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EDITOR snando Paixio EDITORES ASSISTENTES Linewe Mercadante Machado ai Murilo Rubiao ia Andrade CONTOS REUNIDOS Alessandra Vargas de Carvalho ‘Ana Cristina Pimenta da Costa Val Dani aries Mendes Regina de Bai Gi lo Ara CAPA Silvia Ribeiro ISBN 85-08-06656-2 Impress Geogrifica oe. Z \ 1998 Bario de Iguape, 110 * CEP 01507-900 ) 278-9322 * Caina Postal 2937 : (011) 277-4146 uRILO RUBIAG 8 A muther parecia ter-se desinteressado do assunto € ele se impacientava, irtitava-se com as criangas, barulhentas e sujas, que um batalhao de empregadas se esforgava em vao para man- ter limpas. Além da algazarra, das brigas, a desordem dominava a.casa. Em meio a méveis quebrados, fraldas molhadas e peda- gos de brinquedos, os pequenos destruidores se divertiam em jogar para o ar as bolas ¢ urindis nem sempre vazios. Apesar da continua vigilincia, Colebra se surpreendia, 8 veres, com 0 impacto de um objeto atirado na sua cabeca. Nessas ocasides, reagia brutalmente, jogando os meninos contra a parede. Reprimia, a custo, o impulso de esmagé-los com os pés. 9 Quando nasceram as primeiras filhas de olhos de vidro, Colebra ficou confuso e uma diivida, que nunca Ihe ocorrera, perturbou-o, apressando sua decisao de aceitar o desquite suge- rido pela esposa, Procurou-a um tanto temeroso de que, arre- pendida, ela recusasse 0 acordo ou reduzisse o valor da mesada. Nao houve, todavia, dificuldade no acerto final. Disfargando seu contentamento, ele se afastou para cuidar da bagagem. Do seu quarto, ouviu gritos. Correu de volta a sala e encon- trou Aghia solucando: — Nao me abandone, nao me deixe sozinha a parir essas coisas que nem ao menos se parccem comigo! Por favor, no me abandone! O marido ficou indeciso se cla se arrependera em consentir na separacio ou se apenas softia as dores provocadas pelas con- tragées uterinas. Na incerteza, rettocedeu para apanhar as malas ¢, no caminho, chamou a parteira. 194 AFILA “E eles te instruirio, te falario, e do seu coragéo tirarao palavras. (Jé, VIL, 10) Vinha do interior do pais. Magro, miisculos fortes, 0 quei- xo quadrado, deixava transparecer no olhar firme determinacao, Nio vacilou enste os dois portées do edificio, escolhendo o que Ihe pareceu ser 0 da entrada principal. Dentro do prédio per- correu diversos corredores, detendo-se com freqiiéncia para ler 0s letreiros encimando as portas, até encontrar a sala da gerén- cia da Companhia Arendeu-o um negro elegante, ligeiramente grisalho nas témporas ¢ de maneiras delicadas. O desconhecido calculou que 0 preto desempenhava as fungdes de porteiro, apesar das roupas caras ¢ do ar refinado, — Deseja falar com quem? — perguntou. — Com o gerente. — Emprego? — Nio. Seu nome. — Pererico. — De qué? — Nio interessa, ele nao me conhece. — Posso saber 0 assunto? — F assunto de terceiros ¢ devo guardar sigilo. Apenas 198 ‘muRILO RUBIAG posso assegurar-Ihe que € coisa répida, de minutos, Ademais tenho urgéncia de regressar 4 minha terra, O porteiro abaixou-se até a mesinha, que ficava no canto da sala, retirando de uma das gavetas uma ficha de metal: — Pela numeragao dela — disse com um sorriso malicioso — a sua conversa com o gerente levard tempo a ser concretizada. — Esperarei. Acostumado talvez a respeitar a disctigao dos que tratar de negocios ou obrigado pela funcio, 0 negro nao formu- lou novas perguntas. — Pode chamat-me de Damiio — acrescentou, pedindo- Ihe que 0 acompanhasse pelo corredor, onde ficavam os candi- datos a audiéncias, dispostos em extensa fila. Os dois caminha- ram ao longo dela, desceram uma escada de ferro que dava para 2 parte externa da fibrica. Despediram-se no pat ultima recomendagao do crioulo: — De hoje em diante, vocé deverd evitar a entrada princi- pal, reservada somente aos que aqui vém pela primeira vez, — E.com 0 dedo apontava o porto dos fundos com uma. Ainda nao seria