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Eram então adolescentes. Ele vivia metido com uma turma mal
vista pela comunidade. Mas Leslie o compreendia. Filha de um deputado,
dava um jeito para que ele sempre se saísse bem de suas confusões.
Fazendo-se de contrariada, repreendia-o por essas atividades, mas
sutilmente o incentivava a mantê-las. São a certeza de um dinheiro
essencial para que ela não dependa mais do pai. Sempre apaixonado,
não havia o que não fizesse por ela. Então faça, Bruno. Eu te conheço. É
o que está querendo fazer.
Dinheiro não é tudo. Venha logo se sente algum afeto por esse
velho. Ele realmente não agüenta mais a demora.
Ela abre mais o vestido e tira-o por cima, sem deixar de cuidar do
dinheiro ao enrolar a roupa sobre a cadeira. Rebolando sempre,
aproxima-se da cama onde Cláudio está sentado e senta-se de novo em
seu colo. Os longos cabelos castanhos aos cabelos grisalhos se
misturam. O dedo grosso procura seu lugar. A mocinha tem um breve
estremecimento ao olhar para cima, por trás dos ombros dele, pela
fresta da janela, em direção ao quarto do casal.
Descem. Leslie põe água para ferver. Bruno observava pela porta
entreaberta a lua no oceano no corredor de casas. Pesa em seu espírito
o que está por fazer. Imagina se o pagamento ao cúmplice não poderia
incluir tudo. Se terá remorso e o quanto. Contempla a própria sombra
na parede, com irritação.
Mais do que por amor ou por desejo casou-se Bruno com Leslie
Henning. Precisava de uma companhia para enfrentar o mundo e
cumprir as coisas que estavam além dele, apesar de serem seu dever.
Porém com o correr do tempo, ela percebeu uma face dele que não
conhecia, ou pensava desconhecer: a determinação, a vontade férrea.
Então, não seria correto dizer que ele era de todo dependente. A
ascendência de Leslie sobre ele não é absoluta, mas um conjunto de
signos que só funcionam em sentidos específicos.
Quando Bruno disse que iria à boate acabar com Berebger, Leslie
concordou e lhe deu todo apoio, sem o qual ele possivelmente não teria
ido. Não por ter ela qualquer coisa contra o rival de Cláudio. Pelo
contrário, admirava todos os que se rebelavam, os que não se
submetiam, era a sua filosofia de vida: não dobrar-se diante de ninguém,
não fazer qualquer coisa apenas porque todas as pessoas faziam.
Ademais, não gostava de Cláudio, jamais gostara. O que fizera um dia
pelo menino Molinari fizera com o intuito conseguido, a gratidão eterna
de alguém cheio de potencial como Bruno, um jovenzinho rebelde,
inseguro, disposto a fazer qualquer coisa contra a lei que não o
protegera de uma infância infeliz. Agora Leslie passava momentos de
angústia sem saber como as coisas haviam transcorrido. Esperava o
marido, ansiosa. Onde estaria?
Outro lado da cidade. Os homens enviados por Cláudio
encontraram Bruno e levaram-no ao patrão. No interior de um aposento
luxuoso e sombrio, Cláudio Boguski discursa para um pequeno séqüito.
Você foi achado nas ruas negras da madrugada de Empatia atrás de
droga e trazido para nosso seio. E se mostrou digno de confiança –
falava mirando diretamente o rapaz, mas logo ampliou o olhar para
todos – Nossa sociedade é algo de que um homem possa se orgulhar em
ser membro. Debatemos o futuro da humanidade; vigilantes, retiramos
de seu convívio os que não merecem fazer parte dela. Somos uma
família que gosta das coisas boas da vida. Gostaríamos que todos
fizessem parte, mas nem todos estão preparados. Berebger é uma prova
viva do que estou falando.
Vaso ruim não quebra fácil, meu menino. Bruno não entende a
implicância de Leslie com relação a Cláudio. Ele é um homem bom. É
como um... pai para você. Isso. Ela sabe. Não, não sei. Exceto que você
quer se convencer disso. Ele me ama como a um filho. A gente ama
embora as pessoas a quem amamos tenham falhas. Cláudio ama Bruno
porque, quero dizer, porque você fez isso, porque fez aquilo. Nunca
embora tenha feito alguma coisa. Como por exemplo o próprio
Berebger. Foi fiel durante tanto tempo, Errou uma vez e se tornou
anátema. E quem arriscou a pele para eliminá-lo? O que é estar acima
dos demais estando abaixo de Cláudio? Você permanece serviçal, só que
agora com a inveja de todos. Só há uma maneira do que ele disse ter
alguma utilidade prática.
Bateram à porta.
