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O preço da traição

Ricardo de Almeida Rocha

“És nascido de mulher. E eu zombo de escárnio diante de armas


brandidas por homem nascido de mulher” (Shakespeare - Macbeth, 5º
ato, cena VII)

Uma mulher escultural, belíssima. Os cabelos escorrem


pelas faces em movimentos de pantera. Os olhos lembram o interior de
uma igreja bizantina e, conforme a luz, mudavam de cor: no verão
verdes, no inverno tendem ao azul. O delicado septo desenha com o
dorso do nariz a Ursa Menor, brilhando como as estrelas quando ela
passa creme facial. O contorno da boca, delineado com perfeição,
compreende lábios substanciais, intensa e naturalmente vermelhos,
inequivocamente femininos, mesmo quando ela fala com a energia
máscula de que é possuída quando deseja alguma coisa. Aja, Bruno. Ele
está apenas te usando. Você precisa fazer isso. Ele tem tudo. E quanto a
nós, o que temos? Bruno acredita que as coisas virão a seu tempo.
Argumenta contra as palavras da esposa. O futuro lhes reserva o melhor.
O futuro? Nunca chega sem que seja conquistado. Sabe Deus se haverá
outra chance.

Graças ao amor que Leslie lhe dedica, Bruno Molinari livrou-se do


peso de uma infância miserável. Graças a ela, conhecera a felicidade.
Contempla-a. Um voluptuoso sol resplandece. Ele adivinha o cheiro de
seu hálito, e os demais. O tempo não passa para ela. Parece ter os
mesmos quinze anos de quando Bruno a viu pela primeira vez. Nunca
mais foi o mesmo depois de passar por ela na rua principal do balneário
de Tundra.

Eram então adolescentes. Ele vivia metido com uma turma mal
vista pela comunidade. Mas Leslie o compreendia. Filha de um deputado,
dava um jeito para que ele sempre se saísse bem de suas confusões.
Fazendo-se de contrariada, repreendia-o por essas atividades, mas
sutilmente o incentivava a mantê-las. São a certeza de um dinheiro
essencial para que ela não dependa mais do pai. Sempre apaixonado,
não havia o que não fizesse por ela. Então faça, Bruno. Eu te conheço. É
o que está querendo fazer.

A música chega da rua em acordes lascivos. No arrabalde, da


janela da casa dos Molinari, dá para ver, na frente de uma loja, junto a
caixas de velas e encartados de incenso, uma imagem de Janaína ao
lado do comércio de material de construção, perto da ponte velha, entre
a colina Efe e o bairro de Ipiranga. O sol morre numa incisão dourada ao
longo do rio, desde a serra. As águas duplicam a vegetação cerrada das
margens onde dos braços das árvores pendem sinos amarelos. Longe, o
silvo de um navio entrando na enseada. O vento ondula as águas ali
rasas do oceano. O sol já se pôs, vermelho como a atmosfera da cidade.

Porque não pode mais agüentar a excitação da demora, Cláudio


Boguski acende um cigarro. Jantara com Bruno, Leslie e outros amigos,
numa grande confraternização. Recolhera-se ao quarto de hóspedes
para descansar. Foi providenciada para ele uma jovem bem novinha da
zona de prostituição. Agora a fumaça em seu pulmão atenua ou realça a
avidez do pensamento naquela adolescente a quem chamavam
Margherita. É demais para um homem de sua idade, já com problemas
de coração. O que ela tanto faz nesse banheiro?

Nada que mereça atenção, queridinho. Ela só queria ficar bem


cheirosa. Está pagando bem, merece.

Dinheiro não é tudo. Venha logo se sente algum afeto por esse
velho. Ele realmente não agüenta mais a demora.

Mas Margherita demorava. Cláudio se esforçou então por pensar


noutras coisas. Nos novos projetos da organização da qual era
presidente, uma associação que trocara a filantropia por uma bem
ramificada distribuição de drogas e acompanhantes, uma sociedade,
secreta apenas para o conhecimento oficial das autoridades.

Com o coração cheio de orgulho, lembrava de seu discurso no


jantar, com o qual introduzira Bruno Molinari entre eles. Cláudio o
descobrira. Tirara-o da delinqüência e... Quando enfim retomava o
controle, ouviu a voz de Margherita.

Ela se aproxima e senta em seu colo, beijando e mordiscando sua


orelha. A língua faz uma massagem lateral no canto da boca do homem
que encontra por dentro do vestidinho um mamilo já endurecido. A outra
mão entrou por baixo, segurando uma coxa. Subitamente, ela se levanta
e começa a remexer os quadris ao som do ritmo que pela janela entra.
Cláudio contempla, deslumbrado. Margherita pegava a barra do vestido
e lançava para o alto, e suas pernas apareciam e desapareciam em
resplendor de ninfa. Desabotoou os dois botões do decote e dançou
assim mais uns minutos. A voz de Cláudio se junta ao som frenético dos
trio-elétricos . Venha. Safadinha.

Calma. Ela quer merecer cada centavo e isso exige preparação.


Ele já disse que não se importa com dinheiro. Quer ver? Tirou três notas
de um maço e lançou na direção dela. Sem deixar de dançar, abaixa-se
e pega as notas. Coloca-as num bolsinho estratégico entre as flores de
algodão. Decerto não há, pensou Cláudio, entre todas as prostitutas de
Tundra, uma outra mais cruel. Quanto tempo mais vai levar esse jogo?
Mas não reagia senão com a resposta viril, porque se agradava dessas
coisas.

Ela abre mais o vestido e tira-o por cima, sem deixar de cuidar do
dinheiro ao enrolar a roupa sobre a cadeira. Rebolando sempre,
aproxima-se da cama onde Cláudio está sentado e senta-se de novo em
seu colo. Os longos cabelos castanhos aos cabelos grisalhos se
misturam. O dedo grosso procura seu lugar. A mocinha tem um breve
estremecimento ao olhar para cima, por trás dos ombros dele, pela
fresta da janela, em direção ao quarto do casal.

Leslie Molinari fala com o marido, de costas para ele, observando o


movimento no quarto de hóspedes. Bem, se Bruno está assim tão
vacilante, há alguém que pode agir imediatamente. Espera apenas um
sinal. O rosto inesquecível não demonstra qualquer emoção. Não! Ele
corre até a janela. Não! – agarra a mulher pelos ombros e a sacode.
Mande-a embora! O que pensa estar fazendo? Leslie perdera todo
respeito? Mande-a embora!

Estava compadecida da fragilidade de seu homem, um tanto


decepcionada. Desculpe, não era a intenção. Amava-o. Mas precisa
agora ser dura. Não gosta de ser assim. Desculpe, amor. Pensei que
pudesse ser difícil pra você pelo teu envolvimento. E a garota não tem
nenhum. Mande-a embora, diz ele. Farei o que eu tenho de fazer.

A mulher segura as mãos de Bruno com carinho, solta-se, vira-se


de novo para Margherita e faz sinal de negativo. Ele olha para uma e
para outra, para Cláudio, e por fim seus olhos se perdem no vazio. Tudo
bem. Seu amor e seu desejo aos quereres de Leslie se vinculam.
Deixemos pelo menos que ele termine.

Quando Margherita passou pelos seguranças, Leslie observava.


Bem, chegou a hora, disse. Está iluminada. Cada vez que Bruno se
decidia pelas vontades dela, sentia-se rejuvenescer. Ele já não lembra
como as coisas chegaram a esse ponto. Nem imagina mais, assim como
não pode pensar em desistir. Não pode culpar a vida sexual perfeita por
tudo. Mas sabe uma coisa, o augúrio que acompanhou todo o processo.
Ninguém pode escapar da própria consciência. Se nosso coração nos
condena, maior é Deus do que o nosso coração. Quem sabe tenha
acompanhado um devaneio maldoso típico de Leslie e depois como
sempre não conseguiu sair do labirinto em que ela se sente tão à
vontade. Deve ter sido isso. Agora também não faz mais diferença.

Descem. Leslie põe água para ferver. Bruno observava pela porta
entreaberta a lua no oceano no corredor de casas. Pesa em seu espírito
o que está por fazer. Imagina se o pagamento ao cúmplice não poderia
incluir tudo. Se terá remorso e o quanto. Contempla a própria sombra
na parede, com irritação.

Saindo ao pátio, a mulher chama a atenção imediata dos homens.


Haviam há pouco dito algumas gracinhas para Margherita. O quanto
devia ser deliciosa e coisas tais. Mas agora surge diante dele uma
deusa, na presença da qual a jovenzinha desaparecia, pulverizada por
tanta majestade. Olá rapazes, diz a deusa. Ela achou que uma xícara de
café viria bem agora. Supõe que estavam um tanto cansados. Todos
bebemos muito e vocês ainda terão de virar a noite. Era verdade. Eles
agradecem. Obrigado, Leslie. Ela quis saber. E então? Divino, dizem,
desvendando o conjunto transparente de camisão e pantalona.

Bruno espreita. Olha de minuto em minuto no relógio até o tempo


da bula se cumprir. Estão dormindo. Sai até o quarto onde Cláudio
adormece. Precisa de pelo menos dez horas de sono. Em casa, costuma
apagar antes que o locutor do telejornal diga Boa-noite. A porta se abre.
Estremeceu. Bruno. Você me deu um susto, garoto. Acontecera alguma
coisa? Talvez você sinta frio. Ora, garoto, em pleno verão de Tundra?
Cláudio garantiu que estava bem. Sugeriu rindo que o pupilo se
preocupasse antes com sua linda esposa ou... Bruno espera que ele
continue bem, do outro lado. A própria barriga do velho sufocou os tiros.
Há terror naquele olhar e fragmentos indiscerníveis junto ao sangue
espirrado. A música continua alta na rua.

Bruno se detém diante dos homens adormecidos. Um pouco de


água deve ajudar. De fato, começam a acordar. Então o outro recebe o
sinal, atravessa o pátio e pula o muro. A polícia já está ali. Está feito.
Abraçando-o apaixonadamente, Leslie o beija e então percebe o sangue.
Não poderia ter agido de modo mais limpo? Ela percebe que
começaram uma viagem sem volta e na verdade não sabe de que serão
transportados para algum lugar glorioso. Ela queria tanto. Ama-o tanto,
quer vê-lo como primeiro dentre os primeiros, o maior de todos.
Observando perplexo o tremor das próprias mãos, Bruno vê tudo
recomeçar...
Castanheiras acompanham toda a orla marítima de Tundra,
praticamente uma continuação da praia de Dois Anjos. Rente aos recifes
de corais, passavam de quando em quando os barquinhos com os vultos
inclinados. À direita de quem chega, ergue-se o monte Santa Lúcia,
imponente, assemelhando-se a um vulcão. Os quarteirões impressionam
pelo relevo acidentado, sobem quase verticalmente. Quem olhe a
sudoeste verá montanhas, verdes algumas, com casinhas nos cumes;
cinzas, outras, de pedra inóspita. O vento nunca pára de soprar, apenas
muda de direção. No terral, sabe-se que não tardará a chuva.
Entretanto, às vezes, tardavam tanto o terral quanto a chuva. A viração
traz um gosto de mar.

As mulheres de Tundra, que ao longo do ano ansiosas esperaram a


temporada, produzidas, saíam. O barulho das ondas faz parte do cenário
em qualquer lugar da cidade e, se você dormisse num outro lugar e
durante o sono fosse trazido, pensaria ao acordar, antes de abri os
olhos, que estava chovendo muito.

