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O ciberespaço: Utopia ou prótese?

Luís Carlos Nogueira∗


Universidade da Beira Interior

De um lado a prótese, do outro a uto- décadas se tem configurado como um novo


pia. Será aparente a existência aqui de uma paradigma, o paradigma do ciberespaço,
oposição. Podemos articular estes dois con- sendo este a extensão comunicacional do pa-
ceitos com estreiteza lógica: a utopia se- radigma cibernético. Por um lado, a ideia da
ria a última prótese da sociedade, como a construção de um ambiente artificialmente
prótese seria o instrumento da utopia. Se criado capaz de possibilitar a imersão imedi-
há um fabrico do destino humano, ele passa ata tem tanto a forma de um conto de ficção
tanto pelos fins, como pelos meios. Se há científica quanto de um dogma possibilitado
uma utopia escondida algures à espera da pelas tecnologias da informação. Por outro,
sua revelação (mesmo que nos recusemos a há nas próprias tecnologias da informação,
nomeá - la, por agora), podemos bem ver na sua base material (os bits) e nas suas
nas múltiplas formas da maquinaria alguns formas concretas (sobretudo a internet) algo
dos utensílios da sua invenção. O fazer que reivindica essa ideia e que advém do
político e o desenho do social são atraves- facto de a informação na era da cibernética
sados, eventualmente mais do que se sus- parecer escapar de uma natureza física e dis-
peita, pelo discurso discreto mas efectivo da pensar o requisito de um suporte.
tecnologia. Nas décadas mais recentes, a Ao constatar estes factos apercebemo -
tecnologia abriu espaço para uma outra uto- nos então que não é estritamente da ordem
pia possível: o ciberespaço, de forma ainda do delírio e do desejo esse sentimento de que
indefinida: mais totalista ou mais prosaico, um dia poderá (ou mesmo, quererá) a huma-
mais imersivo ou mais fragmentário. Temos nidade realmente repartir a sua existência en-
em seu redor todo o poder dos visionários tre um espaço físico, urbano, natural, aquilo
(sejam eles eminentes cientistas ou escrito- que à falta de melhor se poderá ilustrar como
res de ficção científica) e as suas crenças e realidade, e um espaço - outro, passível de
temos os experimentos com que ele tem sido ser navegado deixando o corpo para trás, um
até agora fragmentariamente materializado: espaço de paisagens, nódulos e sítios apenas
a internet e a realidade virtual. feito de data, puro objecto de design e pro-
Se desejarmos, podemos ver um du- jecto. No limite, poder - se - á mesmo espe-
plo processo naquilo que desde há poucas cular que existirá em aberto a possibilidade
de mergulhar para sempre nesse espaço, di-

2001 luir a consciência individual numa rede inte-

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ligente colectiva e permanecer eternamente mana mais poderosamente do que qualquer


nesse limbo. ideologia, religião ou sistema político anteri-
Que, para os mais cépticos, não seja fácil ores alguma vez fizeram”. É sempre possível
intuir esse espaço como mais que uma pos- perguntar: será mesmo a cibernética o me-
sibilidade utópica não possui nada de anor- lhor meio, ou mesmo o último, para adequa-
mal. Em primeiro lugar, porque parece es- damente compreender ou construir a reali-
tar bem longe do ponto de vista tecnológico dade? Não existiu já na religião, no mito,
a sua exequibilidade. Em segundo, porque no racionalismo a mesma promessa? Será
nem capazes de imaginar a sua configuração que a existência humana, a subjectividade,
e as formas da sua sociabilidade somos ca- a consciência, a inteligência, as emoções e
pazes. Mas, se de uma promessa se trata, ela todas as suas manifestações se podem redu-
entronca em preceitos bem mensuráveis: a zir a padrões cibernéticos, à pesquisa e reco-
medida desta utopia intersecta com particu- lha de informação e à construção das melho-
lar acuidade o percurso que a comunicação res máquinas, modelos e programas para o
humana desde sempre prosseguiu: a ideia seu tratamento, armazenamento e uso? Nada
de uma forma (um código e um canal) de garante que assim seja, mas a realidade é
comunicação imediata, eficiente e ubíqua. iniludível: é no centro deste paradigma que
As redes viárias poderão ser a sua pré - nos encontramos, e sejam quais forem as
história, como os sinais de fumo ou a orali- suas evoluções futuras, as metamorfoses dos
dade; depois a escrita a inaugurar uma nova instrumentos e das ideias que agora nos ocu-
realidade, que prosseguiu com o livro, a pam, o futuro será evidentemente condicio-
televisão, a internet. Tudo dispositivos ca- nado por eles.
pazes de fazer comunicar cada vez mais de- Poderemos não estar condenados a as-
pressa, mais longe. Não estaremos longe do sistir àquilo que matematicamente se de-
óbvio se aceitarmos que a necessidade e a nomina uma singularidade, um ponto na
vontade de comunicar é aquilo que de mais curva de aceleração do progresso científico
imanente existe na natureza humana. O mito, e tecnológico a partir do qual a ordem de
o conhecimento, a paixão, a viagem, o que mudança se torna infinita e deixa de ser
são senão modos vários de ir de encontro aos possível construir modelos razoáveis para
pares de uma comunidade? entender o futuro, uma vez que este se
Socorramo - nos de uma ideia de Jaron torna absolutamente imprevisível (ideia par-
Lanier, um dos pioneiros da área da reali- tilhada, por exemplo, pelo cientista Ray
dade virtual para irmos de encontro ao pul- Kurzweil ou pelo escritor Vernor Vinge).
sar contemporâneo. Fala ele de um tota- Mas, de uma forma mais modesta, não é
lismo cibernético. Consiste no seguinte: isso que já agora se passa, não é cada
algo como um modelo que enquadraria quer vez mais partilhado o sentimento de que
o actual programa da investigação científica os inventos, os quadros teóricos e concep-
quer o regime genérico de organização so- tuais, os modelos de socialidade, os pro-
cial no mundo ocidental. Uma ideia que, dutos da investigação, parecem pôr - nos
como refere aquele investigador, “tem o po- numa busca incessante, e por vezes apa-
tencial para transformar a experiência hu- rentemente infrutífera, de ideias, lógicas,

