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D’ A TORRE DA BARBELA PANORAMA FANTASTICO DE UMA RELAGAO MITICA Tanto o leitor implicito como o leitor empirico do romance que Ruben A. (Ruben Andresen Leitdo) deu ao prelo em 1964 ! ndo podem ficar indiferentes ao repto indirecto que o narrador Ihes langa, logo no inicio da obra, quando descreve a pouca exigéncia, sendio mesmo indigéncia, em termos de motivagées histérico-culturais dos visitantes da Torre de Barbela: «Os visitantes pouco mais davam. Raro aparecia alguém que indagasse dos reais motivos da fama dos Barbelas e do fantistico das noites, que s6 podia pressentir quem tivesse uma segunda visto.» (p. 11). Fugindo a designada estreiteza de horizontes do «Homem comum», nfo resta a esses leitores 2 sen’o a aventura de uma visdo/leitura segunda que os conduziré, desta feita ja nao pela voz em ladainha mecanica do caseiro, cuja histéria> nada tinha de comum com a verdade» (p. 9), mas pelo discurso do narrador extra-diegético ¢ omnisciente que, sublinhando os limites de verso diurna do caseiro, os faz aceder ao «banho noctivago na sua /da Torre/ vida de séculos» (p. 12). Daqui se infere que a leitura 1 Tendo sido impossfvel encontrar a 1.* edigio, e pressupondo nio terem sido feitas alteragbes dignas de regisio, as indicagdes das paginas para que remetemos ao longo do trabalho, referem-se a RUBEN A. — A Torre da Barbela, Lisboa, Editorial Presenga, 1983. 2 0 facto de nos referirmos a dois tipos de leitores deve-se & distingdo tipoldgica subjacente & ateoria do efeito estético» desenvolvida por Wolfgang Iser. E a partir daf que amos 0 conceito de leitor implicito como aquele imposto pelo Texto, na medida em que este desenvolve intrinseeamente um determinado «ponto de vista» para o leitor. Cf, IsER, Wolfgang — L'acte de lecture — Théorie de Ueffet esthétique, Bruxelles, Pierre Mardadga, Aajteur, 1985, pp. 60 276. 133 ANA PAULA COUTINHO MENDES simbélica ou mitica de A Torre da Barbela, mais do que um apéndice interpretative da obra, é uma sua condigao estruturante sob forma de «sistema semiolégico segundo» para a qual o narrador frequentemente apela, cumprido assim aquilo que 0 mito tem de «cardcter imperativo, de interpelagdo» 3. De modo nenhum indiferentes ao horizonte hermenéutico desta obra, no ignoraremos aqui quer 0 ensaio de José Palla e Carmo que precede a 3.* edigdo 4, quer a licida divagagéo de Eduardo Lourengo no seu «Envoi et Adieu & Madeleine» >. Ambos, mas particularmente este tiltimo, foram sensiveis aos apelos intradiscursivos do romance e catapultaram 0 dominio do fantastico da histria dos Barbelas para o nivel do mitico da Historia de Portugal. Se em José Palla ¢ Carmo, em 1965, ainda era not6rio um certo receio, pudor ou «mal-estar hermenéutico», no relance incisivo do autor de Nos € a Europa a virtualidade exegética transforma-se em fulgurante axioma: «Nous devons a l’auteur de Torre da Barbela, Ruben A., la version la plus cocasse, et tout compte fait, la plus profonde de ce mythe de notre passion frangaise. Le roman de Ruben A. (...) est le récit de nos huit siécles de sainte absurdité heureuse, de notre repos provincial, troublé par la présence de notre lointaine et désinvolte cousine francaise, Madeleine. Pour Ruben A., ’histoire de l'amour fou du Chevalier de Barbela pour sa cousine Madeleine est l'histoire de notre imaginaire érotique, culturel et littéraire.» 6 Face a tais emblematicas assergdes, quase nada mais resta sendo regressar & Torre de Ruben A. ¢ analisar os elementos narrativos que nos permitem comungar dessa apreciagio global. Destacado que fica pelo conjunto diegético 0 enredo amoroso entre 0 Cavaleiro ¢ Madeleine, interessard recuperar 0 seu simbolismo a partir da(s) imagem(s) delineadas dos (¢ pelos) intervenientes. 