Bruno enfia a cueca e vai abrir, Leslie vai aonde sua nudez não
possa ser vista por quem está batendo; basta chegar à janela. Olha e vê
Margherita passando na rua, toda faceira como sempre. Invejou-a. Teve
pena dela. Tão menina assim, pelas ruas, em camas nojentas... Leslie
chegara em Tundra aos dezesseis anos. Queria se livrar da presença do
pai moralista que em casa se transformava, sobretudo dentro do quarto
da menina. Talvez a vida correta que pregava fosse tão enfadonha que
ele precisava de um estímulo a mais para excitar-se. Mesmo depois de
vários namorados, Leslie jamais ouvira de nenhum tantas obscenidades
como quando das visitas do pai durante as noites. Pior quando começou
a menstruar. Ela lhe implora uma trégua, mas ele não a poupa, exige
mudanças. Extrapolou, pensara ela. Tomou coragem e contou à mãe. Se
ela não acreditou ou sempre soube, o fato é que Leslie, se não tinha
prazer em ficar, foi convidada a sair de casa, porque pessoas não se
tornam boas por serem pais, assim como a idade não traz
necessariamente sabedoria.
Ela disse que até faria o jantar. Desde que lhe servissem a morte
de sobremesa. Estava louca. Se você fizer isso, me submeto com você a
essa humilhação – continua Leslie como se não tivesse ouvido o
comentário –, que um outro homem mande sua mulher cozinhar para
ele. Não vê? Só faltou pedir um prato especial. Ele pediu, disse Bruno
cabisbaixo. Não acredito! – com gestos largos, Leslie levou as mãos à
cabeça. O que ele quer? Chuleta de boi na grelha. Com ou sem
pimenta? Com pimenta e champignon. Envergonhado e constrangido,
ele a viu dar uma gostosa risada.
Leslie fora feliz naquela casa, lá conhecera a paz; eis que agora
alguma coisa a incomoda, e tem decerto a ver com Cláudio, com a
maneira sem cerimônia como ali se comporta. Uma casa precisa ter a
alma de seus moradores e não conhece a alma daquele Bruno
subserviente, ela, que o sabia de cor, todas as peculiaridades de seu
caráter, todo acento de sua personalidade, firme como a casa,
dependente apenas da casa e do que havia no entorno, os cavalos
pastando ao redor, o café e a cereja, as coisas que ela sabia o marido
atentava com quase devoção, as aves praianas e os morcegos das
frutas, a fala dos coloridos pássaros repetidores, choramingando por
causa de um tempo que parecia se perder desde que conheceram a
segurança da proteção da Sociedade.
Bom dia. Que entrem, por favor. Leslie iria falar com Bruno para
chama-lo. Lentamente confuso, o homem habita uma realidade
intermediária que o assusta. De onde vem, de que parte dos
acontecimentos ou talvez de que parte dele mesmo? Quando ela se
afasta, Carlo desaprova silenciosamente o olhar que em seus
seguranças tinha Leslie por objeto. A filha, Hilma, a invejava. Ela
acredita nos astros e nos presságios, amadurecida por um imaginário
em que a ternura maior não é manifesta e os melhores dons da bondade
se mostram na penumbra. Não vou não pai, prefiro ficar em casa. Na
verdade, não sei se me interesso por alguma dessas coisas da
Sociedade. “Vou falar com Bruno para...” – arremedou o pai.
Não. A mulher dele, Zelhia, diz que não. Impedi-lo-iam. Mas não
tinham como provar que Bruno é o assassino. Ela sabe que sim, que é
ele, que não podem provar. E não é o momento de saber coisas assim.
Carlo sugere que se afastem. Apenas para dar um tempo, para que o
próprio Bruno em sua ambição desmedida acabe por decair aos olhos
daqueles que agora o têm como deus. Aconteceria sem dúvida. Agora
sente-se, Zelhia, você precisa descansar. Percebe o quanto aquilo está
afetando a mulher e na mesma proporção de seu amor por ela odeia
Bruno. Por outro lado, caso se afastem, despertarão suspeitas. Mas ele
insiste e diz Vamos. Logo esse bastardinho terá corda suficiente para se
enforcar.
À noite, com a esposa, Bruno comenta com mal contida ira. Você
viu como Zenon exibia seu filho a todos? Conquanto esteja tensa e
aborrecida, ela sente que antes de qualquer coisa precisava acalmar
Bruno. À beira da cama, tira-lhe a calça com dedos ágeis, ajoelhada
prepara-o e senta-se em seu colo. Mesmo alheio ele fica imediatamente
preparado. Ela mexe-se, perfeita. Imagina-o observando-a por trás. Ele
tem um filho, diz entre os próprios gemidos; você, uma mulher. Agora
deitado, as pernas dobradas permitindo que os pés cheguem ao chão,
ele não sente o que sente e não ouve a mulher. Nós é que devíamos ter
um filho para ser louvado no meio de todos, monologa.
Leslie não para, abre mais, depois fecha as pernas, sempre
mexendo-se, girando em torno do desejo dele, saindo e voltando, e
saindo de novo. Aos poucos ele se deixa envolver; senta-se e ela se
inclina e recua, apóia-se no beiral da cama, ajoelham-se quase ao
mesmo tempo, ela ainda apoiada. Agora a situação é outra, ela sente o
calor da barriga dele, o que irá permanecer por esses próximos dez
minutos, com os devidos intervalos de afastamento, até que sentiram as
contrações, as dela sugando-lhe a virilidade. Esgotado, suspira com
força ao encontrarem-se queixo e nuca. Relaxou de uma só vez os
músculos retesados, soltando-se de costas na cama. Com a voz da
mulher em seu ouvido, deixa-se ninar e adormece.