Calor do fim de janeiro. A primeira fase da temporada de verão


vive seu último final de semana. Os turistas festejam. Os nativos, em
minoria, enveredam por seus caminhos cotidianos, as sobrancelhas
franzidas sob cenhos agitados. Alguns gesticulam e falam com os que
caminham ao lado, outros simplesmente falam sozinhos. O verão para
os homens que trabalham num balneário, às vezes de terno, enquanto
as mulheres seminuas desfilam por toda parte, o verão faz coisas assim,
o calor agita e não raro transtorna.

A pequenina Tundra tinha alma de metrópole. Determinadas horas


do dia as pessoas se acotovelavam ao longo da rua principal, sobretudo
ao entardecer, ou indo para as pousadas ou para os restaurantes, para
a Câmara do Comércio, lojas, prefeitura, ou, como Berebger naquele dia,
para o Grande Hotel. Viera comemorar o êxito de um grande projeto,
agora se preparava. Por ele passam advogados, políticos, donos de
bares, banqueiros, hienas, macacos, palhaços e tigres. O circo está na
cidade. Um investidor em camisa pólo e calça de algodão pendurado no
celular. Saindo da praia, musculosos e alegres rapazes de sunguinhas se
exibem com amigas em lycra enfiada. A crente gira a sombrinha e a
católica ginga cheia de compras. Moças cansadas voltam para casa
depois de um dia de trabalho nos hotéis e outras passam por elas
prevendo-se na mesma situação dali a algumas horas, as horas da noite.
Sim. Lavadeiras, arrumadeiras, passadeiras e cozinheiras suportam os
olhares de assédio dos turistas que compraram cidade e habitantes
quando alugaram uma casa para o verão. Quem dera fosse uma
homenagem, pensa Isabela. Que pena ser apenas devassidão.

O brilho da noite de Tundra tremeluz nos olhos nervosos de Bruno.


Os músicos e cantores dos trios exercem seus talentos com a mesma
naturalidade dos traficantes e daqueles que nos quiosques marcam
encontros de prostituição infantil. Houve um crime e o policial tem de
tomar providências. Fica para mais tarde, de madrugada. Combinado.

Estão começando os cultos nos terreiros, casas simples de


pescador. Paira essa estranha energia do choque entre tradições
corrompidas e viscerais – o Orixá supremo e o Jeová bíblico debatem
acaloradamente e depois se juntam num abraço que se faz sentir na
terra. A luz nascente testemunha a fantástica mistura de raças,
descendentes dos negros naquela enseada traficados, parentes dos
portugueses que os vendiam, velhos índios, novos alemães, eslavos,
norte-americanos, cafuzos, mulatos, mamelucos, drogados, devassos,
corruptos e beatos.

Embreado na cintilação mística, Bruno de repente se viu diante da


boate do Grande Hotel, envolto na névoa marinha, rodeado por hostes
de vagabundos que estendiam-lhe a mão, súplices. Com Bruno estava
Zenon, um homem pardo, pacato, de uns 38 anos. Os pneus trepidam
atrás dos dois. O grupo de moças sai com estardalhaço. Eles entram.
Zenon senta-se ao lado do balcão e aí fica. Bruno caminha diretamente
para a mesa no canto esquerdo.

A mão dentro do blazer, uma arma. Sente que está cumprindo o


seu dever, o que ele ainda não sabe pode ser motivo das piores
barbáries. Ainda assim, terá sido esse sentimento de dever uma razão
menos indigna de enlouquecer. Quatro homens sentados sem tempo de
reagir – dois quase o conseguem, mas são fuzilados por tiros do balcão.
A moça que seduzia o homem tomando uísque, em meio aos próprios
gritos na tentativa de escapar, uma bala perdida a colheu na jugular,
aloja-se na cartilagem. Cai. Verte agora o sangue que anuncia a entrada
da morte.

Um homem sai correndo sem desvios para a casa de Cláudio


Boguski no jardim Marli, defronte ao parque de diversões. Embarcados
de um navio liberiano apareciam num e noutro lado da cidade. Leonardo
Seul entra e resfolegando interrompe a reunião. Cláudio fazia cálculos,
determinava nomes e datas. Parou. Meu Deus, Leo; o que houve? A
testemunha se unge da alegria subserviente dos bajuladores (se
arrependerá muito por esse tipo de coisa mais tarde). Não era mais
preciso fazer planos quanto a Lieyder Berebger. Ele e os que com ele
estavam acabam de ser mortos por Molinari.

E onde está ele? – Fugindo. Todas as polícias atrás – Polícia é


problema de pobre. Somos a autoridade, garoto. Problema para Cláudio
eram os fiéis a Berebger que não estavam com ele – Serão fiéis a um
cadáver? – Tudo é possível. Vá, encontre Bruno antes e diga-lhe que
apenas se mantenha vivo. Daremos um jeito nos seguidores do traidor.

Raiou o dia. Molinari e Zenon escapam pelo amanhecer. Vão a pé,


sem um destino. Pretendiam, de fato, apenas sobreviver até as coisas
esfriarem. Estavam atentos a qualquer um que se assemelhasse ao
estereótipo. Berebger queria o controle do tráfico, da prostituição, da
Câmara, dos concursos de trovas e da garota-verão. Molinari não podia
permitir. Cláudio era como um pai para ele. Você conhece esses caras? –
perguntou Zenon. Oito homens recostados em dois carros com as
portas abertas. Seriam homens de Berebger? Zenon remata que não
ficará ali para descobrir. Tanto um quanto outro sentiam uma certeza
súbita, de que aquela fuga ia ao encontro da dor, e que a dor haveria de
ser essencial para o resto de suas vidas, que os capacitaria para
compreender um ao outro.

No minuto seguinte escutam o som de motores. Enveredaram por


ruelas, despistando os perseguidores. Porém Tundra não é tão grande. O
país inteiro na verdade é pequeno quando se trata de homens visados
pela Sociedade, ainda que por uma facção dela. Uma porta entreaberta.
Entreolham-se e, silentes, concordam. A deliciosa mestiça lá dentro sorri
para eles. Por aqui, diz ela. O oluô os espera. Desconcertados, entram no
aposento.

Não é de todo uma situação desconhecida. Bruno lembra-se da tia.


Uma mulher estranha. Inspiração de fantasias, mas muito estranha.
Agora na fumaça de incenso devem surgir imagens, velas, charuto e
cachaça. Ou um velho sentado à mesa e nada além de conchas de
búzios espalhadas. Fique à vontade, meu filho. Sentou-se. Zenon
permanece de pé, vigiando pela janela. Portanto Bruno pensava estar
acostumado com o rito, mas nunca teve contato direto. Na verdade não
se preocupa tanto assim com o futuro. Não tirava da cabeça era a
mulata que os recebeu. Não tia, não é que eu não acredite nessas
coisas.Mas não posso me concentrar. A senhora não percebeu que não
sou mais um garoto? A irmã de seu pai era realmente atraente, não
bonita; mas aquela mulatinha... Não imaginava que devotas podiam ser
tão lindas. Seja como for, nada que se comparasse à sua mulher. O que
reserva afinal o seu destino?

Grandes coisas. Pelo menos no futuro imediato. Mas você não


suportaria ouvir tudo agora. É assim tão terrível? Dependerá de como
venha a administrar os acontecimentos. Diga, pede Bruno. Quando
estiver preparado. Quanto? O velho não levará em conta a ofensa. Na
verdade a maioria tornou o dom um comércio. São mais ofensivos do
que sua insinuação. O velho não quer dinheiro? Trabalhou a vida inteira.
Não precisa daquele dinheiro. Guarda o bolo de notas. E o que quer?
Que Bruno fique quieto. Enfadado com o médium, faz menção de sair.
Desculpe, mas preciso ir. Você será grande. Han? O mais querido e
também o principal. Conquistou um lugar. Mas não se deixe levar pela
ambição. Era como se Zenon não estivesse ali até que falou. Vamos. Não
corremos mais perigo. E quanto a você, Zenon, seu destino será trágico.
Ah sim? Era verdade, mas haverá uma compensação. Seu filho herdará o
lugar que você jamais terá.

O filho? O velho realmente nada sabe. Não há oferenda no mundo


que desvie Benévolo de seu caminho. É um jovem e promissor
advogado. Jamais se meteria naquele tipo de negócio. Não enquanto eu
estiver vivo. É o próprio Zenon quem está dizendo... Vamos, diz Bruno
ao perceber que a profecia abalara o companheiro. Vamos embora.
Estão saindo e trocam um longo olhar com a jovem mestiça. O babalaô
não erra, diz ela. E pensa no que profetizou no dia anterior, que Isabela
teria um filho de olhos verdes como os de Bruno. Escute-o.

Mais do que por amor ou por desejo casou-se Bruno com Leslie
Henning. Precisava de uma companhia para enfrentar o mundo e
cumprir as coisas que estavam além dele, apesar de serem seu dever.
Porém com o correr do tempo, ela percebeu uma face dele que não
conhecia, ou pensava desconhecer: a determinação, a vontade férrea.
Então, não seria correto dizer que ele era de todo dependente. A
ascendência de Leslie sobre ele não é absoluta, mas um conjunto de
signos que só funcionam em sentidos específicos.

Mas estremecia diante dela, como para um bebê a presença


materna, por mais contínua que seja, será sempre extraordinária; esse
bebê terá contudo seu próprio caminho ao crescer. Essa devoção da
parte do namorado punha a nu uma timidez que a marginalidade não
destruiu mas exacerbou. Era um homem meigo demais, apaixonado
demais, bondoso demais, precisava dela demais – e, como ela também o
amava demais e é preciso harmonizar a vida do casal num mundo hostil,
tomou para si esse dever de ser a sua força. E para não deixar de amar
seu homem, fazia com que os méritos coubessem sempre a ele. Porque
ela o acendia, mas ele era o fogo.

Quando Bruno disse que iria à boate acabar com Berebger, Leslie
concordou e lhe deu todo apoio, sem o qual ele possivelmente não teria
ido. Não por ter ela qualquer coisa contra o rival de Cláudio. Pelo
contrário, admirava todos os que se rebelavam, os que não se
submetiam, era a sua filosofia de vida: não dobrar-se diante de ninguém,
não fazer qualquer coisa apenas porque todas as pessoas faziam.
Ademais, não gostava de Cláudio, jamais gostara. O que fizera um dia
pelo menino Molinari fizera com o intuito conseguido, a gratidão eterna
de alguém cheio de potencial como Bruno, um jovenzinho rebelde,
inseguro, disposto a fazer qualquer coisa contra a lei que não o
protegera de uma infância infeliz. Agora Leslie passava momentos de
angústia sem saber como as coisas haviam transcorrido. Esperava o
marido, ansiosa. Onde estaria?
Outro lado da cidade. Os homens enviados por Cláudio
encontraram Bruno e levaram-no ao patrão. No interior de um aposento
luxuoso e sombrio, Cláudio Boguski discursa para um pequeno séqüito.
Você foi achado nas ruas negras da madrugada de Empatia atrás de
droga e trazido para nosso seio. E se mostrou digno de confiança –
falava mirando diretamente o rapaz, mas logo ampliou o olhar para
todos – Nossa sociedade é algo de que um homem possa se orgulhar em
ser membro. Debatemos o futuro da humanidade; vigilantes, retiramos
de seu convívio os que não merecem fazer parte dela. Somos uma
família que gosta das coisas boas da vida. Gostaríamos que todos
fizessem parte, mas nem todos estão preparados. Berebger é uma prova
viva do que estou falando.

Um dos homens comentou e todos riram. Uma prova morta.

Cláudio prossegue: Queremos que floresça a fraternidade.


