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S deaeee | pms Alan Wood DE 1861 A 1917 Valter Lelis Siqueire | REVOLUCAO | AS ORIGENS DA RUSSA Dirogao Benjamin Abdala Junior Samira Youseet Campedeli Preparagéo do toxto Wwany Picasso Batista Ealigao de arte (mioio) ‘Maree Anton José Anacleto Santana, ci ‘Ary Normanha ‘Antonio Ubirajara Donlencio Inpewsso nas fkinas és (Gréfea Palas Atnons © 1987 Alan Wood Titulo do original: The origins of the Russian Revolution 1861-1917 1. ed. 1987 por Methuen & Co, Lig. ‘11 Now Fetter Lane, London ECAP 4zE ISBN 85.08 03917 4 1991 a Atica S.A. — Rua Bardo de Iquape, 110 el: (PABX) 276-8022 ~ Caixa Postal 0588 End. Telegratico "Bomivro” ~ Sao Paulo Sumario Quadro cronolégico: 4 Mapa: O Impétio Russo em 19179 4. Introdugao n 2. Autocracia e oposiggo ___13 O regime imperis 13 A tradigio revoliciondria rt 3. Reforma e reagdo a Emancipario e reforma administrativa, 1861-81 __ 24 Populismo revolucionério, 1861-81 29 Retracdo ¢ industrializacao, 1881-1905 _______ 36 4, Revolugdo versus constituigéo 2 Origens do marxismo russo____ a 1505 7 A politica “consttucional”, 1906-16 $1 5. Guerra e revoluggo______s6 A Riissia na guerra, de 1914 a fevereiro de 1917 __ 56 A Revolugdo de Fevereiro e 0 “poder duplo”, fevereiro-julho de 1917” 6a A caminho da Revolugéo Bolchevique, agosto-outubro de 1917 66 6. Interpretagées e conclus6es __ 11 7. Glossario de termos russos __ 75 8. Indicagao bibliogréfica_____7 a ae im ers Quadro cronolégico tere Pciaaos Sao 6 aiaeei nein Zr nie | menio e exilio de Tchernichevski. soins as ones Gala a aie hea marisa 1584-1613, Periodo de agitarso social e politica, © I ‘Tenia as asessaie ae EES "Tempo das Dificuldades”. beau pa A eaeaee a Fxaesis open oa al ae 1696-1725, Reinado de Padre | (Pedro, o Grande); eee es ee a 1879 ‘A Zemlya / volya se divide quanto a ques- a ar Rois a Reena eset es Bar At rss = ssgegaee oman e See inca @ acorn ac na om Trt in : sete : i bieasahe apavac ans ergs mae eee i acs poem Sa re ae faa seas onan 1836-48 A controvérsia “Eslavétllos/Ocidental ! ae iomeea ee noe mor | ie Ge nee ca | 1653-6 Guerra da Crit 4; a Russia 6 derrot 1897-1900 Exilio de Lénin na Sibéria; perturbado pelas eines od tendéncias “revisionistas” do movimento eo Soma cana eens = nti 6 eo eS m2 Se lira serviszo, Russo Socialdemocrata (PTRSO), teenaaT6 reataet6 7900 Pile cleo de ire nda ao Par 8 ‘Nicolau ae loma somandaninarvohoe; eo Sccinha evouconario BSA) tevtagoet ano govrre 0 Bura so Serorear foresee so Stace Posts. wos Calapao econ; cidade gras’ sia indus aie Assssiato de Rasputin io0e Pungo do Gu ave? de Lin, 7208 Sepunde Congreso do FTRSD, divisdo entre mencheviques e bolcheviques. _— a ee eee ere ar Tanevoroveraro | Greve e aiaga ci om Piogrado, — 26-27 de fevereiro | As tropas se recusam a os 7806 Tumult rereiccndo om toda a Ria ne eae ne doped masssoe 2a" Somgo Sar grento” Janeiro}, o czar promete uma 27 de tevereiro | Formago do Sovlete dos Deputados dos, onstitulgao (agosto, grve geal, forma. ‘Trabaihagores do Petrograd, do Sonal e Sto Petrsturgs, ont fete ‘impart atoraras sles para ‘Paemargo | Emissto da Oram ne 1 do Sonete do Dune Enataloulbray fepseeks do Fevegasorconvooagio of eegee pra iovant se Hosvor seen) comes do slcnc, 108 Primera Duma Esato Stalin oe toma Zsamage | Weolaw 1 aia; fomagao do oynore imeem Govemo Proviso: invests a8 opccer Supleprograra de wfoma demoed ie Reloma agraria Stahpn {drat dee Noerdades ei “907 Seourda Duma Eat Stoypinakara oo Tae aba Tormula as Tessa ist eto nose ode 3 poder ae Sout ‘e078 Tercera Duma Evata Diesel | Proioso wena a “rota de guera de 70 Stolipn#assasshado Zeamuo | Miyanon,colapee co" pmeho overs Prove, “32 Wassaere nos campos areos do Laas roves aptegees ne neta sae Sdemaio | Formagho do segundo Govrne Proviso Ene os morenennis 0 Blcneaues (Go"cpatzsgy romeageo oe mint Sci Sceilste: Kerra se fornia Stora wie © ssctndao Rasputin; arpiaréo do Hato Shite gowno 8 socedase Seelunte | Abenura do Prins Congreso aos Re presontantss dos abaracores © Sd wie? Querte Dua Evia, Sco Russos 7B i Alomanha dsl gue & Rss ‘We ume | Orerava na Gala 1917 2 de Julho Trotskl so une aos bolehaviaues, 3-4 de julho iolentas manitesiagéee contra © governo ‘om Potrograds. ‘57 Ge juiho Ordem de pristo dos liceres bolcheviques Lénin'se esconda, Bde juno KerensKi se tora primelro-ministra 16 de juino Komiloy nomeade comandante-em-oh 28 de julho ‘Trotekl @ press. Julho - seiembre Disturblos nos cempos, a militancia das ‘classes trabelhacoras 6 as desergoae 60 exército aumentan. 27-30 de agosto nizagao dos Guardas Vermelhoss 158 lentativa de golpe de Kornlay. ‘Setembro Tibertado; tomna-se presidente do Soviete de Petroprade; os Sovietee Petrograco @ Moseou ebtém m chevique; Lénin revive.o slogan oder aos Soviet ‘OIMPERIO RUSSO EM 1917 10 de outubro |Linin assiste & reuniao do Gomité Genial Bolehevique; seu apelo de Insurrelgao armada é aprovado. 20 de outubro Primelra reunigo do Comite militar Revolu: lonario do Soviets de Petrogrado. 2628 de outubro ‘Operdrios e soldados armados, comande- {dos pelos bolcheviques e arganizados pelo ‘Comité Militar Revslucionario, tomam ed ficios @ instalacdescnave em Potrogtace, (26:26 do outubro ‘Os ministros do Governo Provisério sao ‘prislonades; goips bolehavique anunclado ‘Gurante 0 eegunde Congress dos Sovie- tes; 08 delagados mencheviques se retiram fom protesto. 