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Heleieth I. B. Saffioti ..Género, patriarcado, violéncia Fundagio Perseu Abramo Institufda pelo Diretério Nacional do Partido dos Trabathadores em maio de 1996. Diretoria Harnlton Pereira (presidente) ~ Ricardo de Azevedo (vice-presidente) ‘Selma Koch (Airetora) ~ Flavio Jorge Redsigues ds Siva (dixetor) Editora Fundagio Perseu Abramo Coordenagao Editorial ‘Flamarion Mawes Editora Assistente Candice Quinelato Baptista Assistente Editorial Viviane Akemi Uemura Revisso Mauricio Balthazar Leal Capa e projeto grafico Gilberto Mfaringoni Editoragio Eletrénica Bnrique Pablo Grande Foto da capa Paotodise Impresstio Bartira Grafica a edigho: margo de 2004 ‘Todos of Aireites reservados & Baitora Fundagio Perseu Abremo ‘Rua Franeiseo Cruz, 224 04137-091 — Sa Patlo ~ SP — Brasil ‘elefone: (12) 5573-4299 = Fax: (12) 5571-0910 Correio eletrénico: editoravendas@fpabrimo.org.br Visite a home-page da Fundagio Perseu Abramo Ittp://wwewfpa.org.br Copyright © 2004 by Heleieth Iara Bongiovani Saffiot ISBN 85-7643-002-9 A Dra, Marisa Moura Verdade, que me ensinou a trilhar novos caminhos Tenho para minha vida ‘A busca como medida O encontro como chegada E como ponto de partida. (Sergio Ricardo) Heleieth |. B. Saffioti Bacharel e licenciada, curso de Ciéncias Sociais, na entio chamada Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras, Universidade de Sao Paulo (USP) ~ 1960. Bacharel em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Arara- quara, 1983, Professora assistente de Sociologia na entio Faculdade de Filosofia, Cigncias © Letras de Araraguara, Universidade Estadual Paulista (Unesp), 1962-1967, Professora titular de Sociologia, da mesma instituigdo, 1967-1982, quando se aposentou. Doutora e livre docente, na mesma instituigio, em 1967, Professora de Sociologia, do Programa de Estudos Pés-Graduados em Ciéncias Sociais, Faculdade de Ciéncias Sociais, Pontificia Universi- dade Catélica de Sio Paulo (PUC-SP), desde 1989. Pesquisadora, em Sociologia, na USP, 1988-1992 Pesquisadora, em Soviologia, na Universidade Federal do Rio de Ja- neiro (UFRJ), na qual fundou um niicleo de estudos de género, raga/etnia, classes sociais (Gecem), orientou dois mestrados e lecio- now no curso de mestrado por um semestre (por solicitagao da enti- Gade, na medida em que, na condicao de pesquisadora, ndo tinha fungdes docentes), 1988-1 Atividades docentes ¢ de pesqui Publicagées: + Livros: 10, um dos quais _publicado também nos Estados Unidos. + Artigos em revistas cientificas: 79, alguns dos quais publicados também nos Estados Unidos, em paises europeus e em outros pai- ses latino-americanos; + Capitulos de livros: 37, alguns dos quais publicados também nos Estados Unidos, em paises europeus e em outros paises latino- americanos: + Outras publicagdes: 12 Osientagio de dissertagdes e de teses: + Dissertagdes de mestrado: 13 + Teses de doutorado: 28 Conferéncias: 207 Participagdes em congressos nacionais «intern: Premios: + Cadeira-Prémio no Instituto de Educagdo “Caetano de Campos", em 1954; + Prémio Mulher-Cidada Bertha Lutz, Senado da Repitblica, 2002 lei de 2002); + Prémio Florestan Fernandes (um dos seis socidlogos que mais con ‘ribotram para o desenvolvimento da Sociologia no Brasil, concedi- do pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), na abertura do XI Congresso da SBS, em 01/09/2003 (prémio instituido em 2003). dora na Unesp ¢ na PUC. ionais: 144 Ww — 3 =n =. iS Introdugio Peer ‘A realidade nua e crua .. 0 conceito de violéncia..... 0 tabu do incesto Género, raga/etnia, poder Descobertas da drea das perfumarias . ‘A mulher brasileira nos espagos piblico e privado..... 43, 0 coneeito de género Violéncia contra as mulheres O conceito de patriarcado .. Lesio Corporal Dolosa. ‘Genero, patriareado,volincia Para além da violéncia urbana. © significado da violéncia Pontos de referéncia .. Violéneia doméstica . Delegacias de defesa da mulher... Nao ha revolugio sem teoria” | d dl A maquina do patriareado atro Ugao As origens do conceito de género GOnet0 © Oder ewenne Genero e patriareado.. Genero € ideolOgia nnn a Interpretagdo patriarcal do patriareado . Género x patriarcado . Referéncias bibliograficas Este livro, incidindo, grosso modo, sobre violéncia contra mu- Iheres, destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenémenos sociais relativamente ocultos ~ ou por que hé que se reservar a familia, por pior que ela seja, na medida em que esta instituigdo social esté envolta pelo sagrado, ou porque se tem vergonha de expé-los. Com efeito, um marido que espanca sua mulher, em geral, é poupado em varios dos ambientes por ele freqtientados, em virtude de este fato no ser de conhecimento piiblico. Também interessa a vitimas e agressores, ja que podem, certamente, identificar, em sua relagio violenta, algumas de suas ralzes, encorajando-se a buscar ajuda. Os que ignoram o fend: no, por terem tido sorte de nem sequer haver presenciado as modalidades de violéncia aqui tratadas, podem desejar ampliar sua cultura, Ha uma outra categoria de leitores, interessados por anélises teSricas desta violéncia, pondo em especial relevo con- ceitos como o de género ¢ 0 de patriarcade, que, seguramente, Heleieth 1B Sac Gineropatrancado, volocia ts se interessardo por ler este livro. Trata-se de iniciados(as) insa~ tisfeitos(as) com o que aprenderam, tendo agora a seu dispor is um texto seja para criticé-lo, seja para a ele aderir, seja, incorporar algumas idéias e rejeitar outras. Jo do nimero de paginas constitui um sério problema para uma sociéloga notoriamente prolixa. O volume de dados coligidos pela Fundagao Perseu Abramo com a pesquisa “A mu- her brasileira nos espacos piblico e privado”, realizada por seu Niicleo de Opinio Péblica, e que foi utilizada neste trabalho, ul- trapassa, de longe, as pretensbes de anélise de uma cientista so- cial, que talvez pudesse usé-los em dois livros ou mais. Jamais em um nico. Leitores em busca de dados sentir-se-do frustrados, imagina-se'. A autora tem o dlibi de que o ser humano niio é per~ feito, sobretudo ela prépria. Ser o caso de pedir desculpas ao leitor? Nao se pensa desta forma, pois é muito mais fécil divulgar dados que construir referenciais te6ricos para analisé-los. Ob- viamente, se nutre a perspectiva de agradar. Se, todavia, isto ndio ocorrer, como toda obra & datada e todos os membros da socie- dade esto sujeitos 2 mudanca, poderd surgir uma outra, menos subversiva que esta, em termos de conceitos reformulados e da propria concepgao da Histéria. Se o marxismo classico atribufa importancia exeessiva a0 macropoder e se os autores que cha- maram a atengfo para a relevancia do micropoder nfo apresen- taram um projeto de transformagio da sociedade na diregaio da democracia integral, este livro propde-se combinar macro e mi- croprocessos, a fim de avangar na obtengao deste objetivo. 0 feminismo aqui esposado traz, em seu bojo, um potencial ‘tico bastante capaz de apontar caminhos, trilhas, picadas para se atingir o alvo expresso e desejado, ou seja, a democra- ia plena, Entretanto, isto nao basta; & preciso saber utilizé-lo, selecionando as melhores estratégias em cada momento, o que ‘abe 20 leitor julgar e realizar. Esta avaliagio, certamente, abri- 14 A autora as portas que ela nZo logrou abrir sozinha. ' Os dados datalhados da pesquisa podem ser obtidos em wonn.tpa.org.brinop. 70 1. A tealidade nua e cru Sempre que se faz uma pesquisa com a finalidade de se verifi- car quais so as maiores preocupagGes dos brasileiros, apare- cem, infalivelmente, o desemprego e a violéncia. Ja ndo se trata de preocupacGes tio-somente dos habitantes dos grandes cen- tros urbanos, como Sio Paulo e Rio de Janeiro, isolados até hd alguns anos, mas de praticamente todas as capitais de estados e do Distrito Federal. Pior que isto, estes dois flagelos tomaram conta das cidades de porte médio e até de pequenos municipios. © crime organizado, expresstio méxima da violéncia, era restri- to ao Rio de Janeiro. Ha aproximadamente duas décadas, Sao Paulo passou a rivalizar com 0 Rio de Janeiro, nesta terrivel atividade. Hoje, este fendmeno est generalizado. De um lado, o crime organizado vive nababesca e tranqitila- mente nas entranhas do Estado, quer federal, estaduais ou mu- nicipais. Este fendmeno lesa 0 povo brasileiro, j& tio sacrificado pelo decréscimo real, ¢ até mesmo nominal, de seus rendi Gina pticadeinda tos, em virtude de demissdes de funcionérios, sucedidos por novos, recebendo saldrios mais baixos. Tal fato do tun over ou rotatividade da forga de trabalho, antes provocado pelos em- pregados, em busca de empresas dispostas a remuneré-los com certa generosidade, introduzindo fatores de humanizacio no ambiente de trabalho, hoje se produz em conseqiiéncia da ne: cessidade de menor dispéndio com salarios de trabalhadores, a fim de aprofundar o processo de exploragio-dominagio e, des- ta maneira, tornar mais rentdveis seus empreendimentos. ‘Tomando-se apenas o ano de 2003, aqueles que vivem de sa- lérios sofreram uma perda real de cerca de 15% em seus rendi- mentos, ou seja, em seu poder aquisitivo. Este fato, num con- texto de altas taxas de desemprego, que ultrapassa 20% da PEA (populagao economicamente ativa) do municipio de Sao Pau- Jo, outrora a Meca dos habitantes de outras regides, assume proporgées insustentéveis. Se, de um lado, a taxa de desem- prego é alta, de outro, um ntimero decrescente de trabalhado- res, com poder aquisitivo em queda, deve produzir o suficien- te para sustentar aqueles que nem sequer no setor informal de trabalho conseguiram inserir-se. A rede familiar de solidarie~ dade desempenha importante papel, evitando que cresgam, numa medida ainda mais cruel, os contingentes humanos sem teto, sem emprego, sem rendimento, isto é, em franco processo de desfiliagdo (Castel, 1995) Grosso modo e ligeiramente, a desfiliagéo consiste numa série de fatos sucessivos: desemprego, impossibilidade de pagar o alu- guel, perda da moradia e, portanto, do endereco, perda dos cole- gas e dos amigos, esfacelamento da familia, cortes erescentes dos lagos sociais, cortes estes responséveis pelo isolamento do cida- dio. Enfim, de perda em perda, 0 desfiliado encontra-se no nfo- lugar, talvez no vazio mais doloroso para um ser humano, que, como jé dizia Aristételes no 1v século a.C., 6 um ser politico*. » Palavra derivada de pls, isto &, cidade em grego. A mais corrota tracupéo de pélis, no contaxto em que escreveu 0 flésofo, & gregarismo. D Face it No Brasil, contingentes humanos nestas circunstancias fo- ram denominados inempregdveis pelo presidente socidlogo Este ignominioso apelido revela uma faceta da pedra angular do liberalismo ou neoliberalismo. Quando 0 trabalhador ex perimentou o desemprego de longa duragio, tendo buscado, durante anos, nova colocag&o e, em vez dela, encon- trado o isolamento, a solidio, o nao-lugar, a responsabilidade deste fracasso é-Ihe imputada pelo governante de plantio, que soube ser submisso, sobretudo ao Império, mas néo soube transformar a posig¢ao de seu proprio pais numa insergdo so- berana no cendrio internacional, tarefa que o presidente me- talirgico realizou, em grande parte e com extraordinéria ha- bilidade diplomatica, em apenas um ano de governo E piiblico e notério que este processo é cotidiano ¢ infinito, pensando-se 0 poder nfo como um objeto do qual se possa realizar uma definitiva apropriagdo, mas como algo que fl que circula nas e pelas relacdes sociais (FOUCAULT, 1981). Esta instabilidade do poder, ou melhor, esta rotatividade dos poderosos nfo ocorre apenas na micropolitica, mas também na macropolitica. A malha fina e a malha grossa nao séo ins- tancias isoladas, interpenetrando-se mutuamente, uma se nu- trindo da outra. Nao ha um plano ou nivel micro e um plano ow nivel macro, linguagem utilizada por certos autores (Guarrari, 1981; GUATTARI e ROLNIK, 1986; FOUCAULT, 1981; 1997), nfo obstante a relevancia de sua contribuigao teérica 0 poder deve sar analisado como algo que crcl, ou melhor, camo algo {que 65 funciona em cada. [..] O podar funciona e se exerce em rede. Nas ‘suas malhas os indviduos no s6 creulam, mas esto sempre em posicao de exercer este poder o de scirer sua ago: nunca s4o 0 alva inerte ou consentido do poder, s40 sempre centros de vansmissdo. Em outros tor- mos, 0 poder ndo se aplca aos indviduos, passa por eles. (.] Efetvamente, agulo que faz com quo um corpo, gestos, discursos © dasojos sejarn idanifieados e constituldes enquanio individuos é um dos pr depoder. Ou seja,oinsvidun nBo 6 0 outro do poder: 6um de seus prmelros fens. O individu é um efeite do poder e simultaneamente, ou pelo préprio. fio de ser um ofeto, & seu contro de transmissao. O poder passa através [sic] eo individuo que ele consti (1881, p. 183-4) Género, pateaneado, vi B Trata-se de microprocessos, assim como de macroprocessos, operando nas malhas fina e grossa, “uma sendo 0 avesso da outra, nao niveis distintos’ (SaFFIOT!, 1999, p. 86). Como 0 poder vincula-se, com freqiiéncia e estreitamente, a riquezas, talvez seja interessante fazer uma breve incursio pelo terreno econémico. Vive-se uma fase impar de hegemonia do capital financeiro, parasitério, porque nada ceria, Esta 6, certa- mente, a maior ¢ mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado. A concentragéo mundial de riquezas atingiu to alto grau, que gerou um perigo politico a temer-se. Fruto de fuses de empresas ¢ outros mecanismos que tam- bém corroboram na realizagio de uma determinagao inerente a0 capitalismo: a acumulagio de bens em poucas mos e a far- ta distribuigao da miséria para muitos, nestas abissais desi- gualdades morando o inimigo, ou seja, a contradigio fundante deste modo de produgio, ao qual so inerentes a injustica e a iniqiiidade. Sem a concretizagio desta verdadeira lei, acumu- lagao e miséria, 0 capitalismo nfo se sustentaria, ou melhor, nem seria capitalismo. Exatamente em virtude disto, o capita~ lismo esta sujeito a crises de prosperidade e de recessao, che~ gando & depressio, cujo exemplo maximo, até 0 momento, foi a crise de 1929. 