3 Estamos aqui a seguir claramente a acepe%o barthesiana de mito, enquanto Tepresentagdo colectiva que, por meio de um sistema de signos, transforma em natural e Universal uma mediana visio cultural. Cf. BARTHES, Roland — «O Mito, Hoje in Mizologias, Lisboa, Edigbes 70, 1978, pp, 181-223, + Cf. Prefécio de José Palla © Carmo in RUBEN A, — A Torre da Barbela, Lisboa, Parceria A. M, Pereira La., 1966. 3 Lourinco, Eduardo — Nés e a Europa ou as duas razdes, Lisboa, INCM, 1988, pp. 115-126. § Ibidem,p.116. 134 D’ A TORRE DA BARBELA Uma relacdo entre esteredtipos Adoptemos aqui 0 termo esterestipos para designar os lugares comuns ou clichés a partir dos quais € visto 0 Outro ou seja, aquele que rompe com a continuidade de um eu: Madeleine para 0 Cavaleiro, assim como o Cavaleiro para Madeleine. Cada um deles, ao transportar consigo um tempo e espaco precisos e diferentes entre si, desenvolve uma relagao que € mais do que a relagdo entre dois individuos, traga sobretudo um cruzamento, de matriz simbélica, entre as coordenadas que cada um incarna, ou, a um nivel complementar, que cada um reconhece no outro. Serd entio a partir dai que funcionam as ideias sobre esse Outro, linearizando a complexidade que realmente 0 constitui. A personagem centripeta da obra — Madeleine — «a prima das francas», congrega em si todas as caracterfsticas essencialistas da mulher fatal, que 0 é na medida em que se destaca do ambiente circundante ao encarnar todo um mundo de diferengas de cariz individual e social, suscitando por isso mesino tanto 0 espanto como uma indisfargvel cobiga «Ah estas francesas!» (p. 16) € 0 consolado desabafo com que Dom Payo sintetiza o que nele, homem do século XVI, provoca essa personagem estimulante e experimentada. Madeleine & de resto 0 centro das atengdes € dos desejos mais ou menos camuflados de todos os homens da Barbela e da Beringela, desde Dom Raymundo, do tempo da Fundaco da nacionalidade lusfada, ao mais novo dos Barbelas, 0 menino Sancho: «Afinal parecia — ¢ até certo ponto era verdade — que todos estavam apaixonados por ela.» (p. 78). Essa atracgdo passional que comega por ser, sublinhe-se, univoca, toma-se tanto mais significativa quanto revela 0 «espirito tacanho ¢, pior, timido» (p. 78) dos Barbelas, por oposicdo realgante & naturalidade descomplexada da prima francesa. O contraste torna-se particularmente notério devido & desigual intensidade com que é vivida a relagdo entre o Cavaleiro ¢ Madeleine, Ele, um ser etemamente inadaptado, uma espécie de aventureiro franciscano, entre 0 quixotesco e o platénico, fica ndo s6 completamente bloqueado com a presenga de Madeleine, como ansioso com as repercuss6es daquele «coito que atravessava os séculos» (p. 22). Curiosamente, € Madeleine quem tira a virgindade, se assim se pode dizer, a0 Cavaleiro, embora nela esse acontecimento de iniciago amorosa seja um episédio mais que se perde no contexto das diferentes descobertas com que «passa 0 Tempo» na terra dos primos. ANA PAULA COUTINHO MENDES Os pares opositivos constituidos pelas atitudes comportamentais de cada um integram-se numa visio mitica, a forca de imagens cristalizadas ou de caricaturas, que vai sendo ordenada, também ela, em oposigao entre Barbela (Portugal) e Paris (Franga), chegado ao ponto de ganhar, por momentos, todo o fulgor teatral de uma imagem cénica «A representago estava no fim da primeira parte. Ali, lado a lado, Madeleine ¢ 0 Cavaleiro digladiavam-se na procura da felicidade que cada um trazia dentro de si. Dois mundos que se mediam animados pelo fogo de uma chama intransmissivel.» (p. 59). A falta de uma verdadeira reciprocidade sera de resto a t6nica principal desta paradoxal relago que confirma mais 0 afastamento do que sela a aproximagao. Assim, ao Portugal provinciano e retrégado (como Madeleine faz notar ha dois séculos que real 7 ¢ simbolicamente