Pretendemos influenciar as nações no sentido de nossa filosofia de vida
baseada nessa fraternidade. Temos tutano, somos a medula da
sociedade. Bem-vindo, Bruno Molinari.

No quarto da casa de Bruno, distante cerca de 10 minutos de carro


(20 de bicicleta, quando Bruno trabalhava como mensageiro), Leslie
pensa em Cláudio, na terrível influência que exerce sobre seu homem.
No quanto Bruno o admirava, àquele ponto, de matar por ele – matar, o
que definitivamente não lhe era uma coisa fácil. Tinha horror a sangue.
Desmaiara ao presenciar o parto do único filho do casal, que ainda com
poucos dias de vida, morreria. Leslie não gosta de Cláudio, não gosta
nada de Cláudio. Fala de família, de comunidade futura, livre das
mazelas do presente – como era capaz de tal descaramento? Não são
uma família, mas uma boiada num curral. Estavam unidos sim, mas não
por livre vontade. Por medo. Por medo uns dos outros e de não saberem
viver uns sem os outros – de encarar uma outra forma de vida que deles
exigisse o que não poderiam: ser apenas o que cada um era. Estão
viciados numa falsa idéia de comunidade, de sociedade, de família, e
desconhecem quem são em si mesmos. São uma instituição, uma
organização, uma sociedade: não pessoas.

Sem nossa sociedade secreta, o que seríamos? Quantos fomos


ajudados por irmãos quando estávamos à beira da ruína? Quantos salvos
da miséria pela caridade fraternal? E agora, os que foram salvos, são
eles próprios instrumentos de salvação! Quem está livre da violência e
da desumanidade do mundo? Poderíamos ser mortos por esses tantos
desgarrados que andam, loucos, por aí. Teria sido assim comigo se não
fosse a iniciativa desse bravo rapaz. Sem que ninguém mandasse, ele
decidiu cortar o mal pela raiz. Entretanto deveriam observar que, além
dos rebeldes, ninguém fora ferido no atentado da boate. Bruno tivera
esse cuidado, mas, evitando o olhar de Zenon, não pode nesse momento
deixar de pensar na mulher do balcão.

Alguém avisa. Senhor, aqui estão alguns dentre os que chamou.


Entram os homens de Berebger. Não se assuste, meu caro Molinari. Eu
os mandei vir aqui. Queria lhes falar. Não podiam ser tão insanos como
aquele perdido. Escutariam. Porque acima de você estão os interesses
de nossa sociedade, mas abaixo de mim agora você é o primeiro,
herdeiro de meu lugar e da gestão de nossos negócios. Ouviu-se um
burburinho respeito. Cláudio falara. Bruno sorriu discretamente. Mais
tarde, ao descer no elevador, Bruno estava nas nuvens. Cláudio falara.
Ter o dom da profecia é algo extraordinário. Desde o princípio
simpatizara com aquela gente. Embora o velho nada fizera além de
verbalizar o inevitável.

Quando Bruno chegou em casa, Leslie dormia profundamente. Tem


um primeiro impulso de acordá-la, compartilhar a alegria. Ecoam em
seus ouvidos as palavras de incentivo de seus empregados, homens que
Cláudio lhe destinara para segurança pessoal. A agitação convulsiona
sua alma e ver sua mulher, nereida branca em pala de renda sem
abotoamento, não era calmante. Leslie dormindo ama a si mesma. Está
de lado, a barriga desvendada numa tonicidade adolescente. Os braços
recolhidos mostram loiras e brilhantes tenuidades; a pele nos joelhos,
insolitamente clara, hidratada como a terra na chuva. Dá a volta na
cama. À janela, significante visão posterior. Desvia os olhos para uma
réstia de mar ao longe, suspira forte. Aproxima-se enfim da cama e
senta-se. Leva a mão por dentro, seguindo o sulco até espalmar largos
carinhos. Seus feixes nervosos enviam uma mensagem confusa, de
amor ou animalidade.

Espreguiçando-se, desperta sorrindo. Percebe a mão, vira-se,


percebe o desejo, sinal do controle que exerce. Rejeita esse
pensamento. Assim, não o poderia amar. E adora amá-lo. É o melhor da
vida. As carícias fazem com que ele se esqueça da sua ascensão.
Beijaram-se longamente. Ardor ilimitado, mãos licenciosas, busca de
posições.

A vida de Bruno seguirá o rumo que Leslie indicou, da pequena


necessidade doméstica aos grandes projetos para o futuro, tudo passava
por um leito largo de cimento, como costumavam ser as camas em
Tundra, absolutamente resistentes. Ali estão surgindo novas idéias,
novas formas de buscar a existência ideal, o sentido das coisas e um
sentido de fazer as coisas, assim ou de outro modo. Novas formas de
vida através da mágica de estarem juntos.

Depois do amor, Bruno conta a respeito do velho. Oluô? O que é


isso? Um tipo de médium, de babalorixá. Não sei se o nome é esse, mas
o que importa é que acertou em cheio. Sim. Impressionante como.
Vivera ali a vida inteira naquela cidade de macumbeiros, sem nunca se
sensibilizar com essas coisas. E agora, porque a predição foi tão
agradável, resolveu acreditar... Leslie está enganada. Bruno argumenta
que nem acreditara na hora, mas o velho acertou, é um fato. Quando
Cláudio morrer, eu serei o primeiro.

Vaso ruim não quebra fácil, meu menino. Bruno não entende a
implicância de Leslie com relação a Cláudio. Ele é um homem bom. É
como um... pai para você. Isso. Ela sabe. Não, não sei. Exceto que você
quer se convencer disso. Ele me ama como a um filho. A gente ama
embora as pessoas a quem amamos tenham falhas. Cláudio ama Bruno
porque, quero dizer, porque você fez isso, porque fez aquilo. Nunca
embora tenha feito alguma coisa. Como por exemplo o próprio
Berebger. Foi fiel durante tanto tempo, Errou uma vez e se tornou
anátema. E quem arriscou a pele para eliminá-lo? O que é estar acima
dos demais estando abaixo de Cláudio? Você permanece serviçal, só que
agora com a inveja de todos. Só há uma maneira do que ele disse ter
alguma utilidade prática.

Bruno têm o ar de um menino a quem roubaram seu doce. E qual


é? Sendo o mais alto abaixo dele quando ele não existir mais. Essa hora
vai chegar. Já chegou, se você quiser. Leslie se põe de pé num salto,
levada por uma sensação estonteante, abrasadora. Teriam enfim as
coisas que sonharam ao se casar. Lembra?

A fronte de Bruno está banhada. Sem captar exatamente do que


se trata, procura ponderar sobre o que a mulher diz, pela análise de sua
frieza ao falar e o envolvimento das suas palavras naquela aura plena de
concupiscência. Quando se casaram, nada tinham além do amor. E os
planos... Viagens à Europa, uma casa isolada nas montanhas e uma
mansão na praia, cheia de mantimentos e amigos o tempo todo, visitas
que o tivessem na mais alta conta social. As recordações se
encadeavam. Maquinalmente aspira as duas carreiras que acabara de
dispor no espelhinho, um hábito que Leslie abominava; mas dessa vez
ela não reclamou. Fez-lhe um carinho longo enfiando os dedos a partir
da nuca, levando-o a um arrepio. Filha do futuro que subitamente
descortinara, ela anda com as palmas das mãos e os joelhos sobre a
cama. Beija-lhe o peito nu, beija-lhe a barriga, o amor por Leslie
preenche toda minha existência.

Enquanto ela usa os lábios e a língua para lhe transmitir


mensagens celestiais, Bruno pensa que não resistiria se a perdesse, se
perdesse um corpo tão forte e um espírito tão surpreendente. Pressentia
com temor uma possível separação. A divergência quanto a Cláudio será
capaz de causa-la? Vibrando, deixa-se conduzir a um êxtase cheio de
dilemas.

Bateram à porta.

Bruno enfia a cueca e vai abrir, Leslie vai aonde sua nudez não
possa ser vista por quem está batendo; basta chegar à janela. Olha e vê
Margherita passando na rua, toda faceira como sempre. Invejou-a. Teve
pena dela. Tão menina assim, pelas ruas, em camas nojentas... Leslie
chegara em Tundra aos dezesseis anos. Queria se livrar da presença do
pai moralista que em casa se transformava, sobretudo dentro do quarto
da menina. Talvez a vida correta que pregava fosse tão enfadonha que
ele precisava de um estímulo a mais para excitar-se. Mesmo depois de
vários namorados, Leslie jamais ouvira de nenhum tantas obscenidades
como quando das visitas do pai durante as noites. Pior quando começou
a menstruar. Ela lhe implora uma trégua, mas ele não a poupa, exige
mudanças. Extrapolou, pensara ela. Tomou coragem e contou à mãe. Se
ela não acreditou ou sempre soube, o fato é que Leslie, se não tinha
prazer em ficar, foi convidada a sair de casa, porque pessoas não se
tornam boas por serem pais, assim como a idade não traz
necessariamente sabedoria.

Sozinha, veio de Pai-Bó, numa carona que a iniciou na prostituição.


Tentaria mudar de vida quando chegasse em Cascatinha. Lá o mercado
de trabalho era bom. Conheceu um rapaz em Tundra, um médico, que
em poucos dias de namoro lhe propôs o casamento. Estando ela em
muitas dúvidas, pois não o amava embora não desgostasse de todo de
sua companhia, aceitou o convite para lhe dar uma resposta durante um
jantar na casa dele. Com que então minha princesa ainda não decidiu?
Por favor, não se ofenda, mas acho que é melhor a gente continuar
amigos. Você está me dizendo que todos esses dias me fez de bobo?
Claro que não. Gosto muito de você, só que não...Interrompida. Ele
avança com fúria, rasga-lhe as roupas entre bofetadas. Violenta-a
cirurgicamente. Ainda quase tão fora de si como nos terríveis momentos
sob o corpo do médico, Leslie o espera numa tarde depois do trabalho.
O que é, está querendo mais, doçura? Como resposta, a faca na mão de
Leslie desceu-lhe no meio dos olhos. Quando ele levou as mãos ao rosto,
a faca movimentava-se de baixo para cima entre as suas pernas.

Fugia pelas ruas de Tundra em pleno carnaval, quando viu Bruno.


Graças às amizades dele na cidade, cada vez mais influentes, seu crime
jamais seria julgado. Quando se sentia deprimida, pensava: aquele era o
corpo de seu pai e chegava quase a passar do horror à felicidade.
Ouviu? Leslie! Não, querido... O que foi? Cláudio pedira que ela fizesse
um jantar bem gostoso, ele viria. Dará a honra de jantar aqui em casa.
Leslie diz que precisavam comprar alguns fogos. Ah, querida... não devia
ser assim sarcástica. Você é tão ingênuo... Não percebe que ele o
humilha? Apenas usa você. E não quero viver ao lado de um homem que
se deixa usar assim. Molinari estremeceu.

Ela disse que até faria o jantar. Desde que lhe servissem a morte
de sobremesa. Estava louca. Se você fizer isso, me submeto com você a
essa humilhação – continua Leslie como se não tivesse ouvido o
comentário –, que um outro homem mande sua mulher cozinhar para
ele. Não vê? Só faltou pedir um prato especial. Ele pediu, disse Bruno
cabisbaixo. Não acredito! – com gestos largos, Leslie levou as mãos à
cabeça. O que ele quer? Chuleta de boi na grelha. Com ou sem
pimenta? Com pimenta e champignon. Envergonhado e constrangido,
ele a viu dar uma gostosa risada.