0 famoso crash da Bolsa de Nova Iorque trans- formou em pobres contingentes humanos riquissimos, do dia para a noite, repercutindo este desastre em todas as Areas da producdo e, por conseguinte, desorganizando a economia nor- te-americana e outras dela dependentes. 0 poder descreveu trajetoria semelhante. Hoje, tem-se uma economia-mundo, com a produgao de mercadorias, envolvendo, inclusive em termos de espago geogrifico, varios paises. Vale dizer que, atualmente, o mundo est organizado em redes de informa- ho, de produgio, de traca ete., exceto qualquer rede de soli- dariedade a nao ser esporddica e eventual, disto derivando, em caso de um crash de qualquer Bolsa importante, um verda- deiro desastre em termos globais. Com 0 predominio quase absoluto do capital financeiro, no momento presente, nao se est imune a um novo crash, capaz de levar de roldao paises 4 Heleith LB Suo8 ditos de primeiro mundo, assim como os agora denominados emergentes, para nZo falar nos pobres, cuja miséria se apro- fundaria. Disto talvez decorresse uma nova organizacéo mun- dial, incluindo-se mudangas do lugar ocupado por cada nagio no cenéric ternacional. Nas décadas de 1950-1960, o Brasil, como também outras nagées no mesmo estdgio de desenvolvimento, recebiam o nome de subdesenvolvidas. Na década de 1970, passaram a chamar-se paises em via de desenvolvimento e, a partir dos anos 1980, tornaram-se emergentes. Os nomes tém sofrido variag6es, mas a distancia econémico-social entre o niicleo orginico, a semiperiferia e a periferia ou continua a mesma ou aumenta (ARRIGHI, 1997). Mutatis mutandis, embora a globalizagio tenha gerado novos processos e produtos, que nio podem ser ignorados, a légica da dominacio-exploragéo entre paises e entre classes sociais, nos limites de cada nagao, continua a mesma. Todavia, nio se fala mais em imperialismo. Este termo sé é utilizado pelos alcunhados, com desprezo, de dinossauros. Mas, como diriam os franceses: Plus ca change, plus c'est la méme chose, isto é, quanto mais muda mais 6 a mesma coisa, As chamadas drogas pesadas, sem divida, desempenham importante papel no crescimento da violéncia conhecida como violéncia urbana, no Brasil. Cidades de porte médio, e também maiores e menores que estas, nas quais qualquer crime seria de clamor péblico, dada sua raridade, competem com os gran- des centros urbanos em matéria de violéneia. Ribeirdo Preto (sp) ilustra muito bem esta situacdo: de cidade pacata, tornou- se extremamente violenta, tendo o crime organizado do nar- cotrifico invadido o meio rural. Rota dos avides que transpor- tam drogas especialmente da Colémbia e da Bolivia, mas tam- bém do Peru, os fardos de drogas so atirados nos canaviais. Trabalhadores rurais de baixissimos saldrios recolhem tais far- dos para distribuigio. Como os adultos precisam trabalhar na cana, as criangas so transformadas em “avides”. Obviamente, no apenas suprem a demanda urbana por este produto, como (Genero, parincada, violinia 15 também passam a consumi-la. Assim, o trabalhador do campo tem sua vida cotidiana invadida por uma atividade mereantil fora da lei e por um vicio, ambos destruidores de seus valores culturais, desorganizando, desta sorte, até suas famflias. Que hijo se pense que tais trabalhadores sto camponeses. Quem Irabatha na cana tornou-se, hé muito tempo © necessariamen- assalariado. Pior que isto, 0 que Ihe sobrou foi ser um assa~ indo sazonal. Nos meses do corte da cana, os trabalhadores jeais sio insuficientes para atender 4 demanda de forga de abalho, chegando estas plantagées a absorver trabalhadores 10 Vale do Jequitinhonha mineiro, que para 14 migram todos < anos, deixando as mulheres para cuidar do rogado, isto & a pequena gleba na qual se plantam alimentos. Estes movi- entos migratérios ocorrem todos os anos. Nem todos os tra~ athadores, entretanto, voltam para o Vale, a fim de se juntar vos demais membros de suas familias. Muitos permanecem na eriferia da cidade, constituem novas familias, trabalham re- rularmente no perfodo do corte da cana, vivendo de pequenos ‘bieos” durante o restante do ano, Na auséncia de pesquisa, ndo se sabe quantos deles continua traficando drogas ¢/ou dquiriram o hébito de consumi-las. As fronteiras, jé muito lénues, entre o urbano e o rural deixaram de existir. A comercializagao das drogas também se globalizou, dissemi- nando-se por todo o territério nacional. Mais do que isto, to- mou conta do planeta. E, comprovadamente, ela produz.alte- rages do estado de consciéneia, eapazes de comprometer, de modo negativo, 0 cédigo de ética dos que se dedicavam ape- nas ao trabalho licito como ganha-pao. ‘A isto se deve acrescentar as drogas licitas, como éleool ¢ waco. Ha uma inegdvel permissividade social com relagio a0 1iso destes produtos. Ha, mesmo, incentivo a que os jovens 03 -onsumam, j4 que sua publicidade sempre os associa a forga, coragem, charme. S6 muito recentemente, a sociedade brasi- cira tomou conseiéncia da gravidade do consumo de massa, uyue atinge faixas etérias cada vez mais baixas, dos produtos em pauta, tendo comegado a alertar a populagdo para as enfer- eee esteem eet Helse Sato midades que seu consumo provoca. Caberia chamar a atencao dos brasileiros também para a alteragio do estado de conscién- cia, no sentido de que 0 uso constante do alcool, por exemplo, nao somente pode provocar acidentes de transito como, igual- mente, violéncia contra outrem. Os estudiosos da violéncia urbana nao encontram correla cio positiva entre desemprego e violéncia. Se, porventura, jé fa encontraram no contexto de altas taxas de desemprego de longa duragio, nao se tem conhecimento disto. Para os estu- diosos da violéncia de género, da violéncia contra mulheres, da violéneia doméstica e da violéncia intrafamiliar, esta asso- ciagio é clara, havendo relatos de funcionarias de albergues para mulheres vitimas de violéncia e seus filhos que demons- tram, com niimeros, tal correlagio. nceito de violénd “Antes de dar prosseguimento A anélise, cabe discutir 0 con- ceito de violéncia. Os habitantes do Brasil, ¢ até estrangeiros que aqui vém fazer turismo, saberiam muito bem definir vio- éncia, pois ou foram diretamente atingidos por algama moda- lidade dela ou tém, em suas famflias e/ou em seu circulo de amizades, algum caso a relatar. Os seqiiestros sfio freqitentes, como também 0 séo homic{dios, latrocinios, ameagas de mor- te, roubos, sendo a diferenga entre furto e roubo a componen- te violencia, contida neste ‘iltimo, enquanto no furto hé so- mente a subtracio de dinheiro e/ou outros objetos. As pes- soas habituaram-se tanto com atos violentos que, quando al- guém é assaltado e tem seu dinheiro e seus documentos furta- dos, dé-se gragas a Deus pelo fato de a cidada ou o cidadao ter saido ilesa(o) da ocorréncia, Assim, 0 entendimento popular da violéncia apdia-se num conceito, durante muito tempo, ¢ ainda hoje, aceito como 0 verdadeiro € o tinico, Trata-se da violéneia como ruptura de qualquer forma de integridade da vitima: integridade fisica, integridade psiquica, integridade sexual, integridade moral. Observa-se que apenas a psiquica (Generopatiarcado, vielncia 7 a moral situam-se fora do palpavel. Ainda assim, caso a violén- cia psiquica enlouquega a vitima, como pode ocozrer ~ e ocor- re com certa freqiiéncia, como resultado da prética da tortura por razées de ordem politica ou de cércere privado, isolando- sea vitima de qualquer comunicagao via rédio ou televiséo de qualquer contato humano -, ela torna-se palpfvel. Come 0 ser humano é gregério, 03 efeitos do isolamento podem ser trgicos. Mesmo nfo se tratando de efeitos tangiveis, siio pas- siveis de mensuragio. H4 escalas psiquiatricas e psicolégicas destinadas a medir as probabilidades de vir a vitima a cometer suicidio, a praticar atos violentos contra outrem, consideran- do-se, aqui, até mesmo animais assassinados com crueldade. A vitima de abusos fisicos, psicoldgicos, morais e/ou sexu- ais é vista por cientistas como individuo com mais probabili- dades de maltratar, sodomizar outros, enfim, de reproduziz, contra outros, as violéncias sofridas, do mesmo modo como se mostrar mais vulnerdvel as investidas sexuais ou violéncia fisica ou psiquica de outrem. Em pesquisa realizada em quase todas as capitais de estados, no Distrito Federal e em mais 20 cidades do estado de Sao Paulo, esta hipétese nfo foi provada. Nesta investigagio sobre violéncia doméstica (SAFFIOTI, iné- dito), nenhuma informante, que fora vitima de abuso sexual de qualquer espécie, revelou tendéncia, seja de fazer outras vitimas, seja de maior vulnerabilidade a tentativas de abuso contra si mesma, Nao se defende a postura de que abusos se- xuais sejam inécuos, néo provocando traumas de dificil cura. Ao contrério, em outra pesquisa, esta sobre abuso incestuoso, nfio se encontrou nenhama vitima resiliente (SAFFIOTY, 1992). A resiliéncia constitui fenémeno muito raro. So resilientes pessoas capazes de viver terriveis dramas, sem, contudo, apre- sentarem um s6 indicio de traumas, sendo, portanto, conside- radas, por meio da aplicagio de testes e da observagao de sua conduta, absolutamente normais. Na mencionada pesquisa, assim como na vastissima literatura especializada internacio- nal, 0 abuso sexual, sobretudo incestuoso, deixa feridas na alma, que sangram, no inicio sem cessar, e, posteriormente, 8 ekesth B Saou sempre que uma situag&o ou um fato lembre o abuso sofrido. A magnitude do trauma ndo guarda proporcionalidade com re- lagio ao abuso sofrido. Feridas do corpo podem ser tratadas com éxito num grande niimero de casos. Feridas da alma po- dem, igualmente, ser tratadas. Todavia, as probabilidades de sucesso, em termos de cura, so muito reduzidas e, em grande parte dos casos, nfo se obtém nenhum éxito Dominaram o século xx dois pensamentos: 0 de Marx eo de Freud. Ambos, cada um a seu modo e em seu campo, questio- naram agressivamente as sociedades em que viveram. Produ- ziram idéias e andlises, por conseguinte, subversivas, legando ambos as geragdes posteriores patrimdnios culturais até hoje valorizados. No caso de Freud, porém, uma parte desta heran- a tem produzido resultados extremamente deletérios as viti- mas de abuso sexual, em especial do abuso incestuoso. Para Freud, e hoje para muitos de seus seguidores, os relatos das mulheres, que freqiientavam seu consultorio, sobre abusos sexuais contra elas perpetrados por seus pais eram fantasias derivadas do desejo de serem possuidas por cles, destronan- do, assim, suas maes. Na pesquisa realizada entre 1988 © 1992 (Sarrioti, 1992), no se encontrou um s6 caso de fantasia. A nga pode, e 0 faz, enfeitar o sucedido, mas sua base é real, isto 6, foi, de fato, molestada por seu pai, Contudo, 0 eserito de Freud transformou-se em bfblia e a crianga perdeu credibili- dade. Trate-se, em sua maioria esmagadora, de mulheres, que representam cerca de 90% do universo de vitimas. Logo, os homens comparecem como vitimas em apenas 10% do total. De outra parte, as mulheres agressoras sexuais estio entre 1% e 3%, enquanto a presenca masculina esta entre 97% e 99%. Na pesquisa sobre abuso incestuoso, jé referida, nfio se encon- trou nenhum garoto como vitima. Por via de conseqiiéncia, tampouco havia mulheres na condigao de perpetradoras de abuso sexual. £ preciso, contudo, pensar que pais vitimizam nao apenas suas préprias filhas, como também seus filhos, Num pais tio machista quanto o Brasil, este