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Boris Kossoy A Construgio do Nacional na Fotografia Brasikira: © Espelho Europeu... . on 73, Parte 3 REALIDADES E FICQOES NA ‘TRAMA FOTOGRAF Imagens ¢ Arquivos: ... para que ndo nos PBSC Ue eACOON em etrmeta a= bf ete oe 127 Fotografia e Meméria: Reconstituigéo Historica Através da Fotografia .. Feist) Consideragées Finais . + 143 POMGGSEF Micecs i397 cee 145 Referéncias bibliogréficas .. 147 12 Introdugao Este livro engloba um conjunto de textos, alguns jé publicados, outros ainda inéditos, decorrentes de diferen- tes vetores de pesquisas tedricas, estéticas e histéricas que yenho desenvolvendo nos tiltimos ano: O livro se constitui de trés partes. Na primeira, ba- sicamente/tedrica} retomo conceitos anteriormente esbo- cados € discutidos, alguns tratados em Fotografia e Histo- ria ¢ em outros trabalhos, com o objetivo de expandir aquelas questdes € propor novas contribuigGes ao terreno sempre pantanoso € sedutor da estética fotografica. A pro- posta se estende ao estudo das fontes fotogrificas, ¢ nao poderia ser de outra mancira pois interessa-nos, sobretu- do, propiciar elementos para que se perceba em que me- dida essas fontes tem se prestado para registrar direcio- nar nossa compreensio sobre os fatos da histéria. ‘Trata-se de um material sobre 0 qual tenho me refe- rido constantemente em aulas e palestras enquanto instru- mental tedrico para a reflexdo estética da fotografia, bem como, para a devida aplicagao de tais conceitos quando da interpretacao das imagens contemporaneas ¢ do passado. Boris Kostoy Decorre da reuniao destes conceitos ¢ reflexes, espero, um entendimento mais abrangente das fontes fotograficas enquanto objeto de estudos mulltidisciplinares. Em trabalhos anteriores enfatizdvamos mais a idéia da imagem fotogréfica enquanto documento. Aqui, busca- mos melhor explicitar 0 caréter de representagdo que Ihe inerente, A imagem fotogréfica, entendida como documen- tolvepresentagio, contém em si realidades e ficgdes. E nessa relagdo ambigua que sc acha 0 cere de uusya reflexdo. Na segunda parte reuni textos histéricos pelos quais pode-se perceber o papel ideoldgico da fotografia enquanto instrumento de comprovacéo documental empregado pela elite econdmica e politica da sociedade brasileira com 0 intuito de apresentar o pais através de selegées de imagens cujos cddigos culturais e estéticos nelas explicitos transmi- tissem a si mesmos e aos receptores estrangeiros a idéia de modernidade, esplendor ¢ progresso: imagens de exporta- 40 como sempre se fez por meio das revistas ilustradas, dos cartes postais, dos livros oficiais de propaganda do pais no exterior. Analisadas assim, as tramas ideol6gicas que se escon- dem sob a superficie das imagens em dois exemplos histéri- cos, finalizamos este pequeno ensaio com algumas reflexées sobre arquivos, meméria ¢ reconstituicao histérica, subli- nhando essa possibilidade inerente das representacoes foto- grificas que ¢ 0 processo de construcio de realidades — ¢ portanto de ficgbes — que ela permite em fungao de sua ambigua ¢ definitiva condi¢ao de documento/rep resentacio, Sem desconhecer as contribuigées teéricas importan- tes desenvolvidas nos anos 80 na linha da natureza indicial 14. Realidades ¢ Fiegées na Trama Fotografica fotografia, através dos estudos de Phillipe Dubois, por mplo, nao esquecendo obviamente da incurséo insti- jante de Roland Barthes, A Camara Clara, 0 que de fato ‘pietende-se neste trabalho é ressaltar os processos de cria- (lo de realidades que a fotografia possibilita e, por exten- so, sua ratureza ficcional. E essa postura conceitual que jem norteado nossa compreensao do mundo da represen- \upllo fotogrdfica. Este trabalho flui entre imagens técni- “fay e imagens incutais, cnuc realidades construfdas fic- gbex documentais. ; Sou grato a Maria Luiza Tucci Carneito, Cremilda de Araijo Medina, Carlos Fadon Vicente, Aurea Carva- "tho, Liviu Spiegler ¢ A. Hélio Valeiro que, em diferentes momentos deste percurso, me supriram de informagées, suigest6es € apoio técnico. 1S PARTE 1 CONSTRUGAO E DESMONTAGEM DO SIGNO FOTOGRAFICO + Estética, Meméria e Ideologia Fotogrdficas’ Desde seu surgimento ¢ ao longo de sua trajeréria, até os nossos dias, a fotografia tem sido aceita ¢ utilizada como prova definitiva, “testemunho da verdade” do fato, ou dos fatos. Gracas a sua natureza fisicoquimica — ¢ hoje cletrénica — de registrar aspectos (selecionados) do real, tal como estes de fato se parecem, a fotografia ganhou eleva- do status de credibilidade. Se, por um lado, ela tem valor incontestavel por proporcionar continuamente a todos, em todo 0 mundo, fragmentos visuais que informam das miiltiplas atividades do homem e de sua agéo sobre os outros homens e sobre a Natureza, por outro, ela sempre se ptestou e sempre se prestaré aos mais diferentes ¢ inte- resseiros usos dirigidos. * Texto adaptado da conferéncia “Estécica, Meméria e Ideologia Fotogréfi- cas: Exemplos de Desinformagio Historica no Brasil’, apresentada pelo Autor no Coliquio sobre a Investigacio da Fotografia Latino-americana, por ocasiio do evento internacional ForoFest’ 92 (Houston, Texas, mat- go de 1992) e, posteriocmente publicada em Acervo, Revitta do Anguivo Nacional, Rio de Janeiro, vol. 6, 1.1/2, jander. 1993, pp. 13-24. Boris Kossoy As diferentes ideologias, onde quer que atuem, sem- pre tiveram na imagem fotogrdfica um poderoso instru- mento para a veiculagio das idéias e da conseqiiente forma- a0 € manipulacio da opiniao publica, particularmente, a partir do momento em que os avancos tecnoldgicos da in- dustria gréfica possibilitaram a multiplicacio massiva de imagens através dos meios de informagao e divulgacao. al manipulagéo tem sido possivel justamente em tredibilidade que as imagens tém junto 4 massa, para quem, seus contetidos sao aceitos ¢ as- similados como a expressio da verdade. Comprova isso a (larga uuilizagao da forografia para a veiculacao da propa- pa a politica, dos preconceitos religiosos, entre, s dirigidos. Desqiade eras dedicados aos diferentes géneros de historia, apesar de reconhecerem ultimamente na icono- grafia uma possibilidade interessante para a reconstitui- Gao histérica, por vezes se equivocam no emprego das imagens fotogrdficas em suas investigagdes. Provavel- mente, por nao alcangarem as’ peculiaridades estéticas desta forma de expresséo, que difere na sua esséncia das demais representagdes gréficas € pictéricas.| Equivocos ocorrem pela desinformagao conceitual quanto aos fun- damentos que regem a expressio fotogréfica, 0 que os leva a estacionarem apenas no plano iconografico, sem perceberem a ambigitidade das informagoes contidas nas representagoes fotogréficas. Resulta de tal desconheci- mento, ou despreparo, o emprego das imagens do pas- sado apenas como “ilustragdes” dos textos: 0 potencial do documento nao ¢ cxplorado, suas informagdes nao Realidades e Ficgaes na Trama Fotogrdfica so decodificadas, posto que, nio raro, se encontram além da propria imagem. © que foi colocado acima também é valido para a propria histéria da fotografia, que, de sua parte, nao pode mais prosseguir enclausurada cm seus modelos cldssicos ¢ sim, buscar elementos consistentes para a compreensio de seu objeto de estudo. F surpreendente a raridade de dis- cussdes tedricas acerca de aspectos conceituais e metodo- légicos, bem como a possibilidade de novas abordagens de andlise dos temas especificos nesta drea', Quaisquer que sejam os contetidos das imagens de- vemos consideré-las sempre como fontes histéricas de abrangéncia multidisciplinar. Fontes de informagio deci- sivas para seu respectivo emprego nas diferentes vertentes de investigacao histérica, além, obviamente, da propria histéria da fotografia. As imagens fotogréficas, entretan- to, no se esgotam em_si mesmas, pelo contririo, clas sto apenas 0 ponto de partida, a pista para tentarmos desven> \dar 0 passado,/Elas nos mostram um fragmento seleciona- doda aparéncia das coisas, das pessoas, das faros, eal como foram (estética/ideologicamente) congelados num dado momento de sua existéncia/ocorréncia. 