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equações e nomes que moldem o seu enten- der descritivo, de evocação, de nomeação,
dimento? Procuramos entender o funciona- de raciocínio, o seu uso e a sua depuração
mento do cérebro, recriar artificialmente os terão permitido a primeira manifestação do
processos da inteligência, construir nano - virtual: um modo de representação que aban-
máquinas, criar super - computadores, car- dona o referente para entrar no domínio do
tografar o genoma humano, manipular a jogo, dos jogos de linguagem, das metáforas,
determinação genética, dar inteligência aos das hipérboles, das elipses, de todas es-
edifícios, ligar todos os computadores do sas formas gramaticais, estilísticas e cam-
mundo numa network global. São tarefas cu- pos semânticos que desembocariam na rea-
jas implicações num futuro mais ou menos lidade virtual das palavras, das frases, das
imediato não vislumbramos... ainda. É nesta proposições - no fim, da lógica e do cálculo.
amálgama de projectos que se resolve diari- Serão a matemática e a arte, a mitologia e a
amente o nosso futuro. E contudo, o pensa- economia produtos ou processos assentes na
mento como a política parecem sempre es- linguagem, em cujas vantagens algorítmicas
tar demasiado fora ou algures atrás destas assenta a inteligência humana, ou, de forma
ocorrências sem que as possam compreen- inversa, fases e territórios onde, de certa
der ou enquadrar. Se não é líquido que haja forma, os mecanismos psicológicos e cog-
um determinismo tecnológico que garantiria nitivos encontraram os materiais necessários
à técnica a autonomia da sua lógica e a au- para a evolução do pensamento e da ciência?
tocracia do seu poder, é pelo menos evidente Ao certo sabemos o mesmo desde há muito:
que a nossa relação com ela é se não cega, que sem linguagem não há pensamento e
pelo menos míope. sem pensamento não há linguagem. E
Não é difícil perceber que a meia dúzia de que um e outro são processos sobretudo
décadas que leva o surgimento da cibernética metamórficos mais do que miméticos. Que
metamorfoseou a natureza das relações sub- força inovadora, inaugural, terá então a
jectivas e enformou eormemente as novas cibernética trazido para o conhecimento hu-
visões do mundo. Aquilo que nos pode mano? Tão só tornado evidente que tudo
surpreender mais neste processo é apenas a é informação. Ideia que as tecnologias da
rapidez das mutações, pois não é de todo informação servem e de que se serviram
descabido advogar que o próprio conheci- para dar mais um salto no processo de en-
mento humano tenha sido desde sempre ex- tendimento da(s) realidade(s): exponenci-
ponencial, ou seja, que a criatividade hu- ando a capacidade de recolha e processa-
mana terá beneficiado, de alguma forma e mento de informação, tarefa na qual os com-
em algum momento, de uma espécie de al- putadores são prestimosos auxiliares, a hu-
goritmo que lhe permitiu surgir, ou seja, manidade parece finalmente capaz de desa-
começar a pensar: no fundo, a possibilidade fiar qualquer obstáculo ou questão: a vida,
de fixar, articular e transferir signos - nada a consciência, a morte, no fim, para voltar-
mais que... comunicar. Podemos talvez si- mos onde tudo parece sempre ter começado,
tuar esse momento como aquele em que sur- Deus mesmo, nada parece alheio a esse de-
giu a linguagem. Com as suas possibili- sejo de omnisciência e a essa intuição de
dades de significação e combinatórias, po- omnipotência.