é um segredo muito bem guardado. Se a vizinhanga souber, diré que o destin da- ‘Ginero patarado valine 9 quele garoto esté selado: serd homossexual, na medida em que foi penetrado, fendmeno especifico de mulher. Se o dado in- ternacional 6 de 10% de meninos sexualmente vitimizados, pode-se concluir que, aqui, o fato ocorre, pelo menos, nesta proporgio, © machismo, numa de suas facetas altamente ne~ gativas para os homens ~ e ha muitas -, oculta estas ocorrén- ccias, em vez de fazer face a elas e implementar politicas que visem, no minimo, a sua dréstica redugéo. Retomando resul- tados da investigagio mencionada, todos os agressores sexu- ais eram homens e, entre eles, 71,5% eram os préprios pais biolégicos, vindo os padrastos em segundo lugar e bem distan- tes dos primeiros, ou seja, representando 11,1% do universo de agressores. Em pequenos percentuais, compareceram avés, tios, primos. Como a pesquisa foi concluida em 1992, era pertinente le- vantar a hipétese de estes dados jé nfo corresponderem a rea- lidade atual. A pertinéncia da hipétese reside na mudanga da composic&o das familias. Dada a facilidade com que se desfa- zem as unides conjugais ~ legais ou consensuais - ¢ a mesma facilidade com que cada membro do casal reconstitui sua vida amorosa com outras pessoas, as familias com padrastos ( madrastas) aumentaram em nfimeros absolutos ¢ relativos. Nada mais justo, portanto, do que suspeitar que houvesse eres cido o percentual de padrastos no universo do abuso inces- tuoso. Mais uma vez, os dados obtidos de casas-abrigo para vitimas de violéncia confirmaram os obtidos na investigagio realizada entre 1988 e 1992. O pai continua a ser o grande v: lao, devorando sua propria prole, constituindo este fato uma agravante tanto penal quanto psicolégica. Otabu do incesto O pai biolégico é 0 adulto masculino no qual a crianga (me- nor de 18 anos) mais confia. Este fato responde pela magni- tude e pela profundidade do trauma. Nas camadas mais bem aquinhoadas, social e economicamente falando, 0 abuso obe- 20 Hileeth 1B Sf eae nee dece A receita da seducao: maior atengao para aquela filha, mais presentes, mais passeios, mais viagens etc. As técnicas sdo bastante sofisticadas, avangando lentamente nas cari- cias, que passam da ternura A lascivia. Muitas vezes e de- pendendo da idade da crianca, esta nem sabe discernir en- tre um e outro tipo de caricia, sendo incapaz de localizar 0 momento dz mudanca. Como a sexualidade da mulher ¢ difusa por todo 0 corpo e a sexualidade infantil nao é genitalizada, as caricias percorrem toda a superficie de seu corpo, proporcio- nando prazer vitima. Posteriormente, recorrendo 0 adulto a pomadas especiais, dilata o Anus e o reto da filha (ou filho), a fim de preparar 0 caminho da penetraco anal, pois a oral j4 ocorre- rae também esta provocara prazer na menina. A pritica da cunnilingus é relatada pelas meninas como muito prazerosa. Nem todas apreciam o fellatio. Acaba, no entanto, sendo uma unanimidade entre as vitimas, uma vez que obedece A lei da reciprocidade. Depois de todos estes passos, que integram a iniciagdo da crianga na sexualidade do adulto, ver a penetracao vaginal, Alguns homens, assim que a menina tem sua menarca, ou pri- meira menstruagdo, controlam seu ciclo menstrual, s6 man- tendo relagées sexuais com ela nos perfodos estéreis. Outros preferem administrar as filhas o anticoncepeion: dando para que elas 0 tomem todos os dias. Nao se encontrou nenhum caso de gravidez de meninas pertencentes as classes médias altas, nas quais € comum o pai ter educacio superior. Nas camadas social e economicamente desfavorecidas, 0 pro- cesso é rapido e brutal. O pai coloca um revélver, na mais fina das hipéteses, ou uma faca de cozinha junto & cama ou sobre ela, joga a menina sobre o leito, rasga-Ihe as roupas a estu- pra, ameagando-a de morte, se gritar, ou ameagando matar toda sua familia, se abrir a boca para contar o sucedido a al- guém, Nao se pode negar que o pai instrufdo procede a inicia- gao sexual de sua filha de forma delicada, sem violencia fisica ou ameagas neste sentido. Simplesmente, pede a menina para nio contar a ninguém, especialmente a sua mie, “justificando’ v4 que esta sentiria citime, daf podendo derivar sérios conflitos. No caso do pai pobre e de baixa escolaridade, vai-se direta- mente ao ato sexual, sem prolegémenos de nenhuma espécie: nao ha caricias, nfo hé um avangar paulatino. Por estas ra- zes, & brutal. Todavia, as conseqiiéneias, para a vitima, so amente opostas ds esperadas pelo leitor. te poderia, acredita-se, imaginar uma associagio positiva entre a brutalidade do pai na abordagem da menina ou menino das camadas sociais menos favorecidas e a profundidade do trauma causado em sua filha pelo estupro ou pela penetragio no caso do garoto. Um caso de abuso incestuoso, numa pobre, mas nao miserdvel, revelou que 0 marido de uma senhora, tendo esta levado para seu segundo casamento duas filhas de uma unio anterior, foi capaz de estuprar, em ordem cronolégica, a enteada mais velha, a enteada mais jo- ver, a propria filha. Em seguida, chegou a vez dos filhos. Fez penetracio oral e anal no mais velho, no que sucedeu a este na ordem dos nascimentos, e, finalmente, no mais novo, que apre- sentava retardo mental, ou seja, agravante penal. Além de cunnilingus, fellatio, penetragao anal e estupro, néo se encon- trou nenhum outro tipo de abuso nas camadas desfavorecidas. Em razdo da sexualidade ser exercida de diferentes maneiras, segundo o momento histérico (a pederastia na antiga Atenas niio era 0 mesmo que o homossexualismo de hoje), 0 tipo de sociedade, a classe social, a etnia, pode-se esperar que a abor- dagem “amorosa” no abuso sexual perpetrado pelo homem rude e sem instrugio seja igualmente rude. E, de fato, é isto que ocorre, Entretanto, e felizmente, porque a pobreza atinge 2 maioria dos habitantes, esta “brutalidade” nao produz trau- mas a ela proporcionais. Se assim ndo fora, haveria mais um item negativo a ser incluido na chamada cultura do pobre. A menina pobre, sozinha em casa com sew pai, nfo tem a quem apelar. A presenga da arma branea ou de fogo reitera permanentemente as ameagas verbais. Ela nfo tem eseapat6- a. Entrar em lute corporal com seu pai s6 pioraria as coisas. Primeiro, ndo podendo medir forcas com um homem adulto, 22 Hleieth 18 Satfiod poderia sair muito ferida daquela situagéo. Segundo, e em iltima instaneia, poderia perder a vida nesta brincadeira de mau gosto. A rigor, nfo havia saida. Se nao havia escapat6- ria, cla é, indubitavelmente, vitima e como tal se concebe € define, Logo, nao hA razdes para sentir-se culpada. As mulhe- res sfio treinadas para sentir culpa. Ainda que nao haja razbes aparentes para se culpabilizarem, culpabilizam-se, pois vi- vem numa civilizacio da culpa, para usar a linguagem de Ruth Benedict (1988). No caso aqui narrado, porém, talvez a meni- na ainda nfo houvesse introjetado a “necessidade” cristi de se culpabilizar. Ademais, salvou sua famflia da morte. Desta sorte, esta menina nao se vé como culpada; vé-se como viti- ma. Entre as 63 vitimas estudadas, nenhuma delas, nas con digdes da descrita, se culpabilizou. Dadas as condicdes do estupro, 11 delas tiveram filhos dos proprios pais. Nao é raro ouvir destes pais: “Dona, eu pus esta menina no mundo, eu criei ela, cla é minha, A senhora acha que vou entregar ela a qualquer um? Nao, ela é minha. $6 néo sei como registrar a crianga. Registra como filho ou como neto?”. Das mes, mas sem unanimidade, ouve-se: “Dona, se eu posso agiientar, por que ela nfo pode me ajudar a earregar este fardo?”. Esta res~ posta vem de mulheres socializadas para “sofrer” a relagdo sexual, destinada A procriagdo, nfo para dela desfrutar, néo para dela extrair prazer, independentemente de ela resultar numa gravidez. Pensando deste modo, nfo se lastima por nfo haver sido capaz de proteger a filha das investidas sexuais de seu proprio pai, Mais do que isto, a relago sexual é, para ela, um fardo tio pesado, que necesita do auxilio da filha para carregé-lo vida afora. Outras maes tentam culpabilizar as fi- Thas, pois, a seu ver, as meninas seduziram seus pais. Pode, portanto ~ e isto foi encontrado -, surgir o conflito entre mae ¢ filha; até mesmo a ruptura da relagao. Todavia, a menina nfo se vé como culpada. Afinal, nZo foi ela que salvou toda sua familia? Sé se encontrou um caso de rejeicao da crianca por parte de sua jovem mae, Em todos os demais, elas adora- ‘vam os filhos que tiveram como fruto de estupro incestuoso. 3 Ginero,putvarcado violencia Houve uma que até fez 0 ché-de-bebé, quando estava no séti- mo més de gravidez. Elas recusaram ofertas de aborto. Néo havia, naquela ocasifio, hospitais que realizassem os chama- dos abortos legais. Legais, porque estavam previstos como atos nao-criminosos, como continuam, alids, no Codigo Pe~ nal em vigor, de 1940. Apenas sua parte geral sofreu altera~ gies, a especifica, nfo. Isto equivale a dizer que nao houve nenhuma mudanga nos tipos penais, Afirmou-se, anterior~ mente, que nas camadas sociais subprivilegiadas encontram- se cunnilingus, fellatio, penetragio anal e estupro. Eventual- mente, um pai mais “sensivel” pode fazer certas caricias. A possibilidade esta aberta, embora nfo se tenha nenhum caso para expor. A mengio dos quatro atos sexualmente abusivos foi necessaria em virtude de 0 Codigo Penal referir-se a rela~ gdo sexual ocorrida no estupro com a expresso “conjun- go carnal”, comum na época para designar penetragao va~ ginal. Assim, é erréneo dizer-se que Pixote (quem nao se lembra do filme?) foi estuprado. Como homens nao tém va- gina, as tnicas penetragdes que podem sofrer sdo a oral ea anal. Algumas feministas elaboraram uma proposta de re~ forma da parte especifica do Cédigo Penal, ampliando 0 con- ceito de estupro, que passaria a incluir os trés tipos de pene- tragio: oral, anal e vaginal’ Retomando-se a comparacio do abuso incestuoso entre po- bres e entre ricos, para simplificar, ha que dizer que, de outro Jado, esté a menina mimada, acariciada, pensando estar 0 pai ‘Nesta sesso, trabalhamos: uma repesentante do CFENEA, grupo que ‘atuajunto ao legislativo federal nos assuntos pertinontes & causa rista, a advogada Silvia '@ eu, pelo fato de ter fet © curso de Dirolo @ ve, como sociéloga, ter estudado 0 abuso sexual © © abuso inepstvese, Crelo que solitaram minha colaboragHo, sobretudo, po'o 0 de quo disingo Incesto de abuso incestuaso, @ uma das questbes ida exelarnente na pergunta: dove-se ou ndo criminalizar 0 incesto? ule sou contra pelas raz6es que so seguem. Se um rapaz e uma moga, irmaoe entre si, 8e apaixonarem um pelo outro, terdo cue enfrantar @ aprovagao quese unanime da sociecade por haverem vielada um dos alg series tabus socials, Se eles tiverem idades préximas, maioridace 24 — i jel. B Saou apaixonado por ela ¢ jé ndio amando sua esposa. Vé sua mae como sua competidora, sua rival, diante da qual ela, bem jo- vem, leva vantagens: sua beleza fresca é de lolita, sua pele nao tem rugas e, portanto, é acetinada, Na medida em que sua mae 6 considerada rival, nfo pode se inteirar dos fatos, que, em casos semelhantes a este, duram de sete a oito anos, podendo ir mais longe. Esta crianga foi, cautelosa e gradativamente, introduzida nas artes do amor por seu préprio pai, provedor também de prazer sexual. Trata-se, por conseguinte, de um pai amado, Entretanto, hé a outra face da moeda: como nunca reagiu contra as provocagdes de seu pai, como nem sequer soube identificar 0 momento da transformagio da ternura em ‘bidinagem, colaborou com o pai durante todo o proceso. ‘Ainda que, a rigor, ndo tenha nenhuma culpa, tampouco res- ponsabilidade, no se vé como vitima, que realmente é, mas como co-participe. Disto deriva uma profunda culpa. Embora néo haja sido, em nenhum momento, ciimplice de seu pai, sen- te-se como tal e inimiga de sua mie. Sua culpa é proporcional 4 delicadeza do processo de sedugio utilizado por seu pai. Ela sente-se a sedutora. Logo, seu pai foi sua vitima, Obviamente, nenhuma das duas abordagens convém a crianga, Em termos de danos psiquicos ¢ distirbios sexuais posteriormente mani- festados, 0 abuso sexual via sedugio ¢ infinitamente pior que a prutalidade do pai menos instrufdo e menos maneiroso. Isto é importante para que, mais uma vez, nfo se caracterize tudo que é mau como integrante da cultura do pobre, Fulano ce realmente se amarem, ndo me sinto, nem como profissional, nem come idada, no dever de dafendé-los nam no de acusévlos, Sua relagéo & par umn ndo tendo poder sobre © outro; o sua vontade & convergent, luto distinto disto 6 0 abuso Incestuoso: as idades eo muito diferen tes, 0 que traz consigo uma relapio dispar, ou seja, atravessada pelo poder, As partes encontrar-se em posigdes