1. Tais aspectos essenciais, de amplitude multidsciplinar, ainda aguardam ppor um debate abrangente que vise, inclusive, questionar os estrcitos ¢ estéreis limites por onde tem trilhado a pesquisa nesta area do conhe- cimento, © assunto foi cratado mais amplamente por este Autor em Fo- tografia e Histria, So Paulo, Atica, 1989 (Série Principios, n° 176). Ver, em especial, 0 capitulo: “Histéria da Fotografia: Mecodologias da Abordagem’. Boris Kossoy ‘Assim como as demais fontes de informagio histéri- cas, as fotografias nfo p citas imediatamente cumentos elas sao plenas de fence eae de significados nao explicitos ¢ de omissdes pensadas, calcu- -ladas, que aguardam pela competente decifracao. Seu po- “tencial informativo poderd ser alcancado na medida em que esses fragmentos forem contextualizados na trama histéri- caem seus mtiltiplos desdobramentos (sociais, politicos, econdmicos, religiosos, artisticos, culturais enfim) que cir- cunscreveu no tempo € no espago o ato da tomada do registro. Caso contrério, essas imagens permanecerao es- tagnadas em seu siléncio: fragmentos desconectados da me- méria, meras ilustragdes “artisticas” do pasado. ‘A fotografia tem uma realidade prépria que nao cor- responde_n idade que envolveu 0 as- t0, objeto do-registro, no contexto da vida passada. Tra- ‘tase da relidaded do documento, da representagdo: uma segiinda realidade, consttuida, codificada, sedutora em sua montagem, em-sua estética, de forma alguma ingénua, ino- cente, mas que ¢, todavia, o elo material do tempo ¢ es- ago representado, pista decisiva para desvendarmos 0 passado judo, a imagem fotografica ¢ fixa,|congelada na sua condi¢io documental. Nao raro nos defrontamos com imagens que a hist6ria oficial, a imprensa, ou grupos in- teressados se encarregaram de atribuir um determinado sig- nificado com o propésito de criarem realidades ¢ verda- les. Cabe aos historiadores especialistas no estudo das imagens, a tarefa de desmontagem de construgées ideol6- a realidade interi Realidades e Ficgoes na Trama Fotogréfica gicas materializadas em testemunhos fotograficos, Decifrar_ das representagSes fotograficas, seus sig- nificados ocultos, suas tramas, realidades e ficgGes, as fina- lidades para as quais foram produzidas € a tarefa funda- mental a serjempreendida, 7, + A Imagem Fotografica: Sua Trama, Suas Realidades =p OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS INCORPORADOS A IMAGEM FOTOGRAPICA Retomo aqui, ainda que sucintamente, conceitos anteriormente estudados!, dentre os quais a formulacao que busca identificar 0s componentes estruturais de uma fotografia, isto ¢, seus elementos constitutivos ¢ suas coor- denadas de situagao. Tratam-se dos componentes que a tornam poss{vel, isto é, materialmente existente no mun- do: 0 assunto que € objeto de registro, a tecnologia que . Minha preocupagio com o desenvolvimento de quest6es tebricas que bus- cassem uma compreensio da fotografia sob uma perspectiva sociocultural teve seu inicio em meados da década de 1970. Uma primeita publicagio deste Autor sobre o tema, onde tais quest6es ainda se achavam, entre- tanto, num estégio embriondrio, surgiu com A Fotografia como Fonte His- térica: Introdugho & Pesguiva e Inserpretacio das Imagens do Passado, Sto Paulo, Secretaria da Industria, Comércio, Ciéncia e Tecnologia, 1980. O trabalho teve prosseguimento nos anos que se seguitam ampliando-se em sua proposta; muitos dos conceitos iniciais foram aprofundados, outros reformulados, dando origem ao livro Fatografia e Hiséria. Boris Kossoy viabiliza tecnicamente 0 registro e 0 fordgrafo, 0 autor oa motivado por razdes de ordem pessoal e/ou pro- issional, a idealiza ¢ clabora através de um complexo proceso cultural/estético/técnico, proceso este que con figura a expressio fotogréfica. Tal a¢éo ocorre num pre- ciso lugar, numa determinada época, isto é, toda e qual: quer fotografia tem sua génese num especifico espago ¢ tempo, suas coordenadas de situagéo. Como foi explicitado wes daformulagdo: Assunto/Fot6grafo/ Tecnologia = Fotografia elementos constitutivos produto final l Espaco ¢ Tempo coordenadas de situagio O espago € 0 tempo implicito no documento foto- grafico subentendem sempre um contexto histérico espe- cifico em seus desdobramentos sociais, econdmicos, pol{- __ticos, culturais etc, A fotografia resulta de uma sucesséo'| de fatos fotogréficos que tém seu desenrolar no interior y daquele contexto. Ela registra, por outro lado, um micro- aspecto do mesmo contexto. J @ O PROCESSO DE CRIAGAO DO FOTOGRAFO. O proceso de criagko do fordgrafo engloba a aven- tura estética, cultural ¢ técnica que ir originar a repre- sentagao fotogréfica, tornar material a imagem fugaz das coisas do mundo, torné-la, enfim um documento. Seja Realidades e Ficgses na Trama Fotogréfica durante 0 processo em que é criada, seja apés a sua mate- rializacao, conforme © destino ou uso que a aguarda, a representagao est4 envolvida por uma verdadeira trama, Para compreendé-la devetfamos desmonté-la em seus_ele- mentos constitutivos. E. 0 que faremos no texto que se se- gue, complementado pelo diagrama do Quadrol Na imagem fotogréfica, encontram-se, indissociavel- mente incorporados, componentes de ordem material que so os recursos técnicos, épticos, quimicos ou eletrénicos, indispensaveis para a materializacao da fotografia ¢, os de ordem imaterial, que s8o os mentais ¢ os culturais. Estes Liltimos se sobrepGem (hierarquicamente) aos primeitos e, com eles, se articulam na mente e nas agdes do fordgrafo ao longo de um complexo. processo de criacéo. Seja em fungao de um desejo individual de expres- sdo de seu autor, seja de comissionamentos especificos que yisam uma determinada aplicagao (cientifica, comercial, educacional, policial, jornalistica etc.) existe sempre uma motivagdo interior ou exterior, pessoal ou profissional, para a criagdo de uma fotografia e af reside a primeira opgio do fordgrafo, quando este seleciona 0 assunto em fungao de uma determinada finalidadelintencionalidade. Esta motiva- ¢fo influird decisivamente na concepedo e construgio da imagem final. ‘Oassunto, tal como se acha representado na imagem fotografica, resulta de uma sucessao de escolhas; é fruco de um somatério de selegoes de diferentes nacurezas — ideali zadas e conduzidas pelo fordgrafo — selecies essas que ocor- rem mais ou menos concomitantemente ¢ que interagem ent si, determinando o cardver da representagio. Tais op- Boris Kossoy ges sejam isoladamente, sejam no seu conjunto, obede- cem A concepedo e conformam a consérueao da imagem. Poderfamos destacar as mais habituais que, em geral, se confundem com a prépria pritica, isto é, séo etapas ine- rentes ao fazer fotogrifico: = (a. ¥elegao do préprio: &. selecdo de equipamentos (camera, objetivas, filtros etc.) € materiais fotossensiveis (natureza ¢ tipo de filmes); selegéo do “quadro”, ou do enquadramento do assun- to, construgao criativa esta denominada geralmente de composicao; trata-se da organizagao visual dos elemen- tos constantes do assunto no visor da camera com o propésito de se alcangar, segundo deverminadas condi- ses de iluminagao, um certo efeito pléstico na imagem final; ~ d selecio do momento; implica a decisio de pressionar obturador num determinad stante visando a ‘obten- Gao dé um resultado determinado/planejado; a experién- cia (apoiada na indicacio do fotdmetro) estabelecerd qual a relagao velocidade/abertura do diafragma a ser empre- gada para que se logre a exposi¢éo correta do filme & luz que, naquele preciso instante, ilumina 0 assunto; @ selegio de materiais e produtos necessétios para 0 processamento do filme negativo ou positivo além das demais operagées do laboratério fotografico incluindo- se cépias ou ampliacoe: fiselecio de ibilidades destinadas a produzir deter- mninnda “amosfee na imagem final; tratam-se das in- terferéncias diretas na imagem - ou em alguma de suas Realidades e Ficgbes na Trama Fotogrdfica partes —, realizadas durante o processamento no labo- ratério com o objetivo de atenuarem ou dramatizarem a representagao. Em fungao do exposto cabem algumas consideracées de ordem conceitual que se referem 2 materializaggo do- cumental da imagem fotogréfica. A imagem é a propria cristalizagao da cena na bidimenséo da superficie forossen- sivel..A imagem fotografica contém em si o tegistro de um dado fragmento selecionado do realy6 assunty (recorte es- pacial) congelado num determinadd DUALIDADE ONTOLOGICA DOs CONTEUDOS FOTOGRAFICOS A image réfica forne ciona sempre comokocumento icon dada realidacle. Trata-se de um testemunho que contém evidéncias sobre algo. Retomando criticamente os concel, '0s de indice ¢ fcone em relagio a fotografia, temos: rovas, indicios, fun- L indice: prova, Constatacao documental que 0 objeto, 0 “essants representado, tangivel ou intangivel, de fato. ‘existiuocorreu; qualquer que seja 0 consetido de uma ‘Ografia nele teremos sempre o rastro indicial (mar ca luminosa deixada pelo referente na chapa fotogré- fica) mesmo que esse referente te a sido artificialmente produzido, i “omprovac4o documental da aparéncia do assunto © semelhanca que o mesmo tem coma imagem fixa- i isto em fungio da caracteristica peculiar © Totogréfico cuja tecnologia