Vous êtes sur la page 1sur 74
Capitulo 1 DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUICAO 1. ORIGEM E CONTEUDO DO DIREITO CONSTITUCIONAL Podemos conceituar Estado, de forma genérica e simplificada, como a organiza¢éo de um povo sobre um territério determinado, dotada de sobe- rania. Nessa defini¢éo estéo os elementos tradicionalmente descritos como necessdrios 4 existéncia de um Estado: a soberania, 0 povo ¢ o territério. Os estudiosos da Teoria do Estado acrescentaram, ulteriormente, a finalidade como elemento integrante da nogdo de Estado, ou seja, a organizagio sobe- rana de um povo em um territério deve ser orientada ao atingimento de um conjunto de finalidades. Todo Estado, conforme acima conceituado, tem uma Constitui¢do, em um sentido amplo. Nessa acepgao ampla, ou sociologica, a Constituigao é sim- plesmente a forma de organizagdo do Estado. Trata-se de um conceito fatico de Constituig&o, que independe da existéncia de um texto escrito, ou mesmo de normas, escritas ou nao, referentes a essa organizag4o; usualmente é em- pregada, para descrevé-lo, a expresso “Constituigao material do Estado”. Conquanto, no sentido abordado no paragrafo anterior, todos os Estados tenham Constituigdo, 0 estudo sistematico e racional do fendmeno constitucio- nal somente se desenvolve a partir do surgimento das primeiras Constituigdes escritas, elaboradas para desempenhar o papel de lei fundamental do Estado. Denomina-se constitucionalismo o movimento politico, juridico ¢ ideolégico que concebeu ou aperfeicoou a idéia de estruturacdo racional do Estado ¢ de limitagio do exercicio de seu poder, concretizada pela elaboracao de um documento escrito destinado a representar sua lei fundamental e suprema. 2 DIREITO CONSTITUGIONAL DESCOMPLICADO = Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina Para efeito de estudo, identifica-se a origem do constitucionalismo com a Constituigaéo dos Estados Unidos, de 1787, e a Constituicdo da Franga, de 1791. Ambas sao Constituigdes escritas ¢ rigidas, inspiradas nos ideais de racionalidade do Iluminismo do século XVIII e, sobretudo, na valorizagiio da liberdade formal (/aissez faire) e do individualismo, marcas nucleares do Liberalismo, corrente de pensamento hegeménica nos campos politico, juridico e econémico dos séculos XVIII, XIX, e primeiro quartel do século XX. © contetido dessas primeiras Constituigdes escritas e rigidas, de orien- taco liberal, resumia-se ao estabelecimento de regras acerca da organizacao do Estado, do exercicio e transmissio do poder e a limitagdo do poder do Estado, assegurada pela enumeracio de direitos e garantias fundamentais do individuo. A expresso Direito Constitucional — explicitando que a organizacao estatal €, sobretudo, uma ordem juridica ~ nasce com o constitucionalismo. Em sua origem, o Direito Constitucional refere-se, téo-somente, 4 ordem juridica fundamental do Estado liberal, Portanto, 0 Direito Constitucional nasceu impregnado dos valores do pensamento liberal. Com o seu desenvolvimento, em um periodo seguinte, 0 Direito Cons- titucional, aos poucos, foi se desvinculando dos ideais puramente liberais. A Constituigao assume uma nova feig&o, de norma juridica e formal, protetora dos direitos humanos. Em decorréncia dessa evolug’io de pensamento, a Constituigao deixou de retratar exclusivamente uma certa forma de organizagdo politica — a do Estado liberal, com sua ideologia — e passou a representar o espelho de toda e qualquer forma de organizagao politica. O contetido do Direito Constitucional desatou-se de consideragdes doutrindrias ou ideol6gicas, passando a tratar das “regras fundamentais de estruturagao, funcionamento e organizagao do poder, nao importa o regime politico nem a forma de distribuigéo da competéncia aos poderes estabelecidos” (Paulo Bonavides). Modernamente, as press6es, as exigéncias e os conflitos sociais tém forgado o constitucionalismo puramente juridico a ceder lugar ao constitucio- nalismo politico, democratico ¢ social. Assim, 0 Direito Constitucional atual, a par de assegurar as conquistas liberais, apresenta marcada feigao politica e forte contetido democratico