muito diversas, uma tendo Butoridade sobre @ outra, e nao existe convergéncia de vortades. Pai Ses em que 0 incesto era considerado crime tm procedide no sentido ide descriminav(o, Para citar apenas alguns: Estados Unidos, muitos pal Ses europeus @ latino-americanos. © Equador, que tem umael especi Camente sobre violénsia doméstica, descriminou 0 incesto, estuprou sua filha, espanca regularmente sua mulher? Isto ocorre nas favelas, nos cortigos, no meio pobre*, diz-se. No seio das camadas abastadas, forma-se uma cumplicidade dos membros da familia, estabelecendo-se 0 sigilo em torno dos fatos. O nome da familia nao pode ter macula. Conseguiu-se descobrir uma tinica familia incestuosa. Chegou-se ao porto, mas néo foi possivel ultrapassé-lo. As informagées disponi- veis foram facilitadas A pesquisadora por uma amiga de uma das filhas. Esta filha sofria abusos sexuais de toda ordem, per- petrados por seu pai. $6 confiou seu segredo a esta amiga Embora no haja dito nada explicitamente, hé indicios de que 0 pai abusava sexualmente de todos os filhos e filhas. Recebia- os, cada um de uma vez, em seu quarto, 0 que, por si s6, & no minim, estranho. Que 0 abuso ocorresse com todos os filhos e filhas constitui uma hipétese, nao inteiramente infundada. A conspiragio do siléncio, todavia, impediu a pesquisadora de estudar esta familia. © argumento de quem justifiea, se nio defende, a conduta de agressores sexuais reside no tipo de sexualidade masculina, di- Uma otientanda minha, cuja tase esta praticamante pronta para a dete sa, tom, entre suas entrevistadas (‘odes de classe média alta e alta), fesposa de um juiz. Também em caso de violéncia domestica, as mulne- Fes mals bem aquinhosdas levam desvantagem. Em sua enirevist spancada observa: como posso denuncid-io, se a investigaréo dev fia ser realizada por profissionals que o respeltam muito (ele & respel- {adissimo na cidade em que atua como profissional e vive num municipio dde cerea de 200 mil habitantes, na Bahia) e, em utima instancia, o caso ‘Sera julgado por um colaga seu? Guando esta maga, que jé havia feito restrado, seb minha atientagSo, sobre violéncia contra mulheres das ‘amadas socials menos favorecidas, procuroume cizendo desejar con tinua’ com 0 mesmo tema, et ss0 que os pesquisadores adoram festudar pobres, porque 6 mals tcl, elas esto quase sernpre abartos & falar sobre o assunto (no case de vioiéncia doméstica, quem fain so as rmunheres, os hemens foger; em minha pesquisa sobre abuso incestuo- So, entievistel vitimas, suas mes e outros parentes ou vizinhos conhe- Cevores dos fatos; tantel arduamonte entrevistar agressores, mes con ‘Segui falar com muito pouses 0 todos mentiram descaradamente), que o Gticll € estudar os ricos, j& que, para no ter seu status ebalado, sou ome su, eles se fecham, Ela aceltou o desafo a, palo que au Ihe disse lo da tase € O prego do silénci. Bi ferente da feminina. Afirmam que a sexualidade da mulher sé aflora quando provocada, e varios so os meios de fazé-lo, 0 que é uma meia verdade, A mulher foi socializada para conduzir-se como caga, que espera o “ataque” do cacador. A medida, no entanto, que se liberta deste condicionamento, passa a tomar a iniciativa, seja no seio do casamento, seja quando deseja namo- rar um rapaz. Como o homem foi educado para ir & caca, para, na condigo de macho, tomar sempre a iniciativa, tende a néo ver com bons olhos a atitude de mulheres desinibidas, quer para tomar a dianteira no inicio do namoro, quer para provocar 0 homem na cama, visando a com ele manter uma relagio sexual, salvo no seio de tribos da juventude, pelo menos das grandes cidades, em que isto é uma pratica corrente. Os condiciona- mentos sociais induzem muitos a acreditar na incontrolabilidade da sexualidade masculina, Se assim fora, ter-se-iam relagées sexuais, ou mesmo estupros, nas ruas, nos sales de danga, nos restaurantes, nos cafés ete. Obviamente, qualquer pessoa, seja homem ou mulher, pode controlar seu desejo, postergar sua concretizagdo, esperar 0 momento e o local apropriados para a busca do prazer sexual. £ evidente que a esmagadora maioria de homens e de mulheres atua desta maneira, mesmo porque a sociedade é regida por numerosas normas. Nao se trata de leis como as da Fisica, que ocorrem inexoravelmente. Quer Newton desejasse ou nfo que a magi solta por ele cais~ se 20 solo, ela cairia da mesma forma, As regres sociais so passiveis de transgressio e sito efetivamente violadas. No caso em pauta, hé o tabu do incesto, segundo Lévi-Strauss (1976), de carter universal, embora o interdito nao recaia sempre sobre es mesmas pessoas, quando se passa de uma sociedade a outra. A universalidade do tabu do incesto € contestada por Meillassoux (1975). © tabu em pauta significa uma interdigio, um nao & possibilidade socialmente nio-aceita de certas pes~ soas se casarem entre si, Na sociedade ocidental moderna, 0 interdito recai sobre parentes consangiifneos ou afins. No caso especifico do Brasil, 0 novo Cédigo Civil, em vigor desde 11 de janeiro de 2003, afirma: (Ganeropatireado,vslenda 7 “Art, 1.521, No podem casar: I~ 8 ascendentes com os descendentes, seja 0 parentes- co natural ou civil; II ~ 0s afins em linha reta; 11] ~ 0 adotante com quem foi cdnjuge do adotado e 0 adota- do com quem o foi do adotante; IV ~ 0s irmaos, unilaterais ou bilaterais, ¢ demais colaterais, até o tereeiro grau inclusive; V — 0 adotado com o filho do adotante; VI ~ as pessoas casad: ‘VII ~ 0 cénjuge sobrevivente com 0 condenado por homici dio ow tentativa de homicidio contra o seu consorte” 0 projeto deste novo Cédigo Civil tramitou no Congreso Na- cional, muito lentamente, durante 26 anos, o que equivale for que ele j4 nasceu desatualizado. Conservou o impedimen to do matriménio entre primos (parentes de terceito grau), in- terdito cnja violagdo havia ocorrido milhares de vezes, sendo este tipo de unido plenamente aceito pela sociedade. O tabu do incesto 6 inteiramente social, nada havendo nele de bicl6gico. Como a sociedade brasileira perdeu, ao longo de sua histéria, os rituais de transmisséo destas proibicGes, ela mesma criou as defesas sustentadoras do interdito. Trata-se de socializar as ge- ragGes imaturas na erenga de que a prole de casais ligados entre si pelo parenteseo apresenta anomalias de maior ow menor gra- vidade. As estatisticas existentes sobre mas-formagées fetais, mortes pré ou pés-natais ndo resistem @ mais ténue eritica, ‘A histéria de outras sociedades constitui um recurso extraordinario em prol da natureza exclusivamente social do tabu do incesto. No Havai, era prescrito, portanto mais que permitido, o casamento entre irmaos. O mesmo ocorria no Egito, primeiro no seio da realeza, disseminando-se posteri- ormente por toda a populagao. Os descendentes de irmaos casados entre si eram de muito boa qualidade, nem pior nem melhor que as populagdes nas quais o interdito recafa sobre jrmios, Todo interdito, ao mesmo tempo em que é um néo, € ieee também um sim. Simplificando, se irmés nfo sio sexualmen- te disponiveis para seus irmfos, 0 sfo para aqueles que nao so seus irmaos. Evidentemente, no caso brasileiro, ter-se-ia que excluir todas as classes de individuos sobre quem pesa 0 nao, para afirmar-se que todos os demais sio sexualmente disponiveis, ou seja, aqueles que carregam um sim. Isto equi- vale a dizer que, excluidas as classes de pessoas mencionadas no Cédigo Civil, todas as demais mulheres so sexualmente disponiveis para quaisquer homens. ‘Nao e sim residem no interior de todas as interdigées. Para ilustrar de modo simples, pode-se tomar as leis de tnsito. Uma tabuleta mostra o simbolo de que caminhdes néo podem trafegar naquela via. O mesmo simbolo significa sim para to- dos os demais vefeulos, Se, todavia, o motorista de um cami- nhao passar por aquela rua, sera negativamente sancionado pela sociedade. A pena poder ser o pagamento de uma multa, pontos na carteira de habilitagdo etc. Quanto ao matriménio, os que nao podem se casar entre si podem infringir esta norma social, Como, no civil, casamento sera impossivel, ele pode- r4 concretizar-se pela unifio consensual, realizando-se ou nfo no religioso. Isto ocorre muito no Brasil, sobretudo nas areas de dificil acesso, longe do poder constituido. Entretanto, nao consta que tais populagées apresentem, por exemplo, elevado percentual de individuos malformados. Entéo, para que con- servar o tabu do incesto, cuja transgressio, sobretudo entre ascendentes e descendentes, é altamente reprovada pela socie~ dade, isto é, sancionada de forma muito negativa? Para que serve este tabu? O tabu do incesto apresenta alta relevancia, pois é ele que revela a cada um seu lugar na familia, em varios outros grupos, enfim, na sociedade em geral, Rigorosamente, a sociedade brasileira nfo tolera mesmo a unio entre ascendentes e descendentes. Caso haja filhos desta unio, as sangGes negativas sio ainda mais severas. Uma hipd- Genero, parireado, violncia 29 tese bastante plausivel pode ser levantada: a prole destes ca- sais mostraria A sociedade que nenhum argumento biolégico apresenta consisténcia. E a sociedade nao pode abrir mao de umentos desta ordem, na medida em que jé no tem re- cursos para resgatar as antigas praticas de transmissio, sem questionamentos, do interdito. Isto posto, caberia uma per- gunta: por que se curram, nos presidios, estupradores de qual- quer mulher, em especial de criangas? Se toda interdic&o con- tém um sim e um néo, é pertinente responder a esta indaga- cdo da seguinte maneira: a estuprada no era sexualmente disponivel para o estuprador, pois, se 0 fora, ndo teria ocor- rido estupro, Mas por que nao poderia sé-lo para o& demais presos? Trata-se, por conseguinte, de invasio de territério, procedimento muito pouco tolerado, especialmente por ma- ches e bandidos. Ecologistas falam bastante, e com pertinéncia, sobre a ne- cessidade de preservacio do meio ambiente, da natureza. No se ouvem, porém, ecologistas preocupados com a ecologia mental nem com a ecologia social. Guattari, num pequeno e primoreso livro (1990), trata da ecosofia, englobando este ter- mo as trés ecologias. Com efeito, supondo-se que 0 ser huma- no padesse se abster de agredir a natureza, que sentido teria este fato, ja que no se poderia desfrutar de uma ecologia men- tal, tampouco de uma ecologia social, num mundo penetrado pela corrupedo, af incluso o crime organizado, atravessado pela ambic3o desmedida, levando filhos a matarem seus pais, com requintes de crueldade, e vice-versa, invadido pelo dio fandamentalista, disto decorrendo o terrorismo e as igualmen- te fundamentalistas reagGes a ele, enfim, num mundo cujos poros foram preenchidos por projetos de dominagao-explo- ragio de longufssima duracdo, dos quais derivam a fome, 0 medo, a morte prematura, a auséncia de solidariedade, a into- lerancia as diferencas? A este propésito, a resposta de homens negros ao racismo, mormente dos que conquistaram uma po- sigdo social e/ou econémiea privilegiada, foi 0 casamento com mulheres loiras. Se eles siio socialmente inferiores a elas em 30 Heliath i Sato razdo da cor de sua pele e da textura de seus cabelos, elas stio inferiores a eles na ordem patriarcal de género. Resultado: soma zero. Transformaram-se em ignais, nas suas diferencas, transformadas em desigualdades, Ocorre que isto tem conse- qiiéncias. Hé um contingente de mulheres negras que nao tém com quem se casar. Como os negros branqueados pelo di- mheiro se casaram e ainda se casam com brancas, em funcdo de uma equalizagao das discriminagées sofridas, de um lado, pelos negros, de outro, pelas mulheres brancas, em fungio de seu sexo, no ha como se estabelecer tal igualdade entre mulheres negras e homens brancos, pois estes sio “superio- res" pela cor de sua pele e pela textura de seus cabelos, sendo “superiores” também em razio de seu sexo, Na ordem patri- areal de género, 0 branco encontra sua segunda vantagem. Caso seja rico, encontra sua terceira vantagem, o que mostra que 0 poder é macho, branco e, de preferéneia, heterossexual (SaFFIoT!, 1987). A demografia repercute estes eventos, for- mando-se nela um buraco: # auséncia de homens para mulhe- res negras casadouras. H& mais um buraco demogréfico a ser sentido e deplorado crescentemente, Nas guertas entre gangues do narcotréfico, na delingiiéncia em geral, nos entreveros com a policia, mor rem muito mais jovens de 17 a 25 anos que adultos. Que futu- ro, em termos matrimoniais, terdio as adolescentes de hoje, uma vez que as mulheres costumam casar-se com homens mais velhos? Ou se inverte a situagio, com o processo jé em curso de casamentos entre homens jovens com mulheres bem mais velhas e poderosas, ou estas jovens conformam-se com sua condigio de populacio casadoura excedente. No fundo, pare- ce