2627 de outubro © Congreso dos Sovietes promulga 0 Decreto sobre a Paz 6.0 Dacreto sobre & ‘Tecra; nomeia‘o prinelto governe sovstico, © Congelno Bolcnevique dos Comissérios do Povo, com Lénin come presidente, 1 Introducgao A Revolugdo Russa de 1917 é sem diivida o fato mais, importante da historia politica do século XX. Um observa- dor contemporaneo da Revolucdo, 0 jornalista americano John Reed, deu a seu famoso relato desses acontecimentos o titulo de Os dec dias que abalaram o mundo, ¢ 0s tremo- res € as reverberagdes provocados pela sublevagio conti- nuam a ser registrados ainda hoje. Setenta anos depois do evento (no momento em que escrevo), as ondas de choque emanadas da Russia em 1917 provocam um impacto direto ou indireto em toda uma gama de problemas politicos, eco- némicos, ideol6gicos, diplométicos militares em todo 0 mundo, Uma avaliagdo das causas, rumos ¢ conseqiiéncias da Revolugdo Russa, portanto, ndo se restringe a uma sim- ples questo de interesse historico, mas ¢ algo decisivo para que se tenha um entendimento adequado e bem informado do mundo politico em que vivemos, e em que a Unio Sovié- tica — coma Estado e sociedade nascidos dessa Revolucéo — desempenha um papel de extrema importancia, Este panfleto se limita a um exame das causas e dos rumos da Revolucdo desde a emancipado dos camponeses- servos da Riissia em 1861 até a tomada do poder politico 2 pelos bolcheviques em outubro de 1917. Uma anilise das conseqiiéncias dessas profundas mudancas sera deixada para um futuro estudo. Por que iniciar 0 exame da Revolugdo de 1917 no ano de 1861? Nao € necessario adotar a visio marxista-leninista da histéria para que se concorde com a opinido do préprio Lénin de que as sementes da Revolucao foram langadas a0 solo quando da insatisfat6ria legistasfio que aboliu a servi- lo na Riissia em 1861. O ambiguo e contraditério programa de reforma administrativa que se seguiu ao Ato de Emanci- ago gerou novas forgas sociais, politicas e intelectuais que, um Estado absolutista e autocrético. E uma lei fisica, se ndo histérica, a que nos ensina que a forga de pressio do vapor ccontido em um recipiente rigido, sem espago para sua expan- so, sem qualquer estrutura eistica ou valvulas de seguranca, rovocara uma explosao ¢ o estilhagamento desse recipiente, Essas perigosas forgas ¢ pressdes, tanto latentes quanto at vas, podiam ser constatadas por qualquer um nas décadas que antecederam 0 ano de 1917. A revoluedo sempre cons- tou da agenda tanto da autocracia quanto da oposicio. Os intelectuais russos constantemente falavam ¢ escreviam sobre ela, os ativistas se organizavam para ela, 0 governo legislava ‘contra ela, ¢ as forgas militares e politiais, combinadas entre si, estavam em constante alerta para sufocd-la. Mas foram ‘a5 massas, 0 povo russo, que por fim a concretizou. As pagi- has que se seguem procuram descrever ¢ analisar algumas das circunstancias objetivas e alguns dos fatores subjetivos que contribuiram para esse processo, criando as tensdes € contradigdes dentro do Império Russo que sé poderiam ser resolvidas pela revolucao. Antes, porém, 6 necessério identi- ficar algumas das importantes caracteristicas do regime cza- rista ¢ as antigas tradigées revolucionirias a ele opostas. 2 Autocracia e oposicao .@ imperial: contrastes e contradigées ‘0 Império Russo na época da Revolugo era uma terra de incriveis contrastes. Era o maior império em terras con- tinuas do mundo. Estendendo-se da Europa Oriental até a costa do Pacifico, ¢ do Oceano Artico até os desertos da Asia Central ¢ as fronteiras chinesas, 0 Império cobria — ‘como a Unio Soviética de hoje — uma area quase equiva- lente a um sexto das terras emersas do planeta. Nesse con- junto imperfeito de territérios e povos, contudo, enquanto Imais de dois tergos das terras ficavam a leste dos Montes Urais, nas vastas ¢ geladas extensOes da Sibéria, 0 grosso da populacdo vivia ¢ trabalhava nas provincias européias da Russia, Bielo-Russia, Ucrénia, Poldnia (que era entéo parte integrante do Império) e do Ciucaso. O primeiro governante russo a se proclamar imperador (diferenciando- se do titulo de czar) foi Pedro I (Pedro, 0 Grande, que governou de 1696 a 1725). O reino que herdara de seus ante- eessores moscovitas do século XVII jd era de dimensdes consideraveis, ocupando grande parte da Eurdsia, mas sua maior e mais duradoura realizaro seria o estabelecimento da presenca da Russia como poténcia dominante no norte © no leste da Europa, como conseqiiéncia de sua vitéria sobre os suecos na Grande Guerra do Norte (1700-21). significado da entrada da Russia para a Europa néo deve ser exagerado. Igualmente pocerosos foram 0s efeitos recfprocos da influéncia da Europa sobre a Riissia. © prin- cipal efeito das reformas empreendidas por Pedro foi a remodelagao da administragdo civil e militar de seu pais segundo 0s padrdes europeus; outro resultado importante dessas reformas foi o fato de Pedro ter obrigado os mem- bros de sua nobreza latifundisria (dvoryanstvo) a adotarem. habitos, modos, educacdo ¢ atitudes ocidentais. Assim, Pedro criou uma grande divisdo na sociedade russa — ou ‘melhor, criou duas sociedades. De um lado, havia a edu- cada ¢ ocidentalizada dvoryansivo, que, nos 50 anos que se seguiram & morte de Pedro, se tornou uma nobreza pre- tensiosa, ociosa, possuidora de terras ¢ servos, e gozando da maioria, se no de todos, dos privilégios de uma aristo- cracia curopéia. Do outro lado, havia 0 povo russo (narod), os camponeses transformados em servos, que continuavam ser implacavelmente explorados, espoliados e confinados, a0 mesmo tempo que continuavam. mergulhados em um. vasto lodacal de ignorancia, miséria, superstigao e fome periédica. O abismo social e intelectual que separava a nobreza do narod era uma manifestagio da natureza com- plexa e ambivalente da relagio entre a Europa “moderna” © a Riissia “atrasada"", que se constituiu em um grande Jeltmotiv da histéria do pais durante todo o século XIX. Outros exemplos da ambiglidade e da contradigao podem ser encontrados na estrutura politica, nas relagoes econémicas, no poderio militar e a:é mesmo nas realiza- ‘96es culturais da Ruissia as vésperas da Revolugio. Em primeiro lugar, o imperador russo era um auto- rata absolutista. O que equivale a dizer que néo havia qualquer restrigo legal ou constitucional ao seu exercicio 5 do poder politico, da escotha dos ministros a funcionérios do governo, ou da formulacdo da politica nacional. Uma palavra do czar era suficiente para alterar, suprimir ou abo- lir qualquer lezistagio ou instituigdo existente, Durante os séculos XVIII XIX foram feitas varias tentativas de se propor um tipo de reforma