pausas entre as notas musicais funciona por exemplo, para traçar
o perfil (contorno) melódico de cada grupo instrumental (a saber: Violinos I, Violinos II, Violas,
Violoncellos e Contrabaixos), reforçando, como em toda peça de natureza contrapontística, o
caráter de independência de suas partes. A presença de pausas estrategicamente colocadas facilita
o câmbio de tessitura de uma determinada estrutura, modificando por assim dizer, o perfil
melódico do grupo em questão. No exemplo dado a seguir, a pausa estrategicamente colocada no
início do segundo compasso facilita e valoriza a nota aguda em harmônico do violino solista
(fragmento 15):

Frag. 15: compassos 13 e 14. Justaposição de silêncios.

3.b) Os elementos tímbricos utilizados por Lanna em “Sortilégios da Lua” compreendem: notas
reais, sons harmônicos (notas agudas), tremuli, notas frotadas (friccionadas), notas pizzicattas
(beliscadas), notas tocadas S.P. (Sul Ponticello, isto é, tocadas bem próximo do cavalete,
produzindo uma sonoridade vítrea, transparente, devida à ênfase aos harmônicos superiores),
notas tocadas S. T. (Sul Tasto, isto é, tocadas em cima do ‘espelho’ [braço] do instrumento,
produzindo uma sonoridade próxima da flauta, donde vem o nome alternativo flautando. O som
é suave e não focado), e, finalmente, notas tocadas in modo ordinario (ou seja, tocadas no local
convencional). No exemplo dado a seguir, vemos algumas destas articulações: tremuli, sons
harmônicos e S.T. (fragmento 16):
105

Frag. 16: compassos 12 a 14. Justaposição de timbres e articulações.

4.) A justaposição dos elementos de dinâmica estão presentes em toda a obra, virtualmente em
cada compasso da mesma. Assim como as pausas ajudam na construção do perfil de cada naipe,
a justaposição das dinâmicas também contribuem para a elaboração do mesmo, movendo as
fontes sonoras no espaço acústico, por extinção (sons quase inaudíveis) ou por explosão
(máximo de intensidade sonora). Nos exemplos dados a seguir,no fragmento 17, os dois
primeiros compassos trabalham com as menores dinâmicas de toda a obra (vide o naipe de
contrabaixo). O fragmento 18 nos mostra um momento de explosão de dinâmicas
(coincidentemente também na parte dos contrabaixos):

Frag. 17: compassos 1 e 2. Dinâmicas mínimas.


106

Frag. 18: compasso 46. Explosão de dinâmicas.

5.) A justaposição de densidades funciona como complemento à justaposição de dinâmicas,


contribuindo para a movimentação das fontes sonoras no espaço acústico, simulando um jogo de
aproximação e afastamento, densidade e rarefação. No compasso 21 (fragmento 19), no naipe
dos Violinos I, temos o máximo de densidade, com os instrumentos se dividindo em 4 vozes e
em dinâmica forte. Logo em seguida, neste mesmo naipe, no compasso 24 e 25 (fragmento 20),
temos o máximo de rarefação, com apenas um violino solista, e em dinâmica suave:

Frag. 19: compasso 21. Máximo de densidade.

Frag. 20: compassos 24 e 25. Máximo de rarefação.

6.) A justaposição de andamentos concorre para a dramaticidade da obra. Do andamento mais


lento logo no início da obra (Adagio molto) ao andamento mais rápido (Quasi Allegro), Lanna
107

faz uso de uma série de andamentos intermediários, além de graduações (accelerandos e


ritardandos). Vejamos o quadro completo seqüencial dos andamentos utilizados na composição:

Adagio molto – poco accelerando – più mosso – Lento – Quasi Allegro – meno
mosso – Quasi Allegro – meno mosso – rallentando – Lento – più mosso – Lento

Quadro 1: andamentos utilizados na composição de “Sortilégios da Lua”.