e social. Importante destacar que, em todas as fases de sua evolugao, o constitucio- nalismo nao perdeu o seu trago marcante, que é a limitago, pelo Direito, da ingeréncia do Estado (Governo) na esfera privada. Essa sempre foi ~ em to- das as suas fases ~ a caracteristica essencial do movimento constitucionalista. O Direito Constitucional é um ramo do direito publico, fundamental a organiza¢do, ao funcionamento ¢ a configuracao politica do Estado. Nesse papel, de direito piblico fundamental — feliz expresso de José Afonso da Gap. 1 + DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIGAO 3 Silva —, o Direito Constitucional estabelece a estrutura do Estado, a organiza- ¢4o de suas instituigdes e drgdos, o modo de aquisi¢do e exercicio do poder, bem como a limitagao desse poder, por meio, especialmente, da previsiio dos direitos e garantias fundamentais. Afirma-se que o Direito Constitucional é muito mais do que apenas um ramo do direito ptiblico. Ele consubstancia a matriz de toda a ordem juridica de um especifico Estado. Figurativamente, 0 Direito Constitucional é repre- sentado como o tronco do qual derivam todos os demais ramos da grande Arvore que é a ordem juridica de determinado Estado (essa imagem tem o mérito de representar a unidade do Direito — por definigao, indivisivel —, consubstanciada na arvore, ¢ esclarecer que a alusio a “ramos” tem fungao puramente didatica). 1.1. Objeto do Direito Constitucional quanto ao foco de investigagao O Direito Constitucional, em sentido amplo, subdivide-se, conforme o foco principal de suas investigagdes ¢ os métodos de que se vale para leva-las a cabo, em Direito Constitucional especial, Direito Constitucional comparado e Direito Constitucional geral. O Direito Constitucional especial (particular, positivo ou interno) tem por objetivo o estudo de uma Constituicao especifica vigente em um Estado determinado. Sua orientag4o, portanto, é tipicamente dogmatica: ocupa-se do direito positivo, procedendo 4 anilise, interpretacao, sistematizagao e critica das regras e principios integrantes ou defluentes de uma certa Constituicgdo, nacional ou estrangeira (estudo do vigente Direito Constitucional brasileiro; ou do vigente Direito Constitucional italiano; ou do vigente Direito Consti- tucional argentino etc.). O Direito Constitucional comparado tem por fim 0 estudo comparativo de uma pluralidade de Constituigdes, destacando os contrastes ¢ as semelhang: entre elas. Trata-se de um método descritivo, baseado no cotejo de diferentes textos constitucionais (a rigor, nao é propriamente uma ciéncia). No confronto dos textos constitucionais, 0 Direito Constitucional com- parado pode adotar: (a) 0 critério temporal; (b) 0 critério espacial; e (c) 0 critério da mesma forma de Estado. Pelo critério temporal, ou comparagao vertical, confrontam-se no tem- po as Constituigdes de um mesmo Estado, observando-se as semelhang: e diferencas entre as instituigdes que o direito positive haja conhecido em épocas distintas da evolugao constitucional daquele Estado. Trata-se, assim, do estudo das normas juridicas positivadas nos textos das Constituigdes de um mesmo Estado em diferentes momentos histérico-temporais. Seria 0 caso, 4 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO + Vicente Paulo & Marcelo Alexandrina por exemplo, do estudo comparativo das diferentes Constituigdes brasileiras, da Constituigio do Império a Constituigao Federal de 1988. Pelo critério espacial, ou comparagao horizontal, comparam-se, no es- pao, diferentes Constituigdes vigentes, isto ¢, confrontam-se Constituigdes de diferentes Estados, preferencialmente, de reas geograficas contiguas. Seria 0 caso, por exemplo, do confronto da Constituigao do Brasil com as Constituigdes dos demais paises integrantes da América Latina; ou do estudo comparativo dos textos constitucionais dos paises que integram o Mercado Comum do Sul ~ MERCOSUL; ou do estudo comparativo das Constituigdes dos paises que integram a Unido Européia etc. Dentre os trés critérios, esse é 0 mais utilizado. Pelo critério da mesma forma de Estado, confrontam-se Constituigdes de paises que adotam a mesma