Ao chegar precedido por seus homens, Cláudio se movimentava


pelo jardim. Não chegava a ser uma figura que impusesse respeito, não
era autoritário. Tocava as pessoas pelos flancos, como a cavalos, que
logo se punham bem domados. Suas ordens eram a bem dizer
carinhosas. É isso que Leslie mais teme. Agora ele toca nas pétalas das
calêndulas, abelha polinizando o desejo que se sentia por meio das
flores que ela havia plantado, aspirando-a, ouvindo a água do chuveiro e
imaginando-a nua. Diante de Bruno, agora materializa-se também a
presença dela, com os cabelos efetivamente molhados. Ao vê-la,
pensamentos lascivos levam Cláudio a uma histeria interior mal
disfarçada. Deixa cair um olhar sutil ao decote, retornando pudicamente
aos olhos dela, lagos de pura obscenidade, obras de arte, como podia
ser que a dona deles escolhesse alguém tão insignificante como Bruno
para esposo? Ela poderia ter príncipes, reis... Ela o poderia ter, sim, a
ele, Cláudio.

Leslie fora feliz naquela casa, lá conhecera a paz; eis que agora
alguma coisa a incomoda, e tem decerto a ver com Cláudio, com a
maneira sem cerimônia como ali se comporta. Uma casa precisa ter a
alma de seus moradores e não conhece a alma daquele Bruno
subserviente, ela, que o sabia de cor, todas as peculiaridades de seu
caráter, todo acento de sua personalidade, firme como a casa,
dependente apenas da casa e do que havia no entorno, os cavalos
pastando ao redor, o café e a cereja, as coisas que ela sabia o marido
atentava com quase devoção, as aves praianas e os morcegos das
frutas, a fala dos coloridos pássaros repetidores, choramingando por
causa de um tempo que parecia se perder desde que conheceram a
segurança da proteção da Sociedade.

À mesa fumega o rosbife, retinem os talheres. Cláudio já lhe


dissera que estava linda? Sorrindo, com vontade de derramar o vinho
não no copo mas naquela careca nojenta, responde que sim, que ele já
lhe dera a honra de ouvir aquilo. A carne está deliciosa. Cláudio lambe
os beiços. Bem temperada, tenra, perfeita, diz, olhando de soslaio o colo
de Leslie, que não se pinta mas gosta de decotes. Os outros homens
igualmente se fartavam. Macarrão importado acompanha o prato
principal, salpicado de milho e atum. A carne de fato muito tenra Leslie
se esmerara em bate-la, levando para cozinhar o tempo certo, tudo
cronometrado, para que todos ficassem satisfeitos. A aparência dos
pratos fez água na boca de todos, Fora um dia difícil. Ninguém relaxara.
Agora, com a adesão dos homens de Berebger conseguida, estão todos
exaustos e famintos.

A adesão dos homens de Berebger... os mesmos que pela manhã


seguiam Bruno e Zenon pelas ruas batidas de Tundra. Ali estão dispostos
a seguir as ordens de Molinari quando por alguma razão Cláudio não
estivesse para dá-las. O corpo de Berebger nem esfriara estirado no
instituto médico legal em Empatia. Bruno entende aquilo como o maior
dos elogios e se põe realizado, Leslie nem chegou a ficar por demais
chateada com isso como se fosse, digamos, uma ausência que
alimentaria de saudade o seu amor quando o amado voltasse a si. Os
homens mastigam a carne quente e macia como se não houvesse
amanhã, como se todo destino estivesse ligado à voracidade com que se
lançavam ao prato.
Quando limpavam os lábios com guardanapos que apenas
mulheres mais atentas perceberiam encardidos, Cláudio falou. Deixem-
me arrazoar um pouco mais sobre esse rapaz cuja existência nos deixa
um pouco mais tranqüilos. Temos alguém com tanto zelo assim pelo
nosso bem e pelo bom andamento de nossos assuntos, temos Bruno
Molinari. Mais tarde, todo já se haviam retirado, mas Cláudio deve ficar.
Foi veementemente convidado, embora nem fosse necessária tanta
insistência de Leslie para que passasse a noite na casa de seus
anfitriões. Entendeu o recado. A cadela...

Bruno diz a Zenon que, sabe, estava pensando naquela ulorixá. É


corrigido: Ialorixá, senhor vice-presidente. Tudo bem. Mas antes de tudo
eram amigos. Deixe de bobagem. Falam, é claro, da filhinha-de-santo, da
pretinha gostosa? Ela dissera que Bruno levasse em conta o que o velho
profetizou. Mas disse também que se ele próprio não cuidasse de si,
nenhuma adivinhação viria em seu socorro. A cidade dorme no silêncio
cansado de outra noite bêbada.

As folhas das árvores farfalham à brisa da manhã. Bruno Molinari,


o que ele pensa ser e querer e os meios que achava lícito para alcançar
as coisas pretendidas e aquele outro ser dentro dele, que Leslie deixava
claro amar tanto, entram enfim num anunciado impasse. Sente-se
doente daqueles males cuja convalescença será quase sabática,
quebrará rotinas e nas revelações pertinentes a essa quebra sábias
decisões serão tomadas. Não sabe dizer se está melhor ou pior, decerto
diferente, entorpecido, atilado, tem um corpo quase paralelo às
vicissitudes de seu ser, como se sonhasse, como se estivesse mais
desperto do que nunca, com os olhos mais abertos ou mais fechados
que jamais.

Os que dançaram, e a madrugada atravessaram, estiram agora


seus corpos em qualquer lugar da praia, fornicam na encosta da Colina
Efe ou se arrastam em busca de um quiosque na sobrenatural busca de
um sentido para tudo, sem rumo exceto o próximo trago de crack ou a
quimera das macumbas, com olheiras fundas que apontam para o vazio
das sete-dias coruscando na treva geral. Às 7:30, Carlo Guisem estava
batendo à porta de Bruno.

É um homem grisalho de 55 anos, ainda bastante forte para a sua


idade. Sua convicção é una, não hesita jamais entre duas situações. Não
vê nada além do que vê. Mantinha-se havia 10 anos fiel a Cláudio
Boguski, ainda que certamente teria, caso o quisesse, apoio em uma
disputa pelo poder máximo da sociedade secreta. Uma nuvem trouxe
preocupação e angústia para o que sonhava acerca do futuro. Surgiu
daquele limbo desagradável uma tepidez tediosa que tinha poder de
deslocar a alma dentro dele. Tinha uma mulher e uma filha que adorava.
Participara do jantar do dia anterior mas não partilhava do entusiasmo
do velho amigo por aquele jovem Molinari, um marginalzinho de rua.
Bom dia. Cláudio está esperando pelo senhor.

Bom dia. Que entrem, por favor. Leslie iria falar com Bruno para
chama-lo. Lentamente confuso, o homem habita uma realidade
intermediária que o assusta. De onde vem, de que parte dos
acontecimentos ou talvez de que parte dele mesmo? Quando ela se
afasta, Carlo desaprova silenciosamente o olhar que em seus
seguranças tinha Leslie por objeto. A filha, Hilma, a invejava. Ela
acredita nos astros e nos presságios, amadurecida por um imaginário
em que a ternura maior não é manifesta e os melhores dons da bondade
se mostram na penumbra. Não vou não pai, prefiro ficar em casa. Na
verdade, não sei se me interesso por alguma dessas coisas da
Sociedade. “Vou falar com Bruno para...” – arremedou o pai.

Bruno. Aparece e diz que o sigam até o quarto de hóspedes. À


porta, eis um dos guarda-costas estirado no chão. Parece que se matou,
pensa Bruno. O desespero de acordar e ver o amado patrão assassinado.
Mas logo adiante escutam os soluços incontrolados. Era o outro homem
da segurança pessoal de Cláudio. O quê? Quem? Como? Não há o que
dizer com clareza num tal momento incerto e angustiante! Poderia dizer
que adormeceu e quando acordou um homem fugia pulando o muro,
podia observar o quão desfigurado estava o rosto de Cláudio nesta terra
ignota e fria. Podia ainda dizer que ao despertar viu seu parceiro
dormindo, mesmo com todo esse imaginado movimento. Mas não quer
falar. Não quer ouvir. Não quer acreditar que seu benfeitor não existe
mais. Nem cogitou que as suspeitas cairiam sobre ele. Não cogitou sobre
nada. É um homem desgraçadamente silencioso.

Mas como dormiram ambos? O que era uma falha evidente no


plano de Leslie, simplesmente passou despercebido. Como dissera a eles
quando foi servir o café, haviam bebido, estavam cansados, e no fundo
ninguém poderia imaginar que a casa de Bruno seria invadida com esse
intuito. Bruno, agora um ser escuro, que mal consegue enxergar as
razões que o levaram àquilo, não tem consciência do que aconteceu, é
sincero quando grita e chora e amaldiçoa. Ah, como suportará esse
traidor? Maldito! Matara tantos para preservar o padrinho, e de que
adiantou?

Leslie a um canto analisa a atuação do marido. Não chega a se


entusiasmar. Dirige-se a ele e o abraça com força. Calma, querido.
Calma, repete, soletrando ao ouvido de Bruno, energicamente,
entredentes. Apesar de suas hesitações, descontrolar-se assim não lhe
era próprio. A própria Leslie quase vê seu próprio ânimo abalado. Não se
culpe assim.

Para o inferno! Que todos estivessem a caminho do inferno!


Ajoelhou-se diante de Beneti, o segurança silencioso, agarrou-o pelo
colarinho, bateu com a cabeça dele no chão. Assassino! Ele fala a
verdade. Seja quem for que tenha matado meu padrinho, pensa Beneti,
ela fala a verdade. A culpa é de meu sono. Sou eu o culpado. Assassino
miserável! Zenon lança para Leslie um olhar indefinível. Vai até o amigo
e o agarra contra si. As lágrimas de Bruno continuam, vertidas sem
resquício de hipocrisia.

Durante o funeral, a figura imponente de Leslie chama sobre si


todas as atenções. A seu lado, Bruno Molinari é contemplado com
pêsames. Todos os que o faziam, antes de sair, desviam olhos mais ou
menos sutis para a mulher. O que devo fazer? pergunta-se Carlo. É como
se Bruno fosse realmente o filho. Observa que até o pessoal de
Cascatinha, todos estavam com ele. Prevê que será o próximo. A
sociedade teria um final melancólico.

Não. A mulher dele, Zelhia, diz que não. Impedi-lo-iam. Mas não
tinham como provar que Bruno é o assassino. Ela sabe que sim, que é
ele, que não podem provar. E não é o momento de saber coisas assim.
Carlo sugere que se afastem. Apenas para dar um tempo, para que o
próprio Bruno em sua ambição desmedida acabe por decair aos olhos
daqueles que agora o têm como deus. Aconteceria sem dúvida. Agora
sente-se, Zelhia, você precisa descansar. Percebe o quanto aquilo está
afetando a mulher e na mesma proporção de seu amor por ela odeia
Bruno. Por outro lado, caso se afastem, despertarão suspeitas. Mas ele
insiste e diz Vamos. Logo esse bastardinho terá corda suficiente para se
enforcar.

Sentada na capela, pairando como uma divindade sobre os


mortos, Leslie passeia o olhar pelos presentes. Faz observações com que
mais tarde oriente Bruno. Ele está preocupado com Zenon, que trouxera
seu filho à cerimônia e o apresentava a todos com orgulho. Esse é
Benévolo, meu filho, recém-formado, um advogado brilhante para
eventuais necessidades que você possa ter, dizia, sabedor de que ali
todos eram clientes em potencial, capazes de pagar uma fortuna pela
manutenção de suas aparências, e volta e meia precisavam pagar uma
fortuna para que um advogado lhes mantivesse as aparências de
honestidade e respeito.