Como já abordado no Capítulo I desta dissertação, os andamentos seguem uma


terminologia italiana desde o século XVII e se tornou convenção mundial. São abstrações que
orientam o intérprete, pois medições precisas somente surgiriam no século XIX, com a invenção
do metrônomo por Dietrich Nikolaus Winkel em Amsterdã, Holanda em 1812.
É interessante notar a opção que Lanna faz pelo uso de expressões abstratas para conduzir
as variações de tempo em sua obra, ao invés de lançar mão das marcações metronômicas exatas.
Ao mesmo tempo, é paradoxal e mesmo contraditório, o uso que Lanna faz de estruturas rítmicas
complexas com durações precisas e que serão “perturbadas” pelas indicações (im) precisas dos
andamentos. As expressões: poco accelerando (um pouco apressado), rallentando (atrasando),
più mosso (mais movimentado, mais rápido), e meno mosso (menos movimentado, menos
rápido), interferem na regularidade do pulso da composição, comprometendo, assim, a sua
constância e a validade dos valores rítmicos apresentados na composição. Reconhecemos que
esta postura pode, de certa forma, ter vínculos com a fonte original, ou seja, o poema de
Baudelaire (Les Bienfaits de la Lune) que inspirou a composição.
Vejamos: o poema “Les Bienfaits de la Lune” foi publicado no livro Le Spleen de Paris13
(também intitulado Les Petits Poèmes en prose) em 1869 por Asselineau e Banville no caderno
de uma edição “definitiva” das obras poéticas e críticas de Baudelaire. Alguns dos poemas foram
redigidos nos anos 1850, mas a maior parte foram redigidos entre 1860 e 1865, que era uma
época em que Baudelaire quase já não escrevia mais versos. Em suma, o interesse de Baudelaire

13
Traduzimos literalmente como “O Rondador de Paris”.
108

pelos poemas em prosa começou após a leitura de Gaspard de la nuit14 de Aloysius Bertrand
(1807-1841). Neste pequeno livro, Bertrand trabalhou uma poesia sem métrica e sem ritmo no
sentido da prosódia tradicional, mas delicada e esmerada. Desta maneira, é compreensível o uso
que Lanna faz da diversidade de andamentos, bem como da inconstância causada pelas
mudanças destes andamentos nas estruturas rítmicas precisas, já mencionadas acima. Então, os
andamentos em Lanna refletem e são refletidos pelo poema de Baudelaire, pois observamos que
em “Les Bienfaits de la Lune” são abundantes as marcas de andamento, através do uso de
adjetivos e verbos no pretérito imperfeito, pretérito perfeito simples, presente do indicativo e
futuro do presente. Assim, quanto mais distante no passado em direção ao futuro, podemos, por
analogia pensar em um tempo lento que aos poucos vai se acelerando, tornando-se mais agitado,
dramático e intenso. Esta analogia remonta a uma outra – a do silêncio proposto por Orlandi:
quanto mais distante em relação ao passado, maior a presença do silêncio e mais lento o tempo
de atuação. E vice-versa.
Os advérbios e adjetivos mostram, com uma certa clareza, o andamento e o ritmo do
poema. Exemplos de advérbios que sugerem um tempo lento: suavemente, silenciosamente,
ternamente, eternamente, etc. Exemplos de advérbios que sugerem um tempo rápido:
extraordinariamente, grotescamente. Adjetivos: tumultuoso, voluptuosos, etc.
Para a outra ferramenta mencionada anteriormente – a ferramenta de sobreposição ou de
simultaneidade – os mecanismos de atuação das pausas são rigorosamente os mesmos já
relatados para a ferramenta de justaposição. Portanto, os exemplos utilizados podem
perfeitamente servir a esta proposta.
Se há necessidade de se explicitar as diferenças entre as duas ferramentas, poderíamos colocar de
uma maneira bastante simplificada: a ferramenta da justaposição ou contigüidade trabalha em
um eixo horizontal, linear, que na partitura funcionará da esquerda para direita. Já a ferramenta
de sobreposição ou simultaneidade, por outro lado, trabalha em um eixo vertical, também linear
e da esquerda para a direita, porém de cima para baixo, ou seja, em blocos.