Leslie volta agora, os olhos postos num chão que só ela vê. Não.
Cláudio não iria protege-la. Só mima-la um pouco. Mas isso Bruno
também faz, do jeito dele. E afinal, é ele a quem ela ama e isso deve ter
algum valor. Ama... Que amor louco... De onde veio? Para onde a levará?
Suas formas magníficas transbordando pela camisola transparente,
senta-se sob a castanheira no centro do pátio, bem ali onde servira o
sonífero aos guarda-costas. E quem a ama afinal? Possivelmente, só
mesmo a sua morte...
Num rompante, Bruno não suportou mais, nem sabia por que
deixara que a cena se prolongasse tanto. Força a passagem por
Leonardo. Acordar alguém que está andando e sonhando, a pessoa pode
ter um ataque. Pára. Decide. Agradece pela preocupação e fidelidade do
empregado, não a merece. Pede que passe no escritório no dia seguinte.
Bruno vai deixar a Sociedade. Acertariam as contas. Talvez Leonardo
seja a pessoa ideal para ficar com o meu lugar, quem sabe devolver os
propósitos originais da organização, se é que existiram de fato, os idéias
dos “pedreiros”. Bruno vai mesmo embora.
Está delirando mais que ela, senhor. Não, Leonardo, amigo, não
estou. Talvez alguém como você... uma fruta colhida no pé. Eu já estava
na estrada, apodrecendo. Quem sabe você possa dar à Sociedade o
sentido verdadeiro de justiça, de religião, de caridade. O tráfico, o jogo,
a prostituição – essas coisas degeneraram o que era para ser uma
família. É. Amanhã resolveriam isso direitinho. Agora deixe-me leva-la
para o quarto.
Ele lhe diz que ela parece melhor. Sabe o que vamos fazer? Vamos
para longe daqui, para bem longe, recomeçaremos a vida em outro
lugar, em Santa Vasta, que tal? Dariam uma bela festa, dessas que ela
tanto gosta. Construiriam uma casinha. Dizem que lá existem boas
escolas. E nós vamos precisar de um lugar bom, com boas escolas,
porque longe desse ambiente viciado de Tundra você logo ficará grávida
de nosso tão sonhado filho. Nas sextas vamos ao teatro, nos sábados
aos bailes, nos domingos ao circo. Ou simplesmente ficaremos em casa,
longe do mundo. Estava pensando em uma casa na cidade e um
sitiozinho nos arredores. Quem é você? Sou eu, Bruno. Bruno? Alguém
falou que a gente ia dar uma festa. Sim, uma festa. E a quem
convidariam? Teremos verdadeiros amigos.
***
O fogo, alastrando-se, crepita. As janelas, como bocarras de um
dragão enfurecido, sopram as chamas; o vento cospe- as para o céu. De
longe se vêem as colunas da fumaça negra e densa. Causa náusea nos
poucos transeuntes próximos o cheiro das pesadas nuvens. Agora as
paredes, incendeiam-se sob calor infernal. O prédio caía em grandes
pedaços abrasados, de papel. Os móveis são pulverizados. Uma voz
chama Bruno.
Precisa se alimentar.
Agora chega mesmo. Ela vira o corpo num gesto dengoso, enfia o
rosto nos travesseiros. A camisola sobe um pouco mais, refletindo a
idade das lâmpadas na pele de tauxias. Bruno engole em seco, a
respiração suspensa. Um gaviãozinho voou histericamente à janela. Tudo
bem, não insistiria mais. Colocou o prato na cabeceira, incapaz de
desviar o olhar. Quer saber o que eu queria?, diz ela. Ele queria mesmo
saber do que ela precisava? O perfil, um horizonte onde os crepúsculos
se escondiam. Os dedinhos dos pés se afastaram uns dos outros
retornando ao normal em seguida. A respiração dela ondula o tecido
sobre o corpo e a de Bruno se entrecorta nas batidas do coração. Ela
ainda estava doentinha, não devia pensar naquilo.
Epílogo
É preciso acabar com esse homem, diz Benévolo. Hilma diz que
nesse caso ele se transformaria num mártir. O pior que pode acontecer,
você não acha? Por outro lado, fala sobre um meio de destruí-lo sem
matá-lo, mais adequado. Aí estará realmente morto. Hilma se consiste
num trunfo para Benévolo. Amante deliciosa, principal acompanhante, e
ainda ardil perfeito para manter Carlo de mãos atadas no caso de ele
pensar que pode fazer comigo o que fez com Bruno. Reflete sobre as
palavras dela. Cumpria de fato dar um jeito nesse pastor, que não só é
incorruptível, como pior, veio do seio da Sociedade, sabia demais.
Durante algum tempo pensou-se que ele não propagava o que sabia
porque pretendia fazer chantagem. Quando foram aborda-lo a respeito e
voltaram com aquela resposta, que ele não os denunciava por ter muitos
amigos entre os membros e ter esperança de vê-los regenerados,
Benévolo resolveu que não havia solução senão matá-lo.
FIM