que ambos, homens e mulheres, casam-se com 0 poder. Se esta hipétese for verdadeira, é possivel encontrar © homem- ser-humano ea mulher-ser-humano em meio a tanto poder? Do Angulo da sexualidade, os homens deveriam, nos casa. mentos, ter idade inferior A das mulheres, uma vez que estas podem ter vida sexual ativa enquanto durar sua propria vida, contando 0 homem com um tempo limitado: Alias, quanto & enero patrercado, lbncia Hi sexualidade, as mulheres levam uma série de vantagens compa- rativamente aos homens. As mulheres, como nao tém phallus’, tém sua sexualidade difusa por todo 0 corpo. Assim, falar em zonas erégenas para as mulheres no é correto, pois todo seu corpo o €. Poder-se-ia também afirmar que o corpo das mulhe~ res é inteiramente amor, na medida em que erégeno deriva de Eros, deus do amor, na mitologia grega. Enquanto muitas mu- Theres sio multiorgésmicas, nos homens este fenémeno ndo ocorre, Embora raro, 0 priapismo’, visto como uma superiori- Gade dos machos, na verdade nfo chega a ser nem sequer uma vantagem. Se esta existir, pertence as mulheres vinculadas a homens pridpicos. Mais ainda, o prazer do orgasmo é registra do em apenas um ponto do cérebro masculino, ou seja, 0 septum. Nas mulheres, sfio trés os pontos em que este registro ocorre: septum, hipotélamo e amigdala®. Dir-se-ia que as mulheres desfrutam da triplicagio do prazer do orgasmo. Ade~ mais, as mulheres, quando férteis?, séo capazes de conceber, enquanto aos homens s6 resta invejé-las. Alids, na obra de Freud, a inveja do pénis, alimentada por mulheres, porque este érgio representa poder, assim como a inveja da maternidade sio conceitos que gozam do mesmo estatuto tedrico. Toda- via, fala-se e escreve-se muito mais sobre o primeiro que So- pre o segundo. Se Freud foi o maior mis6gino da historia da humanidade, o foi, seus seguidores o imitaram/imitam, de- « phallus significa podar, sendo represantado pelo pénis. + pilapieme consiste numa eregao dolorosa e permamente, néo acompa: hada de desejo sexual " Nao'se tata das amigdalas da garganta, mas de uma porgo do oérebr. Ha mais homens esterals que muiheres. O sexism, contudo, trata de ‘uit este fato, sendo responsivel pela suspeita de quo sempre s¢ pode imputar a esteridade a olas. Tanto assim é que, nos casals sem Finos, é sempre a mulhar que se submete a exames de fertiidade. Sé Gepois que esta fica provada, o homem se disp6e a procurar um Gharologsta ou urologista. Comprovade a esteriidade masculina, er Geral, ammulhar é profida de divulgar este rosutaco A falha, no hemem, Save contiouar otulta. Isto 6 puro mackismo, porquanto a esteriidade ‘hao impede o homem de ter excelente desempenho sexual. Como todo preconcelto, esta também é baseado na ignor€nca. 2 Feleiethd B Sees monstrando fidelidade até neste ponto. A inveja da materni dade é tao vigorosa que homens sexualmente impotentes pa~ ‘gam um prego mais alto a prostitutas grévidas, somente para conversar com elas e alisar-lhes a barriga. Contudo, a inveja da maternidade quase n&o se apresenta em livros ¢ em arti- gos, vive na obscuridade, Nao foi gratuita a alta consideragéo devotada as mulheres por parte dos homens, quando ainda nao se conhecia a partici- pagio masculina no ato da fecundaga0, Capazes de engendrar uma nova vida, de produzir todos os nutrientes necessérios a0 desenvolvimento dos fetos e, ainda, de fabricar internamente leite para alimentar os bebés, eram consideradas seres pode- rosos, mégicos, quase divinos. Cafram do pedestal, quando se tomou conhecimento da imprescindivel, mesmo que efémera, colaboragéo masculina no engendramento de uma nova vida, mas persistiu a inveja de dar & luz novas criaturas. No fundo, os homens sabem que o organismo feminino é mais diferen- ciado que 0 masculino, mais forte, embora tendo menor forga fisica, capaz de suportar até mesmo as violéncias por eles per~ petradas, Nao ignoram a capacidade das mulheres de suportar sofrimentos de ordem psicolégica, de modo invejavel. Talvez por estas razdes tenham necessidade de mostrar sua “supetio: ridade”, denotando, assim, sua inferioridade ‘a, permeada desta ideologia sexista, revela bem isto. A genitalia feminina apresenta muito mais semelhanga com uma oca que a masculina. Como na ideologia esta presente, neces sariamente, a inversio dos fenémenos, é muito fregiiente ho- mens se vangloriarem de haver “comido” fulana, beltrana, cicrana. Ora, a conformagao da vulva e da vagina permite-Thes “comer”. Por que existe 0 mito da vagina dentada? Por que ha muitos homens, se nio todos, com medo de ter seus pénis de- cepados por esta vagina dev exatamente no momento do orgasmo feminino, quando os mtisculos da vagina se contraem num movimento que parece ar ao aprisionamento? Entio, na giria machista, quem ome” quem? Todos os elementos foram oferecidos ao leitor, adora? Por que sentem medo a fim de que ele possa responder a esta questo. Mais do que isto, tais elementos convidam os leitores a uma reflexao, vi- sando a conhecer-se melhor e, talvez assim, poderem convi- ver mais prazerosamente com suas parceiras, Mas também se oferecem elementos a reflexiio das leitoras. Elas poderao con- tar aos homens que a revelagdo de suas fraquezas os tornaré mais fortes, mais sensiveis, mais amorosos. Desta forma, eles poderdo perder o medo, fator que concorre para a transfor- magio da agressividade, uma forga propulsora muito positi- va, em agressio, ato tio destrutivo — e autodestrutive — quanto devastador. Além disto, como se acredita que o empobreci- mento da sexualidade masculina foi historicamente produ: do, tanto o homem quanto a mulher podem trabalhar no se do da recuperacao de uma sexualidade mais rica, espalhada por todo o corpo, abrindo ele mao de seu poder em face das mulheres & medida que o pénis perde importincia, ou seja, que sua sexualidade deixa de se concentrar neste érgio. Nem homens nem mulheres tém qualquer coisa a perder com expe- rigncias deste tipo. Tém, de outra parte, muito a ganhar, caso 0 resgate da sexualidade masculina seja completo. A ilustragio, feita por meio da giria, a propésito de uma ideo- logia sexista que esconde uma desvantagem masculina, trans- formando-a em vantagem, serviré para mostrar que, em toda ideologia, seja machista, seja étnico-racial, ou ainda de classe social, esté sempre presente a inverstio do fenémeno. Isto nio @ apenas um detalhe, mas o nicleo duro da ideologia, Portan- to, € interessante reté-Io, uma vez que todos os membros de uma sociedade como a brasileira convivem com tais falacias, acreditando nelas como verdades. Mais do que isto, cada um a sua maneira é portador destas ideologias. Obviamente, os homens gostam de ideologias machistas, sem sequer ter nogo do que seja uma ideologia. Mas eles nio estto sozinhos. Entre as mulheres, socializadas todas na ordem pa- triarcal de género, que atribui qualidades positivas aos ho- ‘mens ¢ negativas, embora nem sempre, as mulheres, é peque- na a proporgio destas que n&o portam ideologias dominantes 34 lle. B Sifot de género, ou seja, poucas mulheres questionam sua inferiori- dade social. Desta sorte, também h4 um nimero incalculével de mulheres machistas. E 0 sexismo no é somente uma ideo- logia, reflete, também, uma estrutura de poder, cuja distribui- cdo € muito desigual, em detrimento das mulheres. Entdo, po- der-se-ia perguntar: 0 machismo favorece sempre os homens? Para fazer justiga, o sexismo prejudica homens, mulheres ¢ suas relag&es. O saldo negativo maior é das mulheres, o que nao deve obnubilar a inteligéncia daqueles que se interessam pelo assunto da democracia. As mulheres so “amputadas”, sobretudo no desenvolvimento e uso da razio e no exereicio do poder. Elas sio socializadas para desenvolver comporta~ mentos déceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao con- trario, sdo estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem forca e coragem. Isto constitui a raiz de muitos fendmenos, dentre os quais se pode realcar 0 fato de seguros de automéveis exclusivamente dirigidos por mulhe- res custarem menos, porque, em geral, elas nfo usam o carro como arma, correm menos e séo mais prudentes. ‘Mas hé um sem-niimero de fatores prejudiciais aos homens. Para ilustrar, toma-se a situago empregaticia no Brasil atual, sob pena de reiteracio. Hé cidades, como Si0 Paulo, em que a taxa de desemprego jé ultrapassou, em certo momento, os 20% da forga de trabalho, Além de se tratar de uma proporgéio in- sustentavel, hé muito desemprego de longa duragio. Isto re- percute em toda 2 populacdo, de forma negativa. Os homens, contudo, sio os mais afetados, na medida em que sempre Ihes coube prover as necessidades materiais da familia. E este pa- pel de provedor constitui o elemento de maior peso na defini- cio da virilidade, Homens que experimentam o desemprego por muito tempo so tomados por um profundo sentimento de impoténeia, pois nfo ha o que eles possam fazer. Além de sentimento de impoténeia ser gerador de violéncia, pode re- sultar também em impoténcia sexual. H4 homens que ver- balizam preferir morrer a ficar sexualmente impotentes. Nem neste caso se permite 20 homem chorar. Isto consiste numa Ginero,patiradoviolids Genero, paeiareada, violneia “amputagao”, pois ha emogGes e sentimentos capazes de se expressar somente pelo choro. Pesquisas ja demonstraram (CHOMBART DE LAUWE, 1964) que glandulas lacrimais de ho- mens sofrem 0 processo de atrofia, por desuso. Se uma mulher for abordada por um homem seja para sair, seja para dangar, ela pode recusar, pois o jogo é o da caga e do cagador. Se, entretanto, um homem for abordado por uma mulher com as mesmas intengGes, e ele no se interessar por ela, recusando o convite, imediatamente é aleunhado de “ma- ricas”. Pensando numa situagdo mais séria, mas ndo incomum, rapaz e moga num motel, e ele, por estar estressado, excessi- vamente cansado, triste em virtude de um evento qualquer, nfo conseguir ter uma ere¢o duradoura, sente-se coberto de vergonha. Mesmo que a moga seja compreensiva e Ihe diga que isto ocorre com todos os homens, 0 aborrecimento do rapaz é enorme. Por qué? Porque homem nfo falha, ou me- Thor, nao tem o direito de falhar numa situagio como a figura da, j4 que representa a forga, quase a perfei¢ao. Nao € facil ser hhomem. Se hé uma tarefa perigosa a ser realizada, por um gru- po sexualmente misto, é sempre um homem o escolhido para fazé-la. Se tiver bom gosto seja para se vestir, seja para deco- rar sua casa, nao é verdadeiramente homem, fica no limbo dos provaveis homossexuais. Se é sensivel, é efeminado. Bsta situagdio no € conveniente nem para homens nem para jalheres. Segundo Jung (1992), tanto homens quanto mulhe- + sfio dotados de animus e anima, sendo 0 primeiro o princi- o masculino ¢ a segunda, 0 prinefpio feminino. O ideal seri ambos fossem igualmente desenvolvidos, pois isto resul- ‘a em seres humanos bem equilibrados. Todavia, a socieda- stimula o homem a desenvolver seu animus, desencora~ .lo-o a desenvolver sua anima, procedendo de maneira exa- ¢ inversa com a mulher. Disto decorrem, de uma parte, ins prontos a transformar a agressividade em agressio; € wotes, de outra parte, sensfveis, mas frageis para enfrentar competitiva. © desequilibrio reside justamente num 1us atrofiado nas mulheres e numa anima igualmente pouco alle. Sal desenvolvida nos homens. Sendo 0 micleo central de animus 0 poder, tem-se, no terreno politico, homens aptos ao seu de- sempenho, e mulheres nfo-treinadas para exercé-lo, Ou seja, o patriareado, quando se trata da coletividade, apdia-se neste desequilibrio resultante de um desenvolvimento desigual de animus e de anima e, simultaneamente, 0 produz. Como todas as pessoas sio a historia de suas relagées sociais, pode-se afir- mar, da perspectiva sociolégica, que a implantagao lenta e gra- dual da primazia masculina produziu 0 desequilfbrio entre animus e anima em homens ¢ em mulheres, assim como resul- tou deste desequilfbrio, Ora, a democracia exige igualdade social. Isto nao significa que todos os soci, membros da sociedade, devam ser iguais. Ha uma grande confusio entre conceitos como: igualdade, di- ferenca, desigualdade, identidade. Habitualmente, A diferenca contrapée-se a igualdade. Considera-se, aqui, errénea esta concepeao. O par da diferenca é a identidade. Ja a igualdade, conceito de ordem politiea, faz par com a desigualdade. As identidades, como também as diferengas, so bem-vindas. ‘Numa sociedade multicultural, nem deveria ser de outra for- ma. Lamentavelmente, porém, em fungéio de nfo se haver al- cangado o desejavel grau de democracia, ha uma intolerancia muito grande em relag&o as diferengas. O mais preocupante so as geragdes mais jovens, cujos atos de crueldade para com indios, sem-teto, homossexuais revelam mais do que