constitucional que limitasse os poderes do czar, mas nenhuma delas obieve sucesso. Foi 56 com os distirbios revolucionérios de 1905 que o diltimo czar russo, Nicolau I (que reinou de 1894 a 1917), foi for- gado a autorizar a realizagao de eleigdes para uma assem- biéia nacional consultora legislativa, conhecida como Imperial Duma Estatal, Contudo, a despeito da relutante concordncia do czar com 0 principio de um certo tipo de politica de participacdo limitada, legalizacao dos partidos politicos e da promulgacio das Leis Fundamentais, a forma de governo continuava a ser a autocracia absoluta. Em outras palavras, se 0 autocrata desejasse abolir a constitui- do (¢ com ela a Duma), entao a constituicdo o investiria, da autoridade necessiria a isso. Sem qualquer definigéo, a nogdo de uma ‘‘autocracia constitucional”’ néo era apenas impraticdvel mas também se constituia em um absurdo poli- tico condenado ao fracasso. Em termos econémicos, a situacdo era igualmente pro- bblemética. O atraso industrial da Russia com relagio a ‘outras poténcias européias importantes ficou patente depois da derrota do pais na Guerra da Criméia (1853-6). Como conseqiiéncia, embora ndo de imediato, 0 governo deu ini- cio a um programa intensivo de industrializacdo por volta, da virada do século, conseguindo transformar a Riissia, de um dos paises menos desenvolvidos economicamente da Europa, em uma das principais poténcias industriais do mundo. Durante esse processo, o pais rapidamente assumiu toda a aparéncia e substancia de uma moderna economia capitalista. Pela primeira vez em sua histéria, a Russia desenvolveu uma grande forca de trabalho industrial, ou proletariado, ¢ uma classe média economicamente poderosa 6 de negociantes, banqueiros, advogados, financistas ¢ indus- triais. Ao mesmo tempo, contudo, a’ grande maioria da Populacdo, cerca de 80 por cento, ainda era constituida or camponeses organizados comunitariamente, trabalhando € vivendo em suas vilas em condig’es que haviam sofrido oucas mudangas desde o século XVIII. Até mesmo muitos habitamtes das cidades estavam cficialmente registrados ‘como camponeses, ¢ a Rissia ainda era uma sociedade sur- preendentemente agraria. Essa coexisténcia entre uma socie- dade moderna e industrial e um imenso campesinato vido Por terras, cujos interesses econémicos hé muito eram negli. senciados pelo governo, constitui-se em fator-chave para ‘um entendimento da natureza da Revolugo de 1917, ‘Também vital para um entendimento dos eventos ocor- ridos nesse ano € 0 papel dos militares. E agui, mais uma vvez, vemo-nos diante de outro paradoxo aparente. O poder © 0 prestigio do Império Russo dependiam em tiltima instan- cia do poderio de suas forgas armades. O exército russo era major forca militar do mundo e era utilizado no apenas em campanhas militares no exterior mas também na mant- tendo da ordem interna e na repressio dos distiirbios civis que ameagavam a estabilidade do regime. Apés a derrota russa na Criméia, houve uma série de reformas militares radicais, principalmente durante a década de 1870, com 0 Objetivo de reorganizar ¢ reequipar as forcas armadas do pais de acordo com as modernas téenicas bélicas, Entre- ‘anto, essas mudancas fizeram com que 0s russos superest massem suas forcas, e um novo desastre militar aconteceu, desta feita diante do Japaio, durante a guerra de 1904-5. 0 poderoso Império Russo foi derrotado por um pais asiatico relativamente pequeno que, contudo, havia-se modernizado de maneira mais bem-sucedida e eficiente que seu enorme vizinho, aparentemente mais poderoso. As previsdes quanto a0 envolvimento da Riissia na Primsira Guerra Mundial exam, portanto, pouco auspiciosas. Se 0 desastroso empe- ‘nho do pais nese conflito precipitou ou nfo a Revolucio v7 de 1917 é uma questo que discutiremos mais adiante, mas © paradoxo ¢ claro: de um lado, uma grande poténcia impe- rial que ainda contava com formidiveis recursos militares, , de outro, um exército que parecia cada vez mais incapaz de desempenhar suas fungdes, seja a vitéria em batalhas seja a contengao das desordens civis internas: ‘Também cultural ¢ intelectualmente, a Riissia de Nico- Jau Il era um pais que apresentava ao mundo duas faces diferentes. As cerca de duas décadas que antecederam 1917 tém sido descritas como a “Idade de Prata’’ da cultura rrussa, a “'renascenga russa’” ¢ outras expressdes similares que enfatizam a natureza inovadora e a alta qualidade esté- tica de suas realizagdes artisticas e literdrias, Realmente, ‘muitos poetas, pintores e muisicos russos formavam a van- guarda da cultura européia contempordnea. As peas € os contos de Anton Tchekhov e Maximo Gorki, a poesia de Alexandre Blok e a escola simbolista, a musica de Scriabin, Stravinski ¢ Prokofiev, as técnicas dramaticas pioneiras de Stanislavski e Meyerhold, e as idéias filoséfico-religiosas de Berdyaev e Rozanov foram todas caracteristicas dessa época de intensa atividade cultural, Suas realizagdes séo ine- siveis mas sem diivida se destinavam as classes superiores educadas ¢ a elite intelectual. Pelos padrdes ocidentais con- temporaneos, os niveis de educagio e alfabetizaco do Povo russo eram constrangedoramente baixos. A maioria dos camponeses era analfabeta e, de qualquer modo, eles tinham problemas cotidianos de sobrevivéncia muito mais urgentes do que aprender a ler ¢ eserever. Havia pouco lirismo ou beleza na vida das massas, e para muitos parecia que as elegantes producdes da intelligentsia era resultados de uma omisséo diante da responsabilidade moral com rela- 40 a0 povo russo. Mais uma ver estamos diante de uma contradigao: um pais cujas brilhantes realizacdes artisticas e literdrias colocavam-no na vanguarda européia, mas cuja populagio, em sua maioria, ndo conseguia ler ou escrever sua prépria lingua. a Outro fator conflitante a ser considerado na avaliagio das condigdes do Império Russo as vésperas da Revolusio a composigao étnica de sua populagao. Em 1917, de uma populago total de 163 milhdes, os russos s6 formavam 40 Por cento. O restante