14
Gaspard da Noite: livro como uma série de cenas que vão desde a Idade Média até o século XVII. Sub-intitulado
“Fantasias à maneira de Rembrandt e Callot”, três de seus poemas inspiraram também o compositor francês Maurice
Ravel (1875-1937) uma obra homônima para piano solo (1908) em três movimentos a saber: 1- Ondine: um conto
sobre um espírito das águas e seu reino; 2 – Gibet: um poema sobre um homem enforcado morrendo lentamente e
observando o seu último pôr do sol; e 3 – Scarbo: um pequeno demônio, metade duende e metade fantasma, que faz
piruetas, desaparece e amedronta as pessoas em casa.
109

4.5.1 Baudelaire e Lanna: silêncios entre palavras e silêncios entre notas musicais

Orlandi (2002) nos lembra que o silêncio não é o vazio, o sem-sentido. Também nos
lembra que não está se tratando do silêncio em sua qualidade física, mas do silêncio como
sentido, como história (silêncio humano), como matéria significante. Nos ocorre, neste
momento, as palavras de J. de Bourbon Busset (1984) que

O silêncio não é a ausência de palavras, ele é o que há entre as palavras, entre


as notas da música, entre as linhas, entre os astros, entre os seres. [...] o silêncio
é o intervalo pleno de possíveis que separa duas palavras proferidas: a espera, o
mais rico e o mais frágil de todos os estados... (BUSSET apud ORLANDI,
2002, p. 70).

Orlandi, no entanto, reforça que “o silêncio não está apenas ‘entre’ as palavras. Ele as
atravessa. Acontecimento essencial da significação, ele é matéria significante por excelência”
(ORLANDI, 2002, p. 71).
Em suma, estar no sentido com as palavras e estar no sentido sem elas (ou em silêncio),
são modos absolutamente distintos de significar, de nos relacionarmos com o mundo, com as
coisas, com as pessoas e com nós mesmos. Ressaltando, no entanto, que esta diferença deve ser
tomada mesmo como diferença: não se pode traduzir o silêncio em palavras sem modificá-lo
pois a matéria significante do silêncio e a das palavras diferem; além disso, o silêncio significa
por si mesmo, ou seja, o silêncio não fala, ele significa.
A partir daí, Orlandi desenvolve toda uma reflexão para mostrar que há um ritmo no
significar que supõe o movimento entre silêncio e palavras, entre silêncio e linguagens. Observa-
se que o estudo do silêncio desloca duas fronteiras: entre o dito e o não-dito, entre o dito e a
exterioridade que o determina, fazendo nos confrontar com a questão da natureza histórica da
significação. Refletindo sobre o silêncio, se compreende a necessidade do sentido formulável: se
ele é necessário, ele é possível e a garantia desta necessidade é o silêncio, o não-dito, que
significa. Os sentidos silenciados migram, produzidos pela necessidade histórica, para outros
110