intole- rancia; demonstram rejei¢o profunda dos ndo-idénticos. As desigualdades constituem fontes de conflitos, em especial quan- do tio abissais como no Brasil. Em casos como este, ¢ eles existem também em outras sociedades, as desigualdades tra- duzem verdadeiras contradigGes, cuja superagio s6 6 posstvel quando a sociedade alcanca um outro estado, negando, de fac~ to e de jure, o status quo, Neste estagio superior, nao haveré mais as contradigées presentes no momento atual. No entan- to, podem surgir outras no processo do devir hist6rico. Numa sociedade como a brasileira, com clivagens de género, de dis- tintas ragas/etnias em interago e de classes sociais, 0 pensa~ ‘Ginero patianedo,vilenda 37 mento, refletindo estas subestruturas antag6nicas, é sempre parcial. O préximo capitulo focalizaré exatamente o conheci- mento, em sua condigao de social. Em outros termos, todo conhecimento é social. | 2. Descobertas a dred das perfumarias oa Ha varias taxionomias das ciéncias. Ora so classificadas em ciéncias naturais, ciéncias biolégicas e ciéncias humana: ora se reduzem a ciéncias da natureza e ciéneias. do espirito; ora, ainda, se dividem em ciéncias naturais ¢ exatas, de um lado, ¢ ciéncias sociais, de outro; ou, entéo, em ciéncias du- ras ¢ humanidades. Os cientistas que acreditam na neutrali- dade das ciéncias duras ¢ no comprometimento politico-ideo- logico das ciéncias humanas e sociais ainda no compreen- deram o que é ciéncia. Por esta razio, se referem as ciéncias | humanas e sociais, pejorativamente, como perfurnarias. Tais estudiosos podem receber varios nomes: bons cientistas, ver~ dadeiros cientistas, maus cientistas, cientistas preconcei- tuosos. Parece que uma maneira néo-agressiva de denomina- los poderia ser cientistas sem viséo planetiria ou cientistas \ de pouces leituras, a fim de evitar 0 termo ignorante, pois nenhuma pessoa, por mais culta que seja, domina 0 acervo de FT 38 39 descobertas e invengdes, como também de hipéteses e de demincias, acumulado por académicos e nfo-académicos, a0 Jongo de séculos do exercicio do pensar, do experimentar, do observar, enfim, do pesquisar. ‘A propria Fisica, ciéncia dura por exceléneia, por meio de Capra’ (1982; 1983), esté contribuindo, e muito, para pér em questo os fundamentos da ciéneia cléssica, oficial, de carater restrito. A hist6ria, sobretudo da Segunda Guerra Mundial, es repleta de exemplos concretos do engajamento politico-ideo- légico das chamadas ciéncias duras. O didlogo entre Bohr, fisi- co dinamarqués, e Heisenberg, fisico alemao, em Copenhague, durante a guerra, em plena corrida para a construgio da bom- ba atémica, ¢ as atitudes antfpodas de cada um em face do outro revelam o comprometimento politico-ideolégico da Fi- sica, considerada ciéncia neutra, portanto oposta as perfiwna- rias. Nao ha neutralidade em nenhuma ciéncia, seja dura, seja perfumaria. Todas, absolutamente todas, so fruto de um mo- mento histérico, contendo numerosas conjunturas, cuja in- tervengio, em qualquer campo do conhecimento, é cristalina. Nao o é, certamente, para qualquer olhar; sé para o olhar erf- tico. Na Dinamarca ooupada pelos nazistas, Bohr aliou-se ao grupo de Los Alamos, nos Estados Unidos, que trabalhava in- tensamente para construir a bomba atémica em tempo habil de matar cerca de 150 mil pessoas no Japio e deixar o ambien- te contaminado com radioatividade. Heisenberg, trabalhando num projeto semelhante, nas barbas da Gestapo, verdadeiro ‘© Frio! Capra recebeu seu Pn.O. na Universidade de Viena @ reatizou posquisas sobre Fisica de alta enargia em varias universidades da Eu- fopa e dos Estados Unidos. |..j Ele ¢0 autor de O tao da fisica, um best Sellerintemacionalque verdéu melo mithao de exerplares # fol tacuzido fem muitas linguas,”*O futuro de Capra ainda ndo comesou. Ao divulgar hata’, elo obriga os clentistas a fazerem com que ele acontega, isto 6, f subverter a ciénela mecdnica, reducionista e dura numa visto de sistemas ciantificos suaves e orgénicos" (publicado por Los Angeles Times.) Ambos os excarlos esto publicados na primeira pagina de O onto da mutagéo. 40 ‘panéptico, utilizava-se de téonicas dilatérias, a fim de atrasar ‘a construgéo da bomba, nao a tornando disponivel em tempo habil. Bohr ganhou a briga e a guerra, colaborando para a car- nificina. A Heisenberg coube a autoria da formulacdo do prin- cfpio da incerteza, que tanta utilidade tem demonstrado em todos os campos do conhecimento. Bem antes de Heisenberg, no século xIX, Karl Marx (1946; 1951; 1953; 1957; 1963a; 1963b; 1970) havia formulado 0 mesmo principio, mostrando tendéncias, mas deixando es- paco para o imponderdvel. Este evento nfo teve repercus- sio quanto a incerteza que preside o desenrolar dos aconte- cimentos. Ao contrario, Marx 6, ainda hoje, tachado de determinista por aqueles que Jeram sua obra com catego- rias cartesianas (com a finalidade de situar o leitor, Descar~ tes viveu de 1596 a 1650, tendo sido, por conseguinte, um pensador do século xvit). Ademais, por que se deveria ali- mentar qualquer perspectiva de repercussao positiva, se 0 que interessava ao status quo era atacé-lo, a fim de preser- var as desigualdades sociceconémicas, que mantinham intactos os lugares sociais de cada um? Os privilégios, afi- nal, nio iam ceder espaco aos conhecimentos revelados por uma obra da érea das perfumarias. p.173-199, Foucault hide, em Cuba, foi preservado um presidio do governo de Fugencio Baptista, anterior & vteria da rovolugdo, om 1959, para que todos pu- dessem cbservar o pandptico, Trata-so de um edificio circviar, mais testreito na sua parte Superior, quase em forma de cone, com uma dnica porta para o exterior. AS porias de todas as calas dao para o Interior do prédio e, no alto, um Unico guarda 6 suficienta pera vigiar um grande himero de prisioneiros, sem que estes possam saber em que momento ‘880 observados. jagem adequa-se & descrigéo da vi exercida sobre as mulheres ou sobre trabalhadores ov, ainda, sobre negros. As categorlas sociais contra as quais pesam discriminagSes ‘vem, imageticamente falando, no interior de um enorme panéptico a Sociedade ~ na medida em que sua conduta é vigiada sem cessar, sem que elas 0 saibam. Isto 6 um controle social poderoso, pols a introjes#o das normas socials por mulheres funcionam como um pandptice. Desta sorte, o8 maridas nao tém com que se preocupar. (Genero, parareado vil Capra, na Fisica, mas extrapolando-a, tem desempenhado papel semelhante ao de algumas feministas, cujo combate in- cans4vel & raz cartesiana tem produzido efeitos positivos. Evelyn Fox Keller, biéloga norte-americana, descreveu uma trajet6ria profissional bastante inusual e interessante. Na ins- tituiggo em que trabalhava como bidloga, fazia pesquisas em colaboragao com um colega. Seu marido, professor universi- tério, teve seu ano sabitico, decidindo aproveité-lo para tra- balhar em Berkeley, em pesquisas de seu campo. Como s6i acontecer, a mulher acompanhou o marido, levando os filhos. LA se foi a familia viver durante um ano no centro nervaso, em permanente ebulicio, do feminismo. Nao demorou nada para que Keller entrasse em contato com feministas militantes e com a literatura feminista, toda da rea das perfumarias. Tra- tava-se de obras de Antropologia, de Ciéncia Politica, de Filo- sofia, de Psicologia, de Sociologia e das demais ciéncias huma- nas e sociais. Uma biéloga, que continuava a trabalhar em sua profissdo com os resultados dos experimentos enviados por seu colega, lendo obras feministas opostas ao cartesianismo ~ € 0 atacando —, comega a questionar os alicerces da ciéncia que praticava. Daf veio o passo que a levaria a questionar as bases de todas as ciéncias cartesianas®, A obra desta biéloga feminista é muito extensa, havendo-se, aqui, realgado 0 que pareceu mais interessante ao leitor. Ela continua trabalhando em biologia, mas incorporando 0 que a sociedade colocou nos genes dos individuos. Rigorosamente, quando escreve sobre biologia, situa-se na intersecao entre este campo do conheci- mento e as ciéneias sociais: “[...] os genes carregam uma enor- me ‘bagagem histérica” (KELLER, 2002, p. 136), 0 que, de cer- to modo, ironiza o estardalhago realizado em virtude do se- qienciamento do genoma humano, pois as combinagdes ge- néticas so aleatérias e, obviamente, dependem da histéria "=A trajetoa de Koller foi sumeariada por ola préptia, estando publicada ra revista Daedalus, presente nas referencias, a Helse H Sioa de vida de cada individuo. Téda e qualquer ciéneia , por con- seguinte, conhecimento social (LONGINO, 1996). Sejam deno- minadas ciéneias duras, sejam-no perfumarias, o conhecimen- to cientifico reflete 0 momento histérico, social, politico de sua produgio. Atnulher brasi Foi nesta perspectiva que a Fundagdo Perseu Abramo, va- Jendo-se de dados secundarios, sobretudo da Fundagao Insti- tuto Brasileiro de Geografia e Estatistica (FIBGE), também fez trabalho de campo, em 2001, coligindo informagdes em todo © pais e, assim, descrevendo o perfil das brasileiras, como tam- bém detectando as atividades desempenhadas e sofridas por elas, por meio de entrevistas. Trata-se, pois, de uma investiga- cdo, predominantemente, sobre violéncia contra mulheres. As informagSes coletadas pela Fundacao deu-se o titulo de A mulher brasileira nos espacos piiblico e privado. A perspect va aqui adotada foi explanada no infeio deste capitulo. Alias, 0 proprio interesse pela tematica ja revela um compromisso politico-ideolégico com ela. Na verdade, a histéria de vida de cada pessoa encontra-se com fendmenos a ela exteriores, fe- némeno denominado sincronicidade por Jung, e que permite afirmar: ninguém escolhe seu tema de pesquisa; ¢ escolhido por ele, Se, porventura, for necessério utilizar dados de outras fontes, mencionar-se-Zo as origens das informacBes. Nao ha- verd referéncia sempre que as informagSes utilizadas forem da Fundagio Perseu Abramo. As brasileiras valorizam bastante a liberdade conquistada, porquanto em resposta a pergunta “Como é ser mulher hoje? 39% ressaltaram sua insergo no mercado de trabalho e a independéncia que isto Ihes confere; 33% referiram-se & liberdade de agir segundo seu desejo e, desta sorte, poder tomar decisées; apenas 8% mencionaram a conquista de di- reitos politicos, 0 que é verdadeiro desde a Constituigao Fe- deral de 1988, e a igualdade de direitos em relagiio aos ho- Genero, patriascado, vilénela 43 mens. Esta resposta nao foi nuangada, pois, segundo a Carta Magna, assim como de acordo com a legislacao infraconsti- tucional, a igualdade existe. © problema reside na pratica, instancia na qual a igualdade legal se transforma em desigual- dade, contra a qual tem sido sem trégua a Inta feminista. Na caracterizacao do ser mulher também so apontadas tarefas tradicionais, estando 17% na valorizacio destes deveres ¢ a mesma proporgao (17%) em sua depreciagio. A especificacao dos papéis tradicionais, entretanto, apontaram tao-somente 0 lado negativo do ser mulher, 4% reclamando do peso da responsabilidade na criagao dos filhos e 3% denunciando a falta de autonomia em virtude das restrigbes impostas por seus maridos. A dupla jornada, somando-se os servigos do- mésticos com o trabalho assalariado, é denunciada como ne~ gativa por 11% das investigadas. Se este iiltimo percentual j denota baixo nivel de insatisfacio, pior ainda ocorre quando apenas 7% das interrogadas manifestam seu desagrado com 0 desnivel de salérios entre homens ¢ mulheres, 5%, com rela~ (0 a sua inferioridade diante dos elementos masculinos, € {do-somente 2% percebem que sio mais vulnerdveis & vio- Yeneia que os machos. Isto revela a necessidade de tornar ainda mais visiveis as varias modalidades de violéncias prati- cadas contra mulheres, em especial a violéncia doméstica. concei 10 A expressio violéncia doméstica costuma ser empregada como sinénimo de violéncia familiar e, nao tio raramente, tam- bém de violéncia de género. Esta, teoricamente, engloba tanto a violéncia de homens contra mulheres quanto a de mulheres contra homens, uma vez que 0 conceito de género é aberto, sendo este o grande argumento das criticas do conceito de patriarcado, que, como o proprio nome indica, é o regime da dominagao-exploragio das mulheres pelos homens. Para si- tuar 0 leitor, talvez convenha tecer algumas consideragdes so- bre género. Este conceito nao se resume a uma categoria de HeleethL 3 Satin andlise, como muitas estudiosas pensam, nfo obstante apre- sentar muita utilidade enquanto tal. Género também diz res- peito a uma categoria histérica, cuja investigacdo tem deman- dado muito investimento intelectual. Enquanto categoria his- t6rica, 0 género pode ser concebido em varias instancias: como aparelho semiético (LAURBTIS, 1987); como simbolos cultu- rais evocadores de representagées, conceitos normativos como grade de interpretagio de significados, organizagdes ¢ insti- tuigdes sociais, identidade subjetiva (ScoTT, 1988); como di- visoes e atribuigées assimétricas de caracteristicos e poten- cialidades (FLAX, 1987); como, numa certa instdneia, uma gra- matica sexual, regulando nao apenas relagbes homem—mulher, mas também relagdes homem-homem e relagdes mulher~ mulher (SAFFIOTI, 1992, 1997b; SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995) etc. Cada feminista enfatiza determinado aspecto do género, hhavendo um campo, ainda que limitado, de consenso: o géne- ro é a construgio social do masculino e do feminino. 