era composto por uma massa enorme ¢ heterogénea de minorias nacionais que falavam rmiltiplas linguas e variavam em muito quanto ao mimero de compo- nentes ¢ ao nivel de civilizagto. Durante toda a histéria do Império, essas minorias haviam periodicamente expressado seu descontentamento quanto a sua condigo de vassalos e A continuidade da dominagdo russa, Esse descontentamento se manifestava de varias formas, indo do protesto indivi- dual ¢ da desobediéncia civil a insurreigdes nacionais arma- das ¢ em grande escala que exigiam separagdo e autonomia. ‘Tais revoltas eram sempre impiedosamente sufocadas. As insurreigdes polonesas de 1830 ¢ 1863, por exemplo, foram seguidas de execugées ¢ pelo exilio permanente de patriotas poloneses na Sibéria. Das outras nacionalidades, os judeus ‘em particular sofreram uma variedade de restrigSes no tocante a habitagao, educagdo, oportunidades profissionais e ativida- des econdmicas. Também foram vitimas de campanhas cole- tivas de violéncia, incéndios premeditados, saques e estupros — 05 famosos pogroms —, que eram desenvolvidos com a conivéncia do governo. Além da Polénia e do “territério Judeu’, os sentimentos anti-russos grassavam por todo 0 Império, e entre as forgas centrifugas que impeliam o regime ezarista em diregao a seu colapso firal os movimentos pela independéncia nacional dos povos no russos constitufam ‘um elemento de forte carga emocional e extremo vigor. Império Russo do comego de século XX, portanto, continha uma mistura extremamente voldtl de riqueza osten- siva ¢ dolorosa pobreza, de forca ¢ fraqueza, de atraso modernidade, de despotismo e ums urgente exigéncia de mudangas. Por toda parte, conviviam exemplos de barba- rismo e sofisticagdo, de tecnologia ¢ téenicas primitivas, de esclarecimento e ignorancia, de traligdes européias e asid- 1s ticas, E claro que essa ndo é uma situagdo historicamente peculiar & Ruissia, pois na verdade pode ser encontrada em muitas sociedades subdesenvolvidas e em desenvolvimento de todo © mundo de hoje. Entretanto, os fortes contrastes contradigdes existentes na Russia do perfodo inter-revolu- cionério que vai de 1905 a 1917 levaram o grande escritor russo Ledo Tolstoi a observar com ironia que a Russia era ““o nico pais do mundo em que Géngis-Khan desfruta do uso do telefone”. A tradicao revolucionaria A dinastia Romanov, que foi destrufda pela Revolugio de 1917, teve origem durante um periodo de 25 anos de agi tagdo revolucionéria que sacudiu a Russia na virada do século XVI e é tradicionalmente conhecido como 0 “Tempo das Dificuldades”’ (1584-1613). A escolha de Miguel Rom: nov como novo czar em 1613, apesar de resolver o problema politico imediato, nao oferecia qualquer solugo facil para as continuas dificuldades sociais ¢ econémicas do pais, € (08 meados do século XVII foram marcados por muitos dis- tiirbios, motins, rebelides e cismas religiosos; por isso, 0 historiador russo Klyuchevski chamou esse perfodo ‘de “Tempo da Revolta””, Desde seus infcios, portanto, o novo regime foi ameagado por uma série de desafios potencial- mente revoluciondrios & sua autoridade que acabou por estabelecer um modelo para os préximos trés séculos de autocracia ¢ oposigao. A maioria dessas primelras desordens era elementar, selvagem, anarquica e nfo dirigida para qualquer propésito politico especifico. Nao eram particularmente dirigidas con- ‘ra 0 czar ou, mais precisamente, contra a autocracia como instituigdo. Na verdade, cra caracteristico de muitos movi- ‘mentos populares dos séculos XVII e XVIII 0 fato de serem comandados por um pretendente ao trono, um impostor que afirmava ser o verdadeiro czar e prometia restaurar 03 » direitos do povo ¢ dar fim a seus sofrimentos. O reinado de terror de Pedro, Grande, provocou uma grande resis- téncia popular que, em seu todo, ele conseguiu conter, embora langando mao de uma série de repressées brutais, © fato de cle nao ter apontado um sucessor antes de sua morte em 1725 deu inicio a um perfodo de confusio pol tica que € por vezes denominado a “Era das Revolugdes Palacianas’’. Entretanto, a répida sucesso de personagens mediocres que ocuparam o trono russo entre 1725 e 1762 nao teve qualquer implicagao revoluciondria para o Estado ou a sociedade russa. Tratava-se apenas da mudanga de lum monarca para outro como mera figura de proa de uma ou outra facgao, panela ou favorito da corte. Entretanto, luma coisa foi demonstrada por essas ‘‘revolugées palacia. nas”, ou seja, a importincia de se preservar a lealdade dos antigos militares, particularmente dos regimentos da guarda palaciana, que amitide surgiam no papel de “fazedores de soberanos”’. Essa tradicao de golpes militares, originada no século XVIII, € 0 papel decisivo desempenhado pelos militares em tempos de crise politica serdo por nés nova- ‘mente abordados mais adiante. ‘Uma das mais significativas dessas conspiragdes pala- cianas foi a de 1762, que resultou na ascensdo ao trono da imperatriz Catarina II (Catarina, 2 Grande). Foi durante seu longo reinado (1762-96) que ccorreram dois eventos de extrema importdncia, cada um deles representando uma direg2o importante no desenvolvimento do movimento revo- luciondrio durante o século e meio seguinte. O primeiro deles foi a grande revolta dos cossacos e camponeses, comandada pelo pretendente Emelyan Pugachev entre 1773 © 1775. Por sua extensio geogrifica, seu apoio numérico, pelo alcance de seu apelo popular e pela grande variedade de seus participantes — cossacos, religiosos cismaticos, ope- rririos, membros de tribos ¢ camponeses — a rebelifio Puga- chev representou a mais séria ameaca estabilidade do Estado russo desde 0 Tempo das Dificuldades. Por fim, revolta foi esmagada, 0 corpo de seu lider, esquartejado, 2 € uma sangrenta sucesso de execugdes ¢ represlias foi desenvolvida nas regides afetadas pela revolta. Pugachev estava morto, mas seu fantasma continuou a assombrar a autocracia, ¢ 0 espirito de sua rebeliéo a inspirar os ativis- tas revoluciondrios que mais tarde acreditaram na aversio inata pelo