objetos simbólicos. Para se compreender um discurso, devemos então perguntar


sistematicamente o que ele cala.
Desta maneira vemos a possibilidade de o poema de Baudelaire (Les Bienfaits de la Lune)
estar povoado de silêncios e sentidos outros. Diz-se (ORLANDI, 2001) que sujeito e sentido se
constituem ao mesmo tempo. Assim, à errância do sentido, à sua capacidade de migração,
corresponde a errância do sujeito que muda de posição, que falha, etc. Podemos, então, nos
darmos conta desta migração de sentido, da obra de Baudelaire para obra de Lanna.
Para compreendermos este processo, temos a imagem do silêncio como desdobramento: o
ponto em que o discurso se desdobra em outras palavras. O silêncio funciona assim como ponto
de fuga em que os sentidos desdobram-se. O silêncio, polissêmico em sua materialidade, nos
permite compreender a incompletude na base da interpretação, dos trajetos dos sentidos, dos
deslocamentos dos sujeitos, movimento contínuo entre a repetição e a diferença (ORLANDI,
1995).
Assim surge “Sortilégios da Lua”: há uma necessidade no sentido, em sua materialidade,
que só significa por exemplo na música, ou na pintura etc. Não se é pintor, músico, literato,
indiferentemente. São diferentes posições do sujeito, são diferentes sentidos que se produzem. A
significação é um movimento, um trabalho na história e as diferentes linguagens com suas
diferentes matérias significantes são partes constitutivas dessa história. Mais uma vez se reafirma
o caráter de incompletude das linguagens. O múltiplo e o incompleto se articulam materialmente:
a falha e a pluralidade se tocam e são função do não fechamento do simbólico; e a necessidade
das múltiplas linguagens e das distintas matérias significantes é um dos elementos que atestam
esse não fechamento. E em “Sortilégios da Lua” as pausas, ou seja, os silêncios, mesmo que
pragmaticamente, vão funcionar como o resultado do silêncio que existe entre as palavras do
elemento estimulante, ou seja, “Les Bienfaits de la Lune”. A partir daí, estes silêncios musicais
se abrem para novas possibilidades, novas interpretações, novos discursos, lembrando que, sendo
a palavra discurso “o que segue seu curso”, a sua marca comum é a de movimento e o silêncio
uma das instâncias em que se efetua o movimento. Ad infinitum.
111

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nosso estudo, constatamos o caráter de incompletude da linguagem, seja ela de


natureza verbal ou não-verbal. Partindo desta assertiva, verificamos que nem sujeitos nem
sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente, constituindo-se e funcionando
sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do movimento. Essa incompletude nos atesta a
abertura do simbólico, pois a falta é também o lugar do possível.
Essas considerações nos apontam para o fato de que sujeito e sentido se constituem ao
mesmo tempo, pois percebemos que, à errância do sentido, à sua capacidade de migração,
corresponde a errância do sujeito que muda de posição, que falha, etc. já que todo sentido é
efeito de uma refração e o discurso se funda no equívoco. Assim, o sentido se faz movimento e a
palavra segue seu curso. Para compreendermos este processo, tomamos a imagem do silêncio
como desdobramento: o ponto em que o discurso se desdobra em outras palavras. O silêncio
funciona assim como ponto de fuga em que os sentidos desdobram-se. O silêncio, polissêmico
em sua materialidade, nos permite compreender a incompletude na base da interpretação, dos
trajetos dos sentidos, dos deslocamentos dos sujeitos, movimento contínuo entre a repetição e
diferença.
Assim, se explica a migração de sentidos entre “Les Bienfaits de la Lune” de Baudelaire e
“Sortilégios da Lua” de Oiliam Lanna.
Entendemos que a significação é um movimento, um trabalho na história e as diferentes
linguagens com as suas diferentes matérias significantes são partes constitutivas dessa história.
Mais uma vez se reafirma aqui o caráter de incompletude das linguagens, pois o múltiplo e o
incompleto se articulam materialmente: a falha e a pluralidade se tocam e são função do não
fechamento do simbólico; e a necessidade das múltiplas linguagens e das distintas matérias
significantes é um dos elementos que atestam esse não fechamento.
Por esta lógica, notamos que “Sortilégios da Lua” cumpre seu papel enquanto linguagem,
mesmo se tratando de linguagem-não verbal. Semelhantemente, “Les Bienfaits de la Lune”
também cumpre com o seu papel como linguagem, no caso, linguagem verbal.
Partindo das analogias entre os materiais estruturais de ambas as criações, deduzimos que
há uma relação de biunivocidade entre as duas composições, com elementos coincidentes ou pelo
112

menos com funções/responsabilidades semelhantes, como podemos observar, por exemplo, na