a separam do Cavaleiro), & Barbeia isolada e mais do que moribunda,morta, opde-se a vivacidade de Paris, 0 seu bom gosto ¢ as aventuras exaltantes que quotidianamente Proporciona e de que Madeleine da testemunho. Até Dona Brites, que carrega da «cidade das Luzes» uma pesada frustragZo amorosa, nao deixa de constatar de uma forma mitificante gragas 4 resumida evidéncia com que encerra qualquer possivel comparagdo: «Aqui para nés, no hd nada como Paris.» (p. 34). Para 0 proprio Cavaleiro, aquilo que 0 apaixona ou excita na prima Madeleine ¢ uma stimula inextringdvel de atracgao fisica e de ansiosa curiosidade por aquilo a que chamaré «Franga da minha imaginanga» (p. 45): «De novo 0 Cavaleiro trabalhava com os olhos 0 tornozelo elegante de Madeleine. Nao sabia que responder. Era tudo diferente! Paris! — J4 em tempos Ihe haviam falado em Notre-Dame, uma igreja tum pouco maior que a da Moutosa onde havia sermées de sete horas sem interrupgao. Belas coisas essas! Mirava Madeleine extasiado.» (p. 20). 7 Trata-se obviamente de um real que pressup8e que a vida noctuma e moral seja tomada ‘numa atitude «matter of fact», utilizando a expressio de José Palla ¢ Carmo no prefécio jé Citado. O leitor emipitico que Ié as peripécias noctumas no Jardim dos Buxos peta perspectiva do fantéstico, é frequentemente induzido 4 comungar do ponto de vista realista ou realizante do leitor implicito, gragas aos comentérios do narrador, directos, ou pela voz das personagens. 136 D’ A TORRE DA BARBELA Completamente absorto por novos e diferentes impulsos que se atropelam em pensamento e Ihe bloqueiam o discurso, acaba por ser traido pela ins6lita pergunta «Que bonito peito que a prima tem! Deita fumo?», agravada ainda pelo comentirio to atento quanto irénico do narrador: «A frase sintetizava, com certeza, a ruminagdo de muitas horas.» (p. 21). A associago Madeleine — Franca, ou metonfmica e simbolicamente Paris, par associativo esse a que o Cavaleiro h4-de quase sempre recorrer, surge num outro momento crucial da diegese, quando Barbelas e Beringelas so convidados para 0 casamento da prima. Af, a ida a Paris nfo é sé, nem exclusivamente, a grande oportunidade de se confrontarem com o espago idealizado, mas a de romperem com 0 fatalismo de uma vida suspensa, com a fragilidade tragica que até na morte os habitava: «Os segundos de compreensio colectiva aviventaram séculos de adormecimento convencional e a ida a Paris aparecia, assim, enegrecida pelas exigéncias flutuantes do cédigo de familia.» (p. 140). J4 aquando da visita de Madeleine a Beringela, a auto-andlise que de si mesmos faziam os primos era sinal de um resignado provincianismo promovido a esbogo caricatural. Surpreendidos com 0 progresso técnico de que Ihes dava conta Madeleine, suspiravam: «Ah, como nés precisamos de ir lé fora aprender essas coisas! Sabe, estamos para aqui a cozinhar bacalhau e a ver navios na barra de Viana, Exportamos enguias ¢ trutas assalmonadas — 0 resto é esperar por morrer sem ter tomado parte na vida. Passa-nos ao lado» (p. 46). A imagem particularmente petrificada e petrificante de Portugal por via dos Barbelas (pp. 130-131), que torna, como se possivel fosse, a sua condigao de mortos ainda mais inerte, ganha tragos de exotismo, pelo menos temporal, aos olhos de Madeleine. De facto, para ela a visita aos primos portugueses, que comegara por ser uma espécie de «dépaysement» terapéutico, torna-se aos poucos na fantéstica revelacao pluri-sensitiva dum passado que julgava completamente extinto: desde as conversas agricolas no decorrer da mais afaivel e solicita hospitalidade, desde 0 paladar delicioso de uma enguia «de 1822, tipo Constituigao Liberal» (p. 48), & volupia da relagdo amorosa inesperada e insdlita, 8 meméria do mais puro sentimento religioso, ao éxtase face a uma paisagem que Ihe