autoritarismo e na insurreigao do narod russo. Se Pugachev foi a personificaglo da revolta popular, ‘© caso de Alexandre Radishchey (1749-1802) resume’ 0 fenémeno da critica tedrica e do desafio intelectual radical ‘a0 regime que iria assumir proporedes amearadoras durante © século XIX. Em 1790, Radishchev pul mordaz & Russia de Catarina sob a forma de um didrio de viagem intitulado Viagem de Sao Petersburgo a Moscou. A publicagio desse livro — por sua amarga condenagio da servidao, do militarismo, da corrupgao e do governo tiri- rico, bem como por sua defesa da legalidade, dos direitos humanos e da liberdade individual — foi uma verdadeira bomba literdria e politica. Radishchev foi preso, interro- gado ¢ exilado para a Sibéria. Isso acabou por ser 0 pri- meiro tiro de uma longa batalha entre o governo russo € (os membros da intelligentsia critica, que mais tarde se tor- nou militante e, por fim, revoluciondria. Enquanto as for- ‘sas populares representadas por Pugachev ¢ os desafios inte- lectuais representados por Radishchev permaneceram isola- dos entre si, como aconteceu em geral durante 0 século seguinte, © regime esteve relativamente seguro. Quando, porém, no inicio do século XX a intelectualidade e 0 narod juntaram forgas, como acontece na combinagao de dois pperigosos elementos quimicos, a explosao resultante devas- tou a ordem sociopolitica ezarista, da qual ambos eram Produtos. ‘A primeira tentativa declarada de mudanga revoluci naria a combinar a oposipdo intelectual com as téenicas fami- liares do golpe militar — mas ainda sem participagao popu- lar — foi a malfadada e abortiva Revolta Decembrista de 1825 (assim chamada porque a insurreigio aconteceu no dia 14 de dezembro). A inesperada morte de Alexandre I, i) 2 gue reinou de 1801 a 1825, precipitou os planos de um grupo altamente educado, mas de patente média, de oficiais do exército; esses planos consistiam em se estabelecer um putsch militar que derrubaria a autocracia ¢ introduziria ‘um tipo de monarquia constitucional ou até mesmo uma forma de governo republicano. A rebelido foi facilmente sufocada; cinco de seus lideres foram enforcados ¢ mais, de 100 outros, sentenciados ao exilio na Sibéria. A princi- pal razio de a revolugéo nao ter acontecido foi o fato de do existir uma situagdo revolucionéria. Quando os Decem- bristas decidiram tomar as ruas nfo havia um estado de ‘emergéncia nacional mas apenas uma pequena desavenga ‘com relagao a sucessdo imperial. Tampouco havia uma erise ‘econémica, uma ameaga externa, um desarranjo na ordem social ou uma agitaggo popular; na verdade, nenhuma das circunsténcias objetivas que normalmente se constituem fem pré-requisitos de uma revolucdc bem-sucedida se fazia Presente, como aconteceu depois em 1917. Mas, apesar de ter fathado — ¢ talvez porque tenhe falhado —, 2 Revolta Decembrista pode ser realmente considerada como o inci do movimento revolucionério do século XIX. Seus mem- bros passaram a ser reverenciados como mértires, ¢ os ide- ais e 0 exemplo desses “'nobres revclucionérios” continua- ram a inspirar as geragdes seguintes de reformadores, radi- cais e revolucionérios. reinado do novo czar, Nicokuu I, que governou de 1825 a 1855, tem sido descrito come “0 apogeu do absolu- tismo””. Mas, a despeito da natureza reacionéria, militarista c obscurantista de seu governo, este também conhecew uma atividade intelectual extremamente vigorosa, da qual uma das mais importantes manifestagdes foi o assim chamado debate “Eslavéfilo-Ocidentalista” durante a década de 1840. Simplificando, os Ocidentalistas eram intelectuais que acreditavam que a resposta para os problemas russos devia ser buseada no exemplo da civiliza¢ao européia oc dental. Eram objetos particulares de sua admiraco as tra- digdes ocidentais de um governo constitucional, do respeito 23 pelas leis ¢ 0 individuo, da filosofia racional e da predomi- nancia da lei. Alguns dos Ocidentalistas mais radicais tam- bém foram influenciados pelos pensadores socialistas fran- ceses contemporineos e pelas teorias do filésofo alemao Hegel, todos descritos por um importante Ocidentalista como a “algebra da revoluedo’”, Rebelando-se instintiva- mente contra a crueza da realidade russa contempordnea, (0s Ocidentalistas radicais da década de 1840 comevaram a pensar na revolugdo como a tiniea forma de uma mudanga dessa realidade para melhor. Por outro lado, os Eslav6filos afirmavam que 0 que havia de errado com a Russia de Nicolau [ devia ser ident ficado na j excessiva europeizagaio, na enorme burocraci € no rompimento com aquilo que eles acreditavam ser @ hharmonia tradicional da sociedade russa. Tomando como ponto de partida de sua filosofia as tradigdes ¢ 0s ensi mentos da Igreja Ortodoxa Russa, os Eslavétilos achavam que a futura grandeza da Russia estava no retorno das vir~ tudes imaginérias de seu passado moscovita. Todos falavam da decadéncia e da “‘podridao” da moderna civilizagio ‘européia e contrastavam-nas com as imaculadas virtudes ortodoxo-cristls do campesinato russo. Acima de tudo, cles apresentavam a organizacao coletiva da comuna cam- ponesa tradicional (a obshchina) como prova da inerente superioridade moral e social do povo russo com relagio a0 individualismo, & competitividade ¢ ao egocentrismo divisor da sociedade do homem europeu. ‘Nao & preciso exagerar o impacto da controvérsia ‘entre Ocidentalistas ¢ Eslavéfilos na futura historia intelec- tual, e até mesmo politica, da Rissia. Muitas das posterio- res disputas e divisdes entre os intelectuais russos, entre dife- rentes facpdes, escolas de pensamento e partidos politicos, podem ser analisadas em termos dos que buscavam 0 que acreditavam ser uma solugéo racional, légica ¢ universal ‘para o problemas da Russia e dos que defendiam o respeito plas idiossincrasias das préprias tradigOes culturais e sociais da Russia. Ad 3 Reforma e reaco Emancipagio e reforma administrativa, 1861-81 A emancipaso dos servos tem sido descrita tanto como o ‘mais importante ato legislativo de toda a historia da Riissia’” quanto