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É nesse contexto de presumida não se colocavam já, ainda que com nuances
omnisciência e omniopotência que nos diferentes? Não se inscrevem essas vontades
colocamos ao assumir que, eventualmente, naquele processo mais vasto que constitui no
estaremos a aproximar - nos de um mo- fundo o regime de aperfeiçoamento das for-
mento - limiar em que se afigura possível a mas de comunicação, de tratamento, armaze-
ligação entre o nosso mais básico interface, namento e difusão de informação, o regime
o corpo humano, e aquilo que poderá ser da máxima proximidade, urgência e precisão
uma realidade - outra, cibernética, artificial, entre emissor e receptor?
de pura informação, ou seja, essa ligação Não será por isso mesmo que a lingua-
directa entre o cérebro e o ciberespaço gem, nas suas diversas formas (visual, es-
não será mais que uma das modalidades crita, oral) tem tendência a abreviar - se, a
sugeridas no dealbar de um tempo em simplificar - se, a ser selectiva e as formas
que o espírito e a matéria parecem estar a artísticas a serem mais e mais depuradas, e
descobrir os seus veios de ligação, através as narrativas a serem mais e mais ricas e con-
das tecnologias cibernéticas naturalmente, densadas? Não será um desejo perene de
naquilo que são ininterruptos e universais eliminação do ruído aquilo que constitui o
fluxos de informação. fundo desse processo? Se um dia algo como
Porque terá a imagem de um interface uma rede de informação global for possível,
neuronal tão forte sedução junto de algumas acessível que esteja de uma forma imediata
mentes? E mesmo alguma pertinência con- e ubíqua, como nos lhe referiremos então:
ceptual que vai para lá do delírio ficcional uma fantasia tornada real, um desejo con-
que tantas vezes lhe atribuímos? Poderão al- cretizado, uma necessidade respondida? É
gum dia existir computadores (redes, sítios, a força dos desejos e das necessidades que
dados) usados e explorados através do pen- lança o engenho e o empreendimento huma-
samento? Quantos de nós não desejaram já nos em tarefas quantas vezes quiméricas na
possuir um utensílio que lhe permitisse ace- sua aparência e tão efectivas no seu desen-
der a algo tão prosaico como, por exemplo, lace.
uma determinada obra num dado momento Claro que todas as questões que são colo-
de uma forma imediata, ou armazenar algo cadas por essa possibilidade estão longe de
mais que uma simples memória fragmentada ser entendidas no seu alcance, mesmo par-
e ténue, ou registar automaticamente uma cialmente, e as intuições com que tentamos
ideia sem precisar de se socorrer dos triviais definir - lhes os contornos são extremamente
papel e caneta ou adquirir toda a sabedoria débeis (talvez por isso a ficção científica es-
de um livro ou de um filme sem precisar de teja sempre tão longe da materialização final
demorar horas a lê - lo ou a vê - lo? E por- das suas fantasias e seja ao mesmo tempo tão
que não conseguimos nós ordenar as ideias exacta na acuidade das suas inquietações).
e os pensamentos de uma forma perfeita? Se quisermos, e para não entrarmos desde
Haverá no anseio de um tal instrumento ape- já no domínio das emoções, das sensações e
nas um sintoma de preguiça, de facilitismo, dos afectos, das metamorfoses e reinvenções
de conveniência? Será que, por exemplo, an- que um ciberespaço desse género acarretaria
tes da invenção da escrita, estes problemas para todas estas categorias, podemos ques-

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tionar por agora o lugar, por exemplo, das do corpo do mundo para as autonomizar em
imagens, dos sons, das palavras, das textu- formatos estandardizados, porque não lhes
ras (no fundo, dos materiais elementares da haveremos de reconhecer a sua contingência
comunicação e da arte) nessa rede. E é bom histórica e aceitar a possibilidade da sua
então colocar desde já uma questão: não obsolescência a prazo? E porque serão
serão todas as linguagens organismos vivos, aquelas que agora consideramos as melho-
mutantes, algorítmicos? Suponho que é essa res imagens para representar o mundo (aque-
a evidência que a sua evolução ao longo de las que se aproximam das capacidades do
séculos nos mostra. Se assim for, da mesma olho humano) realmente as mais fiéis da rea-
forma que a escrita ou a pintura ou o cinema lidade? Porque não poderemos um dia admi-
surgiram não poderão também estar conde- tir próteses que nos facultem outras visões
nados a perecer, ou, pelo menos, a metamor- do mundo, outras formas de o ouvir ou to-
fosear - se, seja nos seus significantes, nas car? E porque não desejar uma máquina ca-
suas semânticas ou nas suas gramáticas? E paz de nos permitir algo de verdadeiramente
se todos esses dispositivos que ao longo da angélico, algo como a sinestesia que todos
história nos foram permitindo comunicar, es- procuramos?
tudar, projectar, no fundo, fazer circular e Que tudo isto faz parte, por ora, do reino
transformar informação com diversas funci- da ficção científica e da especulação, o bom
onalidades e propósitos não forem mais do senso está constantemente a relembrá - lo,
que utensílios passíveis de aperfeiçoamento, mas recusar liminarmente a possibilidade
porque não podemos inscrever no futuro ou- de algo semelhante só pode ser, pelo seu
tros que se lhes substituam com mais van- lado, um embate contra a evidência de que
tajosa operatividade? O que nos pode fa- a relação do homem com o mundo não tem
zer crer que a escrita é a melhor maneira sido mais que um desejo de ir mais e mais
de armazenar e trocar palavras ou que o ci- fundo na descoberta dos seus mecanismos
nema e a pintura são as mais nobres artes e um esforço da consciência para melhor
da imagem? Poderemos um dia ter uma interpretar os estímulos com que ele nos
estética quântica, seja isso o que for, e quais- interpela. Nessa tarefa a utensilagem de
quer que sejam as formas que as obras de mediação vai de metamorfose em metamor-
arte nesse regime assumam? Prosaicamente fose como o fazem as formas da socialidade
é natural perguntar: porque seremos obri- ou os regimes da polis.
gados a ter as imagens num ecrã ou numa Remeter desde logo o ciberespaço, mesmo
tela ou as palavras num livro? Se estes na sua forma mais cabal e hipotética, à incre-
formatos foram em determinada altura con- dulidade, ao devaneio ou mesmo ao escárnio,
siderados optimizações na apresentação de configura desde logo uma presunção: a da
informação, quando, por exemplo, a pers- existência de um obstáculo ao qual o en-
pectiva linear constituiu uma nova forma de genho humano seria incapaz de dar uma
ver, ou a escrita uma nova forma de gra- resposta vitoriosa. Ou então um medo, o
far, ou o codex uma nova forma de fazer li- tão propalado medo da técnica, essa técnica
vros, se na sua origem estão constrangimen- diabólica que parece ao mesmo tempo guar-
tos formais que excluíram as representações dar no seu seio a benesse e a violência, um