possibilita a ob- tengo de um produto iconogréfico com elevado grau de semelhanca com o referente que the deu origem. Entretanto o indice e 0 {cone sao inerentes a0 regis- tro fotogréfico e, como tal, néo podem ser compreendi- Boris Kossoy dos isoladamente, isto é, desvinculados do procesto de cria- 20 do fordgrafo (quando se deu a construgao da repre- sentagio). Vimos que ¢ 0 fotdgrafo quem, a partir do mundo visivel, clabora expressivamente 0 testemunho. ey documento. Assim, a indicialidade iconogréfica que dé corpo a evidéncia ¢ conforma o registro forogréfico néo independe do ato criativo conduzido pelo fordgrafo du- tante a producio da representacio, ao contrétio, € a sua concretizagao codificada. O {ndice iconogréfico compro- Yaa ocorréncia/aparéncia do referente que 0 fordgrafo pre- tendeu perpetuar * Isto é tanto mais verdadeiro na medida em que mais os acercamos do amplo espectro de imagens produzidas (criadas) pelos profissionais dla fotografia. E, obvio que nao deisamos de considerar nesse percurso te6rico as surpresas que advém da paralisagao forogréfica da acéo, do gesto ¢ Que nao podem ser previstas nem controladas precisamen- te; mas que podem, no entanto, ser exploradas criativamen- te, abrindo espaco para novas manipulacdes estéticas/ideo- légicas. Um campo fértil que sempre se ofereceu (ou mais exatamente, a partir do progresso da tecnologia fotografica que viabilizou industrialmente o surgimento de materiais sensiveis cada vez mais rapidos emelhores sistemas dpticos), cm fungio da telagdo fiagmentagtolcongelamento, condicéo fundante da fotografia que inaugurou uma nova visualida- de, uma nova forma de entendimento do mundo. Apesar de sua vinculacio documental com o referen- te, 0 testemunho que se vé gravado na fotografia se acha fundido ao( proceso de criagai’do fordgrafo. O dado do real, registrado forograficamente, corresponde a um produto Realidades ¢ Fiegdes na Trama Fotogrdfica documental elaborado cultural, técnica e esteticamente, portanto ideologicamente: registroferiagto, Trata-se, como vimos, de um bindmio indivistvel amalgamado na imagem forografica: dualidade ontolégica que convive perenemente nos contetidos forogréficos. Quadro 2 IMAGEM FOTOGRABICA, DOCUMENTOIREPRESENTAGAD IMAGEM FOTOGRAFICA DOCUMENTO [do real) (materializagao documenta] REGISTRO [obtido através de um sistema de (Processo de) CRIAGAO!CONSTRUGAO [elaborado pelo fotdgrafo] representacio visual] Boris Kossoy Realidades ¢ Ficgdes na Trama Fotogrifica ~» AS REALIDADES DA FOTOGRAFIA € gerada (seria o momento em que o referente reflete a luz que nele incide sobre a chapa sensfvel ¢ a imagem € gra- vada; é 0 indice fotografico, provocado por conexio fisica, como assinalou Pierce). Findo 0 ato a imagem obtida jd se integra numa outra realidade, a segunda realidade, Tega Tadd a tealidede do. aananiy epresen- grafica, nao importando qual seja o suporte no qual esta imagem se encontre gravada. O asswnto representada &, pois, este fato definitivo que ocorre na dimensao da imagem fo- tografica, imutével documento visual da aparéncia do_as- sunio selecionado no espaco e no tempo (durante sua primeina vealidadé).— A segunda realidade é, a partir do conceito acima, a sente de um passado inacesstvel. Aoea ena ouerooe) (fia que vemos} seja 0 -artefato fotografico original obtido na época em que foi produzido, seja a imagem dele reproduzida sobre outro suporte ou meio (fotografico, impresso sob diferentes formas, elettdnico etc.), scrd sem- re uma segunda realidade, O assunto representado configura o contetido explicito da imagem fotogrdfica: a face aparente e externa de uma. ‘imicro-histéria do pasado, cristalizada expressivamente. esse aspecto visivel a realidade exterior da imagem, torna- da documento. F esta a sua pee 2 todas as imagens fotograficas ¢ que sé-constitui em sua Segunda (realidade) , ~~A fotografia implica uma transposicdo de realidades: ransposigao da realidade visual do assunto selecionado, Pretende-se, aqui, retomar os conceitos de primeira © segunda realidades, de realidade exterior ¢ de realidade in- tertor, nogbes essas que desde hé muito vimos utilizando € que integram os fundamentos estéticos que propomos Para a compreensio interna do documento/representagio fotogrifica. A utilizacdo de tais conceitos serd recortente ao longo dos textos que se seguirao, A primeira realidade & 0 préprio passado. A primeira tealidade ¢ @ reilidade do assunto em si na dimensio da vida pasada; diz respeito, & histdrta particilar do aduiiis independentemente da rep SO eee Posterior a ¢la, como, também, ao contexto deste asunlo” no momento do ato do registro, E também a realidade d agbes € técnicas levadas a efeito pelo Fotdgrafo diante do de criagao —e que culminam com a gravaGio da aparéncis~ do assunto sobre um suporte fotossensivel eo devido” i determinado expapo e tem ficos diretamente conectados a0 las (Toda ¢ qualquer imagem forogréfical contém em si, oculta ¢ internamente, uma histéria: € a sua realidade in terior, abrangente € complexa, { /isivel Fotograficamente € inacessivel fisicamente € que se confunde com a primei- ra realidade em que se originous A imagem fotografica € por um tinico momento, parte da prinigira realidade: o instante de curtesima dura, $40 em que se dé o ato do registro; o instante, pois, em que Boris Kossoy —™ 0 contexto da vida (primeira realidade), para a realidade da representacio“fimagem forogréfica: segunda realidade), trata-se pois, também, de uma transposi¢io de dimensées, A realidade da fotografia nao corresponde (necessa. tiamente) a verdade histdrica, apenas ao registro expres- sivo da aparéncia... A realidade da fotografia reside nas muiltiplas interpretagdes, nas diferentes “leituras” que cada receptor dela faz_num dado momento; tratamos ois, de uma expresso peculiar que suscita intimeras in-_ terpretagdes. “So miltiplas, pois, as realidades da fotografia. (O Quadro 3 nos auxilia a ‘visualisarmos” esse conjunto de abstragées, particularmente quando temos diante dos olhos alguma fotografia que nos interessa analisar) Veremos, a seguit, como a imagem forogréfica dé margem a um pro- cesso de criagito de realidades Realidades ¢ Ficgdes na Trama Fotogrifica Quadro 3 REALIDADE EXTERIOR E REALIDADE INTERIOR DAS IMAGENS “ASUNTD regen Cepresesagaa) Idimenséo da imagers Fotogréfica} 2# realidade REALIDADE 1CT=RIOR [nivel do documenco] oaparente de oun eerie ESPAGO e TEMPO ke do realictade = Ptanpave ivrerion [além do documento] occulta * Mecanismos Internos da Produgao e da Recepgao das Imagens: Processos de Construgao de Realidades* Investigagées tedricas que temos desenvolvido e di- vulgado em diferentes oportunidades tém sido centradas na detec¢do e explicitacio das muiltiplas realidades que se acham fluidas na representagao fotogréfica e/ou que dela emanam, com o objetivo de trazet alguma luz para a com- preensio dos mecanismos internos que regem a produgito ca recepedo das imagens. Tratam-se de mecanismos mentais identificados por dois processos que poderiam ser sinteticamente nas constatacées abaixi =e As idéias centrais deste texto foram extraidas da conferéncia "A Realida- de Fotogrifica na Construgio do Imagindrio” proferida em 6 de julho de 1993 em Porto Alegre, no contexto do evento Encontros com a Imagem, promovido pela Secretaria Municipal de Culeara de Porto Alegre ¢ Uni- versidade Federal do Rio Grande do Sul. Boris Kossoy precesso de construsao da interpretagad] isto & a recepeao a obra forogrifica por parte dos diferentes re pion suas diferentes leituras em precisos momentos da histér ____Sio esses 0s processos que encerram, em sua abran- géncia, possivelmente, os meandros da experiéncia foroent fica; na tentaciva de desmontagem de tis processor nex mos contribuir para os Fundamentos da esti particule, da fotografia. Além disso, é a partir desta desmontagen, ue se pode perceber, em que medida a fotografia, eee an Sua produ, sea em sua recepelo, sempre dd marger a lum processo de construgio de realidades (Quadro 4). -w A PRODUGAO DA IMAGEM ___ A produsio da obra fotogrifica diz rspeito a0 con- Junto dos mecanismos intemnos do. proceso de consongaa de representagiio, concebido conforme uma certa intengio, construfdo © materiaizado cultural, esttica/ideologiea « yy a acordo com a visio particular de mun- Apesar de toda a credibilidade que se atribui a foto- grafia enquanto “documento fie!” quimico direto do real etc, devemos admitir que a obea forogrifica resulta de um somatério de construgées, de montagens. A focografia se conecta fisicamente ae seu Ferente, ~ e esta é uma condicio inerente ao sisteme da reptesentacio forogrifica — poréim, através de um filtro eal