forma de Estado, as mesmas regras de orga- nizagdo. Seria o caso, por exemplo, do estudo comparativo das Constituicdes de alguns paises que adotam a forma Federativa de Estado. O Direito Constitucional geral (ou comum) tem por fim delinear, siste- matizar e dar unidade aos principios, conceitos e instituigdes que se acham presentes em varios ordenamentos constitucionais. Sua fungao é, portanto, a elaboracdo de uma teoria geral de carter cientifico (ciéncia tedrica, nao meramente dogmatica ou descritiva). Cabe ao Direito Constitucional geral ov comum definir as bases da deno- minada teoria geral do Direito Constitucional, tais como: conceito de Direito Constitucional; fontes do Direito Constitucional; conceito de Constituigao; classificagéo das Constituigdes; conceito de poder constituinte; métodos de interpretagao da Constitui¢ado etc. E importante destacar que 0 Direito Constitucional especial, 0 Direito Constitucional comparado e o Direito Constitucional geral estéo em constante convivio, em permanente interconexao. Assim, o Direito Constitucional com- parado, ao realizar o confronto de diferentes textos constitucionais, contribui para o aperfeigoamento do Direito Constitucional especial de determinado pais, bem assim para 0 enriquecimento tedrico do Direito Constitucional ge- ral. O Direito Constitucional geral, partindo do estudo comparativo realizado pelo Direito Constitucional comparado, contribui para a formagao do Direito Constitucional especial de cada pais, e assim por diante. CONSTITUICGAO: NOGOES INICIAIS, OBJETO E EVOLUGAO A Constituigao, objeto de estudo do Direito Constitucional, deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que rege a sua organizagao politico-juridica. Gap. 4 « DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIGAO 5 As normas de uma Constituig&io devem dispor acerca da forma do Estado, dos 6rgaos que integram a sua estrutura, das competéncias desses érgaos, da aquisig’o do poder e de seu exercicio. Além disso, devem estabelecer as limitagdes ao poder do Estado, especialmente mediante a separagdo dos poderes (sistema de freios ¢ contrapesos) e a enumeracdo de direitos ¢ ga- rantias fundamentais. O constitucionalista J. J. Gomes Canotilho, com base nos pontos es- senciais da concepgio politico-liberal de Constituigo, cunhou a expressio “Constituigdo ideal”, reiteradamente citada pelos autores patrios. Os elementos caracterizadores desse conceito de “Constituigao ideal”, de inspiracao liberal, so os seguintes: a) a Constituigao deve ser escrita; b) deve conter uma enumeragao de direitos fundamentais individuais (direitos de liberdade); c) deve adotar um sistema democratico formal (participago do “povo” na elaboragaio dos atos legislativos, pelos parlamentos); d) deve assegurar a limitag3o do poder do Estado mediante o principio da divisdo de poderes. O alargamento do ambito de ac&o do Estado — o Estado atual possui atribui¢des jamais cogitadas pelo Liberalismo classico — tem levado a um consideravel aumento da importancia do Direito Constitucional nos estudos juridicos, bem como a tendéncia de ampliagao de seu contetido material Conforme antes referido, as normas de uma Constituic¢ao, no Estado liberal, deviam restringir-se a determinar a estrutura do Estado, 0 modo de exercicio e transmissio do poder e a reconhecer direitos fundamentais de liberdade aos individuos. No Estado moderno, de cunho marcadamente social, a doutrina constitu- cionalista aponta o fendmeno da expansio do objeto das Constituigdes, que tem passado a tratar de temas cada vez mais amplos, estabelecendo, por exemplo, finalidades para a aco estatal. Isso explica a tendéncia contemporanea de cla- boragao de Constituigdes de contedido extenso (Constituigdes analiticas ou pro- lixas) ¢ preocupadas com os fins estatais, com o estabelecimento de programas ¢c linhas de diregao para o futuro (Constituigdes dirigentes ou programaticas). 2.1. Constituigaéo em sentido socioldgico, politico e juridico O Direito Constitucional nao se desenvolve isolado de outras ciéncias de base social, tais como a Politica, a Sociologia, a Filosofia. 