naquela tarde que ia ao geren- ‘, pois somavam a centenas as pessoas que aguardavam a opor- tunidade de serem recebidas e as audiéncias terminavam impre- terivelmente as dezoito horas. Nem assim se abandonou & impaciéncia, embora Ihe fosse desagraddvel 2 perspectiva de uma estada demorada fora de casa, As observagdes colhidas durante o tempo que passou na fila poderiam ser titeis no futu- fo € aurhentavam a sua confianga no sucesso da missio. Verificou também que as pessoas atendidas na geréncia retorna- 196 alegres, demonstrando ter solucionado seus problemas ou, menos, sido tratadas com deferéncia. No dia seguinte, bem antes de serem abertos os portoes da fubrica, ele jd se encontrava em frente as suas grades. As sete horas, apds o toque da sirena, surgiu Damiao com a caixa das senhas. Distribuiu-as entre os presentes, cabendo a Pererico uma de niimero elevado, 0 que o irritou sobremancira: — Estou entre os primeiros que aqui chegaram ¢ recebo uma ficha alta! Denunciarei ao.gerente a sua safadeza, negro ordin: O porteiro nao se impressionou: — As senhas de mimeros baixos foram entregues aos que dormiram no pétio, através de distribuiggo interna, Quanto & sua queixa junto ao meu superior, vai demorar — coneluiu sor- ? — perguntou Pererico. — Por que essa permitindo somente a alguns o privilégio de — A permissio de passar a noite no recinto é dada aos que no fazem segredo dos assuntos a serem tratados com a admi- nistracéo da empresa. Pererico conteve-se. Uma briga naquele instante poderia prejudicar seus designios, pois compreendera que o poder de Damiao ultrapassava o de um mero empregado. O seu descontentamento nio se prolongou pela tarde aden- tro. Em certo momento, chegou mesmo a se julgar com sorte. E que, as dezessete horas, boa parte dos que integravam a fila a abandonaram, dispersando-se sem motivo aparente. 197 MuRILo RUBIAO Abstraindo-se das raz6es que geraram a retirada em massa, consultava 0 relégio, mostrando-se excitado 4 medida que sen- tia aproximar-se a hora em que se avistaria com o gerente, ‘A tiltima pessoa atendida, na sua frente, retirou-se minutos antes das seis ¢ ele se preparava para ser recebido quando 0 por- teiro afastou-o com o brago, dando passagem a um senhor de roupas antiquadas. Surpreso e revoltado, Pererico agarrou Damiao pelos ombros, sacudindo-o rudement — Crioulo pegonhento, devia Ihe dar uma susra por me ter passado para trés, mas ndo quero quebrar agora o seu pescogo. — Empurrou-o de encontro & parede e saiu. Esgotara-se o expediente da Companhia Na manha seguinte, ao chegar & , 0 negro recebeu-o com um esclarecimento e uma adverténci — Vocé foi precipitado, ontem, por no ouvir minhas explicagées. O cavalheiro que tomou o seu lugar marcara audiéncia ha virios dias e, além disso, tratava-se de pessoa da ide do gerente. Quanto & agressio, espero que fique sé a ameaga, para seu préprio bem. Pererico mediu o adversério ¢ se convenceu de que a repre- jamais se concretizaria pelo desforgo fisico ¢ isso era mau. Levando em conta que Damiio procurara desculpar-se, consi- derou de bom alvitre atenuar a aspereza do seu procedimento na véspera: a 4 — E que tenho necessidade urgente de retornar a minha cidade © a demora me impacienta, — Quis referir-se & escassez do dinheiro ¢ arrependeu-se, temendo nao ser entendido corre- 198, ONTOS REUNIBOS mente ou tomassem a confissio como uma fraqueza ou dese- jo de capicular. Nesse dia a fila pouco progrediu e, bem antes de chegar a vez encerrou-se o horétio reservado ao atendimento piiblico. A sua arrogincia inicial, sucedia-se o desinimo: acreditava ser entrevistar-se com o gerente sem a interferéncia do negro. Sempre Ihe repugnara solicitar ajuda para resolver suas dificuldades. Mas a preméncia de regressar antes que gas- 0 centavo superou scus escripulos. Saiu & cata do negro: — Quem sabe voce conseguiria uma audigncia especial para mim? Acho que