como “‘indigna do papel em que foi escrita’’. Nao vale a pena nos determos na polémica sobre as razées que levaram 0 governo a tomar essa deciséo. O Que nos interessa sao as condigdes ¢ conseqlléncias desse ato. Contudo, ¢ importante lembrar, ainda que de forma sucinta, que Alexandre I (reinando de 1855 a 1881) néo aboliu a servidao em conseqiléncia de um desejo altruista de melhorar a sorte do narod russo. Mais que a filantropia, foi o medo que o forgou a embarcar num processo visto, depois da derrota na Criméia, come essencial & sobreviven- cia econémica e politica do Império, A meméria das hor- das de Pugachev ainda atormentava Alexandre quando este declarou em 1856 que, se a servidao tinha que ser abolida, ““é melhor que seja abolida a partir de cima, e ndo esperar que sua autoliberagao parta de baixo””. Consideremos as caracteristicas essenciais desse com- plexo ato juridico. Em primeiro lugar, foi dada aos servos sua liberdade técnica ¢ legal, ou seja, eles néo eram mais propriedade privada de seus mestres ¢ estavam livres para negociar, se casar, pleitear ¢ adquirir propriedades, Em segundo lugar, depois de um periodo de ‘‘obrigacéo tempo- réria””, durante o qual continuavam a desempenhar algu- mas das obrigacdes pertinentes & sua antiga condigao de servos, deviam comecar a fazer uma série de “pagamentos compensatérios”” ao governo pelos lotes de terra que Ihes foram destinados; esses lotes eram desmembrados da pro- priedade de seus antigos amos, O alto nivel desses pagamen- tos compensatérios, fixado em 6 por cento de juros por uum periodo de 49 anos, significava que os camponeses eram forgados a pagar um prego por suas terras muito acima do valor corrente de mercado, ¢ representava uma compen- sagdo “dissimulada’” & dvoryanstvo pela perda do trabalho servil Outra caracteristica importante desse ato legislative era. fato de os camponeses, embora livres, ainda continua- rem organizados ¢ legalmente ligados & vila de sua comuna, ou obshchina. Tanto a liberdade quanto a terra que recebe- ram Ihes eram atribuidas ndo de maneira individual, mas coletiva. A comuna exercia amplos poderes econdmicos semijuridicos sobre seus membros. Os impostos, 0s paga- mentos compensatérios ¢ outras obrigacdes eram recolhi- dos e pagos comunalmente; em areas onde a terra era perio- ddicamente redistribuida entre os camponeses, em vez de ‘transmitida por heranca, a obshchina era responsdvel pela redistribuiggo dos lotes entre as familias da comuna; nenhum ‘camponts podia deixar a comuna sem permisso dos anciaos, da vila; € a comuna tinha 0 poder de exilar seus membros indesejaveis para a Sibéria. Os camponeses ainda estavam sujeitos ao castigo corporal, ao recrutamento militar, a0 pagamento de impostos individuais e a certas outras obriga- bes de que outras classes sociais eram isentas. Em outras palavras, 0 campesinato no gozava do mesmo status que as outras classes da sociedade russa. Constituia mais uma 6 “‘casta"" em separado, com suas préprias estruturas inter- nas, procedimentos, leis e arranjos econémicos. Além disso, ‘a manutencdo da obshchina como instituic&o oficial, ape- sar de firmemente enraizada na tradi¢do russa, significava ‘que © camponés havia simplesmente trocado a submissio a seu amo pela submisso comuna. A falta de investi mento de capital, as periddicas redistribuigdes de terras, ‘0s métodos agricolas primitivos, os danosos encargos finan- ceiros ¢ 0s impedimentos & mobilidade garantiam que 0 setor agricola da economia russa permaneceria mais ou ‘menos estagnado nos préximos 40 anos, Também em ter- ‘mos de protesto popular, o campo permaneceu inerte durante ‘este periodo, embora as Sbvias inigilidades e as dificulda- des econdmicas impostas pelos es:atutos de emancipagto tenham sido mais tarde postas eri evidéncia de maneira s, as agéncias dos cor- relos ¢ do telégrafo. No dia seguinte, o Palacio de Inverno — antigo lar do czar e tiltimo refigio do Governo Provisé- rio — foi atacado pelos Guardas Vermelhos, soldados ¢ matinheiros. Depois de horas de indecisio e de um ulti- ‘mato de teor desconhecido, todas pontilhadas por disparos esporddicos ¢ inécuos, o Palicio foi infiltrado (e ndo “as- saltado”) durante a noite de 25/25 por um esquadrio de ‘guardas revoluciondrios que prendeu os membros remanes- centes do Governo Provisério. Kerenski no estava entre eles. Ele jé havia fugido em um carro posto & sua disposi ‘a0 pela Embaixada dos Estados Unidos. Em resumo, foram esses 05 acontecimentos mais espetaculares do impeto poli- tico da Revolucdo de Outubro. Logo apds a detengao do Governo Provisério, os dele- gados do segundo Congresso dos Sovietes ja deram inicio a suas deliberagdes. Os bolcheviques constituiam a maioria, ‘mas a decisdo dos mencheviques ¢ dos socialistas revolucio ndrios de se retirarem como forma de protesto ao antincio do golpe garantiu que este fosse formalmente endossado pelo Congreso. Casualmente, os eventos coincidiam com as titicas de Trotski, dando a falsa impressio de que a tomada do poder pelos bolcheviques correspondia & predo- minaneia politica dos Sovietes. Numa sesso posterior, o e Congresso também aprovou por unanimidade duas resolu- sbes decisivas: o Decteto sobre a Paz ¢ o Decreto sobre Terra; o primeiro determinando um armisticio imediato ¢ © estabelecimento de uma paz negociada, ¢ 0 segundo apro- vando 0 processo de redistribuigdo das terras que, de qual- quer modo, os camponeses ja haviam conseguido através de seus préprios esforgos. Assim, os bolcheviques cumpriam — pelo menos no papel — as duas principais promessas fei- tas ao povo e que Ihes garantiram 0 apoio das massas. O Congresso também estabeleceu um novo governo revolucio- nario, formado inteiramente por bolcheviques e com Lénin ‘como presidente: 0 Soviete dos Comissirios do Povo (Sov- narkom.) Nascia 0 primeiro governo soviético. No espaco de apenas oito meses, 0 Império Russo, governado por uma monarquia absolutista, foi transfor- ‘mado de maneira dramética em uma repdblica revoluciond- ria comandada por um