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Há vantagens em ser normal. O sentimento de pertencer a uma comunidade e a sensação de fazer parte incontestável da espécie humana são alguns dos ganhos que nos parecem mais assegurados se somos conforme os outros, se nos estabelecemos segundo as normas. A experiência de ver nossos semelhantes como semelhantes nos reafirma; afinal, constituímo-nos de identificações, de tal modo que tendemos a procurar no outro um “já sei” sobre nós próprios e sobre ele
Há vantagens em ser normal. O sentimento de pertencer a uma comunidade e a sensação de fazer parte incontestável da espécie humana são alguns dos ganhos que nos parecem mais assegurados se somos conforme os outros, se nos estabelecemos segundo as normas. A experiência de ver nossos semelhantes como semelhantes nos reafirma; afinal, constituímo-nos de identificações, de tal modo que tendemos a procurar no outro um “já sei” sobre nós próprios e sobre ele
Há vantagens em ser normal. O sentimento de pertencer a uma comunidade e a sensação de fazer parte incontestável da espécie humana são alguns dos ganhos que nos parecem mais assegurados se somos conforme os outros, se nos estabelecemos segundo as normas. A experiência de ver nossos semelhantes como semelhantes nos reafirma; afinal, constituímo-nos de identificações, de tal modo que tendemos a procurar no outro um “já sei” sobre nós próprios e sobre ele
Ferraz, Normopatia: sobreadaptao e pseudonormalidade So Paulo, Casa do Psiclogo, 2002, 148 p. https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2012/09/29/o-encanto-anestesico-da- normalidade-sidnei-jose-cazeto-resenha-de-flavio-carvalho-ferraz-normopatia-sobreadaptacao- e-pseudonormalidade-sao-paulo-casa-do-psicologo-2002-148-p/
H vantagens em ser normal. O sentimento de pertencer a uma
comunidade e a sensao de fazer parte incontestvel da espcie humana so alguns dos ganhos que nos parecem mais assegurados se somos conforme os outros, se nos estabelecemos segundo as normas. A experincia de ver nossos semelhantes como semelhantes nos reafirma; afinal, constitumo-nos de identificaes, de tal modo que tendemos a procurar no outro um j sei sobre ns prprios e sobre ele.
Porm, temos conhecimento que nosso psiquismo, mesmo sendo o
mais convencional, uma construo feita sobre materiais que com facilidade reconheceramos como os usados tambm na patologia: o inconsciente e seus processos primrios, base da desconsiderao pela realidade externa e da produo de sintomas; e a sexualidade infantil, polimorfa na sua perversidade, mas toda presente, ainda que reordenada, na vida adulta.
Ou, mesmo que no tenhamos grande clareza destes alicerces pouco
nobres, tendemos a desconfiar das imagens corretas que buscamos ver refletidas em nosso espelho. que tambm pode incomodar a restrio de seus limites rgidos; nossos dolos sempre tm algo de excepcional que escapa ao padro de segurana. Alm disso, suspeitamos que nossos armrios escondem cadveres, e sabemos do sofrimento secreto que insiste em visitar nossa intimidade.
Mas h quem parea ter se distanciado destas incertezas e viva sem
conflitos com a norma. A prpria identidade adquire para estes sujeitos o estatuto de uma realidade slida, perdendo a qualidade de ser uma representao de si, o que lhe faria suscetvel, bem mais freqentemente, de mudanas e sobressaltos. A porosidade da fico de quem se parece dar lugar, nestes casos, a uma pregnncia do eu a algum discurso socialmente pr-estabelecido. Sem tanta variao e inconstncia, evita-se muito do sofrimento subjetivo, ainda que ao preo da prpria subjetividade, que comprime-se numa vida funcional e sobreadaptada. Seguindo percursos j bem marcados, tais sujeitos guardam-se de caminhos inditos por onde poderiam perder-se, e sem qualquer nostalgia por todas as outras possibilidades de rumo existentes.