À noite, com a esposa, Bruno comenta com mal contida ira. Você
viu como Zenon exibia seu filho a todos? Conquanto esteja tensa e
aborrecida, ela sente que antes de qualquer coisa precisava acalmar
Bruno. À beira da cama, tira-lhe a calça com dedos ágeis, ajoelhada
prepara-o e senta-se em seu colo. Mesmo alheio ele fica imediatamente
preparado. Ela mexe-se, perfeita. Imagina-o observando-a por trás. Ele
tem um filho, diz entre os próprios gemidos; você, uma mulher. Agora
deitado, as pernas dobradas permitindo que os pés cheguem ao chão,
ele não sente o que sente e não ouve a mulher. Nós é que devíamos ter
um filho para ser louvado no meio de todos, monologa.
Leslie não para, abre mais, depois fecha as pernas, sempre
mexendo-se, girando em torno do desejo dele, saindo e voltando, e
saindo de novo. Aos poucos ele se deixa envolver; senta-se e ela se
inclina e recua, apóia-se no beiral da cama, ajoelham-se quase ao
mesmo tempo, ela ainda apoiada. Agora a situação é outra, ela sente o
calor da barriga dele, o que irá permanecer por esses próximos dez
minutos, com os devidos intervalos de afastamento, até que sentiram as
contrações, as dela sugando-lhe a virilidade. Esgotado, suspira com
força ao encontrarem-se queixo e nuca. Relaxou de uma só vez os
músculos retesados, soltando-se de costas na cama. Com a voz da
mulher em seu ouvido, deixa-se ninar e adormece.

Chegou à janela do quarto e vê um cachorro caminhando ao longo


das árvores que marginam a rua. Carrega um filhote de um pelo muito
liso e brilhante. Ao perceber a presença à janela, começa a rosnar. Bruno
apanha a arma e dispara sobre o cão que cai no macadame, enquanto
seu filhote foge ganindo. Na rua alguém apareceu e apanhou o
animalzinho no colo, olhando recriminadoramente para o homem à
janela. Súbito, ele atira bem no meio do rosto de Bruno, que sente a
queimação da bala entrando entre a boca e o nariz.

Sobressaltado, ele acorda e acorda a esposa, contando-lhe o


sonho em meio à respiração entrecortada. Diz que vai agora mesmo no
terreiro saber o que isso quer dizer. Não será preciso, querido. Está claro.
O cachorro é o melhor amigo do homem, como Zenon é seu melhor
amigo, mas será realmente? Trouxe seu filho para debaixo da sua janela,
para o nosso convívio, exibindo-o. Você não gostou, é claro,
naturalmente que não, pensa Bruno, o justo seria um filho nosso
beneficiado ao ser alçado ao lugar de Cláudio. Ele sabe disso e se
colocou numa posição de ameaça. Lembra do que ele disse, quando sua
liderança era apenas uma profecia? Bruno lembra, é claro. Quando
disse sobre a moça estar certa, ele disse que eu me cuidasse. Depois
ninguém mais falou a respeito do sonho. E ambos desdenharam da parte
final em que o filhote é acolhido por alguém que dispara contra Bruno.

Ela disse. É claro que você não vai se atemorizar. Eu jamais me


deixo atemorizar, respondeu ele. Eu sei, Bruno. E, acrescentou, sabia
também que essa pessoa é quem deveria se cuidar, pois você não irá
permitir que pensem em intimida-lo assim depois de usar sua influencia
para fins pessoais. Bruno disse: Ninguém me intimida ou usa. Ela disse
que bem o sabia. E quando você irá cuidar do caso, querido?

Do que ela está falando? O que está acontecendo comigo? Alguma


coisa aconteceu, não há mais como retornar no tempo. É a encruzilhada.
O que concordei em começar, quero realmente terminar? Cuidar do
caso? Com a morte de meu padrinho percebi o peso de todas as mortes
que carrego, como se esse assassínio em particular a todos
representasse. Claro. Agora mesmo. Cuidar do caso. Nestor! Vá ao sítio
de Zenon dar-lhe um recado.

Para chegar, o mensageiro tem de tomar dois ônibus e pegar


carona numa carroça, cerca de hora e meia. Zenon prefere assim, morar
bem longe do centro. Cultiva em pequena escala hortaliças e mantém
uma baia de porcos, que atingem 6 meses de vida e entram na época da
reprodução, coincidindo com a colheita, quando sob os olhos de Zenon
os empregados arrancam as brotações que curam à sombra. Ali, na
terra, em meio aos animais, caminhando entre as malváceas, Zenon se
esquecia da vida, dos negócios ilícitos, e da saudade da mulher,
precocemente falecida. Se, ademais, seu filho, que detestava a roça e a
vida longe da cidade, concedia em ficar um tempo com ele, como então,
e passava as férias com o pai, Zenon Deckhorn sentia-se um homem
plenamente feliz.
Levando a mensagem na ponta da língua, o garoto atravessa o
Ixixe. Um dos empregados, apesar de Zenon dizer que estava tudo bem,
que o garoto era conhecido, não tira os olhos do menino até que partiu.
O filho pisa no pasto. Pergunta ao pai o que era. Molinari quer que a
gente vá lá almoçar, respondeu Zenon preparando o piquete para as
porcas passarem o período de aleitamento. Quando o filho sentia assim,
esse calor, dava importância; costumava valer o estranhamento como
de resto para isso servem as intuições. Mas permanece ainda uns
momentos amassando distraidamente um tufo de forrageira. É, Bruno
quer conhece-lo melhor. Isso enche Zenon de orgulho. Ficou
impressionado. Mas como poderia, se não trocaram duas palavras? O
problema com o filho eram as cismas, pensa o pai. Então lembra de
como não conseguia deixar de olhar para Leslie e imaginou que eram
outras as razões de Bruno. Confessou-o ao pai. Ora, não, não. Imagina
se ele fosse entrar em conflito com todos os que olham para ela. Por
outro lado, que o rapaz nem pensasse bobagens. Aí sim poderiam ter
sérios problemas. O amor desse homem pela esposa é algo quase
doentio. E agora ele é o principal, tem poder de vida e morte. Mas vai
ser muito bom se você cair nas graças dela, ela tem total domínio sobre
Bruno. Patrão! Patrão! A gaiola de gestação está pronta. O senhor não
quer ver? Estou indo!

Pai e filho mal pregaram o olho naquela noite, mas todos os


empregados do sítio dormiram felizes. Zenon se lembrou de quando
pedia carona quando Carlo parou para ele. Na casa de Cláudio, outro
jovenzinho come sofregamente na cozinha. Já o filho sonhava com
gabinetes ministeriais e púlpitos. Não deveria ser difícil viver da
satisfação dos próprios interesses, desde que apenas tivesse o cuidado
de dar outro nome a ladrões e assassinos. Quando amanheceu, Zenon
acordou o filho. Depressa, depressa. Os pássaros estavam cantando e
era a canção do sucesso de Benévolo. Vamos!
Partiram pois pela manhã, na direção do meio-dia em Tundra, do
almoço na casa de Bruno Molinari.

Benévolo Deckhorn havia acabado de dizer a seu pai. Ocorrera


uma mudança tão intensa nas feições de Bruno desde que se lembrava
dele, que mal o reconhecera. É natural. Zenon dispusera-se a tudo
relevar para não criar um clima impropício entre os membros da
sociedade que haviam aceitado a liderança de Molinari. Quando se
viram da outra vez, Benévolo era um menino, hoje um homem. Parecera
mais que isso. O filho falou por falar. Era-lhe conveniente acreditar no
que o pai queria acreditar.

A manhã torna-se escura. O ribombar dos trovões secos parecem


ameaças de Deus. A convulsão dos elementos se dá em trevas densas e
terríveis. Pesadas nuvens pairam no céu. Os torsos de pai e filho
instintivamente se enrijecem. O carro parece atolar no rastro fundo.
Subitamente o cheiro de pólvora se misturou ao cheiro da chuva. Tiros
de todos os lados. A luz dos relâmpagos reflete nas metralhadoras.
Zenon tomba, jorrando sangue. Benévolo grita pelo pai que, supliciado,
pede ao filho que fuja. Zunidos sobre suas cabeças. Chorando, ferido no
braço e na coxa, saindo do carro e se lançando no rio, o rapaz obedeceu.
Maldito Molinari. Os ventos que agora uivam sobre meu cadáver levarão
a voz de minha vingança... Mas antes que chegasse a ser um cadáver,
lembrou-se da dor e soube que o atentado não fora obra de seu amigo.

Nos tilintares e na música, sobrelevando-se em fendas e ombros


num soustache, Leslie em seu solene caminhar move-se deslumbrando
os presentes. A casa dos Molinari destacava-se, iluminada e barulhenta,
mesmo num lugar como Tundra na temporada, sempre resplendente e
ruidoso. Na casa ao lado, em outra festa, era comemorada uma
arrecadação de 7 milhões. No outro vizinho, apenas quem prestasse
muita atenção ouviria uma voz em murmúrio no que parece uma oração.
No Bosque de Marli, roda a roda gigante. Sombras das serras sobre o rio
correndo para o sul, a lua polia as pedras da ilha. Volantinas típicas
prenunciam o carnaval. Latas de cerveja e cacos de garrafas atapetam
os caminhos da vila que seria a sensação daquele verão de 1996. Os
comerciantes exultam, a noite desce e a cidadezinha fervilha. O mar
busca o lixo dos turistas quando amanhece e os quiosques fechados
anunciam no cheiro de urina em suas laterais o sucesso da temporada
que se abre. O sudeste sopra soberbo em meio a uma floresta de
antenas parabólicas na pacatíssima vila de pescadores. A silhueta de
Leslie toma conta dos convivas quando de súbito todos se voltaram para
Bruno. Está cansado de festas, diz ele com voz arrastada. Leslie abraça-
o, afasta-o para um canto, pergunta o que está havendo. Outras pessoas
se aproximaram. Ela diz que não era nada. Ele está trabalhando demais.
Quer fazer por merecer o lugar de Cláudio à frente da Sociedade e às
vezes exagera. Está apenas cansado. Quer verificar pessoalmente os
mínimos detalhes de tudo. Está apenas cansado. Está é bêbado,
murmura alguém. Carlo aproxima-se, paternal. Você está exagerando no
álcool e no pó... A tradição determina que não se envolvam diretamente
com essas pragas.

No quarto, Leslie ajuda Bruno a deitar-se e ia tirar a roupa dele


quando se levantou novamente. Pede que se deite, ia fazer uma
massagem, logo se sentiria melhor. Ele respondeu que se deite ela. Vai
dar uma volta. Sai e bate a porta atrás de si.

Evita a sala onde estão os convidados. Chega molhado no terreiro.


Regressam seus olhos ao primeiro dia em que ali esteve, à devota
mestiça. Cheira a ervas. O velho profetizara uma filha para ela. Mas era
tão jovem... Dezesseis? Talvez nem isso. Leslie tinha quinze quando a
conheceu. Sem dinheiro para filtros solares, estava queimadíssima.
Passando por Isabela, Bruno entrou no aposento bruxuleante. O que
queria? Por favor, o senhor tem mais alguma coisa para mim?

O oluô se enternece, o que está completamente fora de seu papel.