tural, esético € eécnico, articulado no imagindrio de seg dos fatos, rastro fisico- Realidades e Ficgées na Tama Fotogrdfica ctiador. A representagio fotogréfica ¢ uma recriagio do mundo fisico ou imaginado, tangfvel ou intangfyel; 0 as- sunto registrado € produto de um elaborado proceso de criagio por parte de seu autor. Vimos que o fordgrafo constrdi o signo, a represen- tagdo. Nessa construgio uma nova realidade € criada. Longe de langarmos diividas quanto & existéncia/ocorrén- cia do assunto representado, ou mesmo de sua respectiva aparéncia, devemos considerar que, do objeto & sua repre- sentagao, existe sempre uma transposi¢gao de dimensdes ¢ de realidades. O assunto uma vez representado na imagem é um novo reak interpretado ¢ idealizado, em outras pala- vas, ideologizado. E ébvio que estamos diante de uma nova realidade, a da imagem fotogrdfica, que h4 muito chamei de segunda realidade. Esta diz respeito & realidade fragmentétia do assunto, ao mesmo tempo em que € a realidade da representagao enquanto tal. E este elo material de ligagao ao passado que tomamos como referéncia, como documento de um dado tema na dimensdo da vida, isto é, em sua primeira reali- dade. & justamente a realidade da representagio (veiculo da meméria) que serd apreciada, guardada ou destrufda fisicamente, interpretada enfim. A primei) dead fato passado em sua ocorréncia espaci assim, “substituida”, tornada signo expressivo, “signo da presenga imagindria de uma auséncia definitiva’, como for- mulou Fritz Kempe’. 1. Apud Jean Keim, La phoingraphie et Uhomme, socologie et pycologie de la photographie, Paris, Casterman, 1971, p. 127. Boris Kossoy _-— ARECEPGAO DA IMAGEM i A bese da imagem subentende os mecanismos ‘ernos do processo de construgio da interpretagao, proces s s i A : a i eters funda na evidéncia fotografica e que € ela- Dorado no imaginitio dos receptores, em conformidade ‘Om seus repertérios pessoais culturais, seus conhecimen tos, 6 i é : a ee ideolégicas/estéticas, suas conviccées rais, éticas, religiosas, seus F > 7 interesses econémi - fissionais, seus mitos, Sai Asi 5 semintimagens forogrificas, por sua natureza polisémica, Permitem sempre uma leitura plural, dependendo de quem @apreciam. Estes, jf trazem embutido no espitito, suas prd= Prias imagens mentais preconcebidas acerca de determinados assuntos (os referentes). Estas imagens mentais funciona como filtro: ideol¥gicos, cultura, morals, &icos eve. Tals filtos, tad nds os temas, sendo que para cada recep ton ini Vidualmente, os mencionados componentes inieesemnn, tre si, atuando com maior ou menor intensidade Sabemos que muito do que rege 0 comportamento de cada um diante das imagens ~ em termos de percep. (Povo, raga, pats...) — esté definitivamente vinculado ao seu repertério cultural particular. Dependendo, porém, dos « timulos que determinadas imagens focogeéticascausam ern oso espitito nos veremos, quase sem perceber, interagin- do com elas num processo de recriagio de aoe Oe: e - nhecidas ou jamais vivenciadas. ae wt Alpumsst ens nos levam a rememora Al agens no smorar, outras moldar nosso comportamento; ou a c os onsumir algum pro- Realidades ¢ Fiegies na Trama Fotogrifica duto ou servico; ou a formar conceitos ou reafirmar pré- conceitos que temos sobre déterminado assunto; outras desperta sejos Por definicao, as imagens visuais sempre propiciam 5 para os diferentes teceptores que as diferentes lei apreciam ou que dela se utilizam enquanto objetos de es- tudo, Por tal razio elas se prestam a adaptagdes e inter- prewag6es “convenientes” por parte desses mesmos recep- tores, sejam os que desconhecem 0 momento histérico rettatado na imagem, sejam aqueles engajados a determi- nados modelos ideoldgicos, que buscam desvendar signi- ficados ¢ “adequé-los” conforme seus valores individuais, seus comprometimentos, suas posturas aprioristicamente estabelecidas em relacio a certos temas ou tealidades, em funcio de suas imagens menéais.A imagem forogréfica, com toda a sua carga de “realismo”, no corresponde nece “Hamente A verdade histérica, apenas ao registro (expressi- vo) da aparéncia. font pls, de ambigilidades. ‘A fotografia estabelece em nossa meméria um arqui-_ vo visual de referéncia insubstitutvel para o conhecimento do mundo, Essas imagens, “entretanto, wiia vez assimiladas a ments, deixam de ser @stitica’) tornam-se (di (namicas® fluidasle mesclam-se a0 que somos, pens \fazemos: Nosso imagindrio reage diante das imagens visuais de acordo com nossas concepgées de vida, situagao sécio- econémica, ideologia, conceitos e pré-conceitos. Nao obstante todo 0 conhecimento e experiéncia que temos acumulado ao longo de nossas vidas — que injeta- mos quando de nossa leitura das imagens — necessitamos ainda recorter & imaginagdo. Por outro lado, somos seres Boris Koscoy carregados le emogio. E, felizmente nossas emocées nfo. sio programadas, nossa ceagbes emoclonais pee on fungio dos estimulos externos, imprevisivels Ainda b que € assim, caso contrério seriamos robés, teplicar a E por tudo isso que o conteddo das ima, agens visual Provoca em cada um de nés impactos diferentes; em fan Sa0 disso, também, ¢ impossivel haver “inter od mposs pretacSes-pa- dro” sobre o que se vé registrado yas imagens, A imagem fotogréfica ¢ 0 relé que aciona Binsao para dentro de um mundo representado (tangivel ‘ow intar Intangivel), fixo na sua condi¢go documental a i moldavel de acordo com nossas imagens mentais, reece Fantasias e ambig6es, nossos conhecimentos eamaiedelen ossas realidades ¢ nossas ficcdes, A imagem foto, cilia ubipas, na mente do receptor 6 Rio ee nee prceot JyPPRocEssos pe CONSTRUGAO DE REALIDADES © processo de construsso do signo fotogrifico im- plica necessariamente a criagio documental de uma reali- dade concteta. Trata-se, entretanto, da realidade d, repre- Sentagio que, nao raro, conflita com a realidade materia objetiva, passada. Do ponto de vista do recepton hf wr confronto entre o documento presente (otiginado no pas. sado) com o préprio passado inatingivel fisicamente, = nas mentalmence, subjetivamente, “ _ Eo conftonto entre a realidade que se realidade (a que se inscreve no documento, a jo $40) ~ attavés de nossos filtros culeurais, csidticolideclogt Realidades ¢ Fiegies na Teama Fotogrifica care uc na: a primeira realidade (a do fato passado), recuperado apenas de maneira Fragmen- téria por referencias (pleno de hiatos) ou pelas lembran- gas pessoais (emocionais). Hé, pois, um conflito te entre o vistvel ¢ -invisivel, entre o aparente € 0 i Hi, enfim, umaeensdo perpétid que se estabelece no espi- tito do Fragaaean. lo diante da imagem fotogrdfica em fungao de suasGmagens mentai® ny A tealidade passadla € jixa, imutdvel, irreversiveh se te- fere & realidade do assunzo no seu contexto espacial poral, assim como & da produgao da representacao. E ‘ontexto da vida: primeira realidade, A Fotografia, isto é,0 registro criativo daquele assunto, corresponde & segun-| da realidade, « do documento. A realidade nele registradal Em ambas as etapas, seja na elaboracao da irtagem, quando do momento de sua concep¢éo/construgio/mate- tializagdo por parte do fordgrafo diante de seu tema, seja durante a trajetéria dessa mesma imagem a0 longo do tem- po ¢ do espaco, quando apreciada, interpretada e sentida pelos diferentes receptores, nao importando qual scja o objeto da representacao ~ ou qual seja o vinculo que pos- sa cyentualmente existir entre 0 receptor ¢ essa rep: taco — haverd sempre um complexo ¢ fascinantey proces de construgio de realidades) \_/ ‘At eside, possivelmente, 0 ponto nodal da expresso fotogréfica. Seria esta, enfim, a realidade da fotografia: uma realidade moldavel em sua produgao, fluida em sua recep- Gio, plena de verdades explicitas (anélogas, sua realidade vewt Boris Kossoy exterior) ¢ de segredos implicitos (sua histéria particular, sua realidade interior), documental porém imagindria. Tra. tamos, pois, de uma expresso peculiar que, por possibi- litar intimeras representacdes/interpretaces, realimenta 0 imagindrio num processo sucessivo ¢ interminavel de cons- trugio e criagio de novas realidades, Realidades ¢ Fiegées na Trama Fotografica Quadro 4 MECANISMOS INTERNOS DA PRODUGAO E DA RECEPGAO DAS IMAGENS PROCESSOS DE CONSTRUGAO DE REALIDADES — processo de construsio dla RUTRESENTACAO fats do WAL e, em Fangio — desuae mscms Menus] stag e TEMPO, | y & wocesos de conserugio de realidades | ——- P eae partis do confropto enirea 2" realidadell*realidade interpretagses tensio perpétua que se estabelece no espirito do zecepcor, em angio de suas IMAGENS MENTAIS) 2 Mundo Real e Mundo Ficcional ‘A chamada “fotografia documental” abrange o