0 conceito de género no explicita, necessariamente, desi- gualdades entre homens e mulheres. Muitas vezes, a hierar- quia é apenas presumida. H4, porém, feministas que véem a referida hierarquia, independentemente do periodo histérico com o qual lidam. A reside o grande problema teérico, impe- dindo uma interlocugéo adequada ¢ esclarecedora entre as adeptas do conceito de patriarcado, as fanaticas pelo de géne- roe as que trabalham, considerando a histéria como proces so, admitindo a utilizagéo do conceit de género para toda a hist6ria, como categoria geral, e 0 conceito de patriarcado como categoria especifica de determinado periodo, ou seja, para os seis ou sete milénios mais recentes da histéria da hu- idade (LERNER, 1986; JOHNSON, 1997; SAFFIOTI, 2003). Em geral, pensa-se ter havido primazia masculina no passado remoto, 0 que significa, ¢ isto é verbalizado oralmente e por escrito, que as desigualdades atuais entre homens ¢ mulheres so resqufcios de um patriarcado nfo mais existente ou em seus tiltimos estertores. De fato, como os demais fendmenos sociais, também o patriarcado esta em permanente transfor- 45 Ginero,patvireade, a magio, Se, na Roma antiga, o patriarca detinha poder de vida e morte sobre sua esposa e seus filhos, hoje tal poder nfio mais existe, no plano de jure. Entretanto, homens continuam ma- tando suas parceiras, as vezes com requintes de crueldade, esquartejando-as, ateando-lhes fogo, nelas atirando e as dei- xando tetraplégicas etc. O julgamento destes criminosos so- fre, & dbvio, a influéncia do sexismo reinante na sociedade, que determina o levantamento de falsas acusagées ~ devassa é @ mais comum ~ contra a assassinada. A vitima é transformada rapidamente em ré, procedimento este que consegue, muitas vezes, absolver 0 verdadeiro réu, Durante longo periodo, usa~ va-se, com éxito, 0 argumento da legitima defesa da honra, como se esia no fosse algo pessoal e, desta forma, pudesse ser manchada por outrem, Gragas a muitos protestos feministas, tal tese, sem fundamento juridico ou de qualquer outra espé- cie, deixou de ser utilizada. O percentual de condenagées, con- tudo, situa-se aquém do desejével. O cumprimento da pena constitui assunto de pior implementagiio. O bom comporta- mento na prisio pode reduzir o cumprimento da pena a um terco, até a um sexto do estabelecido, o que no é admissivel para quem deseja ver esta prética extirpada da sociedade ou, pelo menos, drasticamente reduzida. Apresentando baixa cultura geral e infima capacidade eri- tica, a maioria das brasileiras pode ser enquadrada na cate- goria conservadoras, ainda separando mulheres femininas de mulheres feministas, como se estas qualidades fossem mu- tuamente exclusivas, Isto dificulta a disseminacdo das teses feministas, cujo contetido pode ser resumido em igualdade social para ambas as categorias de sexo. Por conseguinte, a maior parte das mulheres mantém atitudes contrarias a agdes afirmativas governamentais, que poderiam contribuir gran- demente para o avango das transformagées sociais desejadas pelos defensores dos direitos humanos, neles inclusa a meta- de feminina da populagio. A histéria revela que as grandes causas, benéficas especialmente aos contingentes discrimi- nados e a quase todos os demais, obtiveram sucesso, apesar 4 HebeicthI B Sion de terem sido conduzidas por pequenas minorias. E as brasi- leiras tém razdes de sobra para se opor ao machismo reinan- te em todas as instituigdes sociais, pois 0 patriarcado nio abrange apenas a familia, mas atravessa a sociedade como um todo. Nao obstante o desanimo abater certas feministas Intadoras, quando assistem a determinados comportamen- tos de mulheres alheias ao sexismo, vale a pena levar esta luta as dltimas conseqiiéncias, a fim de se poder desfrutar de uma verdadeira democracia Violéncia contra os mulheres Os dados de campo demonstram que 19% das mulheres decla~ raram, espontaneamente, haver sofrido algum tipo de violéncia da parte de homens, 16% relatando casos de violéncia fisica, 296 de violéneia psicolégica, ¢ 1% de assédio sexual. Quando esti- muladas, no entanto, 43% das investigadas admitem ter sofrido violéncia sexista, um tergo delas relatando ter sido vitimas de violéncia fisica, 27% revelando ter vivido situagSes de violén- cia psiquica, e 11% haver experimentado o sofrimento causado por assédio sexual. Trata-se, pois, de quese a metade das brasi- leiras. Os 57% restantes devem também ter sofrido alguma mo- dalidade de violéncia, nao as consideraado, porém, como tal. Uma mulher pode sair feliz de um posto piblico de satide, tendo esperado quatro horas na fila, estado dois minutos na presengs do médico e “ganho” a receita de um medicamento, que seu poder aquisitivo nao lhe permite adquiri:. Outra poder consi- derar este fendmeno uma verdadeira vicléncia. Assim, 0 mes- mo fato pode ser considerado normal por uma mulher e agressi- Vo por outra, Eis por que a autora deste livro raramente adota 0 conceito de violéncia como ruptura de integridades: fisica, psi- colégica, sexual, moral. Definida nestes termos, a violéncia nao encontra lugar ontolégico'. preferivel, por esta razio, sobre- "9 Mais adiante esclareco:-so-8 este conceito. Ginero, patiarcade, wolenia tudo quando a modalidade de violéncia mantém limites ténues com a chamada normalidade, usar o conceito de direitos huma- nos. Ainda que seja recente sua defesa, mormente para mulhe- res, jé se consolidou um pequeno corpo de direitos universais, ou sefa, internacionalmente aceitos, em nome dos quais as mu- Iheres podem ser defendidas das agressGes machistas. Eviden- temente, este corpo de direitos humanos é ainda insatisfatorio, desejando-se seu crescimento, do mesmo modo que se almeja a eliminagio de certas priticas comuns em cerca de 30 paises da Africa e da Asia, ‘Trate-se, de uma parte, das denominadas mutilagdes genitais preferivel ampliar para sexuais) e, de outra parte, de femi- cfdios da esposa para, em se casando novamente, ganhar um novo dote, Dada a forga das palavras, é interessante dissemi- nar 0 uso de femicidio, j& que homicidio carrega o prefixo de homem. Feministas inglesas vém difundindo este termo, em- bora ele ainda nao conste de The Concise Oxford Dictionary, edigdo de 1990. Como a lingua é um fenémeno social, e, por- tanto, sujeito permanentemente a mudangas, é interessante criar novas palavras, que expurguem 0 sexismo. O idioma fran- cés, por exemplo, é extremamente machista. Basta dizer que maitresse significa, simultaneamente, professora de escola ele- mentar, dona-de-casa ¢ amante, Para a professora université~ ria ndo existe uma palavra, usando-se Madame le professeur (Genhora o professor). Feministas do Canadé francés comega- ram @ acrescentar a vogal e as palavras masculinas, femi- nilizando-2s, Atualmente, jé se diz Ja professeure (a professo- ra) para designar a professora universitaria. As feministas fran- cesas acompanharam as canadenses ¢, de fato, o idioma fran- c@s est evoluindo para a eliminagdo do sexismo. Entre as mutilagées genitais, hé a cliteridectomia, que consis te na ablago, no corte, na extirpagio do clitéris, orgio que desemmpenka importante papel na relaggo sexual, sendo respon- sivel pela maior parte do prazer. A cliteridectomia vem acom- panhada, muitas vezes, da ablagio dos labios internos da vulva, ‘0 que reduz, ainda mais, 0 prazer obtido na relagio sexual. Fi- 48 elect 8. Sos nalmente, hé outro tipo de mutilago, conhecida como infibu- lagdo, que consiste na sutura dos lébios maiores da vulva, dei- xando-se um pequeno orificio para a passagem do sangue mens- trual e de outros fluidos.-Cada vez que uma mulhe: infibulada tem um filho, vu se corta a costura anteriormente feita, ou os labios maiores da vulva sio dilacerados pela passagem do bebé. Em ambos os casos, esta mulher seré novamente infibulada. ‘Nao raramente, as trés mutilagSes so realizadas em; uma tinica mulher, ainda na infincia, visando, cada uma a seu modo, diminuir 0 prazer proporeionado pelo sexo e, 20 mesmo tempo, tornar a relago sexual um verdadeiro suplicio. Um dos ele- mentos nucleares do patriarcado reside exatamente no con- trole da sexualidade feminina, a fim de assegurar a fidelidade da esposa a seu marido. Tais mutilagées podem, atualmente, ser realizadas em hospitais com satisfat6rias condicdes de assepsia, mas nao é isto que ocorre na maioria delas. Nas zonas rurais, nas vilas, enfim, nas regides mais longinquas do poder central, em geral, sio feitas com uma lamina de barbear, no Brasil gilete, sem nenhum cuidado higiénico, decorrendo dai muitas mortes por infecgio. Ha povos cujo costume exige que as meninas dan- cem, mesmo sangrando e sofrendo dores atrozes, imediatamente ap6s a(s) mutilagao(Ses). J4 de pronto, morrem 15% das muti- ladas. Muitas pequenas publicagées, sobretudo norte-america- nas, relatam os fatos ¢ suas conseqiiéncias“. Em quase todos 8 congressos internacionais fazem-se dentincias desta viola- io dos direitos humanos das mulheres. Nunca se chega, con- tudo, a um consenso, persistindo o costume em nome do res- peito devido as especificidades culturais. Mais grave ainda foi a realizago de uma cliteridectomia, num hospital paulistano's, "Tendo doado parte de minha biblioteca, ndo mais disponho das revi: tas, ocorrendo-me o tule de apenas uma: wiv Nows, da Women's inter rracional Network, "Infelizmenta, no 88 pode oferecer 0 nome do médico que presenciou a operacio, pois ele antreu com uma aco judicial contra o profissional da medieina que a reaizou. (Género,patarcado, vicina por um médico muculmano numa garota mugulmana. Neste caso, ndo se sustenta o argumento da especificidade cultural, J que quem ¢ imigrante num pais como o Brasil, no qual qual- quer mutilagéo 6 proibida, deve obedecer as leis e aos costu- mes da nagio de acolhida. De outra parte, na India, pais no qual se leva muito a sério 0 regime dotal de casamento (no Brasil, 0 Cédigo Civil que vigo- rou de 1917 a 2003 continha o regime dotal, ja em desuso na pratica [Nazzaki, 1991] e, felizmente, abolido no atual eédi- £0), constitui-se num costume de o homem matar sua esposa, dando ao femicfdio aparéncia de acidente, para, em seguida, casar-se com outra e, assim, receber um outro dote. Embora a dominagao inglesa na India tenha contribuide muito para a aboli¢ao da lei que exigia a imolagfo da vitiva na mesma pira em que fora cremado seu marido, o costume continuou exis- pequenas cidades a obrigagio da vitiva, indepen- dentemente de sua idade (como se casam ainda meninas, uma vitva pode ter ndo mais que 1 anos), era, e talvez ainda o seja, tomada com tal seriedade ¢, a0 mesmo tempo, com o maximo de desprezo pelas mulheres, que, hd poucos anos, uma adoles- ente, tendo enviuvado, resolven fugir da comunidade, a fim de preservar sua vida. A comunidade deliberou, entdo, que a primeira jovem que lé chegesse cumpriria a pena da fugitiva, E assim foi feito com uma adolescente que se mudou pare 14 Observe-se que a fidelidade da mulher a seu esposo deve ser eterna. Continuar viva no garante este absurdo costume. Logo, a imolagio da jovem 6 considerada imprescindivel. Embora brasileiras ¢ brasileiros se assustem com tais atroci- dades, aqui ocorrem outras niio menos graves. Ha pouco mais, de duas décadas, um nordestino marcou, com o ferro em brasa utilizado para marcar gado, sua companheira com as letras McsM, iniciais da expresso mulher galheira sé morta, mera- mente porque suspeitava estar sua esposa cometendo infideli- dade conjugal. Ha outro caso do uso, na esposa, do ferro de marcar gado, recentemente noticiado pelos jornais ¢ pela tele- visio. O caso de Maria Celsa é muito conhecido e deve ter ocor- 50 Fleet 8 Suot rido por volta de duas décadas atrés, Seu namorado jogou 4l- cool em seu corpo e ateou-lhe fogo. A moga teve queimaduras de suma gravidade, ficando deformada. A solidariedade de fe- ministas e de médicos permitiu que ela passasse por varias cirurgias plisticas, que melhoraram sua aparéncia, sem resti- tuir-The o antigo rosto. A belissima Angela Diniz foi assassinada por Doca Street, que descarregou seu revélver especialmente em seu