6 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO - Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino Em maior ou menor grau, essas ciéncias possuem lagos de intercone- xo, 0 que permite sejam construidas diferentes concepgdes para o termo Constituigé0, como norma basica de um Estado, a saber: Constituigao em sentido sociolégico, Constituigiio em sentido politico e Constitui¢ao em sentido juridico. Na visio sociolégica, a Constituigao 6 concebida como fato social, e nao propriamente como norma. O texto positivo da Constituigao seria resultado da realidade social do Pais, das forgas sociais que imperam na sociedade, em determinada conjuntura histérica. Caberia 4 Constitui¢do escrita, téo- somente, reunir e sistematizar s valores sociais num documento formal, documento este que s6 teria eficacia se correspondesse aos valores presentes na sociedade. Representante tipico da visio sociolégica de Constituigéo foi Ferdinand Lassalle, segundo 0 qual a Constituigéio de um pais é, em esséncia, a soma dos fatores reais de poder que nele atuam, vale dizer, as forgas reais que mandam no pais. Para Lassalle, constituem os fatores reais do poder as forcas que atuam, politica e legitimamente, para conservar as instituigdes juridicas vigentes. Dentre essas forgas, ele destacava a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros e, com especificas conotagdes, a pequena burguesia e a classe operaria. Segundo Lassalle, convivem em um pais, paralelamente, duas Consti- tuigdes: uma Constituigdo real, efetiva, que corresponde a soma dos fatores reais de poder que regem esse Pais, e uma Constituicao escrita, por ele de- nominada “folha de papel”. Esta, a Constituigao escrita (“folha de papel”), sé teria validade se correspondesse a Constituigao real, isto é, se tivesse suas raizes nos fatores reais de poder. Em caso de conflito entre a Constituigao real (soma dos fatores reais de poder) e a Constituigao escrita (“folha de papel”), esta sempre sucumbiria aquela. Para explicar sua visio sociolégica, Lassalle expunha, entre outras, a seguinte passagem: Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: ‘Esta drvore é uma figueira’. Bastard esse papel para transformar em figueira o que & macieira? Nao, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razio de solida- riedade, confirmassem a inscrigGo existente na drvore, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, estes destruiriam a fibula, produzindo magiis, e no figos. O mesmo ocorre com as Constituigdes. De nada servira 0 que se escrever numa folha de papel, se nao se justificar pelos fatores reais ¢ efetivos do poder. Cap. 1 + DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIGAO 7 E também sociolégica a concepg4o marxista de Constituig’o, para a qual a Constituigao nao passaria de um produto das relagdes de producio e visaria a assegurar os interesses da classe dominante. Para Karl Marx, a Constituigao, norma fundamental da organizacao estatal, seria um mero instrumento nas mios da classe dominante, com o fim de assegurar a manutengio de seus interesses, dentro de um dado tipo de relagdes de produgao. A concepgio politica de Constituigao foi desenvolvida por Carl Schmitt, para o qual a Constituicio é uma decisao politica fundamental. Para Schmitt, a validade de uma Constituigao nao se apdia na justiga de suas normas, mas na decisao politica que lhe da existéncia. O poder constituinte equivale, assim, a vontade politica, cuja forga ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisfio de conjunto sobre modo e forma da pré- pria existéncia politica, determinando assim a existéncia da unidade politica como um todo. A Constituigéo surge, portanto, a partir de um ato constituinte, fruto de uma vontade politica fundamental de produzir uma decisao eficaz sobre modo e forma de existéncia politica de um Estado. Nessa concepgao politica, Schmitt estabeleceu uma distingao entre Cons- tituigao ¢ leis constitucionais: a Constituicdo disporia somente sobre as ma- térias de grande relevancia juridica, sobre as decisdes politicas fundamentais (organizagao do Estado, principio democratico ¢ direitos fundamentais, entre outras); as