regis- tro fotogréfico sistemAtico de temas de qualquer natureza captados do real; no entanto, existe, em geral, um inte- esse especifico, uma intengao no registro de algum assunto determinado. Fem funcio disso que surgiu o habito de se separar ou dividir-a forodocumentacao por classes 0 ‘Categorias de-documentacio: jornalistica, antropol6gica, exnografica, social, arquitetdnica, urbana, geogrifica, tec- “Rolbgica.cte, Essa clasificagbes sio, nfo raro, pouco con- Vincentes posto que permitem leituras sob diferentes abor- dagens, de acordo com a formagio ou interesse pessoal dos diferentes receptores. Uma tinica imagem reine, em seu contetido, uma série de elementos icénicos que fornecem informagées para diferentes dreas do conhecimento: a fo- tografia sempre propicia andlises € interpretagdes multidis- ciplinare, TO chamado documento fotogréfico nao é inécuo\A imagem fotogréfica nao € um simples registro fisicoqui- mico ou eletrnico do objeto fotografado: qualquer que seja 0 objeto da documentagéo nao se pode esquecer que canny a fotografia ¢ sempre uma re Hl a fotografia é sempre uma representacao a pa: intermediada pelo fordgrafo que a produ wa 0 resultado d 10 de criagtafvo ultado de um processo de criagdolconstrugiio técnico, Sulttal etetico elaborado pelo fordgrafo, A imagem de quale objeto ou situagéo documentada pode ser dra, é es . ae rtaada de acordo com a énfase pretendida lo fotdégrafo em fungio da finali i : alidade ou aplicaca ee plicagao a que ae universo da moda fem-se uma personage! modelo tepresentando no interior de um cendrio etiadl tral. Nao deixa de ser uma tealidade da € verdade, mas também, DO, 8% constitui num fato social que ocorre no es} Temos agora uma segunda realidade que. i imagens, dos documentos, das representacoes, Temoe Portanto uma fencsinquee tornada realidade concreta uma vez que veiculada pela midia e consumida en, a p iia ¢ consumida produto. es Af de moda exemplifica muito bem como o gaunt ficcional que a envolve se torna um mundo real oe foto de moda consome-se, a0 mesmo tempo, dois Produtos que se mesclam num todo indivistvel: a roupa, 0 ee Propriamente dito € 0 seu entorno, o mundo Accional (ay i : fe (apenas na aparéncia) que envolve a cena, « Was: & Pose, 0 gesto, Neste processo consome-se um sstilo, uma estética de vida codificada no conteddo da sapere nela se acha implicito 0 seripea ser inter- Pretado pelo potencial consumidor além do estidio, um Realidades e Ficgdes na Trama Fotografica padrao de comportamento a ser seguido na realidade conereta. Tem-se, assim, num extremo, durante a producio, a construggo de um mundo ficcional (calcado no mundo real); no outro, durante a recepgao, que € o que conta do ponto de vista social, 0 mundo ficcional tornado real — objeto de consumo. O irreal ou ficcional da publicidade de moda é mero artificio pata que os empresdrios da indiistria da moda possam atingir seu. ptiblico consumidor, A criagio desse ‘mundo irreal no estddio ou fora dele (a coreografia estudada, a iluminagao dramdtica_ctiando-uma atmosfera deter minada, a representagio teatral das personagens-model em suas poses € ati ) no se esgota em si mesma, visa name Prevende-se, naturalmente, a concretizagao material da idéia: o seu respective consumo, um consumo que se restringe, é verdade, a um determinado grupo socioeconémico. No mundo da publicidade, vimos durante décadas a disseminagdo de micro-histérias diabélicas destinadas & massa. Antincios que promovem, por exemplo, a imagem do cigarro associando 0 seu consumo & determinagao, ao bem-estar ¢ a0 prazer Ménsagens codificadas pela retérica da propaganda de um estilo de vida a ser imitado, Men: sagens veiculadas através de histérias em que contracenam personagens fortes, belas, introspectivas, extrovertidas, clegantes, despojadas, satidaveis... sempre representandoemr ambientes selecionados, em locagdes que mais se coa- dunam com a marca do cigarro. Mensagens sofisticadas carregadas dos mais ambjguos sedutores apelos na sua proposta de alcangar 0 maior consumo possfvel, uma proposta Ce hae weg que visa luctos ndo importando os meios ~ ¢ isto é real, ic¢ao € 0 artificio. A morte o tiltimo ato. —P POs-PRODUGAO E FICGAO DOCUMENTAL No caso das fotografias que serio veiculadas pelos meios de comunicacao 0 processo de construgito da represen- ‘agi nfo se finaliza com a materializacéo da imagem atra- vés do processo de criagdo do fordgrafo. Nao é nenhuma novidade que a produgo da representacao, tal como é empreendida pelo fordgrafo, tem seqtiéncia ao longo da editoracao da imagem. E 0 que poderiamos chamar de pés- predi, isto & quando a imagem se vé objeto de an série de “adaptacées” visando sua insercao na pagina do jonal, da tevista, do cartaz tc, Tratam-se de-alteracdes fi G, Tratam-se de-attetagées f- sicas em sua forma, como por exemplo, os “cortes” ou mautilagées que se faze, ge lornato oegial soe Abjetive aE GUE or implesmene "se tate deter- minado espago da pégina, ou que mostre apenas parte do assunto, segundo algum interesse determinado do editor Neste sentido, so muitas as possibilidades de mani. pulagio elaboradas pelos meios de comunicacio impressa Desde sempre as imagens foram vulneraveis 2s alteracbes de seus significados em fungdo dortculo que recebem, dos textos que “ilustram’, das legendas que as acompanham da forma como so paginadas, dos contrapontos que esta, belecem quando diagramadas com outtas fotos ere, Tudo isso além de outras manipulagdes como a reutilizario de uma mesma fotografia para servir de prova numa situa SURAT CIAICES Conds ROP UNES, PSE A Resr tee RE eG eek fee 40 diferente — e, por vezes, até antagdnica ~ daquela para a qual foi produzida originalmente através, simplesmen- te, como jé foi dito, da mera invengao de uma nova le- genda ou titulo. Obtém-se assim, por meio da composigao imagem- texto, um contetido transferido de contexto: um novo docu- mento ¢ ctiado a partir do original visando gerar uma di- ferente compreensio dos fatos, os quais passam a ter uma nova trama, uma nova realidade, usa outra verdade. Mais uma ficgdo documental, De uma forma geral — ¢, mais especificamente, em matérias politicas ou ideolégicas —, a imagem que ser apli- cada em algum velculo de informagio ¢ sempre objeto de algum tipo de ‘tratamento” com o incuito de direcionar a Ieitura dos receptores. Ela ¢ reelaborada — em conjunto com o texto ~ ¢ aplicada em determinado artigo ou ma- téria como comprovagio de algo ou, entao, de forma opinativa, com o propésito de conduzis, ou melhor dizen- do, controlar ao maximo o,ato da receppao numa diregao determinada: sao, enfim, as interpretacdes pré-constru(das pelo proprio veiculo que iréo influir decisivamente nas mentes dos leitores durante 0 process de construcao da interpretagao. Com a digitalizagao ¢ os softwares “especiais” as ope- ragbes de falsificagdes des imagens fotogréficas tornaram- se “sedutoras”, tais como, retoques, aumento ¢ diminui- cio de contrastes, eliminagao ou introducao de elementos na cena, alteragio de tonalidades, aplicagéo de texturas entre tantos outros artificios. Ampliam-se cada vez mais, através dos laboratérios de pés-producdo digital, sofistica- das possibilidades tecnoldgicas de montagens estéticas ¢ ideolégicas das ima r i igeNS ¢, por conseguinte, de criacd novas realdades (Quadeo 5). ee Quadro 5 POS-PRODUGAO E FICGAO DOCUMENTAL Proceso de construgio da representagito PRODUGAO ELARORADA PLO FOTOGRAFO macetialzagio documencal x POS-PRODUGAO EDITORAGKO (ESTETICN/IDEOLOGICA) ‘manipulagdes de toda, ordem: imagem/texto mensagem direcionada processos de construgao de tcalidades Processa de construgito da interpretagato RECEPCAO. = > LEITURAS/INTERPRETAGOES CONTROLADAS 56 Proposigao Metodolégica de Andlise e Interpretacao das Fontes Fotogrdficas: A Desmontagem do Signo Fotografico © que hé por tras do olhar e da pose da personagem deste retrato? O que existe nas fachadas das casas, naque- la janela semicerrada, naquele grupo de pedestres reuni- dos, no movimento da rua que vejo nesta vista fotografi- ca, enfim, que escapa a minha compreensio? Seja enquanto documento para a investigagao histérica, objeto de recor dacao ou elemento de ficcao a fotografia esconde dentro de si uma trama, um mistétio. E por detrés da aparéncia, da visibilidade registrada pela imagem fotogrifica, que se esconde o-enigma que pretendemos decifrar. Complementa a idéia da desmontagem do signo fo- togréfico, além do conjunto de formulagées tedricas vis- tas alé aqui, a investigagio sistematicamente conduzida segundo metodologias adequadas de andlise ¢ interpreta- cio. Nio € 0 caso de nos determos aqui na explicitagao dessa metodologia (desenvolvida