governo marxista que se dedicava, a0 estabelecimento do socialismo internacional. O préprio Lénin saira de uma relativa obscuridade para a lideranca desse governo, Os boleheviques triunfaram e chegaram a0 poder, mas a Revolusio havia apenas comesado. A posisio dos bolcheviques nfo era de forma alguma segura; ainda constituiam um partido minoritério, grande parte da socie~ dade ainda se opunha a eles ou ignorava suas intengdes, 0 conflito com a Alemanha prosseguia, logo suplantado por uma Guerra Civil dolorosa, que espalhou um mar de san- gue pelo pais e criou condigdes para o surgimento de um ca0s ¢ um sofrimento indescritiveis. Contudo, a despeito das lutas ¢ incertezas imediatas, a Revolueéo Bolchevique de Outubro de 1917 inaugurara um novo capitulo da histé- ria, ndo s6 da Russia mas também do mundo. ; ‘A Revolucao era inevitavel? Poderia ter sido evitada ou esmagada? Tais perguntas slo puramente hipotéticas, e as questdes historiograficas e filosdficas inerentes a uma tentativa de respondé-las so por demais complexas ¢ pro- fundas para as discutirmos aqui. Contudo, um aspecto fe eeeeeeeceno san sas seen nanos dota SSeS merece nossa consideragiio. E claro que havia muito mais or trs da vitbria bolchevique que uma superioridade ideo- 6gica ou de organiza¢ao com relacio as outras foreas poli ticas. Os bolcheviques simplesmente estavam muito mais sintonizados com o sentimento popular que 0s politicos libe- rais constitucionalistas ou os 5 moderados. Em articular, a resoluta posig¢do de Lénin com relagdo & paz © A questdo da terra, bem como sua avaliagto do poder revoluciondrio do campesinato, coatribuiu em muito para popularidade de seu partido ¢ seu sucesso final. E claro gue, se Kerenski tivesse adotado um programa similar, se ‘ivesse cumprido a promessa de dar fim imediato & guerra € se tivesse atribuido efeito legal a redistribuicdo das terras, niio pertencentes aos camponeses, seria ent&o possivel que ivesse obtido 0 apoio das massas necessério & sua perma- néncia no poder. Mas, como ja demonstrou Florinski, se Kerenski tivesse abracado essa politica, também ele teria se tornado bolchevique. 6 Interpretacdes e conclusdes ‘A Revolugdo prometeu, mesmo que a médio prazo nao o tenha cumprido, a resolugdo das contradig6es sociais, ‘econdmicas ¢ politicas descritas no inicio deste livro. Ela também marcou 0 pice das antigas tradigdes revolucioné- rias que combinavam elementos de insurreigdo popular, ‘oposicao intelectual ¢ saneamento das forcas militares; nes- sas tradigdes também podiam ser identificadas as forcas do ocidentalismo ¢ da eslavofilia, do marxismo e do populismo, Nao é de surpreender que a natureza politica- mente tensa dos acontecimentos de 1917 tenha feito surgir uma grande variedade de interpretacdes e abordagens histo- rlograficas que cobrem todo o espectro ideolégico. Na Unido Soviética, ¢ natural que tenha predominado uma visio estritamente marxista-leninista que vé a Revolugdo como 0 climax inevitavel de um processo de desenvolvi- mento histérico comandado por leis cientificas e determi- ‘nado por inexordveis forgas econdmicas. Até hoje, essa teo- ria exerce, até certo ponto, um papel legitimador no conti- nuo monopélio do poder politico de que goza 0 Partido Comunista da Unido Soviética. Nesse contexto, a histéria continua a servir ao Estado. No Ocidente, as interpretagées da Revolugio foram ‘temperadas por consideragdes © oportunismos de carter Politico. Quando se deu a Revolugio, era minimo o conhe- cimento do Ocidente sobre as forcas politicas, sociais e eco- ‘nOmicas que a produziram. O proprio bolcheviquismo era uma forea desconhecida, e normalmente é 0 desconhecido que produz os maiores temores. 5 compreensivel que os ‘governos estrangeiros e “‘capitalistas”” tenham-se mostrado hhostis ao jovem Estado socialista. Além da antipatia poli- tica, obsticulos lingiiisticos e culturais fizeram com que @ visio ocidental da Revolugdo fosse dominada durante mui- tos anos pela tradugio dos relatos de estudiosos e escrito res russos exilados — alguns dos quais haviam desempe- nhado papéis importantes no drame —, todos, é claro, com suas razdes pessoais e politicas para se oporem ao regime soviético. Aceitou-se como verdade incontestavel 0 fato de ue, se nao fosse pela interveneo da Primeira Guerra Mun- dial, a Russia teria continuado a percorrer um caminho reformista em diregto & maior liberdade politica, a um ver- adeiro governo constitucional e & prosperidade econémica, Alguns comentadores, intelectualmente ineapazes de admi- tir que os governos opressores silo por vezes derrubados pela ago espontinea do povo, se perguntam se uma revolu- 40 no sentido amplo do termo realmente ocorreu em feve- reiro de 1917. A abdicagdo de Nicolau Romanov foi provo- cada, segundo essa teoria, por uma “conjuragao” entre homens de negécio egoistas e politicos liberais traigoeiros, ‘bem como pelas maquinagdes do Ministério das Relacées Exteriores da Alemanha, que subverteu com dinheiro os esforgos de guerra empreendidos pelos russos. Outros argu- ‘mentam que, uma vez que o regime atormentado pela guerra jd entrara em colapso, eram arandes as possibilida- des de se estabelecerem liberdades civis e instituiges parla ‘mentares na Riissia, e, terminada a guerra, o pais estava reparado para se desenvolver de acordo com os moldes da democracia ocidental, Mas surgiram os iniquos bolchevi- 2 ques e, guiados por um zelo dogmitico ¢ sedentos pelo oder, ludibriaram as massas crédulas, tomando o poder pela forca das armas ¢ inaugurando um reinado de terror ideol6gico que lancou a Riissia em uma nova Idade das Tre- vas de opressao totalitéria. Chegou a haver esforgos con- temptiveis de se explicar a Revoluglio Bolchevique como sendo um compl6 judaico. Por outro lado, houve socialistas estrangeiros, intelec- tuais de esquerda ¢ ‘‘viajantes” que pintaram a Revolugiio Russa com cores gloriosas, louvando-a por ter derrubado ‘um regime tirdnico e por lutarem seus lideres pela constru- eo de uma sociedade justa e igualitéria, em que os interes- ses