faz pensar num «refiigio secreto para os Deuses da Flora» (p. 70) e a faz ver, sob as Aguas do tio, 0 137 ANA PAULA COUTINHO MENDES Olimpo de poetas lusiadas de que sé chega a reconhecer Diogo Bernardes ¢ Sa de Miranda (p. 88). Desta feita, 0 cliché «nada como em Paris», sem chegar a ser desmontado, inverte-se e eis Madeleine a admitir, via uma ctimplice voz dual 8, «Nem em Paris nem nas terras por onde tinha andado se the deparava tal especticulo. Nao a Barbela era um sitio de cartomantes possibilidades. Que espanto!» (p. 88). A essa imagem aureolada de uma paisagem vista por alguém em descanso de compromissos sociais e, por isso, de alguma forma em cura de civilizagZo, responde num outro momento e em eco negativo, 0 desabafo do Cavaleiro: «Agora vai para Paris e conta a todos as férias que teve. Diré que a Barbela é um sitio ideal. (...) Como seria bom s6 vir cé a férias! (...) Aqui o bom é ser-se estrangeiro.» (p. 58). A irredutibi lade do mistério Ao fantastico misterioso de uma vida p reino da noite, seguindo um enredo amoroso atravessado pelos séculos da Hist6ria de uma Nago, vem encaixar-se qual «mise en abyme» — fantastico dentro do fantéstico — 0 sibilino poder da prima Isabela, segregada do cla familiar na sequéncia de uma hist6ria de amor que remonta aos tempos da Fundagao do Reino. A Bruxa — tal como aparece designada — desencadeia uma isotopia da feiticaria que as reflexdes de Madeleine vém nao sé confirmar como ampliar & escala de uma caracterizagao colectiva: morte, quase normal, no «E era isso que a esmagava nos Portugueses; tinham bruxarias mais fortes do que a verdade.» (p. 91) Desejosa de conhecer aquela que permanecendo & margem da familia, de alguma forma a controlava, Madeleine tem uma, aparentemente incompreensivel, reacgdo de terror quando pela primeira vez se aproxima dos § Trate-se de uma expresso de Roy Pascal, citado por Vitor Manuel Aguiar e Silva, ¢ {que nos parece panticularmente oportuna para definir a conivéncia frequente c nao raro ambigua, centre a vor do narrador © a das personagens neste romance. Cf. SiLVA, Vitor Manuel Aguiar ¢ — Teoria da Literatura, 44 edigao, Coimbra, Almedina, 1982, p.732. 138 DA TORRE DA BARBELA dominios da Bruxa de Semedo. Como se, no fundo, a detentora do poder pela sedugdo, pressentisse a sua propria impoténcia face aos insondaveis designios da maga, ou seja daquela que se viu obrigada a substituir a forga do Amor pelas forgas recalcadas e implacdveis do Fatum. Com a visita ao Monte de Sdo Semedo, Madeleine completa a sua descoberta inicidtica do mundo dos primos lusiadas e compreende, finalmente, a relag6es Amor-Morte que pairavam sobre a Torre. Até certo ponto, 0 verdadeiro «golpe de teatro» que vem a constituir o rapto do Cavaleiro na manha do programado casamento de Madeleine em Paris, parece ser consequéncia dessa extensio radical da(s) forga(s) de Eros. Madeleine rapta o Cavaleiro na ansia (in)consciente do poder libidinoso e de forma a subtrair a (e)terna virgindade do Cavaleiro & acgao de terceiros, nomeadamente da Bruxa. Ora, na medida em que um tal acto abre a perspectiva de uma vida comum entre representantes de tempos diferentes, comega a imperar o espectro do mistério do futuro € ja nao 0 do fantastico do passado: «E a primeira vez que um Barbela vive para o futuro. Jé pensaste nos problemas que isso vai criarl» (p. 167) — pergunta o Cavaleiro. E se este, encarando lucidamente o estigma dos Barbelas, se abre de uma forma disponivel e candida A novidade, & ordem subversiva do Amor, os seus conterraneos nao conseguirio vencer 0 «Grande Nevoeiro» (p. 101) ou seja 0 medo de transpor a barreira do que, para eles, & jé conhecido. Ao deixar-se conduzir pelas «forgas magicas do destino» (p. 166) que, mais uma vez a Torre passa a soltar, os Barbelas adoptam um comportamento mitico