especificamente para a anilise iconogréfica ¢ a interpretagio iconolégica como cixos para investigagao das fontes fotogrdficas) ja que foi, a mesma, exaustivamente explicitada em Fotografia Historia. grifica sto defini revelam dados concretos sob respeito a sua matetializacio doct icénicos nele gravados. Boris Kossoy ANALISE ICONOGRAFICA Na andlise iconogréfica uma verd, do documento ¢ empreendida, Duas ] nee inhas de andlise mul- nto forogrsfico e no 5 conté porte que © contém ¢ que tem por meta: BUavIO! espago, tempo); 2a Tecuperacao do invent: na imagem foto, sa identifi contetido, Arlo de informagoes codif Otogréfica: trata-se de obter uma mi casio dos detalhes icOnicos que compos icadas inucio- jem seu As i 6 nformagées obtidas por meio da andlise icono- Htivamente titeis, na medida em que nos re 0 documento no que diz umental aos detalhes 5g Realidades e Ficgoes na Trama Fotogrfica Busca-se, através da anilise iconografica, decodificar a realidade exterior do assunto registrado na representa- séo fotografica, sua face visivel, sua segunda realidade. INTERPI (AGA ICONOLOGICA E 0 momento de lembrarmos que 0 documento fo- togrifico € uma representagdo a partir do real, uma repre- sentagao onde se tem registrado um aspecto selecionado da- quele real, organizado cultural, técnica ¢ esteticamente, portanto ideologicamente, © chamado testemunho foto- gréfico, embora registre em seu contetido uma dada situa do do real — o referente — sempre se constitui numa ela boragao, no resultado final de um processo ctiativo, de um modo de ver e compreender especial, de uma visio de mundo particular do fotégrafo; ¢ ele que, na sua media- Gao, cria/constrdi a representagao. Nesta altura nfo podemos, mais estabelecer essa ou aquela “regra? interpretativa posto que, embora 0 docu- mento siga sendo a nossa referencia, nos situamos além dele, nos cftculos das idéias, na esfera das mentalidades. Dois caminhos basicos temos sugerido para essa decifragao: I.resgatar, na medida do posstvel, a historia propria do assunto, scja no momento em que foi registrado, seja independentemente da mesma representacéo; 2,buscar a desmontagem das condigées de produgio: 0 processo de criagdo que resultow na representacéo em estudo, oculta, seu significado iftar a PARTE 2 “t teptesentacao fotografica, dade iconografica, DECIFRANDO A REALIDADE INTERIOR DAS IMAGENS DO PASSADO Quadro 6 ANALISE ICONOGRAFICA E INTERPRETAGAO ICONOLOGICA 2" Realidede any 1 UT Renee | SE a ihe Da esquerda para a divcita v2 i s se 0 Paldcio do Go Interior e Justiga, Policia Central rae da, Edificios erigido, ‘ Secretarias do Z 5 Secresarias da Agricultura e Fazen- : ¢ remodelados segundo padrées consagrados de ci vilizagdo estabelecem uma cane atmos ta istoric ae sfera nova e ficcional ao hissbrico pdreo Vista do Largo do Palacio no rinets a Gandy, Cato Pos. Coleao do fret’ “ile XX Foto de Guilherme ‘¢40 do autor, O Cartao Postal: Entre a Nostalgia e a Meméria* O advento do cartio postal, coincidentemente ao sur- gimento das revistas ilustradas entre outras formas de di- fusio impressa da imagem pictdrica e, em especial da fo- togréfica (tornadas tecnicamente possiveis na passagem do século XIX para o XX), representou uma verdadeira revo- lugdo na histéria da cultura. As imagens mentais do cha- mado mundo real e as do universo da fantasia individual e coletiva se tornam finalmente acessiveis para a grande massa. Um mundo portatil, fartamente ilustrado, passivel de ser colecionado, constituido de uma sucessao infindével de temas vem finalmente saciar 0 imaginério popular. Com o nascimento do novo século, é inaugurada, também, aera da imagem multiplicada para 0 consumo da massa. Consolida-se, a partir daquele momento, o que se convencionou chamar de “ciyilizacéo da imagem”, cujas Texto editado de palestra apresentada pelo autor no II Congtesso Lati- no-Americano sobre a Cultura Arquiteténica e Urbanistica, no médulo “© Valor Sentimental das Cidades ¢ suas Edificagées: Leitura do Cotidi- ano” (Porto Alegre, agosto de 1992). Boris Kossoy origens remontam ao século anterior, com a invengdo da fotografia de seu subseqiiente desenvolvimento texnolé. gico, industrial e formal, fruto de um inusitado consumo impulsionador de suas inimeras aplicages: comerciais, artisticas, cientificas e promocionais, : Do modesto — em termos gréficos visuais — vef- culo de correspondéncia que era o cartéo postal no mo. mento de sua introdugao nos principios da década de 1870 (durante a guerra franco-prussiana), &s sofisticadas edigdes do comeco do século XX — que nesta altura jé petmitiam a teproducio dos meios-tons fotogrdficos urn impressionante salto foi dado em termos de consumo produsio industrial e comercial. Em 1899, quando do inicio da “idade de ouro” dos cartes postais, a Alema. nha produziu 88 milhoes de unidades, seguida pela In- glaterra com 14 milhdes, Belgica: 12 milhoes e Franca: 8 milh6es. Jd em 1910, a Franca liderava essa industria produzindo nada menos que 123 milhdes de postais!. Refletindo sobre tais nimeros, é de se imaginat em que medida a notével proliferagéo deste meio de expressio € correspondéncia e, também, objeto de colecdo, nao teria influido no comportamento e mentalidade doe homens em todas as latitudes. Refiro-me, por um lado, & possbi. lidade de conhecimento visual do mundo — apesar de frag- mentirio—, através das vistas ¢ paisagens dos mais diferen. tes pafses, de suas cidades, ruas, edificios e momumentos Ty Moiyres Lage dor de la carte postale, Paris, Andre Balland Ed., 1966, Realidades ¢ Ficsdes na Thama Fotogrifica histéricos, suas personagens tipicas, costumes, cotidiano, ¢ até stias catéstrofes. Por outro, a natural liberacao do ima- gindrio ficcional de criancas ¢ adultos diante de criagdes surtealistas ou das elaboradas cenas de erotismo, tema bas- ante explorado na época, ou das imagens politicas, promo= cionais ¢ caricaturescas, entre tantas outras que povoaram as faces ilustradas dos postais em inumerdveis edig6es desti- nadas a milhdes de apreciadores e colecionadores de ima- gens. Os cartes postais, independentemente da fiiria colecionista que foram objeto, particularmente no perio do 1900-1925, considerado como sua “idade de ouro”, sempre propiciaram a possibilidade imagindria de viajar para qualquer parte do mundo sem sair de casa, além de terem se prestado, obviamente, aos mais elaborados sonhos ¢ Fantasias sexuais. © novo meio de correspondéncia ¢ entretenimento nao tardou a chegar ao Brasil e, o mais recente modismo curopeu foi logo absorvido, particularmente pela camada mais abastada da sociedade brasileira. As j4 mencionadas edigdes sofisticadas estrangeiras passaram a ser importadas € colecionadas. Ao mesmo tempo, um novo mercado de trabalho, grafico, editorial ¢ fotogréfico passou a existir no Brasil. Fotdgrafos conhecidos em diferentes Estados, a par de suas atividades tradicionais como retratistas, além de editores locais, voltaram-se também para a produgio e veiculagio de fotos para postais, predominando as vistas de logradouros e panoramas de cidades, temas esses de in- teresse comercial mais imediato. Imagens do Brasil multi- plicadas pela via impressa foram, a partir de entio, incor- poradas 4 iconografia ¢ a “cartofilia” internacional. Boris Kossoy O caso de Séo Paulo poderia servir como um inte- ressante exemplo para 0 estudo do desenvolvimento dos cartes postais, em fungio do momento histérico especial = tecnoldgico, econdmico ¢ sociocultural — que a cidade vivia, momento este coincidente ao da efervescéncia colecionista mundial. A cidade, na passagem do século XIX para 0 XX, pou- co lembrava em sua aparéncia a antiga vila de feic6es colo- Riais, Sdo Paulo entrava no século com 240 mil habitantes, formidével salto populacional, se considerarmos que em 1886 contava com 47 mil. Contribuiu a corrente imigra- t6ria, em especial a italiana, para o acentuado aumento Populacional da cidade de Séo Paulo que se espraiava para além dos estreitos limites que se mantivera até entao, A nova elite abastada da sociedade paulista, detento- ra de cerca de 2/3 da produgao mundial do café, usuftui de um novo estilo de vida urbano bem ao contritio do estilo de vida dos antigos bardes do café, Esta atistocracia Se reveste de um manto de modernidade, norteia-se por valores estrangeitos, viaja regularmente para a Europa c, de Paris, Londres ¢ Berlim, remete aos familiares saudo. Sos cartes postais. F esta elite que almeja por uma capi- tal com uma nova imagem, — iconagraficamente européia?, Uma imagem constituida por edificagées que privilegias. sem em sua arquitetura os padrées consagtados de civili- zagao, Alguns arquitetos estrangeiros como Max