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milagre beato e uma magia negra. Parece a na sua infância social, não escapou a discur-
humanidade estar sempre condenada a duas sos de resistência, como se fosse o primeiro
formas de distância em relação ao futuro: instrumento para nos fazer de humanos em
de um lado, aqueles que acreditam nas suas máquinas - e, afinal, não parecemos ser
possibilidades e na sua proximidade, os pro- muito mais que isso: mecanismos, mesmo
gressistas poderíamos chamar - lhes, que tão naquilo que nos parece garantir a mais que-
facilmente ignoram a imprevisibilidade das rida subjectividade: o cérebro. Diversos me-
mutações nas tecnologias e nas sociedades, dos se podem inventariar nesses passos da-
o papel do acaso em todos os passos dados, dos: a violência, a automatização, a perda
e do outro, aqueles que colocam o tom dis- da memória, a dominação das máquinas, no
cursivo no conservadorismo, como se todo o fim a substituição de Deus – para este, e para
projecto, todo o imaginário, toda a ficção de- o seu papel de intocável, a biotecnologia e
vesse ser abandonada precisamente porque a manipulação genética bem se têm confi-
a sua concretização escapa a qualquer cer- gurado como uma ameaça, bem espelhada
teza e os seus efeitos a qualquer controlo. nos discursos reaccionários e medrosos, que
Mais uma vez a via do meio parece a mais sempre colocam a possibilidade da aberração
aconselhável e prudente: ver para crer, ou de acima e antes da possibilidade do benefício.
uma forma mais activista, fazer para ver. Com a cibernética é a dúvida sobre a
Que nesse vórtice em que se inscreve o de- perda do corpo, esse pilar da subjectivi-
senvolvimento tecnológico se perfilam lado dade e ao mesmo esse objecto (político,
a lado os mais promissores ganhos e a mais médico, científico), que se vem inscrever
distinta inquietação é o que não surpreende: no horizonte. De duas formas principais:
nem de outra forma poderia ser, uma vez a possibilidade do ciborgue e a imersão no
que a gravidade do que se põe em jogo ciberespaço, ou seja, a possibilidade de, no
na nossa relação com a tecnologia é toda a limite, o nosso corpo perder o seu élan na-
lógica da humanidade, os seus feitos glori- tural ou mesmo de se replicarem corpos
osos de libertação, emancipação, conquista - máquinas parceiros de uma comunidade
e o medonho dano do extermínio, da perda onde já não exclusivamente à natureza e ao
das suas mais amadas singularidades, do seu homem é assegurado o poder da acção, e, por
domínio sobre a violência e a opacidade da outro lado, de se encontrar uma forma qual-
natureza. Foi assim com todos os grandes quer de consciência disseminada, partilhada,
passos que nos fizeram chegar onde esta- colectiva, (i)mediata, onde o corpo seja, de
mos: com o surgimento da escrita, a crer certa maneira, um utensílio dispensável nas
pelas indicações de Platão, terá sido assim trocas e nas representações.
também com o surgimento do fogo (aliás, Com o corpo, e com a sua perda ou a
quem brinca com o fogo queima - se, e o sua metamorfose, é muito mais que é colo-
fogo com que nos recreamos nos nossos dias cado em causa: o sujeito, a consciência in-
é essa tão familiar e tão estranha tecnolo- dividual, as sensações próprias, o eu, o in-
gia), ou com a revolução industrial (e Fran- consciente, tudo isso parece estar - nos a
kenstein bem serve de ícone), assim aconte- ser roubado ou, pelo menos (e este menos,
ceu com o cinema, e mesmo o computador, para muitos é um assustador mais), adul-