me atenderio, se souberem da importén- cia do meu assunto. — Ninguém vem aqui por divertimento — retrucou 0 por- teiro com certa rudeza, para abrandar em seguida a entonagio da vor: — Desde que tem pressa de viajar, eu poderia resolver 6 seu caso, poupando-lhe tempo. — O meu problema foge & sua algada — foi a resposta irti- tada de Pererico, a olhar intencionalmente as roupas caras do porteiro, duvidando da origem legftima delas. ‘A desconfianga que Ihe infundira o oferecimento de auxilio por parte de Damiao levou-o a evité-lo. E essa disposi¢ao nao 0 favorecia: as fichas que the eram fornecidas obedeciam a uma numeracio cada vez mais alta e a fila caminhava com exasperan- te lentidao. Porém agarrava-se ferozmente a ela, apesar das pers- pectivas desfavordveis. Contava talvez. com um absurdo golpe de sorte: 0 gerente, tomando conhecimento da sua presenga na fabrica, mandasse cham. 199 /MURILO RUBIAO Ao lado da especulacio, havia um dado real: 0 agravamen- to da situagéo financeira. O dinheiro chegava ao fim, sobrava- Ihe pouco mais do que o necessério para comprar a passagem de volta. Nem a fome o constrangeria a dispor dessa importincia, Nao conversava com ninguém, isolado no seu lugar, O seu retraimento chamou a atengio de Galimene, uma prostituta que aparecia, as tardes, no patio da fabrica, desinteressada da pessoa do gerente, s6 para tagarelar com os homens e garantir alguns encontros noturnos. Tinha 0 jeito de passarinho e tia baixo, colocando a mao na boca, mesmo se a anedota fosse imbecil, contanto que agradasse aos possiveis cliences, Nem feia nem bonita. Apenas quando sorria, um sorriso meio triste, 0 rosto adquiria um toque de vaga beleza. A principio, ela olha- va-o com discreta simpatia, procurando uma desculpa para conversar com Pererico, Este nao dava mostras de perceber 0 interesse dela, acreditando-o meramente comercial. Entretanto, quando a mulher se afastava, ele a acompanhava com o olhar, mal contendo a necessidade premente de fémea. Ao cabo de um més, excluindo 0 dinheiro que reservara para a passagem de trem, sobravam-lhe uns poucos trocados para o café da manh&, Forcado a abandonar o hotel, dormia nos bancos dos jardins piiblicos vivia esfomeado, a sentir dores agudas no estémago. ‘A meretriz. percebeu a magreza dele ¢ nao teve que se esfor- car muito para Ihe adivinhar a causa. Trouxe-Ihe um sandufche, mentindo que comprara dois ¢ estava sem fome. 200 ONTOS REUNIDOS Como Pererico recusasse aceité-lo, Galimene convidou-o a ir, 4 noite, até a sua casa. A tecusa foi brusca, parecia revide a uma ofensa grave: — Nio tenho dinheito. — Pata vocé nao precisa — abaixara os olhos ¢, com o pé, chutava pedrinhas Também a Damido nao passara despercebido 0 acentuado emagrecimento de Pererico. Aproveitou a circunstincia para tentar a reaproximacio, — Vocé esté seguindo um caminho errado ¢ se sactificando a toa. Nem remunerado deve ser. Se colaborasse comigo, tudo seria ficil. — Tirara do bolso a carteira e, aparentando distra- ‘40, arrumava as cédulas pela ordem de valores. Pererico, indignado, arrancou-a de suas maos ¢ atirou-a Jonge, esparramando as notas pelo chao. A tarde, aceitaria alguns pastéis oferecidos por Galimene. A atitude do negro ajudara-o a vencer a relutincia em ser alimentado pela prostituta. Permanecia, no entanto, irredurivel na deciséo de recusar os convites para dormirem juntos, con- vencido que ja degradara o suficiente. © novo relacionamento quebrava Es Distrafa-se com a prosa versitil da meretriz, cujos conhecimentos gerais cram incomuns no meio em que vivia. Apreciava nela a ingenuidade que a profissio deixara incata, os modos discretos, Nao se irritava pelas constantes tentativas de afasté-lo da fila, limitando-se a sorrir quando ela procurava seduzi-lo com a 201 MURILO RUBIAG beleza da cidade, os passeios que poderiam fazer juntos, Somente se intranquilizava diante do argumento