Suas ambições são desmedidas, diz o velho, mas seu coração é sensível.
Não é esperto, antes tende à sabedoria dos planos a longo prazo. Tudo
isso não é boa combinação. O coração sai ferido e a ambição frustrada.
Quem escutasse atentamente poderia escutar ao longe o bramido do
mar sob o lânguido sol de fevereiro. As águas subiam lentamente
cobrindo os recifes em frente ao pé de Tamarindo. Pequenos caranguejos
agitados iam de um lado para o outro nas cavidades de musgo, o cheiro
nauseante será abafado pela maré. Os atabaques naquela noite
estavam calados mas se ouvia o ritmo de palmas. Um riso triste marcou
o rosto de Bruno, Isabela retribuiu-lhe. O sorriso dela era alvíssimo,
muito lindo. O sinal que tinha na virilha impressionou-o quando da
delicadeza que o gozo em sua língua derramava.

Chove ainda. Chega em casa. Abre a porta e divisa a figura branca


na escuridão do fim do corredor. Esperam você na sala, diz ela. Vá,
querido, parece que os empregados têm uma notícia importante. Ele
teria perguntado se era a respeito de Zenon, da razão de não ter vindo à
festa. Mas ela parecia muito cansada. Tudo bem, diz, volte para cama,
amor. Parece doente.

Na sala, Leonardo disse que não se preocupasse mais com Carlo.


O quê? Quando Cláudio estava vivo, Bruno velava por ele. Agora, nós, os
homens que herdara de Cláudio, velamos por você. Do que estavam
falando? Bem, haviam cuidado de Zenon, disseram. Não, não era assim
que Bruno resolvia seus problemas. Alguém dentre eles sabia como
resolveu quanto ao próprio Cláudio. O homem que pagou para ser visto
pulando o muro teria dito algo à polícia antes de ser morto? Batendo no
peito com vigor e desespero Bruno mandou que jamais agissem dessa
maneira. O que afinal haviam feito?

Naquele mesmo momento, a empregada bate à porta do casal.


Chama. Dr. Carlo! O seu leite! Carlo diz Obrigado, abrindo a porta. Estou
enjoado. Virando-se para Zehlia diz que foi a comida daquela ordinária
da mulher do Molinari. Ah, mas justamente por isso um leitinho cairia
bem; se você não quer, eu quero. Oi Maria, com licença; oi, mãe, queria
lhe mostrar o vestido que comprei. Hum, que lindo, Hilma! Obrigado,
Maria, pode ir. A empregada desce as escadas. Volta á cozinha e pega a
maleta. Fecha a porta devagarzinho. Os galhos pendentes da primavera
alaranjada passam em seu rosto, ferindo-a. Ela passou a mão no lugar,
olhou o sangue no dedo e transtornada meteu-se no táxi que a esperava
na esquina do sobrado.

Barulheira de coisas arremessadas, quebradas. Bruno e seus


homens correm, imaginam algum tipo imediato de vingança. Mas era
Leslie. Fora de si, gritava. Estava cansada, cansada! Passava a mão
sobre a mesa, derrubando tudo. Não agüentava mais ter a
responsabilidade de tudo, cuidar de tudo, não agüentava mais.
Aproximando-se dela, Bruno pergunta carinhosamente o que estava
havendo. A fúria de Leslie era como a fúria de uma divindade. O que
estava havendo? Ora. Os olhos dela estão quase saindo das órbitas. O
que há é que se Bruno fosse um pouquinho menos dependente ela não
precisaria ficar tomando conta de tudo nos mínimos detalhes. Não estou
entendendo, querida. Que detalhes? Tudo estava manchado de sangue.
Estava tudo imundo.
É apenas vinho. E os pratos da festa não haviam sido lavados.
Calma, querida, diz ele e pede a Leonardo que providencie a limpeza.
Tudo bem, Bruno. Que ele não se preocupasse. “Tudo bem, Bruno. Não
se preocupe”. Leslie imita a voz e trejeitos de Leonardo. Bruno fala que
ela precisava relaxar. Também está cansado. Chama-a com um piscar de
olhos. Vamos para a cama. Também precisa relaxar. Ela diz que não a
aborreça. Vá para o inferno!. Está cheia dele, cheia! Cheia de tudo. Só
quer um pouco de paz. Só quer voltar no – desmaia – tempo...

É um alívio. A manhã entra pela janela. Tudo o que tiveram de


passar até chegar naquele ponto de conforto material e status. A
escuridão da noite. E Leslie, sua força, começa também a mostrar sinais
de que sua alma sentiu a acusação. Resta então manter ele o equilíbrio,
chamar para si o controle das coisas. Temia. Foi um consolo ver a
manhã. Momentaneamente dissiparam-se as angústias.

Desce, deixa a esposa dormindo. Barulho de café sendo servido.


No noticiário da TV, a morte da mulher de um respeitado empresário das
região. Não falam em envenenamento. Por que não, senhor? Abra à
imprensa o caráter desse safado. As palavras do empregado mal passam
a máscara de dor em que se tornara Carlo. Enfim abre bem os olhos
antes de encarar seu interlocutor, pensa na situação, há gente bastante
a seu lado contra Molinari. Não preciso da imprensa, diz. Pensarei em
Bruno quando aquela cadela tiver pagado gota a gota o sangue de
minha Zehlia. Porque jamais acreditou que qualquer coisa, boa ou má,
pudesse sair de Bruno, sem haver saído antes de sua mulher.

Alguém falou entre os que estavam na reunião de emergência,


respeitavam a dor de Carlo mas estavam ali para salvar a Sociedade,
que com todas aquelas mortes, depois de décadas, ficou exposta. O
último símbolo logo estaria na página de algum suplemento de cultura.
Carlo entendia também assim. Mas vou acabar com aqueles dois porque
são eles que podem nos expor. As pessoas esquecem; a imprensa é
manipulável. O que exatamente tem em mente, senhor? Gostaria que
esta reunião definisse as posições de cada um após a morte de Zenon,
para que não haja desentendimentos depois, apenas isso. O resto,
deixem comigo.

Matar Molinari seria uma confissão. Mas se a mulherzinha dele se


acidentar, será apenas uma coincidência. E sem ela, ele estará morto.
Quero que ele sofra. Depois terá tempo de morrer.

Alguém sugere que o rapaz, o filho de Zenon, poderia ser muito


útil. Diziam que fora morto numa emboscada com o pai, replica outro. A
história de que desviara dinheiro e fugira só podia ser trama de Molinari.
Pela primeira vez em muito tempo apareceu algo vagamente parecido
com um sorriso no rosto de Carlo. Entrando na sala, Com licença,
senhores, disse o jovem. E deu os pêsames ao viúvo. Quem era? O que
queria? Estava ali para confirmar o assassinato de Zenon. E quanto ao
filho? Não me reconhecem?

Recebe Carlo Gielsen em seu sofrimento distintas mensagens.


Considera a situação, pausando o julgamento ora no ódio por Bruno; ora
no desejo de possuir sua mulher. Mas o monstro é aparentemente
intocável. Toda a região sul está com ele, e agora tem também o apoio
de Empatia. Irrita-se. Senhores! Estavam ali para se organizar. Não
devem levar e, conta apenas as perdas pessoais. Cláudio deixara-se
levar, quis administrar os negócios com o coração e teve o fim que teve.
Quanto a acabar com o maldito, deixem comigo, repetiu, como se não
tivesse visto e ouvido a entrada de Benévolo.

Um pensamento correu a sala. Não havia testemunha de que o


assassino de Cláudio fora Bruno. Agora tampouco, pelos detalhes
fornecidos por Benévolo, não se pode cravar que o atentado contra
Zenon fora obra dele. Assim, dá para desconfiar do próprio Carlo, pois
tudo obviamente aponta para crimes de Bruno, obviamente demais.
Afinal, Carlo já nutria aquele ódio pelo rapaz quando Cláudio estava vivo.

Como a intuir as desconfianças, Carlo propõe que Benévolo seja


elevado a principal após a morte de Bruno. Uma homenagem a seu pai e
uma prova da ausência de interesses escusos da parte de todos ao
colocarem um neófito no maior cargo entre os membros da Sociedade.
Um espelho na parede frontal da casa de Carlo testemunhou a reunião.
Finda, tudo estava perfeitamente planejado para após a queda de Bruno
Molinari. Através da janela entrava sibilina a viração, trazendo o barulho
do mar. Os homens saíram, unidos em torno de seus ideais. Boa tarde,
senhores. Tenham todos uma boa tarde.

Um final de dia sombrio, silencioso, parece que a magia se foi da


vila de pescadores, levando a alegria das ruas e carregando dum peso
imenso de tristeza o coração de Bruno Molinari. Durante toda a tarde as
nuvens caminham negras e baixas pelos céus de Tundra. Nunca gostou
daqueles dias entre a temporada de janeiro e o Carnaval. A cidade
parece o purgatório. Lembra-se do Carnaval em que conheceu Leslie,
Sentia o mesmo sufocamento, misto do acre salino das matinais da Casa
das Freiras e dos ocres oráculos saídos dos exaustos matizes atrás da
colina Efe. É bem de manhã, o sol ainda não nasceu. Ouvia os cânticos,
olhava os céus, e a viu, celestial como as laudes. Nuvens brancas se
espalham pelo céu limpo como se tivesse sido varrido por um buquê de
açafates que agora se grudam no azul. Leslie despontou com o brilho
das pérolas. Nem o notou. Estava mesmo decidida quanto ao jovem
médico. E Bruno ainda tinha de ser grato ao canalha: não fosse ele,
noutras circunstâncias, nada resultaria de sua abordagem, perguntado a
ela por que chorava.
Um homem vazio. No alpendre, sente plena a opressão, tomado
por infernal melancolia. Pobres de nós, murmura ao entrar no quarto.
Leslie não está na cama. Os dois corredores que levavam ao pátio
percorridos e ali encontra Leonardo, que gentilmente o impede de
prosseguir. A mulher, andando de um lado para o outro, fala sozinha. Ah,
minha bela o que conseguiu afinal? Onde chegou? Quem irá agora
admirar sua força ou babar diante de sua beleza, linda doida? Bruno não
pode protegê-la, nem se fosse o Imperador, quanto mais como chefe
duma organizaçãozinha que só reina às margens fedorentas desse rio.
Ele... ele era... aquele homem... um velho bom... podia proteger você,
seu poder dependia muito mais de si mesmo do que do cargo que
ocupava, como sói acontecer. Uma vez, ah, uma vez chegou e de fato
disse isso. Iria me proteger... haha... Não queria que eu abandonasse
Bruno, mas apenas lhe prestasse uns favores de vez em quando... Velho
danado... Venha agora... Sei que está escondido por aqui. Hei Cláudio!
Tudo bem! Estamos combinados! Só uns favorezinhos de vez em
quando!... Sei que o Bruno não vai se importar, pois para ele você é
como um pai... Nada demais portanto em compartilhar nossas coisas
com os pais... Cláudio!...

Bruno puxa o ar até o mais profundo de si. Fecha os olhos. O


suspiro é patético, Leonardo teve pena. Uma lágrima quis rolar mas
segurou. Murmuram... Deus...