demais normas integrantes do texto da Constituigao seriam, tao- somente, leis constitucionais. Em sentido juridico, a Constituigdo é compreendida de uma perspectiva estritamente formal, apresentando-se como pura norma juridica, como norma fundamental do Estado e da vida juridica de um pais, paradigma de validade de todo 0 ordenamento juridico e instituidora da estrutura primacial desse Estado. A Constituigdo consiste, pois, num sistema de normas juridicas. O pensador mais associado a visio juridica de Constituigéo é 0 austriaco Hans Kelsen, que desenvolveu a denominada Teoria Pura do Direito. Para Kelsen, a Constituigéo é considerada como norma, e norma pura, como puro dever-ser, sem qualquer consideragdo de cunho sociologico, politico ou filosofico. Embora reconhega a relevancia dos fatores sociais numa dada sociedade, Kelsen sempre defendeu que seu estudo nao compete ao jurista como tal, mas ao socidlogo e ao fildsofo. Segundo a visio de Hans Kelsen, a validade de uma norma juridica positivada é completamente independente de sua aceitagdo pelo sistema de valores sociais vigentes em uma comunidade, tampouco guarda relagdéo com a ordem moral, pelo que nao existiria a obrigatoriedade de o Direito coa- dunar-se aos ditames desta (moral). A ciéncia do Direito nado tem a fungdo 8 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO « Vicente Paulo & Marcelo Alexandrino de promover a legitimag3o do ordenamento juridico com base nos valores sociais existentes, devendo unicamente conhecé-lo e descrevé-lo de forma genérica, hipotética e abstrata. Esta era a esséncia de sua teoria pura do direito: desvincular a ciéncia juridica de valores morais, politicos, sociais ou filoséficos. Kelsen desenvolveu dois sentidos para a palavra Constituigao: (a) sentido légico-juridico; (b) sentido juridico-positivo. Em sentido légico-juridico, Constituigao significa a norma fundamental hipotética, cuja fungaio € servir de fundamento légico transcendental da va- lidade da Constituigao em sentido juridico-positivo. Essa idéia de uma norma fundamental hipotética, ndo positivada, pres- suposta, era necessria ao sistema propugnado por Kelsen, porque ele nao admitia como fundamento da Constituicgdo positiva algum elemento real, de indole sociolégica, politica ou filosofica. Assim, Kelsen viu-se forgado a desenvolver um fundamento também meramente formal, normativo, para a Constitui¢o positiva. Denominou esse fundamento “norma fundamental hipotética” (pensada, pressuposta), que existiria, segundo ele, apenas como pressuposto légico de validade das normas constitucionais positivas. Essa norma fundamental hipotética, fundamento da Constituigao positiva, nao possui um enunciado explicito; 0 seu contetido pode traduzir-se, em linhas gerais, no seguinte comando, a todos dirigidos: “conduzam-se conforme de- terminado pelo autor da Constituigao positiva’; ou, de forma mais simples, “obedecgam a Constituigdo positiva”. Para Kelsen, a norma juridica nao deriva da realidade social, politica ou filoséfica. O fundamento de validade das normas nao esta na realidade social do Estado, mas sim na relagdo de hierarquia existente entre elas. Uma norma inferior tem fundamento na norma superior, e esta tem fundamento na Constituigdo positiva. Esta, por sua vez, se apdia na norma fundamental hipotética, que nado é uma norma positiva (posta), mas uma norma imaginada, pressuposta, pensada. Em sentido juridico-positivo, Constituigdo corresponde a norma positiva suprema, conjunto de normas que regulam a criagao de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau. Ou, ainda, corresponde a certo documento solene que contém um conjunto de normas juridicas que somente podem ser alteradas observando-se certas prescrigdes especiais. Dessas concepgées de Constituig&o, a relevante para o Direito moderno & a juridico-positiva, a partir da qual a Constituigdo é vista como norma fundamental, criadora da estrutura basica do Estado e parametro de validade de todas as demais normas. Cap. 4 = DIREITO CONSTITUGIONAL E CONSTITUIGAO 8 Sentido Sociolégico Sentido Politico Sentido Juridico ‘A Constituigao 6 a soma dos | A Constituicao