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terado. O receio que não é difícil adivi- mos as próteses como um artefacto que per-
nhar perante uma reconceptualização abso- mite a melhoria das condições de existência
luta de todas essas categorias e instâncias dos inabilitados e incapacitados, não podere-
é o receio do desconhecido, é se calhar mos (e quero afastar daqui, cuidadosa e res-
para muitos uma nova forma de monstruo- peitosamente, qualquer crueldade que possa
sidade, um desespero mudo perante um de- transparecer nestas palavras) nós todos, con-
vir - homem - mundo imperscrutável. En- siderar - nos, de uma forma radical, mas
tes incorpóreos, nós, os humanos? Maqui- não fatal, incapacitados, insuficientes, defi-
naria inteligente? Conhecimento do cérebro cientes? Estou em crer que o que está aqui
e invasão da consciência? Que heresias!, em questão são o padrão e a escala usa-
poderá pensar - se. Este corpo, o veículo dos para medir as nossas apetências e fa-
do prazer e da dor, não é mesmo aquilo culdades de agir. No mundo físico, como
que nos define na nossa individualidade, as- na teia comunicacional ou no labor intelec-
sinala a nossa presença no mundo? Como tual debatemo - nos com o nosso estado
poderemos admitir a perda das singularida- de imperfeição. Em todas essas dimensões
des, das vontades próprias, como aceitar esse agimos instrumentalmente. E no fundo a
atentado último às liberdades e direitos in- construção de qualquer ideia de humani-
dividuais, essa figura jurídica e essa matéria dade significa utilizar o homem como ins-
retórica onde se sustenta na actualidade a trumento de si próprio para poder enten-
luta no campo político? Entretanto, num per- der a sua condição fenomenológica e a sua
curso inverso de inquirição do corpo, outra pressuposição teleológica. É fácil perce-
questão pode surgir: que nos liga, afinal, de ber o émulo entre as áreas principais de
um modo tão umbilical ao nosso corpo, que desenvolvimento de próteses e interfaces
laço se estabelece entre a matéria, a mente, tecnológicos para inabilitados - a visão e a
a consciência, que é isso afinal que nos dá audição, a estimulação neuro - muscular - e
uma imagem e, conceito não inocente neste os instrumentos que ao longo dos séculos fo-
contexto, algo como uma alma? O prazer mos desenvolvendo: ver melhor, ouvir me-
voyeurista e narcísico, o egoísmo da auto - lhor, pensar melhor, agir melhor, foi sempre
representação, a dor, a morte, o sentimento nestes objectivos que a técnica sustentou o
de perda, a memória? Que laço tão estreito a seu desenvolvimento.
história, a antropologia, a política, a religião, Se a existência humana é, no fundo e
a filosofia ou a arte conseguiram tecer de a todos os níveis, a procura de respostas
forma tão enigmática para dele nos custar complexas para questões cujas implicações
tanto despegar - nos, como se, ainda que não são facilmente destrinçáveis no emara-
não ocorre - se a perda da consciência num nhado que é o devir político, social, estético
mesmo lance, a perda do corpo fosse uma ou científico, então é natural intuir que um
espécie de morte, amputação intolerável? centro (ou se quisermos, para fazer justiça
Será a liberdade, esse valor que parece co- à ideia de complexidade da acção humana,
locar - se antes de todos os outros, o último mais propriamente um nódulo) haverá onde
a resistir, a reivindicar um corpo? se joga esse processo de inquirição dinâmica.
Se, através do senso comum, entende- Esse nódulo talvez seja o cérebro. Nódulo

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onde se articulam a percepção do mundo, pelo menos que o pensamento é tratamento


a sua memória, as suas sensações. Se nos de informação. Que as modalidades em que
pusermos a adivinhar, e se excluirmos a esse processamento ocorre para que tão plu-
sabedoria divina para concedermos à hu- rais formas acabe por gerar e gerir sejam de
manidade esse frágil privilégio de pensar certa forma desconhecidas é o que nos con-
os espaços, os tempos, os fenómenos, as tinua a interpelar.
proposições e as causas do que está (e não do Ora, se aceitamos que a informação que
que é) aí, ou seja, do mundo pluridimensio- entra e sai da mente não é radicalmente
nal em que nos movemos, agimos e questio- distinta daquela que entra e sai de um
namos, será natural a tentação para acreditar computador (apenas mais complexa na sua
que a última eliminatória (pelo menos neste qualidade), então podemos aceitar que a
estádio do conhecimento científico em que esperança para uns e o receio para outros
nos encontramos) que opõe a investigação de poder descarregar, utilizar, manusear e
humana à magnífica obra de engenharia que transmitir informação no e a partir do nosso
é o mundo e a natureza é o conhecimento do cérebro, será pelo menos uma hipótese forte.
funcionamento do cérebro e a forma como se Primeiro será necessário, obviamente, que
podem ligar os interfaces e os instrumentos o consigamos compreender. Para aceitar-
que a cibernética, a biotecnologia e a ciência mos que essa tarefa seja possível, neces-
em geral possibilitam com esse órgão tão sitamos naturalmente de um voluntarioso
singular e complexo. Quando o mundo era optimismo. Que nos questionemos sobre
um mistério, algo mudo e inapreeensível, o as consequência morais e políticas dessa
mito tratou de experimentar uma explicação. façanha é algo tão legítimo quanto o é espe-
O cérebro foi aquela entidade que conse- rar a sua consecução. Mas não é isso mesmo
cutivamente se foi arredando da inquirição, que a história da humanidade nos ensina, que
mesmo da científica. Precisamente por- cada descoberta ou invenção, qualquer ins-
que era visto como uma entidade, por ve- trumento ou prótese, guarda em si o segredo
zes alma, por vezes espírito a que o selo do seu bem e do seu mal, que a sua inserção
de insondável dava um atributo de enigma. no agir humano nunca se fecha num man-
O próprio cérebro permaneceu um mito. É damento mas permanece sempre num limbo
quando o cérebro, de certa forma, passa a crítico onde é preciso sempre decidir sobre
ser visto como um mecanismo ou sistema, as formas da sua operacionalidade e sobre
com as suas partes, fenómenos, articulações as implicações do seu uso? A possibilidade
e funções que a aura de mistério se vai des- desse interface comunicacional último que a
vanecendo. No tempo presente, talvez seja ficção científica e a ciência nos têm suge-
a metáfora cibernética a dominante: a ideia rido e especulado poder existir um dia já foi
do cérebro como uma espécie de computa- mais remota e, para os mais entusiastas, pa-
dor parece prometer um mais exacto conhe- rece inevitável. De certa forma para aque-
cimento da sua natureza. Que também esta les que sonham o futuro e que querem ace-
metáfora possa estar sujeita à obsolescência lerar na sua direcção, essa invenção tem já
e a sua validade seja transitória não nos deve um lugar no firmamento. Chegar a ele é
espantar como não nos deve inibir. Sabemos apenas mais um caminho a percorrer. Um