das massas trabalhadoras, ¢ no os lucros das classes exploradoras, so as grandes prioridades. Apesar de bem- intencionados, esses relatos cram geralmente ingénuos ¢ ‘mal informados. Depois da Segunda Guerra Mundial, a chamada ‘Guerra Fria’* entre a URSS e 0 Ocidente provo- cou atitudes de endurecimento em ambas as partes. As ten- tativas ocidentais de se analisarem as origens e as conseqiign- cias da Revolugdo de maneira imparcial e objetiva amitide ‘eram vistas como aprovacdo dissimulada ou até mesmo como apoio declarado a politica do inimigo comunist Com algumas nobres excegdes, a maioria dos relatos ainda tendia a se deixar infiltrar por um antagonismo, consciente ou inconsciente, a tudo 0 que a Revolugdo representava. Contudo, mais recentemente, tanto no Ocidente quanto ‘na Unitio Soviética, um novo conjunto de estudos tem-se desenvolvido; por um lado, essa nova abordagem se mostra livre das amarras da inflexibilidade stalinista, e, por outro, reflete 0 acesso cada vez mais fécil aos arquivos soviéticos oferecido aos historiadores ocidentais, o que possibilita um novo ¢ desinteressado exame dos antecedentes e da rea- lidade da Revolucdo. A amplitude e a profundidade dos estudos hist6ricos desenvolvidos pelos soviéticos nfo sto unanimemente apreciadas entre os no especialistas do Oci- dente, ¢ amitide so delicadamente descartadas como sim- eee ples propaganda do atual Partido. Entretanto, da mesma forma que os estudiosos ocidentais com freqiiéncia se mos- tram discordes quanto as suas interpretagdes, chegando a diferentes conclusées, também dentro do contexto marxista- Socialista do materialismo hist6rico encontramos conclu- sbes contradit6rias avaliagdes irreconeiliéveis, feitas por historiadores soviéticos. Esses novos estudos, tanto marxis- tas quanto no marxistas, em gersl combinam a anélise ‘econdmica, a investigagio sociolégica e a metodologia da ciéncia politica para que se lance uma nova luz sobre um fendmeno historico que, recorrendo mais uma vez & imagem de John Reed, ainda abala o mundo. Esperamos que o clima politico € a politica educacional, tanto da URSS quanto do Ocidente, continuem a fornecer as condigées necessérias ara que esses importantes estudos continuem a se desen- volver e para que deles tiremos grandes ensinamentos. l Glossario de termos russos Bolchevigue: “‘pertencente & maioria'*; membro da facséo de “linha dura’ comandada por Lénin dentro do Par- tido Trabalhista Socialdemocrata Russo. Bunt: revolta camponesa esponténea; levante. (Cherny peredel: Divisio Negra; partido revolucionério popu- lista que se opunha ao emprego do terror politico. Duma: Assembléia ou Conselho; especialmente a Duma Estatal, uma instituico semiparlamentar eleita por voto, 1906-17. Dvoevlastie: poder duplo; empregado especialmente com relagio a divisio do poder politico entre 0 Governo Pro- visério e 0 Soviete de Petrogrado, margo-outubro de 1917. Dvoryanstvo: nobreza latifundiéria (¢ antes de 1861 possui- dora de servos). Intelligentsia: intelectuais radicais. Iskra: A Centelha; jornal revolucionério marxista fundado por Lénin em 1900. Ievestiya: Noticias; jornal do Soviete de Sto Petersburgo ¢ Petrogrado. Kadet: membro do moderado Partido Demoeritico Consti- tucional (das iniciais russas K-D). Khozhdentey narod: “Indo para o povo""; cruzada de jovens populistas dirigida ao campesinato, 1874 e 1875. Kulak; camponts rico. ‘Menchevique: “pertencente & minoria”; membro da facgdo ‘moderada e antibolchevique do Partido Trabalhista So- cialdemocrata Russo. Molodaya Rossiya: “Jovem Russia”; inflamado manifesto revoluciondtio que cireulou em 1862, ‘Narod: 0 povo; em uso no séeulo XIX, normalmente com refertncia a0 campesinato Narodnik (pl. narodniki): populista; membro do movimento populista Narodnaya volya: A Vontade do Poyo} organizacdo terro- rista revoluciondria responsével pdo assassinato do czar Alexandre I. Narodnichestvo: populismo; conjunto de idéias sociais ¢ politicas que pretendia representa os interesses comu- nis do campesinato. Obshchina: comuna ou coletividade camponesa russa. Pogrom: ataque violento contra mino:ias raciais ou socias; especialmente os dirigidos contra os judeus. Pravda: A Verdade; jornal do Partido Bolchevique, fun- dado em 1912. Pud: unidade de peso; 36,1 ibras ou 16,38 quilos. Soviete: conselho; especialmente o Soviete dos Representan- tes dos Trabalhadores estabelecido pela primeira vez em 1905 e novamente em 1917. Sovnarkom: Conselho dos Comissérios do Povo; governo revolucionério dos bolcheviques, estabelecido em outu- bro de 1917. n Trudovik (pl. Trudoviki): coalizio liberal de esquerda na Duma Estatal, Zemlya i volya: Terra e Liberdade; organizagdo populista revoluciondria, 1861-4 ¢ 1876.9, Zemstvo (pl. zemstva): érgéo do governo rural local, esta- belecido em 1864, 39 8 Indicac4o bibliografica A literatura sobre a Revoluedo Russa é vasta, englo- bando centenas de volumes apenas em inglés. A que se segue uma lista bastante seletiva de sugestdes. Bibliografias ‘mais extensivas referéncias a um material mais amplo podem ser encontradas em muitas dessas obras. Referéncia ‘SuuxMan, H., ed. The Blackwell Encyclopaedia of the Rus- sian Revolution. Oxford, 1987. Antologias e documentos traduzidos Dantets, R. V., ed. The Russian Revolution, New Jersey, 1972. Davraysuvn, B., ed. Imperial Russia: a source book. Ili- nois, 1974. McCautey, M., ed. The Russian Revolution and the Soviet ‘State, 1917-1921; documents. London, 1975. ——. Octobrisis to bolsheviks: Imperial Russia, 1905-1917. London, 1984. B Obras gerais sobre o fi do Império Russo Froninsky, M. Russia; a history and an interpretation, New York, 1966. v. II. McNeat, R. H., ed. Russia in transition, 1905-1914; evolu- tion or revolution? London, 1980, Pipes, R. Russia under the old regime. London, 1974, Roocer, H. Russia in the age of modernisation and revolu- tion, London, 1983. Histérias gerais do periodo revolucionério (CHAMBERLAIN, W. The Russian Revolution. New York, 1935. 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