Leslie volta agora, os olhos postos num chão que só ela vê. Não.
Cláudio não iria protege-la. Só mima-la um pouco. Mas isso Bruno
também faz, do jeito dele. E afinal, é ele a quem ela ama e isso deve ter
algum valor. Ama... Que amor louco... De onde veio? Para onde a levará?
Suas formas magníficas transbordando pela camisola transparente,
senta-se sob a castanheira no centro do pátio, bem ali onde servira o
sonífero aos guarda-costas. E quem a ama afinal? Possivelmente, só
mesmo a sua morte...
Num rompante, Bruno não suportou mais, nem sabia por que
deixara que a cena se prolongasse tanto. Força a passagem por
Leonardo. Acordar alguém que está andando e sonhando, a pessoa pode
ter um ataque. Pára. Decide. Agradece pela preocupação e fidelidade do
empregado, não a merece. Pede que passe no escritório no dia seguinte.
Bruno vai deixar a Sociedade. Acertariam as contas. Talvez Leonardo
seja a pessoa ideal para ficar com o meu lugar, quem sabe devolver os
propósitos originais da organização, se é que existiram de fato, os idéias
dos “pedreiros”. Bruno vai mesmo embora.

Está delirando mais que ela, senhor. Não, Leonardo, amigo, não
estou. Talvez alguém como você... uma fruta colhida no pé. Eu já estava
na estrada, apodrecendo. Quem sabe você possa dar à Sociedade o
sentido verdadeiro de justiça, de religião, de caridade. O tráfico, o jogo,
a prostituição – essas coisas degeneraram o que era para ser uma
família. É. Amanhã resolveriam isso direitinho. Agora deixe-me leva-la
para o quarto.

Depois de deitar a esposa, Bruno fica contemplando-a por


instantes. Que ela permaneça assim, serena e branca, estendida sobre a
cama, seu rosto inundando o quarto de serena beleza, fazendo-o sentir a
paz de espírito da penumbra; que ficasse assim, ali com ele, até o dia
nascer. Olhar para ela traz a lembrança de um tempo melodioso. Leslie é
a coisa mais bela que seus olhos já haviam visto, a vida começou
quando ele a viu, ele nasceu quando a conheceu, a seu lado ele não
tinha mais medo, ela era a sua coragem – estendeu a mão e tocou a sua
fronte suada. Ela o olha com olhos alheios.

Ele lhe diz que ela parece melhor. Sabe o que vamos fazer? Vamos
para longe daqui, para bem longe, recomeçaremos a vida em outro
lugar, em Santa Vasta, que tal? Dariam uma bela festa, dessas que ela
tanto gosta. Construiriam uma casinha. Dizem que lá existem boas
escolas. E nós vamos precisar de um lugar bom, com boas escolas,
porque longe desse ambiente viciado de Tundra você logo ficará grávida
de nosso tão sonhado filho. Nas sextas vamos ao teatro, nos sábados
aos bailes, nos domingos ao circo. Ou simplesmente ficaremos em casa,
longe do mundo. Estava pensando em uma casa na cidade e um
sitiozinho nos arredores. Quem é você? Sou eu, Bruno. Bruno? Alguém
falou que a gente ia dar uma festa. Sim, uma festa. E a quem
convidariam? Teremos verdadeiros amigos.

De madrugada, Bruno acorda sobressaltado. Ouve barulhos


estranhos vindos do banheiro. Apanha sua arma, vai até lá. Leslie
esfrega a pia em que se haviam lavado, dias antes, do assassínio de
Cláudio. Falava sozinha, olhando o vazio, perdida em algum mundo
muito distante. Estranho para Bruno vê-la assim, a sempre altiva Leslie,
agora ali ajoelhada, esfregando e esfregando, também o piso, enquanto
cantava uma canção ininteligível. Pára de cantar e começa a se orientar
em relação ao som, como fazem os cegos. A chuva começa a tamborilar
no telhado. Sorri e recomeça a tarefa a que se propôs, cantando a sua
canção.

Finalmente Bruno consegue adormecer na cama, depois da noite


horrível ao lado de Leslie no banheiro. O chamamento de Leonardo das
escadas agora em cérebro com um tantã repercute. Desce. Recebe o
envelope.

Os cartões nas mãos trêmulas mostram desenhos representando


Leslie varada pela concupiscência de Gielsen, em meio a lençóis
encharcados de sangue. Grandes, exagerados glúteos falciformes, seios
de traço grosseiro imitando úberes expostos a bocas desavergonhadas e
ávidas; junto ao rosto todo tipo de falos esperavam diante de um ricto
vulgar que a Leslie real jamais esboçaria. O último cartão é o mais óbvio,
coxas abertas e negras no meio e o perfil de alguém, cujo nariz era de
um, a testa de outro e a barba de um terceiro.

Bruno voltou ao quarto e abraçou a mulher, catatônica. Decorrem


alguns segundos. Silêncio asfixiante. De algum modo, intuiu que seus
homens haviam sido subjugados ou fugido. Espera ouvir a voz que
efetivamente ouve, afinal. Molinari! O grito de Carlo é pautado pela
coragem dos que tem controle de uma situação. Manda Bruno aparecer.
Venha! Diz estar ali sozinho, que agora é um caso pessoal. E entra pela
sala com seus homens, silenciosos, fechando o cerco. Venha – insiste,
num quase orgasmo. Chegou o momento. Não vê a hora de pôr as mãos
na mulher do inimigo. Delira ao imaginar. Continua falando. Bruno,
Bruno. Amava tanto a Leslie... Como pudera traí-la com uma negrinha?
Fora também ingrato para com seu bom profeta... Ah, falando nisso,
aqui está. Sua garantia de glória. Ouve-se o som de um corpo caindo no
assoalho. Bruno teria vomitado se tivesse visto o velho. Deixem-nos sair
– pediu. Podiam ficar com tudo. Por favor. Leslie está muito doente.

Muito doente? Está brincando. Sem dúvida, só pode estar


brincando. Esqueceu de que minha mulher está morta? Morta! Porque
em sua insanidade você ordenou o meu assassinato!

Não é verdade. Somente soube do atentado quando já não podia


impedir. Quer mesmo que eu acredite nisso? Seu medo é assim tão
grande? É verdade. Você jamais diz a verdade, maldito! É verdade,
pleiteava Bruno, senão como os inocentes, ao menos como os
ignorantes. Sim, determinou Carlo, é muito grande o medo dele. Isso.
Tema pelas suas abominações! Trema. Porque traiu a todos que o
amavam. Bruno olha para Leslie. Já estou pagando muito caro por meus
crimes, diz. Que o deixassem para o julgamento de Deus. Carlos chama
para si a ação de Deus; e é a condenação à morte, morte lenta,
dolorosa. Humilhante. Assim seria a de Bruno. Assistindo a violação da
mulher que, segundo a própria negrinha, ele amava mais que a própria
vida, violada por todos os homens de Carlo. Eu mesmo a darei por
inaugurada.

Ninguém tocará em Leslie. Quem tentar estará assinando sua


sentença de morte. Por que tanta confiança? Carlo joga o conteúdo do
saco que tinha nas mãos e o assoalho ecoou dum eco macabro. A
gargalhada ecoa por toda a casa como se fosse um prolongamento do
eco. Olhando a meu redor, não diria que você é tão grande como o velho
disse. Muito menos querido e principal apenas por obediência a nosso
verdadeiro guia, que infelizmente se enganou grandemente. Irritando-
se, Carlo ergueu a voz. Agora chega, apareça de uma vez ou vou busca-
lo!

Aquele ruído. Deus. Pobre devota. Por alguns instantes, Bruno


imagina como chegaram até ela. Decerto também a tinham estuprado
antes de mata-la. Que morte hedionda deve ter sido. E agora falam de
justiça. Por que fizeram isso com dois inocentes? Ele pensa que
matamos também a negrinha e pensando bem deveríamos. Ela porém
safou-se e não tiveram tempo de a procurar. Ao juntarem-se a Bruno, diz
Carlo, deixaram de ser inocentes. Pode me matar – dissera o oluô antes
de morrer – mas ninguém poderá fazer mal alguma ele. Ao longe,
Gielsen ouviu o som de atabaques. Podia ser que o velho tivesse feito
algum tipo de trabalho, sabe-se lá, uma invocação. Pareceu sim uma
invectiva, um transe. “Ninguém pode fazer mal a Bruno”. Mas, sorri, o
fogo não é alguém.

Ao sinal, as velas junto às cortinas. Antes que as labaredas


crescessem e subissem, saíram. Em segundos a casa dos Molinari
transforma-se num forno macabro.

***
O fogo, alastrando-se, crepita. As janelas, como bocarras de um
dragão enfurecido, sopram as chamas; o vento cospe- as para o céu. De
longe se vêem as colunas da fumaça negra e densa. Causa náusea nos
poucos transeuntes próximos o cheiro das pesadas nuvens. Agora as
paredes, incendeiam-se sob calor infernal. O prédio caía em grandes
pedaços abrasados, de papel. Os móveis são pulverizados. Uma voz
chama Bruno.

Em meio às labaredas, preparado para morrer com Leslie nos


braços, uma luz de esperança na fidelidade de Leonardo. Onde está? Na
janela que dá para o corredor, é a única chance. Todas as armas estão
concentradas na saída do quarto e janelas para a rua. Bruno nada vê.
Segue a voz alta e nítida. Num ponto do muro oculto pela fumaça dos
homens de Carlo, a mão de Leonardo está estendida. Bruno se equilibra
com dificuldade. Leslie sorri em seus sonhos. É colocada nos braços do
amigo, que cambaleia. Estão encharcados . Os olhos vermelhíssimos
ardem, as bocas secas crestam, a sede se faz forte. Uma rajada abriu no
fumo espesso uma clareira pela qual foram vistos. É o fim. Não têm mais
chances.

O tempo em que as armas foram desviadas é bastante para a


substância mal-cheirosa e bendita oculta-los novamente. Não os deixem
fugir, brada Carlo. Os tiros produzem um som muito agudo que se
prolonga segundos após as balas atravessarem a nuvem. Os homens
correm pelo fio do muro, Leslie novamente no colo do marido. O
estrépito é ensurdecedor. Atendendo sinais de Leonardo, Bruno salta
para a casa vizinha, imitando o amigo. O casal caiu no piso, arrancados
do assombro do fogo. O que Isabela faz ali? Bruno a olha como se ela
fosse um dos espíritos que costuma invocar. Moro aqui – diz ela. Bruno
portanto é um péssimo vizinho.
E aquele barulho? Pobre querido babalaô, torturado e decapitado.
Quanto a ela, fugira. Mas que interessa agora? Precisam sair dali. Leslie
mantinha o ar de nobreza, mesmo desmaiada dentro da camisola suja
de fuligem e manchada de sangue. Na frente, Isabela fez com que os
dois homens a seguissem pela trilha da mata da colina atrás da casa.

Na jarra de centro na mesa da sala escura, em pleno meio-dia no


Ipiranga, a pequena flor balança à entrada de uma lufada de vento mais
forte. Não muito longe dali, empregados da prefeitura de Tundra ainda
trabalham para remover os escombros do grande incêndio.
“Encontramos você nas ruas, Benévolo, fugindo de um criminoso, e o
trouxemos para nosso convívio porque você pareceu digno de confiança,
como seu pai. Uma pausa solene. “Esperamos muito de você, de sua
liderança. Em todos tivemos oportunidade de armazenar seu grau de
estudos. Assim, as expectativas de todos são de que tenhamos em você
a mais produtiva presidência, segundo os ensinamentos de nossa
tradição. E temos absoluta fé de que você, como seus conhecimentos e
inteligência, nos abrirá novos caminhos. Que você não se deixe seduzir
pela ambição como aquele que vos precedeu, porque a ambição não faz
qualquer sentido entre nós. Nossa Sociedade é algo de que um homem
pode se orgulhar em pertencer”. Carlo ergue o brinde antes de concluir.
“Somos uma família”.