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caminho difícil por certo. Se dificuldade é sua explicação. De certo modo, se existe
uma palavra recorrente no léxico científico e uma ontologia da rede ela é constitutiva
tecnológico, impossibilidade é - o bem me- e intrínseca à acção humana. Uma rede
nos. Se não recusarmos a esperança de po- procura responder apenas a um problema:
der entender com suficiente clareza o sistema ligação funcional. O ser humano é apenas
neurológico humano, o seu modo de funcio- um nó nessas múltiplas redes que constituem
namento e as suas aptidões, podemos intuir a paisagem e o ambiente que nos envolve:
(e a intuição é sempre a chave do futuro) seja a paisagem natural, política, intelec-
que os interfaces gráficos, tal como os co- tual, artística, social ou económica. De certa
nhecemos podem ter os dias contados. Aliás, forma, onde há comunicação há uma rede, e
porque não haveriam de tê - lo? Porque onde há uma rede há um agir, e onde há um
haveremos de crer que um ecrã, um rato e agir há comunicação, e onde há comunicação
um teclado são a melhor maneira de rece- há uma linguagem, e onde há uma linguagem
ber, apresentar e manipular informação, o há um processo, e onde há um processo há
estádio final na cadeia evolutiva dos inter- agentes e matéria, e onde há matéria há um
faces? Ou porque haveremos de acreditar fenómeno, e por trás do fenómeno está um
que havemos de estar horas ou dias à es- sistema - e a partir desta espiral poderíamos
pera que chegue o filme que encomendámos descrever a interdisciplinaridade do conheci-
ou a música de que fizemos o download, ou mento humano, da praxis social e política,
porque haveremos de acreditar que o ecrã as conexões da arte com a natureza, da na-
rectangular é realmente o melhor formato tureza com a técnica, da técnica com a lin-
para os cineastas? Todos os utensílios uti- guagem, da linguagem com a arte, como se
lizados nos processos de mediação descobri- um rizoma se estende - se no infinito e nele
ram algures a sua obsolescência funcional ou o pensamento e a investigação procurassem
foram substituídos ou complementados por navegar de continente em continente com a
outros. Há como que um jogo de permu- possibilidade do naufrágio a incentivar o en-
tas ininterrupto no qual a optimização dos genho. Aliás, não será pelo facto de es-
instrumentos para captação e transmissão tarmos inevitavelmente numa rede que so-
de informação, em termos de tempo ou de mos assaltados por essa espécie de deses-
espaço, se torna uma espécie de impera- pero epistemológico em que desconfiamos
tivo técnico - social. É mesmo possível que por mais nós que sejam desfeitos, por
traçar - lhe um percurso histórico. Aliás, mais verdade que produzamos, novos nós e
se própria ideia de rede não é recente - bem novas conexões estamos também a inventar?
pelo contrário, redes sempre existiram e, se Por mim, estou em crer que todo o conhe-
não como modelo explicativo e formulação cimento é feito mais de articulações do que
teórica, pelo menos como espaço e tempo de proposições. É claro que há um esforço
da acção, é natural que mesmo em mundos de fechamento constante - e a teoria e as leis
ancestrais a intuição de que existiria uma são labor com esse sentido - , mas porque o
rede onde os fenómenos tinham lugar e os devir do mundo como o devir humano pare-
seres se comunicavam seria incontornável - cem não prometer uma clausura teleológica,
pode encontrar nesse percurso histórico a a verdade parece não se vir inscrever nunca

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em definitivo nas nossas asserções. comunicação procuram apenas servir aquilo