Heh, Carlos Ekman, Domiziano Rossi, Victor Dubugras, ou 2. Tiatamos especificamente do tema em Sio Paulo, 1900, Sto Paulo, Kosmos/CBPO, 1989, ob sect O expigdo da Paulista ¢ as eclévicas moradas da alta classe, numa vista tomada em divesio ie rua da Consolagaz Vista da Avenida Paulista no principio do séeulo XX. Foto de Guilherme Gaensly, Cartéo Postal. Colegio do autor. eee mesmo brasileiros como Francisco de Paula Ramos de Azevedo, projetavam, segundo os mais diferentes estilos, as residéncias da nova aristocracia paulista. O escritério de Ramos de Azevedo, em especial, foi responsdvel por um niimero considervel de projetos de edificios priblicos, Desaparecem, nesse processo, praticamente, os vestigios da arquitetura colonial. As novas obras, sejam as mansées particulares, sejam os prédios puiblicos, assim como as Proprias vias em que se viram erigidas, foram cuidadosa- mente registradas pela fotografia e perpetuadas sob a for. ma de cartes postais, Personagem deste momento de transformacées estru- turais da sociedade paulista ¢, ao mesmo tempo, respon- savel pela difusio da nova imagem da cidade, — através de sua larga produgio profissional, que inclufa também os cartes postais —, foi o fordgrafo Guilherme Gaensly (1843-1928). Suico de nascimento chegou ao Brasil ain- da em crianga ¢ aqui viveu e trabalhou até sua morte. Sua atividade forogrifica pode ser dividida em dois perfodos: inicialmente, em Salvador, cidade em que viveu desde os cinco anos de idade € onde se estabeleceu como fordgrafo om fins da década de 1860, ali permanecendo até os pri- meizos anos da de 1890, Um segundo perfodo tem inicio nessa década, quando se transferiu para Sao Paulo, onde steve em atividade até 1915, aproximadamente. Nos dois periodos o fordgrafo dedicou-se a0 trabalho de estudio ¢ a documentacao dos mais variados temas, deixando farto material de sua longa atividade em ambas as Areas ___ Gaensly comegou a se interessar por $40 Paulo no inf. Cio dos anos de 1890. Um mercado praticamente inexplo- Reatidades e Picgoes na Trama Fotogrdfica rado, com poucos fordgrafos a oferecerem concorréncia, Apesar dos saltos populacionais da cidade apenas cinco estabelecimentos dominavam a praca em 1891; quatro anos depois jf contavam-se onze, entre os quais o de Gaensly associado a Lindemann, No in{cio do século, to- davia, a sociedade jé havia sido desfeita, cabendo unica- mente a Gaensly a autoria das vistas de Sio Paulo obtidas entre os meados da década de 1890 até cerca de 1915. Excetuando as j4 mencionadas vistas que documen- tam a arquitetura apotestica do café que se instala nos pon- tos geograficamente nobres da capital, jamais encontramos fotos dos bairros operdrios e suas moradias. A auséncia des- sas imagens nos priva de uma documentacdo visual im- portante para o estudo das condigoes de habitagéo — e por- tanto de vida — de uma parte significativa da populacio. E isto nfo é, de modo algum surpreendente; tais temas que inexistem nas fotos de Gaensly no cram sequer cogita- dos como assuntos fotogrificos que pudessem figurar numa colegio de “vistas representativas” da cidade, seja através de postais, seja sob outra forma de divulgagao impressa. Os postais nao eram apenas vefculos de correspondéncia, mas, também, instrumentos de propaganda, particularmen- te no caso de vistas das cidades. ‘As imagens de Gaensly foram fartamente utilizadas pelas primeiras publicagées ilustradas, oficiais ou néo, num contexto promocional, interessadas em divulgar a imagem do Estado de Sao Paulo no plano internacional, Gaensly, de sua parte, veicularia amplamente sua produgio através dos cartdes postais que, como ja vimos, se encontravam em pleno apogeu. Se, por um lado, enquanto fordgrafo proprietario de um estabelecimento comercial as vistas uurbanas e rurais se inclufam em sua atividade profissional constituindo-se no seu meio de vida, por outro, ele cola- borou definitivamente para a construsio da imagem oficial da cidade: aquela idealizada pelas elites ¢ pelo Estado, a imagem de uma cidade que se “apresentava” moderna atra- vés de estilos “neocléssicos”, Os homens do poder de Sao Paulo, ao longo das dé- cadas que se seguiram, prosseguiriam com sua vocagio destruidora, demolindo e reerguendo novos edificios-mo- aumento, buscando em sua arquitetura adequar-se As ten- déncias correntes ¢ aos modelos culturais de cada momen- to. Dos edificios piblicos e particulares do passado, quase nada restou. Uma auséncia lamentével na medida em que 3. Foram raros os fordgrafos que tomaram fotos das rus de Sto Paulo aquela época. Um dees foi o italiano Vincenzo Pastore (1865-1918) que, con- femporaneamente a Gaensly, registrou também aspectos do movimento das ruas, nfo apenas as do comércio “chique” mas as dos bairros mais Populares, ou entio tomadas nas imediagbes da estagéo da Luz, ou nos arredores do comércio atacadista. Imagens preciosas posto que captadas de perto, no intetior do fato, inusitadas na iconografia fotogréfica patie listana do principio do século XX, Ao contrério das imagens higienizadas de Gaensly, deixou Pastore um importante registto da aparéncia dos ven- dedores ambulances, meninos engraxates, velhos ¢ mulheres em trajes simples, gente humilde, gente do povo, fossem eles imigeantes ou nati- YO) pessoas que também viveram ¢ trabalharam na capital paulista, ima- Bens que estabelecem — em relagao aos conhecidos cartBes postais esteti- camente produzidos com a finalidade de propaganda -, um importante contraponte histérico e sociolégico para os estudos da cidade naquele Petiodo, Sobte Pastore ver Sao Paula de Vincenzo Pastore, Sio Paulo, Ins- tituto Moreira Salles, 1997 (Catilogo da exposiczo de mesmo nome aptesentada entre 31 de janeiro a 21 de abril de 1997), a a ee eS através dessas edificagées terfamos, 20 menos, um conjun- to representativo de testemunhos histéricos ¢ aaa nicos importantes para a constatagao da mentalida gi lo tempo, assim como da capacitada mao-de-obra dos capomastri italianos, os artifices que deram corpo ao so- nho eclético do 1900 paulistano. Desta aventura dos homens restam as forografias de Guilherme Gaensly, aplicadas em publicagées diversas — cujo crédito de autoria, diga-se de passagem, é raramente mencionado ~ que inchiem os cartes postais. Estes (cat- tes), como os de outros fordgrafos ¢ ilustradores, sejam do Brasil, sejam de qualquer parte, preservam em sua es- tética uma dupla memoria: a iconogréfica propriamente dita ea mensagem escrita de afeicio e saudade enviada por algum remetente desconhecido para outro alguém, tam- bém desconhecido. Fragmentos da meméria do cotidiano de outrora nostalgicamente perdidos, vagando sem desti- no em sua trajetéria documental... além da vida. A Construgéo do Nacional na Fotografia Brasileira: O Espelho Europeu* Este é um tema que trata necessariamente de mon- tagens, de construgbes ideoldgicas subcutineas as aparén- cias contidas nas imagens fotogrificas do pasado, como nas do presente — realidades interiores que devem ser teve- ladas, explicitadas, para que aquelas imagens se carreguem de sentido ¢ se tornem, de fato, representagées decifradas € titeis a0 conhecimento histérico. Pretendo abordar o fendmeno de construgio do na- cional durante o perfodo imperial através da andlise de uma série de fotografias, um conjunto de imagens aparentemen- te comuns. Nosso exercicio ser 0 de tentarmos detectar 0 fluido ideolégico que as perpassa: sta razdo de ser, seu yerdadeiro modelo, além do iconogréfico. * Texto editado da conferéncia apresentada no 1 Encontro de Historia da Fotografia Latino-Americana Gilberto Ferrez (Rio de Janeiro, outubro de 1997) que teve por tema “A Construgio do Nacional na Fotografia La- tino-americana’, Boris Kossoy CIVILIZACAO NOS TROPICOS E PRODUGAO CULTURAL O projeto de implantagao de uma civilizacao nos tré- picos parece ser 0 cerne da questo para que se compre- enda os valores que serio enfatizados simbolicamente como representativos da nacionalidade durante o Impé- tio, Essa idéia tem sido retomada com freqiténcia quan- do se tenta compreender aquele perfodo sob uma pers- pectiva cultural. Civilizagio e Natureza s4o os componentes da for- mulagio ideoldgica da nagao, dicotomia que, segundo Ricardo Salles, era traduzida “em dois elementos consti- tutivos da nova nacionalidade que interagiam: o Estado mondrquico, portador e impulsionador do projeto civili- zatorio, € a natureza, como base territorial e material des- te Estado”. Tratava-se de incorporar e dominar a nature- za visando a edificagao de uma nagio civilizada (curopéia) nos trdpicos. Uma nagao que s6 poderia abrigar 0 homem branco, no seu corpo social sendo a forca mottiz dessa obra, a