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É indiscutível que a lei do karma, tal como explicitada nos textos sagrados hindus, se
relaciona com os ritmos celestes e, portanto, com as configurações planetárias
estudadas pela astrologia. Tanto que, a astrologia na sua forma hinduísta e tibetana é
exercida tendo como pano de fundo exatamente a lei do karma. O que é
perfeitamente coerente, no âmbito dessas tradições orientais, pois essa lei se insere,
harmoniosa e integralmente, no conjunto de outras concepções - como as de dharma,
samsara, varna, etc.- que fazem parte da cosmovisão daqueles povos.
Indo direto ao assunto, lembro que o conceito de karma tem três acepções principais
no oriente (1).
Dessas três visões a que nos interessa inicialmente é a primeira, que afirma ser o
karma o conjunto das condições objetivas da circunstância, do Mundo, e que surge da
totalidade de todas as ações passadas ¾ nossas, de nossos ancestrais, do meio social,
etc. Assim, assumir o karma é simplesmente aceitar de modo inteligente a realidade
em seu conjunto, ou seja, o estado atual de existência.
Hoje a palavra carma tem múltiplos usos. Tenho uma coleção de exemplos. Outro dia
estava num ônibus quando uma garota, que estava sentada na minha frente,
levantou-se de repente, e quase gritando pediu ao motorista para descer, enquanto o
namorado perplexo lhe perguntava porque ela estava acabando o namoro daquele
jeito. A resposta imediata e definitiva da mocinha foi: - Porque você é um carma. Já
testemunhei também, o uso dessa palavrinha com o sentido contrário quando ouví de
um rapaz a razão porque continuava vivendo com uma mulher que o humilhava e
traía: -Relação fatal, cara. Ela é meu carma.
Não sei, se por causa dessas e outras, estou vendo carma por
todo lado. Mas, por incrível que pareça, para mim é líquido e
certo que as características do carma (com c), que esbocei
antes se aplicam ipsis litteris à feiticeira do H. Afinal, como o
carma ela também, diz-se, vem do oriente, e como ele também
comprova seu pedigree quando exibe sua tenda, os turbantes
de seus assistentes, um e outros véus; e mais ainda, quando se
propõe a oferecer os mesmos prazeres das huris, descritas no
Alcorão. No entanto, isso não é suficiente para esconder (nem a
produção do programa pretende) o carregado sotaque
paulistano da menina, uma suposta dança do ventre com coreografia baiana e que,
exatamente ao contrário das dançarinas árabes, é com os glúteos, bem brasileiros,
que ela exerce um controle sobre a mente e a vontade de seus admiradores.
Mesmo o mais embotado dos cérebros, depois de conhecer essas raízes da evolução
cármica, pode compreender agora o porque do uso das palavras evolução,
pagamento, saldo positivo e resgate da dívida num argumento que se pretende
espiritualista. Tenho forte esperança que o senhor Nadharanda, se, por acaso, ler
essas mal traçadas linhas, compreenda também e possa, pelo menos, seguir o
exemplo de sinceridade de Madonna, que se confessa "a material girl", e se declare
coerentemente "a material guru".
A única diferença que vejo entre a feiticeira do H e o carma é que o público da farsa
televisiva não leva a sério a encenação armada para manipular a fantasia dos
marmanjos; enquanto que o pessoal esotérico leva a sério, de modo comovente, os
devaneios cármicos ensinados e aplicados por aí para mantê-los além da imaginação,
sem consciência dos males a que estão sujeitos.
Um dos males da pregação cármica é que ela introjeta nos seus partidários uma
incapacidade total de discernir a diferença entre reconhecer os próprios erros e aceitar
a realidade em torno; e essa situação produz um estado psíquico que facilita
enormemente o controle da mente e da vontade deles.
Mas, apesar de todas as contorções mentais que oferece a astrologia cármica para
suprimir a idéia de culpa, o sujeito continua a senti-la. Presa da angústia e do
remorso sente-se vítima dos astros, da fatalidade ou dos deuses, como se fora um
desgraçado herói trágico. Incapaz de reconhecer sua responsabilidade pessoal e de
arrepender-se tem sua vontade enfraquecida e se submete facilmente ao poder de
qualquer um outro que lhe ofereça uma explicação capaz de abafar os reclamos de
sua consciência, por mais inverossímil e impossível de verificar que seja. (8) E como
num ciclo vicioso ela é oferecida pelo astrólogo cármico de plantão.
Espero que todos envolvidos com esse tipo de prática, examinem de modo isento,
honesto e inteligente as informações e questões aqui levantadas. Quanto aos
astrólogos, na medida em que são orientadores e formadores de opinião, fazer uma
observação de suas próprias consciência é condição essencial para a investigação de
suas responsabilidades no uso dessa mistura de crenças religiosas com carta natal,
que, sem dúvida, prejudica o indivíduo, a astrologia e a religião.