Será possível reduzir todos os fenómenos que a praxis humana desde sempre, pelo me-
a redes ou poderá a metáfora da rede tudo nos desde a linguagem, talvez o primeiro
descrever? Eventualmente, pois não há, es- espaço virtual conhecido, porque aquele que
tou em crer, comunicação sem uma rede pela primeira vez conseguiu autonomizar
como seu espaço e tempo, sem polaridades, num suporte (sígnico, é certo) a informação
articulações e trânsitos. É assim na natu- que o cérebro recebe dos sentidos, não dis-
reza, é assim nas linguagens, é assim no pen- pensou: comunicar. Que se possa ver na lin-
samento. Toda a ideia de ciberespaço não guagem o primeiro momento de uma gene-
faz mais do que recuperar, alargar e mate- alogia do virtual, e talvez o momento inau-
rializar essa ideia. E ciberespaço aqui deve gural de algo como um sistema algorítmico,
ser visto como a rede de comunicação in- não tem nada de estranho: uma ideia só
terneuronal, ou seja, como a possibilidade tem valor se comunicada, partilhada. O
de certo tipo de informação (não toda) po- que a linguagem traz de vantajoso é preci-
der ser colocada ou retirada do cérebro sem a samente a possibilidade de organizar uma
mediação dos sentidos. Uma ideia que pode ideia de forma a que ela possa ser partilhada,
parecer aberrante e absolutamente utópica, trabalhada, modificada. De certa forma é
mas que, estou em crer, não será mais que com a instauração de um código (aquilo
o culminar do processo comunicacional. De que, em última instância permite a emissão
certa forma, não se trata de mais do que le- e recepção de informação), com as regras
var ao extremo o projecto de optimização gramaticais, os dispositivos sintácticos e a
do acesso à informação. Se aquilo que as fixação de uma identidade semântica que a
telecomunicações têm procurado é precisa- utilização da informação pode ser aprimo-
mente dotar o ser humano da capacidade rada. Dentro desses constrangimentos é que
para com mais precisão e menos esforço ace- se encontra a potencialidade de tudo poder
der à informação e disponibilizá - la, e se to- descrever ou explicar. A criatividade é preci-
marmos o ciberespaço como uma instância samente a filha desses constrangimentos: ra-
última desse desenvolvimento, facilmente ciocinar, calcular, analisar, sintetizar, inven-
podemos perceber que a sua origem não é tar são processos desse mecanismo de se-
estritamente utópica, antes deriva de um pro- lectividade: às ideias é dado um valor, elas
cesso que procura colmatar insuficiências e são conceptualizadas, partilhadas, discuti-
suprir necessidades: ou seja, na sua natureza das, transformadas, abandonadas ou integra-
mais radical, no seu cerne, é uma prótese e das. O que acontece então quando se cria?
não mais que isso, um instrumento. Refuta - se a redundância e as excrescências,
Se olharmos a fantasia do ciberespaço e um procedimento algorítmico. Na ciência,
das ligações neuronais desta perspectiva per- como na arte ou na comunicação, a evolução
cebemos então facilmente que os devaneios do conhecimento, das formas e das certezas
com que a ficção científica nos tem brindado só advém porque a estrutura da linguagem
estão bem enraizados naquilo que, no fundo, permite a dedução e a indução, a articulação
determina o desenvolvimento tecnológico: do particular e do geral com economia de
uma exigência. As tecnologias e os meios de esforço e poder de síntese. Se isto... então

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O ciberespaço: utopia ou prótese? 11

aquilo... Que haverá de mais virtual que o mais agora imaginar se um dia poderemos
espaço das ideias e mais algorítmico que a falar, como agora falamos de neurociências
natureza dos mecanismos da linguagem? E e cibernautas, de neuronautas, aqueles que
não será essa natureza virtual das ideias que se dedicam a explorar as características e
lhes permite transmutar - se de suporte para funções do cérebro e das redes como se de
suporte e, nesse processo, entrar em regimes um território se tratasse. Algo como uma
de comunicabilidade distintos sem perda de espécie de nomadismo pelas paisagens e os
significação essencial, mantendo sempre a lugares da rede geral de computadores e
sua ligação ao referente? No fundo, o que a cérebros. Ou estaremos condenados a que o
cibernética nos veio permitir é que se tenha interface seja apenas uma possibilidade ex-
chegado a uma definição (provisoriamente) terior ao corpo? Sabemos que a ideia de um
essencial de informação. E o ciberespaço mundo de imersão completa, com a sua pro-
será o local a partir do qual as ideias podem messa de paisagens e sensações tem muito de
ser acedidas de forma imediata, exactamente um desejo mítico, como se da possibilidade
aquilo que a linguagem, com o seu código de um novo Paraíso aberta pela virtualidade
possibilita, mas as conotações e as polisse- da tecnologia se tratasse. E sabemos também
mias impedem. que a tecnologia e o seu desenvolvimento são
Há questões que podem ser colocadas an- tão condicionados pela adequação às neces-
tes de tempo. Uma é: se um interface di- sidades e determinações da sociedade como
recto homem - máquina for possível, por- pelo objectivo visionário dos empreendedo-
que haveria cada sujeito de querer estar li- res que criam os dispositivos.
gado, de permitir a invasão do seu cérebro? Porque não haverão realmente um dia o
É no fundo uma questão que revolve o âmago rato e o teclado deixar de ser necessários
da subjectividade. Não deveria ser nada e ser apenas o pensamento a comandar as
de muito estranho ou extraordinário estar li- acções no interface? Afinal de contas não
gado. No fundo, e se como dissemos acima, é dessa forma que o cérebro processa as
estamos e estivemos sempre em redes, sa- instruções para todas as acções do nosso
bemos que só somos sujeitos com presu- corpo? E se a capacidade da memória
mida autonomia porque habitamos essas re- humana é realmente limitada, porque não
des (de alteridade). Ora aqui importa tal- imaginar dispositivos técnicos que permitam
vez perceber que a renitência com que mui- acrescentar capacidade mnemónica? Afi-
tos podem olhar essa possibilidade de uma nal de contas não é isso que procuramos
ligação directa ao cérebro tem sobretudo a com os livros, os computadores, as fotogra-
ver com uma dimensão política: com o po- fias? E porque não imaginar que o futuro de
der e com a violência, que sendo factores parte das formas narrativas passará por uma
importantíssimos (se calhar fundamentais) hibridação das ideias e técnicas do filme e
para que estes dispositivos um dia possam do jogo? Afinal, quando lemos um romance
vir a existir, não vão por agora ser abor- ou vemos um filme não nos imaginamos
dados (aliás, esses medos são hiperboliza- de certa forma a participar nele, não é isso
dos no filme "Matrix", que a este respeito mesmo a natureza da empatia e da catarse?
é extremamente ilustrador). Interessa - nos Porque não havemos então de ir buscar ao