massa escrava, mal necessétio 4 concretizacia do projeto imperial. D. Pedro II, homem culto e atento as manifestagdes artisticas, descobertas cientificas e avangos tecnolégicos e, as matrizes culturais no plano das idéias, — realizagbes que eram engendradas no continente eutopeu ~ esteve A frente deste projeto civilizatério, Patrocinou atividades do Ins- 1, Ricardo Salles, Nostalgia Imperial: A Formagto da Identidade Nacional no Brasil do Segundo Reinado, Rio de Janeiro, Topbooks, 1996, p. 98. Realidades e Ficgoes na Trama Fotogrdfica tituto Histético e Geogréfico Brasileiro, proporcionou bolsas de estudo para o desenvolvimento e aperfeicoamen- to de artistas na Europa como foi 0 caso do compositor Carlos Gomes, autor da épera O Guarani, entre outras, além de pintores como Victor Meirelles ¢ apoiou 0 mo- vimento romantico, ‘A “construgio do nacional” na produgao cultural brasileira se dé no constante destaque da natureza exube- rante, na valorizagao dos feitos herdicos come os conti- dos nas pinturas histéricas representando cenas épicas da bravura dos brasileiros nos campos de batalha, 0 que pode ser exemplificado através de um Victor Meirelles com sua Batatha dos Guararapes (guerra travada contra os holan- deses) ou Pedro Américo na tela A Batalha do Avai (Guer- ra do Paraguai), e mesmo, da exaltacdo do indio (um {ndio estilizado, diga-se de passagem), como ocorre nos romances indianistas de José de Alencar, Iracema, O Guarani, Ubirajara. Alencar é, segundo os criticos litera- rios, a figura mais importante do Romantismo enquanto género literério. Nele se pode perceber a tentativa de “.captar uma identidade nacional, de contribuir para sua grandeza”*. No que se refere ao tema espectfico aqui tra- tado, hd uma questdo primeira que se coloca: como cap- tar essa identidade nacional ou como construf-la através da fotografia? 2, R Salles, op. cit, p. 109 Ports Kossoy USOS DA IMAGEM FOTOGRAFICA: TRANSPLANTE DE CONTEUDOS PARA NOVOS CONTEXTOS Diferentemente da criacao literétia, a fotografia pode fornecer “provas’ de uma realidade que se pretende mos- trar, Ela funciona de forma ambigua — como sempre ocorre, independentemente da época — como testemunhol @riagio no sentido de um testemunho obtido a partir do Processo de criagao/construgio do forégrafo; isto signifi ca um produto estético-documental que parte do real enquanto matéria-prima vis(vel, mas que é elaborado 20 longo da produgéo fotogréfica em conformidade com a visao de mundo de seu autor. Imagens que depois de pro- duzidas ainda serao aplicadas em algum Album (impresso ou nio), patrocinados por determinada empresa ou insti- tuicéo, legendadas, agrupadas em conjunto com outras imagens ¢ classificadas segundo determinadas categorias visando “ilustrar” uma dada idéia. A autonomia da ima- gem fotogréfica permite transplantes de seus contetidos para os mais diferentes e, por vezes, inusitados contextos, As imagens forogréficas nZo apenas nascem ideologizadas, elas seguem acumulando componentes ideolégicos & sua historia propria & medida que sio omitidas ou quando volta a ser utilizadas (interpretadas) para diferentes fi- nalidades, ao longo de sua ttajetéria documental, Creio que uma abordagem primeira encontraria um caminho produtivo ao investigarmos as imagens que nos vieram do passado, a partir das aplicagoes que as origina- ram, segundo as finalidades pata as quais foram executa- das. E claro que sempre podemos pensar nas fotos obtidas Realidades ¢ Ficgies na Trama Fotogréfica como forma de expresso pessoal, as chamadas fotografias de autor ( bem que todas as forografias tem um autor so sempre produtos de um processo de criagio), as qua estatiam, de uma certa forma, descompromissadas em re- lacto as aplicagdes tradicionais da fotografia, sem uma fi- nalidade utilitdtia e, também, de sua realizagao enquanto atividade comercial remunerada, Dificilmente encontrare- mos tal manifestacio durante o periodo que focalizamos, & excegio das imagens obtidas basicamente pelos fordgralos amadores ja bem préximo & passagem do século, assunto que, todavia, escapa & presente anilise. A IMAGEM FOTOGRAFICA DO HOMEM BRASILEIRO E O. ESPELHO EUROPEU Como todos sabem, a principal aplicagio da fotografia no século XIX foi o rettato, atividade comercial que re- presentava, efetivamente, 0 ganha-pao dos estabelecimen- tos fotogrificos em todas as partes. Vamos nos concentrar nos esttidios que operavam nos diferentes pontos do pais ¢ tentar encontrar, entre a multidéo de imagens que fo- ram prodiuzidas por aqueles estabelecimentos, algo que de- monstee alguma preocupasio em trazer elementos simbé- licos que remetam a idéia de “nacional”. Se observarmos atentamente os trajes dos retratados que desfilaram diante das cimaras veremos que todos se vestiam de acordo com a moda européia do momento. O mesmo ocorria em relagéo & preferéncia dada as formas cléssicas e vitorianas do mobilidrio, aos temas pintados nos Boris Kossoy cenétios de fundo — salvo as honrosas exceSes em que se vé alguma palmeira —¢ aos objetos decorativos que com- Punham 0 décor de um atelié do passado, os quais nada im de nacional, pelo contrétio, referem-se aos objetos ¢ Paisagens da “civilizagao”, portanto da Europa? A exce- Sao nacional desses retratos do passado fica por conta do Préprio retratado, quando este era brasileiro. Ou do nati- Vo, que 6, realmente, um nacional na pura acepgio da pa- lavra, assunto sobre 0 qual voltarei adiante. © ponto que queria deixar aqui consignado é que a experiéncia foto- gréfica brasileira como a latino-americana de atelié repro- duz basicamente a experiéncia européia, particularmente quando se trata da imagem da burguesia ou da elite. No bd, como ja foi mencionado antes, qualquer preocupacdo €m se construir o nacional nos retratos antigos. Pelo con- trdrlo, a intengdo é a de se obter um produto estético com a melhor aparéncia européia possivel, seja por parte do Fetratista em seu proceso de cria¢ao/construgio do signo, 3. Assim como ocorria nos demais pais k lemais paises latino-americanos, muitos ds gean- cles Forégrafos que atuaram em diferentes provincias do pais também foram curopeus. E a tecnologia empregada era em geral europea afora alguns equipamentos e produtos especificos norte-americanos. Anincios de ca, S25 que supriam o mercado com esses produtos freqiientemente informa. yam aos clientes fordgrafos que “acabavam de receber pelo iltimo vapor...” fesse ou aquele produto quimico, papéis fotograficos etc...]. Poderfamos Gnd Fazer referencia a uma estétia de representagio padronizada, calc, la nos moldes europeus. Sobre esse do Autos, “Photography sse tema, ver iter, “Photogray in Latin Ametica: the European Experience and the Exotic Bocee om Wendy Watriss, and Lois P Zamora, (orgs.), Image and Memory: Photography from Latin America 1866-1994, Texas, University of Toxse Press/FotoFest, 1998, pp. 18-54. Realidades ¢ Ficgées na Trama Fotogrdfica seja por parte do retratado ao representar no teatro de ilu- sdes que € 0 palco fotogréfico, conforme o modelo euro- peu, modelo no qual se espelha. Existem certamente excegdes. As que mencionamos aqui ficam por conta, justamente, da familia imperial. Tra- tam-se de retratos do Imperador D. Pedro II (entéo com 58 anos de idade) da Imperatriz Tereza Cristina, posan- do para o afamado Joaquim Insley Pacheco em 1883. O projeto de exaltagdo da natureza € marcante nestas ima- gens, como se vé pela vegetacao “plantada” no atelié, Es- sas fotos foram tomadas j4 num momento de contestacdes de toda ordem que vinham de diferentes setores da socie- dade. E de se supor que Pedro II pretendia com essas imagens enfatizar simbolicamente a existéncia concreta de uma civilizagéo nos trépicos, ele mesmo, simbolo maior desse projeto ideolégico. A CONSTRUGAO DO NACIONAL: TEMATICAS EXPLORADAS Quais foram as teméticas que, registradas pela foto- grafia, contribufram para a “construgao” da imagem do pafs, para a “construgao do nacional”? Poderfamos mencionar um amplo leque temético que se prestou, no pasado, para tal fungio. Tratam-se, basicamente, das cenas de progresso material enfatizando- se 0s avancos da técnica como as obras de implantagio de estradas de ferro (levantamentos topogréficos, vistas de stages jé terminadas, assentamento de trillos etc.); agri- O projet de exaltagao da naturesa & marcante neste retrato do Impe- radon, como se vé pela vegetacéo ‘plantada” no aselit: representayio tea tral de uma civilisagao nos srépicos Retrato de D. Pedro Il, Foto de Joaquim Insley Pacheco, Rio de Janciro, 1883; cépia plarina 38 x 30 em, Coleséo D. Thereza Cliristina Ma Wieisial Rts

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