A ausncia de autoquestionamento destes indivduos no se
confunde com a certeza do psictico, que tambm, de certa forma, toma a representao por realidade. Mas o psictico est longe de manter-se nos trilhos da conveno e da normalidade uniforme; descarrila deles, imaginando que seja universal o seu desvio. Em contraste, nosso sujeito empresta o ponto de vista comum e aliena-se nele. No se engana com fantasias, supondo-as verdades, mas elimina-as na adeso ao mundo objetivo. Enquanto outros falham sempre na manuteno da prpria imagem, mostrando aqui e acol suas contradies, estes sujeitos parecem perfeitos em sua adaptao. De perto, continuam sendo normais.
O ltimo livro de Flvio Ferraz, Normopatia, oferece-nos uma leitura
psicanaltica desta curiosa forma de estruturao psquica. Toma como ponto de partida um trabalho de Joyce McDougall, datado de 1978, em que a autora buscou caracterizar um certo tipo de paciente com que tinha particular dificuldade; chamou-o de normopata. A idia parece ter frutificado, o que se percebe pela contribuio expressiva de outros psicanalistas discusso, e pela realizao, em 1992, de um simpsio em Paris com o ttulo de A normalidade como sintoma.
Trata-se, portanto, da descrio de um novo quadro clnico, trabalho
que significa chamar a ateno para algo que passava desapercebido escuta analtica, que no existia em sua especificidade, confundindo-se com outras sintomatologias ou simplesmente com o nada. Normopatia, publicado na Coleo Clnica Psicanaltica, dirigida pelo prprio Flvio Ferraz, um ttulo com esta caracterstica. Ocorre, entretanto, que neste final e incio de sculo uma srie de outros quadros foram igualmente estudados pela psicanlise, como as adies, os pnicos, as somatizaes, e todos indicaram algum tipo de dificuldade de contato com a prpria subjetividade. Como situar a semelhana e a diferena com estas outras formas de sofrimento? O livro de Flvio Ferraz nos ajuda a compreender este conjunto.
Particularmente sobre o tema da normopatia, o texto apresenta uma
reviso da bibliografia direta ou auxiliar, com destaque para a noo de singularidade idioptica de Maurice Dayan, para o conceito de doena normtica de Christopher Bollas e para a reflexo de Betty Joseph sobre o paciente de difcil acesso. Surpreende com um interessantssimo exemplo clnico relatado por Jung em sua autobiografia de 1961 que, a posteriori, diagnosticaramos como de normopatia. Mas vai alm deste esforo de assemblia, indicando os principais pontos de apoio da teorizao mais recente. Assim, creio que seria possvel deduzir deste estudo que, sem Winnicott e sem Pierre Marty, o quadro em questo talvez ainda estivesse por ser desenhado. Algumas noes de Winnicott, como as de falso self, ou a sua nfase sobre o brincar e o viver criativo permitiram identificar como pouco saudveis as superadaptaes. E sem as contribuies de Marty e seu grupo teramos provavelmente mais dificuldades em situar um fenmeno em negativo, isto , neste tipo curioso de sintomatologia que se manifesta pela ausncia de conflito ou mesmo de sofrimento psquicos. Razes ainda mais profundas existem Freud lembrado pelas neuroses atuais -, de modo que vai se tornando claro que o conceito de normopatia teria nascido como uma elaborao singular feita por Joyce McDougall destas contribuies, para lidar com certos impasses de sua clnica.
Flvio Ferraz defende tratar-se no de uma categoria nosogrfica, e
sim de um modo de funcionamento psquico, passvel portanto de ocorrer em formas diversas, e associada a sintomas vrios, o que se compreende melhor atravs dos exemplos que apresenta de sua prpria clnica, um dos pontos altos do livro. Podemos ento conhecer Margarida, mulher muito irritvel, cujo sofrimento pessoal era sempre atribudo aos outros. O caso de Alberto permite-nos ver uma desafetao terna (se que possvel o termo), protegendo-o de episdios de grande violncia. A corrida aos esportes de Rodrigo sugere o escape de uma angstia inominvel. E a pequena Samira deixa-nos entrever a formao da normopatia na infncia.