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12 Luís Carlos Nogueira

jogo (e para quem joga com regularidade então em agentes suficientemente inteligen-
toda esta questão ganha contornos especiais) tes para fazerem duas coisas: capazes de de-
essa capacidade de agir sobre os aconteci- senvolverem as suas próprias metáforas (o
mentos e integrá - los nas ficções e narrati- que seria um primeiro passo para o desenvol-
vas que podemos viver no ciberespaço? E o vimento de uma inteligência própria) e capa-
que serve para as narrativas pode servir para zes de providenciarem a sua própria forma
o texto, esse interface que dominou e domina de apresentação, a sua imagem (no fundo,
ainda a nossa relação com as ideias. Como a nossa primeira metáfora). Não poderemos
disse David Warner, um neuro - hacker do nós um dia ter de conviver com esses agentes
Loma Linda University Medical Center, à enquanto entidades autónomas, capazes de
revista Wired “a linguagem natural baseia - nos prestarem serviços ou interagirem con-
se num óptimo fisiológico. Não há nada de nosco: por exemplo, ampliar o território vir-
óptimo em pequenas letras. O paradigma de tual, ser os empreiteiros e construtores desse
Gutenberg está morto”. E porque não have- novo habitat, serem os nossos motores de
remos de concordar com este investigador: pesquisa e secretárias pessoais (uma espécie
serão mesmo as palavras impressas o melhor de séquito), serem nossos oponentes num
instrumento para transmitir pensamentos? jogo - filme?
E se da metamorfose ou substituição de in- Não estamos nós no quotidiano a dar
terfaces falamos, será tão incrível assim que conta frequentemente das nossas limitações,
possamos fazer máquinas - esses interfaces das nossas incapacidades, das nossas
discretos com que convivemos e integram o insuficiências? As máquinas e as próteses -
nosso mundo - tão ou mais inteligentes que para o que aqui nos interessa, estes termos
os próprios seres humanos? Com o desen- confundem - se - são a nossa resposta. E
volvimento do software, das infomáquinas, não é nessas imperfeições, nesses obstáculos
estamos perante novos mecanismos, aque- que reconhecemos a nossa peculiaridade de
les que se encontram no limiar: entre o seres tecnológicos e se configura a aventura
autómato e o organismo, ou entre a máquina do conhecimento possível? Essa assumpção
e o cérebro. No fundo, são máquinas fei- da imperfeição como algo natural tem,
tas de linguagem, exactamente o que se po- ainda não o percebemos bem, ou algo de
deria chamar ao cérebro ou, de uma ou- júbilo ou algo de resignação. Aceitamos
tra forma, à sociedade. O software é uma as nossas insuficiências mas aspiramos
máquina de raciocínio, onde são as regras da sempre a uma existência plena, completa,
lógica, da matemática, no fundo as estrutu- intensa. E fazemos isso porque estamos
ras sintácticas e as estipulações semânticas imbuídos de um desejo de ilimitado prazer,
as matérias utilizadas para conseguir que, en- auto - consciência, felicidade. Mas a nossa
trando de um lado um input saia do outro presença no mundo e o funcionamento do
lado um output. Por aqui se pode ver que é nosso cérebro asseguram - nos que temos
num novo regime da mecânica que entrámos. sempre provações, azares, vulnerabilidades
A técnica agora não é já exclusivamente um a amputar esse desejo de felicidade, a
prolongamento da inteligência, é a própria ensinar - nos o estoicismo nas suas diversas
inteligência que opera a técnica. Pensemos modalidades, a entretecer o bom com o

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O ciberespaço: utopia ou prótese? 13

mau, a aceitar a existência no melhor dos


mundos possíveis. Ora, só talvez a religião
pôde prometer durante séculos aquilo que
não pôde cumprir: o paraíso. E nessa
tarefa de sugestão escatológica a tecnologia
veio substituí - la: se há um paraíso a ser
conquistado só a tecnologia o pode ainda
facultar. Que esse espaço virtual alternativo,
esse ciberespaço, seja um lugar projectado
e construído pelo homem, com as suas
medidas e o seu design, que seja um projecto
de arquitectura, paisagismo e estética, que o
controlo sobre as suas funções e disponibi-
lidades seja bem óbvio e mesurável, que as
suas leis sejam finalmente e intrinsecamente
humanas é o que se oferece e o visionarismo
não deixará nunca de reivindicar. Aumentar
as capacidades emocionais e intelectuais não
foi o que a evolução natural se encarregou de
fazer? Então porque não pode a capacidade
de inventar próteses reclamar o mesmo
feito? Ainda que essa prótese seja algo
como uma rede de computadores e cérebros.

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