é uma de- fatores reais de poder que | cisao politica fundamental regem uma nagao (poder | sobre a definigao do perfil pri econémico, militar, politico, | mordial do Estado, que teria religioso etc.), de forma que | por objeto, principalmente, a a Constituico escrita sé teré | forma e o regime de governo, eficacia, isto é, s6 determina- | a forma de Estado e a ma- 8 efetivamente as interrela- | triz ideolégica da nagéo; as ges sociais dentro de um | normas constantes do docu- Estado quando for construida | mento constitucional que nao ‘em conformidade com tais fa- | derivem da decisao politica tores; do contrario, tera efeito | fundamental nao sdo “Cons- meramente ret6rico (“folha de | tituigao", mas, téo-somente, papel’). “leis constitucionais" A Constituigao € compreend da de uma perspectiva estri tamente formal, consistindo na norma fundamental de um Estado, paradigma de valida- de de todo 0 ordenamento juridico e instituidora da es- trutura primacial do Estado; a Constituigao 6 considerada ‘como norma pura, como puro dever-ser, sem qualquer con- sideragao de cunho sociolégi- £0, politico ou filoséfico. 2.2. Constituigao em sentido material e formal Na concep¢ao politica de Constituigao, de Carl Schmitt, aparece o es- bogo da idéia de existéncia, em um mesmo documento escrito, de normas de contetido propriamente constitucional ~ as normas postas em razio da “decis&o politica fundamental” — e outras normas de contetido diverso, nao fundamentais, as quais foram chamadas meras “leis constitucionais”. A evolucao dessa nogao da surgimento 4 consagrada distin¢ao doutrindria entre Constitui¢éo em sentido material’ e em sentido formal. Constituigao em sentido material (ou substancial) € 0 conjunto de nor mas cujo contetido seja considerado propriamente constitucional, isto é, essencial a estruturago do Estado, a regulagdio do exercicio do poder e ao reconhecimento de direitos fundamentais aos individuos. Consoante ensina Paulo Bonavides, “do ponto de vista material, a Constituigao é 0 conjunto de normas pertinentes a organizagao do poder, a distribuigaio da competéncia, ao exercicio da autoridade, 4 forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais”. Segundo esse conceito, hi matérias que sao constitucionais em razdo de seu contetido, e as normas que delas tratam ~ nao importa se escritas ou consuetudinarias, se integrantes de um Unico documento escrito de forma unitdria ou de textos esparsos surgidos em momentos diversos — ostentam a natureza de normas constitucionais (normas materialmente constitucionais). Nao se esta referindo, aqui, a0 conceito fatico, sociolégico, de “Constituic&o material do Estado", entendido como o conjunto de fatores reais que integram e que determinam a organizacao peculiar de uma determinada comunidade politica. A expressao “Constituigao em sentido material", neste topico, refere-se a normas constitucionais, que podem ser escritas ‘ou no, mas so normas, nao elementos faticos. 10 DIREITO CONSTITUCIONAL DESCOMPLICADO = Vicente Paulo & Marcelo Alexandrine O conceito formal de Constituigao diz respeito 4 existéncia, em um de- terminado Estado, de um documento tinico, escrito por um Grgdo soberano instituido com essa especifica finalidade, que contém, entre outras, as normas de organizagao politica da comunidade e, sobretudo, que s6 pode ser altera- do mediante um procedimento legislativo mais arduo, e com muito maiores restrigdes, do que o necessario 4 aprovacdo das normas nao constitucionais pelos drgaos legislativos constituidos. Nesse documento podera haver normas de qualquer contetdo. E evidente que as normas fundamentais concernentes 4 estruturag’o e ao funcionamen- to dos poderes estatais, bem como aos direitos fundamentais dos cidadaos, deverao constar dessa Constituigdo escrita. Entretanto, inumeras outras disposigdes, tratando virtualmente de qualquer matéria que o constituinte entenda por bem algar ao status constitucional, poderao figurar no texto da Constituigéo formal. Essas disposiges terdo hierarquia idéntica 4 daquelas outras que, na mesma Constitui¢do escrita, veiculam normas tidas como materialmente cons- titucionais. A