atuação dos timbres, ritmos, pausas, dinâmicas, articulações e sentidos tanto em “Les Bienfaits
de la Lune” quanto em “Sortilégios da Lua”. Temos aqui a possibilidade do sentido sempre vir a
ser outro.
Cremos que, pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do
simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode ser um
deslocamento nessa rede. Mas, como há também injunções à estabilização, o sentido não flui e o
sujeito não se desloca, sendo pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário em
que a sua memória não reverbera, apenas repete. Notamos que essa repetição, de caráter formal
(técnico) – que é um modo de dizer o mesmo, é uma ferramenta indispensável em qualquer
composição musical. Trabalhando no nível da paráfrase, observamos a atuação desta ferramenta
em “Sortilégios da Lua”, como elemento amplificador da forma musical, apelando para a
memória do ouvinte. Ao mesmo tempo, constatamos a presença de uma outra forma de repetição
– a repetição histórica, que é a que desloca, a que permite o movimento porque historiciza o
dizer e o sujeito, fazendo fluir o discurso, nos seus percursos, trabalhando o equívoco, a falha,
atravessando as evidências do imaginário e fazendo o irrealizado irromper no já estabelecido.
Essa forma de repetição nos remete às condições de produção tanto de “Les Bienfaits de la
Lune” quanto de “Sortilégios da Lua”, trabalhando no nível da polissemia.
Lanna, ao resgatar as condições de produção em Baudelaire, elegeu determinados
caminhos, compostos por marcas e propriedades, que nos remetem à época em questão. Em
outras palavras, ao ouvir “Sortilégios da Lua”, vemos que é possível perceber uma memória que
alude ao século XIX, em sonoridades e cores harmônicas, climas e atmosferas.
Refletindo sobre o papel do silêncio tanto na obra de Baudelaire quanto na obra de Lanna,
chegamos ao conceito de silêncio fundador, como proposto pela Análise de Discurso de Linha
Francesa, como o lugar do possível, do múltiplo e abordamos também o conceito de
Primeiridade, como universo de possibilidades, tal como nos coloca a Semiótica proposta por
Peirce.
Observamos que a Primeiridade é uma experiência que não pode ser descrita, mas o que
não significa que não possa ser indicada ou imaginativamente criada. De maneira análoga,
observamos também que o silêncio não está disponível à visibilidade, não é diretamente
observável, sendo impossível observá-lo (organizá-lo), pois ele passa pelas palavras.
113

Por outro lado, se o silêncio não é observável, verificamos que ele é interpretável. Sua
atuação visível se dá pelo chamado silêncio constitutivo que pertence à própria ordem da
produção do sentido e preside qualquer produção de linguagem. Em nosso trabalho notamos que
sua atuação se dá ao produzir recortes entre o que se diz e o que não se diz. Em outras palavras, é
um efeito de discurso que instala o antiimplícito, onde se diz “x” para não dizer “y”.
Verificamos também que a interpretabilidade do silêncio, nos direciona diretamente para o
conceito do Interpretante Dinâmico de Peirce, traduzido como sendo o efeito realmente
produzido na mente pelo Signo.
Enfim, tanto o silêncio fundador, ditando a (s) possibilidade (s) de outro (s) sentido (s), o
silêncio constitutivo que ao dizer apaga necessariamente outros sentidos em uma situação
discursiva dada, quanto os silêncios pragmáticos, pausas, ausência de eventos sonoros e etc, mais
a noção de Primeiridade e de Interpretante Dinâmico vêm concorrer para a elucidação da
arquitetura composicional tanto de “Les Bienfaits de la Lune” quanto de “Sortilégios da Lua”.
Entendemos que o homem está sentenciado a significar, estando irremediavelmente
constituído por sua relação com o simbólico, onde tudo tem que fazer sentido, qualquer que ele
seja.
Daí a necessidade do nosso trabalho, do regaste das condições de produção de “Les
Bienfaits de la Lune” e de “Sortilégios da Lua” e suas devidas contribuições para o
enriquecimento do patrimônio da humanidade. Daí a riqueza da interpretação, dos múltiplos
interpretantes peirceanos, das posições-sujeitos, da inevitabilidade das redes parafrásticas e
polissêmicas, da incompletude da linguagem, do não-fechamento do sentido, da possibilidade do
sentido sempre vir a ser outro, do não-dito, do já-dito, etc.
114

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