final: — Laas mulheres sao lindas, muito mais bonitas do que eu. Mantendo-se na negativa, os olhos vidos cravados no corpo de Galimene, conjeturava sobre a existéncia real de tio belas fémeas. Por outro lado, nao passava fome c sc adaptara pouca comida que Galimene Ihe travia todas as manhas, Era © maximo que podia doar — 0 corpo nao rendia muito num bairto operirio. Lavava-lhe a roupa, dava-lhe conselhos: —Ponha de lado o orgulho ¢ explore a vaidade de Damio, que nao resiste a um agrado. — Se ficar mais um més nesta maldita cidade, acabo dor- mindo com homem — respondia mal-humorado. Ela nio se importava com a reagao ¢ insistia — Afinal, 0 que vocé perde com isso? — Bajular 0 ctioulo? Prefiro a derrota. — Jé reagia mode- radamente, pensando na viabilidade da idéia. O desejo de vol- tar 4 sua terra contribufa para Ihe amolecer a resisténcia, Por fim, concordou: — Vou, mas se ele me fizer de bobo, racho-the 9 cranio. Consciente da sua sordidez, 0 asco em cada palavra, cuida-~ va de reconciliar-se com 0 porteito Comecou por cumprimenté-lo disctetamente. Depois vieram as frases convencionais, evoluindo para um elogio ao 202 CCONTOS REUNIDOS hom gosto do negro na escolha das gravatas ¢ roupas Damigo sorria satisfeito, a aguardar um pronunciamento for- I de Pererico sobre suas inteng6es, $)ggie fiialiReHte AEORE — Bem sei que em mais de uma ocasido ful grosseiro com 2, E que eu me enraivecia com a sua insisténcia cm saber Faco-lhe agora um apelo para que me consiga, sem condigdes ¢ fora da fila, uma audiéncia com o gerente. Sentia-se envergonhado pelo discurso, enquanto o crioulo aproveitava a oportunidade para exibir falsa modéstia: — Hi um pouco de exagero na sua confianga com relagio a0 meu prestigio. Quem marca esse tipo de audiéncia € 0 secte- trio da Companhia. Vamos li — disse, pedindo-lhe que 0 acompanhasse. Conduziu-o a0 primeiro andar da fabrica e, no final de um extenso corredor, entraram numa saleta. O negro apontow para um homem baixo ¢ magro, sentado em frente a uma cscrivaninha: — O meu colega, que esté al informagoes necessdrias. Pererico desconfiou do olhar de Damiao, ao afastar-se, per cebendo nele a malicia, A suspeita se confirmaria ao receber um cartio de ntimero desproporcional & importincia da pessoa com (quem iria falar. — Escapava de uma fila e cafa noutra Ihe fornecera a senha ¢ as ‘O homenzinho assentiu com um movimento de cabega € dle indagou quantos candidatos a audiéncia eam atendidos por dia. 203 muRILO RUBIAO — Quinze, ds vezes vince, Afobado © feliz, mal o cumprimentou: — Arre! Agora o gerente me receberd! — Depende do que deseja. — Lamento. Tenho inscrugoes de encaminhar a ele apenas as pessoas portadoras de assunto de real intcresse para a admi- nistragio. Como posso saber se o seu é, desconhecendo 0s moti- vos que o trazem aqui? — Isso é ridiculo. nesta cidade ‘© ndo consigo falar a um porcaria de gerentel fada posso fazer. Hé outros em situagao idéntica, aguar~ dando com paciéncia a oportunidade de serem atendidos. Aborrecido ¢ desapontado, Pererico saiu A procura de Damiao, relatando-lhe 0 ocorrido. O porteiro ficou apreensivo com o seu desalento. 30 se entregue a0 desespero, nem deixe de vir todos os dias & fabrica. O acaso ou uma inspiracao feliz ver os obstaculos. iderio remo- situagao deles é diferente da minha: moram na cidade ¢ esto perto dos familiares, dos seus negécios. 