A discusso dos casos procura mostrar como, a despeito das
diferenas visveis, a defesa de todos era comum, estruturando-se como uma ciso do Ego que permitia-lhes evitar as turbulncias da prpria subjetividade. E eis uma contribuio de Flvio Ferraz para a metapsicologia do normopata, j que nem McDougall nem Bollas discutem o quadro nestes termos. Aproveitando o alerta de Freud sobre a presena de processos de clivagem em estruturas no neurticas, os trabalhos de Dejours sobre uma possvel terceira tpica do aparelho psquico, e principalmente a proposio de Beth Joseph para o paciente de difcil acesso, nosso autor levanta a hiptese de que se trata, tambm aqui, de tal recurso extremo. Ciso que exclui, desta vez, a prpria atividade introspectiva.
As questes tcnicas que surgem da so to importantes quanto
difceis. Quem atende pacientes com distrbios somticos encontra, com certa freqncia, o tipo de impasse descrito em Normopatia. Com raro ou nenhum mal estar em relao a si, aparentemente fechados para a associao livre, sem disposio para questionar a prpria histria, estes pacientes parecem pouco abordveis pela situao analtica. E isso com o agravante de, no caso de alguma interveno abalar a ciso estrutural que o protege, correr-se o risco de favorecer uma descompensao psictica, ou mesmo uma somatizao grave.
Compreende-se portanto que, ao discutir as possibilidades de
manejo e avano neste terreno minado, Flvio Ferraz enlace a reflexo em questes ticas. Pois trata-se a de pensar o direito de intervir num arranjo que resulta relativamente indolor do ponto de vista psquico. Alberto, um dos pacientes citados, resolve interromper o tratamento aps ter se livrado dos episdios de pnico, pois descobrira que estava trocando um sofrimento por outro. A discusso conduzida no livro com extrema delicadeza e no s equaciona esta dificuldade, como a amplia. Nesta direo, o autor nos convida a abrir o foco de nossa objetiva e refletir sobre aspectos macro-estruturais que poderiam tornar a sada normtica bem mais freqente em nosso tempo: a cultura do narcisismo e sua valorizao do sucesso e da publicidade, a exposio velocidade vertiginosa dos estmulos impossibilitando a experincia que lhes poderia dar algum sentido pessoal, as organizaes do trabalho avessas a toda vida fantasmtica etc.
E quando poderamos estar preocupados com o contexto, mas ao
mesmo tempo tranqilizados com a sensao de imunidade deste mal afinal, adotar a perspectiva da psicanlise no significa ser gauche na vida? Flvio Ferraz continua a nos fazer pensar. Chama-nos a ateno para a ao normalizadora das instituies psicanalticas, inevitvel talvez at um certo ponto, mas capaz de estender-se a ponto de eliminar a criao e a inventividade que no costumam andar juntas com a subordinao de pensamento. Da sua crtica s formaes fechadas que florescem em nosso meio: Como possvel ser ortodoxo em psicanlise, se esta pressupe a escuta do novo, ao invs do fechamento para ele? Ortodoxia, lembremos, a ao de orthos: normatizao que redunda em rigidez e em intransigncia ao que novo ou diferente. O compromisso da psicanlise, ao contrrio, com pathos, que rejeita, pela sua prpria natureza, toda forma de enquadramento ou de normalizao.
Ao final, o livro de Flvio Ferraz parece nos mostrar um paradoxo
que s a capacidade de simbolizao, no avesso da normopatia, permite: partir de um material clnico to pobre de expresso subjetiva, e construir com ele um estudo to sensvel e instigante sobre a condio humana, neste particular que a sua terrvel tentao pela normalidade. Sidnei Jos Cazeto