para se defenderem contra 0 Tempo. Entre a lei dindmica da vida e a lei conservadora da morte, insistem nesta tiltima, por vontade prépria ou tdo s6 por misteriosa obrigacio: «Barbela que teimasse em marchar descarado ao encontro soalheiro dos rubros nascentes, Id estava a Bruxa de S40 Semedo para 0 agarrar, imobilizando-o por mais séculos na posigdo esticada da pedra tumular.» (p. 189) ‘A morte de Madeleine que nos dada pela visdo de um dos primos de Beringela, perpetua, com a auréola do rito sacrificial, o ciclo de Amor-Morte que entranha, ao longos dos séculos a Hist6ria, ou seja, a vida da Torre 9. 9 A par do exemplo da Bruxa de Semedo para quem um Amor renegado a conduziu aos poderes mégicos de vida e de morte com incidéncias em todos os habitantes da Torre, surge, ‘como exemplo tutelar, a referéncia ao Amor trégico de Pedro ¢ Inés ¢ ao facto desta ter sido coroada rainha depois de morta (Cr. p. 91) oo ANA PAULA COUTINHO MENDES Pouco importa se fica por esclarecer completamente qual teria sido ao certo o motivo da condenagdo, embora sejamos levados a depreender que se tivesse tratado de imolar um bode expiatério, como reacgdo desesperada dos Barbelas quando estes sentiram ameagada a sua rotina quiasmtica de mortos-vivos ou de vivos-mortos. Aliés, essa margem do inexplicdvel nao faz mais do que reverter a favor da lenda, ou seja de mais uma ficgo dentro da ficgio, e sobretudo, a favor dessa sempre curiosa inverséo axiomatica que a morte estipula: de desavergonhada ¢ frivola, Madeleine passa a santa heroina — uma segunda Joana d’Arc — aos olhos ¢ jufzos dos retrégados ¢ machistas primos de Beringela (p. 187). Pela cruel condenagdo, Madeleine liberta-se da monotonia do estado mortal dos Barbelas ¢ acede & condigdo vital do mistério, por outras palavras, & imortalidade. De resto, note-se a carga simbélica da oposigdo geométrica entre os movimentos ascendente descendentes: Madeleine sobe ao cadafalso enquanto que os Barbelas esto condenados a descer todos os dias, durante séculos a fio, as suas pedras tumulares. Nem na morte ha (entre eles) igualdade... Antes pelo contrdrio, a morte vem extemporalizar, e portanto mitificar, uma diferenga hierarquizante que, sem ela, poderia ser encarada como sendo circunstincia ou acidente histérico. Uma surreal imagologia Se fizermos apelo a uma intertextualidade homo-autoral, constataremos que noutras obras do autor de A Torre da Barbela subjaz igualmente uma Tepresentagdo, mais ou menos explicita, da identidade de Portugal ou do ser portugués. A esse mosaico de imagens, projecgdo de um olhar inevitavelmente selectivo, houve ja quem chamasse «O Portugal de Ruben A.» 10, painel fulgurante de todas as tensdes ou «colagem da desidentidade nacional» 11, Nao seré impunemente que, na obra em andlise, a romanceada introspeccdo nacional se desenrola a partir da relagio com uma estrangeira, ndo uma qualquer, mas com uma francesa. De resto, e como jé 0 salientamos no inicio, foi a eloquéncia desse dado que levou Eduardo Lourengo a ver 19 Cf, AURELIO, Diogo Pires — O Préprio Dizer, Lisboa, INCM, 1984, pp. 89.95, Trata- se af de um pequeno ensaio a partir do romance Kaos de Ruben A. 1 Ibidem, p. 95. 140 D’ A TORRE DA BARBELA este romance «o mito da nossa paixdo francesa». Ora, o que, para além disso, nos parece importante salientar é a coincidéncia do relance imagolégico da obra e da sua atmosfera surrealista '2, Referimo-nos nao a0 surrealismo na sua versio dicionaristica incluida no Primeiro Manifesto de André Breton '3, mas & acepgdo que também ai surge, mais vaga € abrangente, de resolucdo de dois estados aparentemente contraditérios como © sonho ¢ a realidade, acep¢o essa que se articula com as, também ai citadas, dimensdes do maravilhoso e do fantastico. encadeamento narrativo em A Torre da Barbela cria uma a sensagio