Notas:
(1) - Para compensar e evitar os riscos do resumo, e para quem quiser fazer um
estudo mais profundo do assunto é bom ler: René Guénon, L'Erreur Spirite e L'homme
et son devenir selon le Vedanta, Villain et Belhomme, Paris, 1974; Raimundo
Panikkar, Myth, faith and hermeneutics, Cross-Cultural Studies, ATC Publications,
Bangalore; Ananda Coomaraswamy, On the one and only transmigrant, Selected
Papers, Princenton University Press, 1977; Cid de Oliveira, Os enigmas do carma,
apostila de aulas, Rio, 1993. Brhadaranyaka Upanishad, Srimad Bhagavad Gita
Brashya of Sri Shankaracarya com atenção aos comentários de Sri Shankarya,
tradução do Dr. A.G. Krishna Warrier, Sri Ramakrishna Math, Madras, 1983.
Brahma Sutra Bhasya of Sri Shankaracarya.
(3) Ver Bhagavad Gita Bhassyam XVIII,2- 25, com atenção para 5 e 6. 5- "The work
(karman) of sacrifice, gift-giving, and penance should not be relinquished; it must
necessarily be accomplished; for, sacrifice, gift-giving, and penance purify wise men.
6- But even this works, Arjuna! Must be done without attachment to them and to their
fruits: this is my firm and most valid decision.". A recomendação de Krishna é
absolutamente correta porque a ação (karman) não é o oposto da ignorância (avidyâ)
e, portanto, não pode afastá-la. No entanto, o conhecimento dissipa a ignorância
como a luz dissipa as trevas. E mais ainda, tanto a ação (karman) quanto seus frutos
são transitórios e momentâneos; ao contrário o Conhecimento é permanente e
definitivo e pode-se dizer o mesmo de seu fruto, que não é distinto dele.
Shankaracharya afirma claramente que só existe um meio de obter a Liberação
completa e final: o Conhecimento. Assim, só existe uma saída: se se tem que agir
(karma) de qualquer jeito, que se haja de modo desapegado dos frutos da ação.
(4) Karman é uma palavra que significa ação e vem da raiz kr - fazer, agir, realizar. O
conceito, e mesmo a palavra sânscrita, é encontrado em quase todas tradições
religiosas asiáticas desde o bramanismo mais antigo até o moderno budismo japonês.
A forma correta desse substantivo neutro é karman. Tornou-se usual carma e o
neologismo cármico é inevitável. O dicionário do Aurélio Buarque registra carma e
cármico. Aqui, usei karman e karma (com k) sempre que me referi aos seus
significados originais e verdadeiros. Para as inovações ocidentais reservei carma (com
c).
(5)- O guru Nadharanda, apesar do nome com vago sabor indiano, é argentino
radicado na Califórnia e dá workshops, sobre terapia de vidas passadas, com grande
sucesso de público.
(6)- Informo aos incrédulos que Mr. Brown não é discípulo do guru Nadharanda, mas
é astrólogo cármico e tem página na internet, onde se encontra o texto que traduzi
acima e cujo original em inglês transcrevo: "Where conventional astrology is
preoccupied in using the natal chart to outline a person's personality, in karmic
astrology we assume the individual has a pretty good idea of that. Thus we view the
astrological chart not in personality terms but in spiritual terms. The natal chart is
actually a spiritual balance sheet. It shows assets and liabilities, accounts payable and
accounts receivable from previous incarnations." "Karmic Astrology answers the
question: Why?... The answer to that question, "Why?", lies in what we bring into our
present life from our past lives. Karmic Astrology assumes you already know what sort
of person you are but are now wondering how that came to happen and what can be
done about it."
(7)- Numa posição completamente oposta, afirmo que a interpretação da carta natal
deve ser vista como uma proposta do astrólogo, que será discutida com o cliente, e
não uma resposta autoritária, fatal e acabada imposta a ele, que avilta sua vontade e
tira sua liberdade.
(8)- Ver Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella Editorial, São Paulo, 1985,
cap VII. Ali o autor descreve o processo psicológico que atua neste caso da seguinte
maneira: "Mas, se o indivíduo pode rejeitar o conceito de culpa, não pode se impedir
de sentir culpa. E o resultado final desse processo é que, quanto mais ele embota sua
consciência de culpa individual, mais se sente culpado pela realidade em torno, em
cuja conta ele pretendia debitar essa culpa. Ele entra assim num processo de auto-
defesa versus auto-inculpação, processo esse que é um verdadeiro curto-circuito
cerebral, e que constitui uma das sintomatologias mais freqüentes nos meios
"ocultistas". ... "Muitas pessoas que vêm ler seu horóscopo estão apenas buscando
uma explicação "kármica" para seus males presentes, na esperança de aliviar suas
culpas e angústias, sem dar-se conta que essa explicação poderá ter por único
resultado fazê-las sentirem-se culpadas de ter Saturno em tal ou qual casa, ou Marte
no Ascendente, isto é, fazê-las saírem do âmbito das culpas humanas reais para o das
culpas "mágicas" e subconscientes.