hierarquia das normas constitucionais, em uma Constitui¢éo em sentido formal, é determinada simplesmente pelo fato de as disposigdes que as veiculam constarem do texto da Constituigdo escrita do Estado; nao existe absolutamente nenhuma distingao formal entre as disposi¢des constantes do texto constitucional, sejam quais forem os seus contetidos. De outra parte, em um Estado dotado de Constituigdo escrita e rigida (que exige um procedimento especialmente arduo para sua modificagdo), qualquer disposic¢o que nao esteja no texto da Constituig&o, ainda que veicule normas cujo conteido seja tido por materialmente constitucional, poderé ser livremente alterada pelo legislador constituido mediante os mesmos procedimentos necessarios 4 edigao e alterago de toda a legisla- ¢4o n&o constitucional. Nao existe, por exemplo, absolutamente nenhuma diferenca formal entre as leis ordinarias no Brasil, seja qual for a matéria de que tratem. Como se pode notar, somente faz sentido falar em Constituigao em sentido formal nos Estados dotados de Constituigdo escrita e rigida. Finalizando este topico, procuramos esbogar, com escopo puramente dida- tico, um conceito basico de Constitui¢o, reunindo elementos integrantes das acepcoes material e formal de Constituigdo. Podemos definir as Constituigdes atuais como: 0 conjunto de normas, reunidas ou no em um texto escrito, que estabelecem a estrutura basica das instancias de poder do Estado, regulam o exercicio e a transmissaio desse poder, enumeram os direitos fundamentais das pessoas e os fins da atuacdo estatal; no caso das Constituigdes escritas, a par das normas que expressam esses contetdos fundamentais, pode haver outras — defluentes de disposigdes inseridas em seu corpo por conveniéncias Cap. 1 + DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIGAO " politicas do constituinte — tratando das mais diversas matérias, fato que nao lhes retira o carater de normas constitucionais, nem as torna inferiores hie- rarquicamente a qualquer outra norma da Constituigao. 3. CLASSIFICAGAO DAS CONSTITUICOES Algumas Constituigdes possuem texto extenso, dispondo sobre as mais diversas matérias. Outras apresentam texto reduzido, versando, téo-somente, sobre matérias substancialmente constitucionais, relacionadas com a organi- zagiio basica do Estado. Algumas permitem a modificagao do seu texto por meio de processo legislativo simples, idéntico ao de modificagdo das demais leis, enquanto outras sé podem ser alteradas por processo legislativo mais dificultoso, solene. A depender dessas e de outras caracteristicas, recebem da doutrina distintas classificagdes, conforme exposto nos itens seguintes. 3.1. Quanto a origem Quanto a origem, as Constituigdes podem ser outorgadas, populares ou cesaristas. As Constituigdes outorgadas impostas, isto é, nascem sem participagao popular, Sao resultado de um ato unilateral de vontade da pessoa ou do grupo detentor do poder politico, que resolve estabelecer, por meio da outorga de um texto constitucional, certas limitagdes ao seu proprio poder. As Constituigdes democraticas (populares ou promulgadas) so produzidas com a participagdo popular, em regime de democracia direta (plebiscito ou referendo), ou de democracia representati neste caso, mediante a escolha, pelo povo, de representantes que integraréo uma “assembléia constituinte” incumbida de elaborar a Constituigao. As Constituigdes cesaristas sao outorgadas, mas dependem de ratificagio popular por meio de referendo. Deve-se observar que, nesse caso, a partici- pacdo popular nao é democratica, pois cabe ao povo somente referendar a vontade do agente revolucionario, detentor do poder. Na historia do constitucionalismo brasileiro, tivemos Constituigdes de- mocraticas (1891, 1934, 1946 e 1988) e Constituigées outorgadas (1824, 1937, 1967 e 1969). O Professor Paulo Bonavides refere-se, também, a existéncia das de- nominadas Constituigées pactuadas (ou dualistas), que se originam de um compromisso firmado entre o rei e o Poder Legislativo, pelo qual se sujeita © monarca aos esquemas constitucionais (monarquia limitada). Nesse regi-

Vous aimerez peut-être aussi