O trio-elétrico saía da cidade. Meninas se faziam mulheres nos


quartos. Os comerciantes, amigos de todos, se repetiam. O terral varria
entre os quiosques. Os passageiros se aglomeravam em torno do
motorista do ônibus. Os bagageiros eram fechados com estrondos. O
burburinho aumentava entre as poltronas. O ar sugou a porta e a
suspensão testou-se à saída, jogando os passageiros para o alto. Um fio
cinzento seguiu o veiculo na manobra. O novelo carbônico flutuou no ar,
dissipando-se segundos após.

O ônibus agora flui pela beira-mar. As crianças botam as cabeças


na janela. Nos apartamentos, homens de short e mulheres de biquínis,
encostados no parapeito, viam a dourada mancha fumarenta se
apequenando, deixando para trás a temporada, o carnaval, as festas, os
rituais, Iemanjá e Nanan, o Cristo dos crentes e também Jeová, a alegria,
a AIDS, a luxúria, a maconha, madres, gaivotas e sátiros, baralhos e
barbáries, colas e cocas, o lixo nas ruas e a expectativa do ano que vem.
No hotelzinho na entrada de Empatia da Conquista, Bruno diz a Leslie
que coma mais uma colherada. Ah, mas ela não quer mais não.

Precisa se alimentar.

Estou bem, de verdade.

Recostada em três travesseiros, sua voz pelas paredes ecoa como


um pássaro rouco. Os braços erguidos. Os cabelos negros em desalinho
caem como uma cortina entreaberta. Sua palidez ilumina o meio-dia. O
olhar azul efloresce e tange em Bruno um nervo de felicidade. A
camisola de organza apenas realça sua nudez, entre o marrom e o
vermelho nas auréolas, abissal no umbigo, e dum escuro desejo nos
cabelos que se enrolavam entre as coxas, que o movimento feito quando
se ajeitou para que Bruno desse a colher que insistia deixa à mostra em
sua magnitude. A última colherada.

Agora chega mesmo. Ela vira o corpo num gesto dengoso, enfia o
rosto nos travesseiros. A camisola sobe um pouco mais, refletindo a
idade das lâmpadas na pele de tauxias. Bruno engole em seco, a
respiração suspensa. Um gaviãozinho voou histericamente à janela. Tudo
bem, não insistiria mais. Colocou o prato na cabeceira, incapaz de
desviar o olhar. Quer saber o que eu queria?, diz ela. Ele queria mesmo
saber do que ela precisava? O perfil, um horizonte onde os crepúsculos
se escondiam. Os dedinhos dos pés se afastaram uns dos outros
retornando ao normal em seguida. A respiração dela ondula o tecido
sobre o corpo e a de Bruno se entrecorta nas batidas do coração. Ela
ainda estava doentinha, não devia pensar naquilo.

Doentinha? Leslie ficou muito séria. Vira-se e encara. Doentinha?


De súbito, começa a rir, leva os braços na direção de Bruno, trazendo-o
sobre si. Ele sentiu o corpo e foi vencido pela força que ela não fez ao
enlaça-lo com as pernas. Não parece mais haver realmente nada que
não fosse excessivamente são em sua mulher. Leslie sentiu a reação que
provocara e seus dedos deram-na à luz. Não havia resistir, se é que por
um momento ele tivesse pensado em resistir. As mãos de Leslie, há
quanto tempo não as sentia. Na verdade, as últimas mãos que
percorreram seu corpo, desnudando-o, não foram as dela. Uma pontada
inexorável no coração. Os últimos lábios que o beijavam como agora,
que o engolfaram assim, não foram os dela. Assim? Não... Assim
nenhuma mulher no mundo saberia. E, se era o mesmo tipo de ato que
o extasiava, parecia uma outra coisa, um outro tipo de momento, um
outro gênero de movimentos, não existia no mundo mulher igual à sua
Leslie, àquela em quem deleitava-se num prazer bruxo, sua amada
Leslie Molinari.

Alguns dias depois, ao som do vento que encrespava as águas


noturnas de São Lombardo, Leonardo e Bruno conversam diante do
hotel. Eu me criei em Naus, Bruno, e lá pretendo morrer. Vim mesmo só
me assegurar de que vocês estão bem. Estavam, sim estavam muito
bem. Graças a ele, a Leonardo. Querido amigo. Mas Naus... Tinha
certeza? Leonardo tinha toda a certeza sim, Bruno podia ficar tranqüilo.
Eu imaginei um futuro de paz também para você. Agora por minha
causa, você será perseguido. Que glória maior num mundo como este
mundo? Ouviram que estava chovendo. Despediram-se. Não mais se
viveriam neste mundo.

Epílogo

Do alto do púlpito, o pastor conclamou os membros de sua igreja.


Que ninguém se engane! Sua voz soava alta e nítida, como alguém que
quer se fazer ouvir em meio ao estrépito de um fogo. Diz o Apocalipse
no Capítulo 22, verso 15, que é terrível o fim dos que se prostituem e
dos adeptos da magia. Ao dizer isso – observou – não pensava nas
mulheres nem aos adivinhos, mas nos que se entregam à ambição
desmedida, que podem fazer qualquer coisa em nome de um objetivo
qualquer de pura vaidade e aflição, aos assassinos por motivos torpes,
aos que amam a mentira e a praticam, aos que induzem seus irmãos ao
mal.

É preciso acabar com esse homem, diz Benévolo. Hilma diz que
nesse caso ele se transformaria num mártir. O pior que pode acontecer,
você não acha? Por outro lado, fala sobre um meio de destruí-lo sem
matá-lo, mais adequado. Aí estará realmente morto. Hilma se consiste
num trunfo para Benévolo. Amante deliciosa, principal acompanhante, e
ainda ardil perfeito para manter Carlo de mãos atadas no caso de ele
pensar que pode fazer comigo o que fez com Bruno. Reflete sobre as
palavras dela. Cumpria de fato dar um jeito nesse pastor, que não só é
incorruptível, como pior, veio do seio da Sociedade, sabia demais.
Durante algum tempo pensou-se que ele não propagava o que sabia
porque pretendia fazer chantagem. Quando foram aborda-lo a respeito e
voltaram com aquela resposta, que ele não os denunciava por ter muitos
amigos entre os membros e ter esperança de vê-los regenerados,
Benévolo resolveu que não havia solução senão matá-lo.

Aí, Hilma vem com essa conversa. O que pretende exatamente?


Ah, simples. Ela seduziria o pastor, ele ficaria desmoralizado com o
escândalo e perderia sua autoridade. Tudo então voltaria às boas. Tudo
bem, assente Benévolo, tentando controlar o ciúme. Não tinha ciúme de
Hilma com gringos velhos e tolos, mas um homem com aquela firmeza
de caráter era de fato um rival a temer. Quando ela está indo, pergunta
à amante quando. A filha de Carlo diz que pode ser nessa mesma noite.
O que lhe afiança o sucesso, ora, confiava em seus dons, Benévolo não?

Oh, sim. Ele conhecia. Temia às vezes em vez de estar usando-a


contra o pai, estar sendo manipulado por ela, talvez pelos dois. Quem
pode saber? Carlo é um velho moralista, desses de quem se pode
esperar tudo.

Apesar de ter dúvidas a respeito, se conseguiria seduzir o pastor e,


se conseguisse, se não havia algo melhor a fazer da proeza do que
entregá-lo à perdição – uma vida ao lado de um homem assim não seria
a remissão dela e provavelmente a felicidade? – Hilma entregou-se à
preparação de sua visita. O que fazer se, por exemplo, se apaixonasse?
Um pensamento que jamais a abandona, mas tampouco a domina. Veste
uma delicada blusa de viscose, de alcinhas. Liga os botões às casas com
visível prazer diante do espelho. Não haveria de ser ignorada mas
precisa ser discreta. A saia listrada é bem comprida, nos calcanhares.
Admira-se com prazer jovial. Solta os cabelos. Imagina ao sair qual dos
pretextos deverá usar para ficarem a sós.

O mais constrangedor é que tudo ocorreu conforme planejara.


Leonardo completamente deslumbrado. Não pode lhe negar um
aconselhamento. Mesmo à filha do homem que tentara matá-lo. Seu
espírito se fortaleceu muito depois do incêndio e atrás de alguém que
ele pensou que fosse aguardava-o quem ele era realmente, graças a
Deus, um homem íntegro, que não se atreverá mais a pecar contra seu
Deus. Hilma foi tocada também naquele dia. Desde então sente-se uma
pessoa melhor. Jamais imaginou poder agradar-se de si mesma àquele
ponto – estava feliz, vibrante, perfectível. A estranha perspectiva de
santidade a tornara realmente alegre. Harmonizara-se a seu
temperamento leonino a doçura de estar diante de um homem a quem
podia obedecer e respeitar. Está realmente linda, não é mais uma ilusão
estética. Branda ao falar, esperançosa ao sentir.
Quando os homens invadiram a igreja, antes de morrer, Leonardo
imaginou que fora apanhado numa armadilha, mas não amaldiçoou a
jovem, antes ergueu uma prece por ela. Porém Hilma nada teve a ver
com o atentado, e participou também na condição de vítima. O pai não
sabia que ela estaria ali. Morreu feliz, redimida. Estava amando pela
primeira vez na vida, pela primeira vez na vida seus olhos podiam ver.

Durante todo o tempo de seu pastorado, enorme foi a influência


de Leonardo. Para com os seus seguidores vindos do candomblé,
superior ao próprio Oxum na Baia das Naus, até o dia em que foi morto,
numa noite de tempestade.

Quando tempos mais tarde soube do crime, durante as cheias da


primavera, Bruno vivia uma vida pacata, criando gado e cultivando
cacau nos arredores de Santa Vasta, nem muito perto nem muito longe
das águas barrentas do rio. Mantinham ali uma escola com oficina e
computadores para os filhos de seus vizinhos, por quem eram
muitíssimo queridos. Estavam dando a previsão do tempo e logo depois
veio a notícia. Ele acabara de fazer o cheque para a família da moça da
boate. Sabe que uma vida não tem preço, mas sente-se obrigado a fazer
isso. Agora, senta-se junto ao rebanho sobre a forragem, prestando uma
homenagem ao amigo Leonardo. Encaixada no verde lá embaixo, a
casinha sobe no orvalho, refletida pelo pequeno lago.

Naquele exato momento, gritam seu nome. Há um tom diferente


na voz da esposa, um tom decididamente diferente. Quem poderá ser? A
moça deseja vê-lo. Aos poucos a figura toma forma. Leslie tem o cuidado
de não insinuar nada mas o cãozinho avisa em latidos aflitos. Quieto,
MacBeth!

A visão de Isabela é ainda deslumbrante, embora pareça cansada,


e até poderia se dizer mais alta, naturalmente é o ângulo e o plano de
fundo, mas seja como for é impressionante essa efígie materna, esse
fantasma vívido, Deus do céu!... Num mesmo olhar captou a deusa, a
razão de viver, a energia vital em forma humana. Quando aperta a mão
da mulata, treme um pouco. Não iria escapar desse dia. Então agora
vamos ver o que pode ser feito. Quem era aquela criança? A irmã
morreu, a sobrinha ficara sem ter quem a criasse. Ah, sim. O casal
lamentou. A profecia, é claro.

Sabendo que Isabela vinha se estabelecer em Santa Vasta,


Molinari apressou-se em apresenta-la a seu capaz, um homem íntegro,
trabalhador, só faltou dizer o melhor partido do lugar, um homem bom e
forte, elogiado desmesuradamente pelo patrão enquanto suplementava
o capim com uréia e sal.

FIM

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