204 ONTOS REUNIDOS —Tenho a maxima boa vontade em abreviar o seu regres- so, Eneretanto. — Ja vem voce querendo saber 0 que desejo do gerente. — Seria mais simples do que viver & custa de mulher. Pererico nao agiientou o insulto ¢ acertou um murro na boca de Damiao. Este, limpando com o lengo os labios a san- ‘gar, externou o seu ressentimento: — Vocé escolheu o pior caminho. Galimene esperava-o no porto: — Qual foi o resultado? — indagou, passando-lhe um san- duiche de carne. — Negativo. E fiz uma grossa besteira: agredi o crioulo. Ela ouvira-o em siléncio, Apenas os olhos expressavam a descrenga quanto as possibilidades fururas dos projetos de Peretico que, nem por isso, cogitava de desistir: — Bem, nao posso reparar 0 que fiz. Sé me resta aguardar a reagio do negro. Surpreendentemente Damiio recebeu-o no dia seguinte com a cara risonha: — Nifo fiquei magoado com o incidente de ontem. A sua reagdo foi justa e levei em conta as razées de sua atitude. Sou homem sereno. estendeu a senha. Peretico examinou-a. A numeragio era alta, a maior que jé Ihe haviam dado. O primeiro impulso foi de jogar a ficha na cara do negro. Controlou-se, evitando repetir um gesto covar- de. Nao podia exigir, a qualquer pretexto, a simpatia do outro. 205 MURILO RUBIAO Dali para frente recusaria as senhas, discanciava-se da fila, a vagar pelo patio, aferrado & esperanga de encontrar 0 gerente saindo do escritério ou andando pelas ruas, se bem que ignoras- se 0 seu aspecto fisico ¢ 0 roteito de seus habitos. Colocava-se em lugares estratégicos, por onde 0 homem visado poderia pasar; investigava as saidas em diferentes horétios, inclusive experimentando ficar noites a fio em fren- te ou nos fundos do edificio da Companhia, e jamais 0 encontrou. Galimene, inquieta, acompanhava-o de longe. Percebia-lhe a desorientagio, sentindo amadurecer a oportunidade de Ihe oferecer novamente 0 quarto ¢ a cama Se a proposta viesse semanas atrés, a recusa seria pronta ¢ eitou. Agarrado ao brago da mulher, recuperava a virilidade contida, desvaneciam-se as possibilidades de justificar-se. Adaptara-se com relativa facilidade & nova situagao, embo- ra fosse irregular 0 hordtio das refeigdes e de dormir. Para dei- tar-se, ficava na dependéncia da saida do tltimo cliente de Galimene, 0 que nem sempre acontecia antes da madrugada Habituou-se a esperar pacientemente, porque a demora repre- sentava comida farta no dia seguinte. Parava pouco na fabrica, deixando mesmo de ir li, desde que encontrasse uma desculparazodvel para explicar seu proc: dimento, Damifo langava-lhe um olhar desaprovador, como se Peretico tivesse cometido falta grave. Por um momentineo sen- timento de culpa, voltava a chegar cedo e sair ao entardecer. Se 206 ONTOS REUNIDOS estava bem-humorado, pedia a senha ¢ ia embora, zombando do porteiro. Aos domingos, Galimene debrugada na janela ¢ Pererico sentado no meio-fio da calcada entretinham-se conversando pela tarde adentro, a menos que surgissem para interrompé-los alguns dos habituais freqiientadores da penséo. ss Tonge dali, sem homens a separé-los. Sabia ser impossivel tornar duradoura uma ligagao destinada a se perder no efémero. No aff de fixé-lo na cidade, empenhava-se inurilmente em distrai-lo com algo que substituisse sti) ObSeSsa0: — Por que nao aproveita o sol da manha para ir & praia? Hoje ela fica cheia de belas mulheres. — Nigo faz sentido dentro dos meus objetivos — Voce conhece © mar? — Nunca vi um! — E pena. — Prosseguia, contando uma porgao de histé- rias maritimas, que conhecia bem, sendo filha de marinheiro, nascida nas docas. Cansados do mar a conversa cafa no jardim zoolégico, incen- tivando Peretico a contar proczas de animais ferozes de um circo americano que vira anos atris. Deles voltava aos cavalos, vacas, gali- nnhas, cabritos, © rosto transfigurado por alegres reminiscéncias. nnn gud cea non Cari 207 Fram dex horas de uma segundaefeira e dormita muito, razio pela qual caminhava indeciso, achando que perdia tempo indo & capivaras € veados, correndo entre drvores, enquanto travessas ctiangas brincavam nos escorregadores, seguia sob a pressio do remorso por ter descurado tanto de seus deveres. Amaldigoava sua vacilagio, fraqueza que desconhecia antes de chegar aquila cidade. fade ferro, percorreu cor- redores, deparando no trajeto uns poucos funciondrios que conhecia de vista. A presenga de empregados eliminava a hipé- tese de um feriado. ’ererico recuperara a seguranga ¢ 0 poder de decisao que exi- bia quando ali estivera pela primeira vez. Caminhou na ditegéo do negro, suspendeu-o pelas axilas, obrigando-o a levantar-se: ravel, ou falo com o seu chefe ou the quebro crioulo tina outros detalhes a dar, porém Pererico dis- pensou-os. Sentia-se arrasado com a prépria irresponsabilidade. 