de nivelamento entre o estatuto de verosimilhanga da diegese primeira — as visitas comentadas pelo caseiro A Torre de Barbela — e 0 cardcter impossivel ¢ fantistico da vida noctuma dos seus habitantes j4 mortos, que desdobrando-se a partir da primeira, constitui 0 que se poderé chamar uma diegese segunda. Nao s6 a insténcia receptora, desde o inicio da obra, € conduzida, como vimos, a tomar em relagao a esse nivelamento uma atitude de crédito em nome da verdadeira e profunda realidade, como as duas 12 Ais, alguns tragos dilufdos do surrealismo constituem, segundo Maria de Fétima Marinho, uma caracteristica comum a muitos autores a partir de meados dos anos 50. Podemos mesmo encontrar no seu vasto estudo sobre o surrealismo em Portugal, uma andlise do que pode constituir, em termos de estrutura profunda e superficial, o «espirito surrealista» no romance Caranguejo de Ruben A. Cf. MARINHO, Maria de Fatima — 0 Surrealismo em Portugal, Lisboa, INCM, 1987, pp. 259-261 13 Toda a subtil e esmerada construgdo, a vérios niveis, deste romance supers a narragl0 linear realista, ao mesmo tempo que nega claramente qualquer principio de automatismo psfquico ¢ verbal, sendo este, num primeiro momento, a reivindicag%o central do Texto de Breton, Se atendermos ao discurso metatextual de algumas passagens da Autobiografia de Ruben A., encontramos dados interessantes relativos & génese de A Torre da Barbela. Assim, contando uma viagem que fizera por Terras Minhotas, 0 autor (ou melhor narrador, uma vez que subscreve que «a autobiografia 6 0 mais puro romance») revela como a ideia deste romance Ihe em reacgo imediata ao que cra um misto de realidade paisagistica e de visto ficticia, e como 0 desbravamento interior de tudo isso, assim como a sua escrita foram particularmente morosos: «De Ponte de Lima para baixo a coisa é muito séria, io séria que me fez rebentar mais tarde um romance de que ainda tenho as maos a arder, saiu de uma verdade, foi engendrado, emprenhado na Natureza (...) a Barbela estava ali, nascia junto de mim. Eu ia de tal forma impressionado que nio percebia! Este 6 um dos mistérios que nunca consegui desvendar, apenas passados muitos anos, Olhava para aqucles solares e via qualquer coisa de muito transcendente, via diante de meus olhos (...). AS minhas distancias eram cbsmicas. Mergulhava, via Madeleine © 0 Cavaleiro a passearem, iam em direcgao & Bruxa de Sto Semedo. O que reparei nesse dia Jevou-me cinco anos a escrever. Puxal». RUBEN A.— O Mundo & minha procura — Autobiografia Ill, Lisboa, Parceria A. M. Percira, Lda., 1968, pp. 109-110. 141 ANA PAULA COUTINHO MENDES histérias acabam por se entrecruzar com as alusdes aos ruidos nocturnos culminando, ja no final, com a revolta dos Barbelas mortos no Jardim dos Buxos, em reacgdo ao comentario de um visitante da Torre. Se a este Processo acrescentarmos ainda, por um lado, passagens de fantéstico dentro do fantastico, como é 0 caso da viagem visiondria de Madeleine e do Cavaleiro no fundo do rio, em Ribeira Lima e, por outro, inimeros recursos a «efeitos do real» (toponémicos reais e personagens historicas, par a par com ficticios; apelo a pretenso documentos, nomeadamente teses de doutoramento), chegaremos & conclusdo que estamos face a um romance que, pela propria sintaxe diegética e sua interacc3o com 0 discurso narrativo, materializa a fusao almejada pelos surrealistas ¢ sintetizada por André Breton do seguinte modo: «Ce qu’il y a d’admirable dans le fantastique, c’est qu’il n’y a plus de fantastique: il n'y a plus que le réel.» !4 O real para que nos remete A Torre da Barbela € 0 da noite e da morte, mas simultaneamente 0 da vida labirintica dos sonhos e dos desejos, tépicos caros & «démarche» surrealista, assim como o so a forca subversiva do Amor, associada a atracco incontrolada pelo feminino