208 ONTOS REUNIDOS Pela mancira como entrou no quarto, Galimene pressent que alguma coisa de grave se passava com 0 companheirc Olhava-o perplexa, esperando um esclarecimento dele que, en éncio, pegata a maleta de viagem ¢ nela enfiava as suas pou cas roupas. uve? — indagou a mulher. — Nao, Pererico, a sua culpa é pequena. Damiao nunca lh permitiria chegar ao gerente. Agora que vocé nao tem obrigaca de ir A fabtica, por que mio fica? Poderia conseguir emprego. — Odeio esta cidade. — EF injusto falar assim, conhecendo apenas o subtirbio de — Nada mais tenho a fazer aq) — Nada? — interrogou, a fisionomia tomada por sii isteza. Sentiu que a ofendera desnecessariamente e tentou consctta — Vocé deve compreender que estou fora dle casa hi mui tempo ¢ preciso voltar o mais depressa possivel Cabega baixa, ela perguntou a que horas partitia 0 tren Informada do horitio, disse ter algumas coisas a fazer na ru mas 0 encontratia na estaga0. Ele quase pedit que nao fosse, pois queria evitar 0 constra gimento da despedida. Desistiu, temendo magoé-la de novo. Encontrou-a & sua espera, Sobragava dois embrulhos, q entregou a Peretico, Abrindo-os, viu que continham cami calga, navalha e um frango assado. 209 mueio RUBIAO — Voce troca de roupa e faz a barba, para chegar com melhor aparéncia na sua terra. Surpreso, indagou como conseguira o dinheiro. — Guardei, respondeu encabuilada Emocionou-se, apesar do esforgo em contrério, Agarrou-a pelos bragos e beijou-a. Ela pensava que desaprendera de chorar. Ligrimas desciam pelo seu rosto, Era 0 primeiro beijo que recebia dele: — Sou uma boba, nao? Faltava meia hora para a partida do trem, mas Pererico tinha pressa de embarcar, a fim de impedir novas cenas senti- mentais. Despediu-se com um abrago répido ¢ ia saindo, porém Galimer — Voce voltarsé um dia, nem que seja para conhecer 0 mar, combinado? Respondcu negativamente, ¢ pesaroso por nio saber mentir. Subiu a escadinha do vagio de segunda classe, escolhendo Gltimo banco para assentar-se. Nele colocou a maleta, indo direto as instalagées. Apés barbear-se, mudar de roupa, voltou a seu lugar. Comia o frango. A espacos, olhava a paisagem através da janela, E se alegrou quando viu surgir nas encostas das monta- nhas os primeiros rebanhos. A medida que contemplava bois ¢ vacas pastando, retorna- vam-lhe antigas recordagées, esmaeciam as do passado recente. © reteve: x ° CONVIDADO “Vé pois que passam ¢ meus breves anos, € € caminho por uma vered © convite que acabara de receber muito contrariava o se gosto pelos detalhes. Além de nao mencionar a data ¢ 0 local d festa, omitia 0 nome das pessoas que a promoviam. Sile quanto ao traje das senhoras, apesar de exigir para os cavalhe ros fardao e bicorne ou casaca irlandesa sem condecoragées.. falta de outros esclarecimentos, julgou tratar-se de alguma tividade religiosa ou de insipida comemoragio académica. José Alferes tornou a examinar o envelope, preocupado co: a possibilidade de um equivoco ou de simples brincadeira ¢ desocupados. — Mas a quem interessaria divertir-se & custa « um estranho em uma metrépole de cinco milhoes de habicante — A idéia era evidentemente absurda, tendo-se em conta que seu circulo de relagdes nao excedia 0 corpo de funcionérios d hotel, onde se encontrava hospedado havia quatro meses. Pensou em jogar fora a carta, s6 nao o fazendo ao lembra se de Débora, a estendgrafa, pensionista de um dos apartamet tos no mesmo andar do seu. Poderia ser cla, sem duivida, pod

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