enquanto incamagio de uma ordem outra: 0 estranho (aqui mesmo o estrangeiro); 0 ndo racional (aqui, os dominios da libido com Madeleine e os da vidéncia com a Bruxa de Semedo). Alids, importara perguntar se ndo € inevitével que todo o texto imagol6gico, enquanto projeccao realizante de uma interioridade, seja surreal no sentido da fustio a que nos referimos. Se optarmos pela afirmativa estaremos a reconhecer-lhe a sua autonomia de revelacdo mitificante, mais do que atribuir-Ihe uma qualquer e eventual fungdo documental e/ou pragmética de terapia individual ou social. Assim, quando um texto literdrio estabelece uma imagologia que se abre declaradamente a relagdo com 0 Outro (0 que, explicita ou implicitamente, acontece sempre), ndo poderemos pedir-Ihe um retrato veridico ou mesmo verosimil da alteridade em causa e da relagdo que com ela se estabelece. Nao obstante, e na ordem do simbélico, encontramos uma homologia entre a tensio Amor-Odio com que Madeleine é recebida na Barbela e a 44 Breton, André — Manifestes du surréalisme, Paris, Folio, 1988, p. 25 142 DA TORRE DA BARBELA relagdo/tenso Mania-Fobia !5 com que nos relaciondmos com o paradigma cultural francés, ou mais especificamente com a sua literatura. Porém e ao contrario do «Envoi et Adieu a Madeleine», no podemos deduzir a partir do Tomance de Ruben A. aqui em causa, que «nos comptes avec Madeleine sont soldés.» 16 Os diferentes aspectos analisados conduzem-nos, em termos de sensagao global ¢ extrapondo, como sugerido, os limites romanescos, a um misto de auto-comiseragéio, remorso ou mé-consciéncia a escala nacional, muito mais do que a uma licida (auto) andlise ¢ relagao equilibrada com 0 estrangeiro (Franga) que anuncia Eduardo Lourengo no final do citado ensaio, De resto ndo poderiamos esperar do romance uma clarividénci analitica do nosso «caso» com a Franga, A Torre da Barbela, enquanto discurso ficcional ¢ pela expansio estruturada da vidéncia, reescreve 0 mito ndo podendo deixar de ser essa a sua fungao. Relacionando 0 Mito com a Histéria e sem de modo nenhum querermos subsumir 0 romance de Ruben A. ao desprestigiado estatuto de obra datada, no poderemos deixar de lembrar que a reescrita do mito aqui subjacente é também ela necessariamente histérica, ou melhor, corresponde a uma fungao histérica. Com efeito, os anos 60 em Portugal, ao manifestarem, pelo lado oficial, um quase orgulhoso anacronismo ¢ ostracisno ¢, pelas margens mais ou menos clandestinas, uma ansia desmesurada de novidade e de abertura, prestavam-se necessdria ¢ perfeitamente a este ardiloso panorama critic nacional, recorrendo a fantéstica introspeccdo, mediante uma relagdo mitica com o paradigma estrangeiro, na altura ainda e inevitavelmente o francés !7 Ana Paula Coutinho Mendes 35 Daniel Henri - Pageaux, a0 enumerar os quatro tipos possiveis de relagbes entre uma cultura nacional © um cultura estrangeira, refere precisamente um primeiro caso em que @ cultura estrangeira ¢ vista como absolutamente superior & nacional, havendo por isso uma «manian; em seguida foca 0 caso antag6nico, quando a cultura estrangeira 6 encarada como inferior ou negativa, originando a «fobia» in PAGEAUX, Daniel-Henri — Une perspective études en listérature comparée: Uimagerie culturelle , «Synthesis», VIII, Bucarest, 1981, P. 14, Nogdes retomadas também em Macttabo, Alvaro Manuel; PAGEAUx, Daniel. Henri — Da literatura comparada i teoria da literatura, Lisboa, Edi¢des 70, 1988. "6 Lovrivgo, Eduardo — Op, cit. p. 126. "7 Paradigma esse recuperavel no propri ficcional surrealista, ainda que nos termos jé referides, e que se enquandram no contexto de uma recepeio tardia e consequent assimilagdofiltrada do surrealismo francés em Portugal. facto do romance enveredar pelo universo 143

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