rosto e eré: nio, impedindo-a de conservar sua beleza, pelo menos, até seu entero. Atirar num lindo rosto deve ter tido um significado, talver 0 fato de aquela grande beleza té-lo fascinado, aprisio- nando-o a ela, impotente para abandoné-la. Este crime de cla~ mor ptiblico foi perpetrado em 30 de dezembro de 1976, na residéncia de Angela, na Praia dos Ossos, municipio de Cabo Frio, estado do Rio de Janeiro. Como Angela Maria Fernandes Diniz, havia decidido romper definitivamente sua relagéo amo- rosa com Raul Fernando do Amaral Street, este, inconformado com a separagao e com seu insucesso na tentativa de persuadi- la a reconsiderar a decisdo, matou-a. O poder, como jé foi es- crito (SaFFIOTI e ALMEIDA, 1995), tem duas faces: a da potén- cia ¢ a da impoténcia. As mulheres esto familiarizadas com esta iltima, mas este nfo 6 0 caso dos homens, acreditando-se que, quando eles perpetram violéncia, estio sob o efeito da impoténcia. Em seu primeiro julgamento pelo Tribunal do Jiri de Cabo Frio, em 1980, o famoso criminalista Evandro Lins Silva ressuscitou a antigiifssima tese, em desuso havia muito tempo, da legitima defesa da honra (BaRstED, 1995). Doca Street foi condenado a apenas dois anos de detencdo, com reito a sursis'®, uma vez que 0 conselho de sentenga aceitou a "Quando a pena é fihada em até dois anos de detencio, o juz pode conceder a0 16 0 dirsito de sursis, isto 6, 0 r6ufol condenado, mas no cumpre a pena de privagao de liberdade. A fun¢ao do conselho de ‘Sentonga consiste em responder acs quesites elaborados pelo julz. Como, neste caso, os jurados aceitaram a tese detendida por Lins © Silva, 0 juz fixou uma pena simbélica para Doca Street, concedendo-lhe, ainda, © direto de sursis. (Genero patrnrendo, violncia tese do excesso culposo no estado de legitima defesa, Dado 0 brilhantismo do criminalista, foi aplaudido pela assisténcia, quando da enunciagio do resultado. Doca Street declarara ave Shatara por amor. Um grupo de feministas do estado do Rio de Janeiro organizou-se para conscientizar a populagéo de Cabo Frio, de cujo seio sairiam os jurados que integrariam 0 conse Tho de sentenca, pois 0 réu seria levado novamente ao Tribu- nal do Jéri, j4 que o primeiro julgamento fora anulado pelo ‘Tribunal de Justica do Estado de Rio de Janeiro. Aproveitan- do-se do que dissera o réu, feministas se mobilizaram com © Slogan “Quem ama nao mata”, Doca Street, desta vez, foi con- Genado a 15 anos de reclusdio. Logo conseguiu o beneficio de trabalhar durante o dia Gusto um playboy que jamais havia trabathado), voltando para a prisio para dormir. Fingia traba- Thar numa concessionéria de automéveis. Nao tardou a con- quista da liberdade total Eliane de Grammont foi morta por seu ex-marido — de quem se tinha separado havia cerea de dois anos ~ em piiblico, en- quanto cantava, numa boate. A filha de Giéria Peres foi brutal- mente assassinada por um casal, parece que em virtude do cit- me manifesto pela esposa. Ambos cumpriram parcela curta da pena e gozam de plena liberdade. A jornalista Sandra Gomide foi assassinada, com premeditagio, o que constitui agravante pe- nal, pelo também jornalista Pimenta (telvez malagueta), que responde a0 processo em liberdade. Todos estes foram crimes de clamor péblico e, por isto, gravados na meméria de grande parte da populagao, Hé um caso que foge ao clamor pablico, valendo a pena mencioné-lo. O relato deste triste caso foi feito por uma ex-aluna e atual amiga da autora deste livro, Hla era garota de seus 8, 9 anos, quando da ocorréncia do crime. Uma de suas tias paternas, casada, sofria violencia de toda ordem da parte de sea marido, Depois de muitos anos de verdadeira tor- ura, tomou uma deliberagio, a fim de ver-se livre daquele ho- mem, Na época, uma mulher separada ou desquitada gozava de ind reputago. 0 casal tinha um bar e, para auxiliar no trabalho deste pequeno negécio, haviam contratado um emprogado. Em 52 Hileath 6 Sein geral, a mulher nio tem coragem de matar. Quando deseja fazé- Jo, contrata alguém para realizar o servigo sujo, guardando para io planejamento. No momento combinado, 0 empregado co- megou a desempenhar sua fungio. Incompetente, precisou da ajuda de sua patroa. Ambos foram presos, pois houve flagrante, julgados e condenados, O itmao da ré, morador de wma cidade- vinha do interior, vinha a Séo Paulo, quando podia, visitar sua irma prisioneira. Numa destas viagens, sua filha, ja com 10, 12 ‘anos, também veio visitar a tia. Na prisio, o irmio da presidiria pés-se a chorar, tendo ele e sua pequena filha ouvido o seguinte da prisioneira: “Néo chore por minha causa; foi aqui na prisao {que conheci a liberdade’. Quanto deve haver sofrido esta mu- Ther nas garras de seu marido para conhecer @ liberdade na lausura! Entéo, a democracia nao comega em casa? Alguns es" tudiosos citam Hannah Arendt para legitimar suas idéias de que 6 espago doméstico € o espaco da privagfo. Nfio levam em con~ ta as condigdes em que viviam os judeus no gueto de Varsbvia. © gueto era sim 0 espago da privagdo. Hoje, esto presentes no espago doméstico 0 rédio, a televisiio, os jornais, a internet. Logo, o doméstico nao é, necessariamente, o espaco da priva- Gfo, Isto dependerd das posses da familia, de sua religifo, enfim, de uma série de fatores. Oconceito de patriarcado Neste ponto da discussio, convém fazer uma incurséo na ver~ tente sexual, crescentemente apéndice, da teoria/doutrina po- litica do contrato, Para tanto, recorrer-se-a a Pateman (1993)- “4 dominagiio dos homens sobre as mulheres e o direi- to masculino de acesso sexual regular a elas esto em questio na formulagio do pacto original. © contrato so~ cial é uma hist6ria de liberdade; o contrato sexual é uma histéria de sujeigdo. O contrato original cria ambas, a liberdade e a dominag&o. A liberdade do homem ¢ @ su- jeigio da mulher derivam do contrato original e 0 senti- ‘Genero, patsiareado, viola 53 do da liberdade civil néo pode ser compreendido sem a metade perdida da histéria, que revela como 0 direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é criado pelo contrat. A liberdade civil nfo universal — é um atri- buto masculino e depende do direito patriarcal. Os filhos subvertem o regime paterno ndo apenas para conqnis- tar sua liberdade, mas também para assegurar as mu- Iheres para si préprios. Seu sucesso nesse empreendi- mento 6 narrado na histéria do contrato sexual. O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é so- cial no sentido de patriarcal ~ isto 6, 0 contrato eria 0 direito politico dos homens sobre as mulheres , e tam- bém sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistematico dos homens ao corpo das mulheres. O con- trato original cria o que chamarei, seguindo Adrienne Rich, de ‘lei do direito sexual masculino’. O contrato esté longe de se contrapor ao patriareado: ele 6 0 meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno” (p. 16-17). Integra a ideologia de género, especificamente patriarcal, a idéia, defendida por muitos, de que o contrato social é distinto do contrato sexual, restringindo-se este tiltimo a esfera priva- da, Segundo este raciocinio, o patriarcado nio diz respeito a0 mundo piiblico ou, pelo menos, ndo tem para ele nenhuma relevaneia. Do mesmo modo como as relagdes patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contaminam toda a socie- dade, o direito patriarcal perpassa nfo apenas a sociedade ci- vil, mas impregna também o Estado. Ainda que ndo se possa negar o predominio de atividades privadas ow intimas na esfe- ra da familia e a prevaléncia de atividades piiblicas no espago do trabalho, do Estado, do lazer coletivo, e, portanto, as dife- Tengas entre 0 piiblico o privado, esto estes espacos profun- damente ligados e parcialmente mesclados. Para fins analiti- Cos, trata-se de esferas distintas; so, contudo, inseparéveis Para a compreensio do todo social. “A liberdade civil depende do direito patriareal” (p. 19). 54 Heleieth LB Saffioit Raciocinando na mesma direcao de Johnson (1997), Pate- man mostra o carter masculino do contrato original, ou seja, € um contrato entre homens, cujc objeto séo as mulheres. A diferenga sexual € convertida em diferenca politica, passando a se exprimir ou em liberdade ou em sujeigao. Sendo 0 patriar- eado uma forma de expressio do poder politico, esta aborda- gem vai ao encontro da méxima legada pelo feminismo radi- cal: “o pessoal é politico”. Entre outras alegagées, a polissemia do conceito de patriarcado, aliés, existente ainda com mais forca no de género, constitui um argumento contra seu uso Abandoné-lo [...] representaria, na minha maneira de entender, a perda, pela teoria politica feminista, do tnico conceito que se refere especificaments & sujeigio da mulher, e que singulariza a forma de direito politico que todos os ho- mens exercem pelo fato de serem homens, Se o problema ndo for nomeado, o patriarcado poderé muito bem ser habilmente jogado na obscuridade, por debaixo das cate- rande par- gorias convencionais da anélise politica. (..] te da confusio surge porque ‘patriarcado’ ainda esté por ser desvencithado das interaretagées patriarcais de seu significado, Até as diseussGes feministas tendem a perma- necer dentro das fronteiras dos debates patriarcais sobre o patriarcado, # urgente que se faga uma hist6ria femi nista do conceito de patriarzado. Abandonar o conceito significaria a perda de uma historia politica que ainda est para ser mapeada” (PATEMAN, p. 39-40) Nao apenas se endossa o pensamento de Pateman, como tam- bém se reforca sua preocupacio com o abandono do conceito de patriarcado, evocando-se uma autora hoje contréria 20 uso deste constructo mental”, 70 constructe mentalpode ser um conceito ou uma categoria analltica, festa de menor grau de abstrago que 0 primeto. (Genero, patiarcode, violence “As eategorias analiticas feministas devem ser insté- veis — teorias consistentes e coerentes em um mundo instvel e incoerente so obsticulos tanto para nossa com- preensio quanto para nossas préticas sociais” (HARDING, 1986, p. 649). Efetivamente, quanto mais avangar a teoria feminista, maio- yes sero as probabilidades de que suas formuladoras se liber- tem das categorias patriarcais de pensamento. Ou melhor, quanto mais as(os) feministas se distanciarem do esquema pa- triarcal de pensamento, melhores sero suas teorias. Colocar o nome da dominaggo masculina — patriareado ~ na sombra significa operar segundo a ideologia patriarcal, que torna na- tural essa dominagdo-exploracao. Ainda que muitas(os) tebricas(os) adeptas(os) do uso exclusive do conceito de gé- nero denunciem a naturalizagio do dominio dos homens so- bre as mulheres, muitas vezes, inconscientemente, bilizam este processo por meio, por exemplo, da apresentacio de dados, A medida que as(os) tebricas(os) feministas forem se desvencilhando das categorias patriareais, no apenas adqui- rirfo poder para nomear de patriarcado o regime atual de relagdes homem-mulher, como também abandonarao a acepgio de poder paterno do direito patriarcal e 0 entende- réo como direito sexual. Isto equivale a dizer que o agente social marido se constitui antes que a figura do pai. Esta se encontra atenuada nas sociedades complexas contempora- neas, mas ainda é leg{timo afirmar-se que se vive sob a lei do pai. Todavia, a figura forte 6 a do marido, pois é ela que 0 contrato sexual da a luz. O patria potestas cedeu espaco, nao ‘a mulher, mas aos filhos. O patriarca que nele estava embuti- do continua vivo como titular do direito sexual. O pensa~ mento de Pateman, neste sentido, vai ao encontro do de Harding, expresso no artigo de 1986, referido. wisi- ‘A interpretagio patriareal do ‘patriarcado’ como direito paterno provocou, paradoxalmente, 0 oculta- 56 Heleieth LB Safed OEE mento da origem da familia na relagdo entre marido € esposa. 0 fato te de um contrato de casamento — um contrato origi- nal que instituiu 0 easamento ¢ a familia ~ e de que que os homens e mulheres fazem par- cles sio maridos e esposas antes de serem pais e mies é esquecido. O direito conjugal esté, assim, subsumido sob 0 direito paterno e as discussdes sobre o patriarca- do giram em torno do poder (familiar) das mes ¢ dos pais, ocultando, portanto, a questo social mais ampla referente ao cardter das relagdes entre homens ¢ mu- Iheres € A abrangéncia do direito sexual masculino” (PATEMAN, p. 49). Muitas andlises em termos de patriarcado pecam por nao terem dado conta de que os vineulos familiares de parentesco sio atribuidos e particulares, enquanto os vinculos conven- cionados e universais do contrato estruturam a sociedade moderna. Caberia, ent@o, novamente, 2 pergunta: por que se manter 0 nome patriarcado? Sistematizando e sintetizando 0 acima exposto, porque: 1 — no se trata de uma relago privada, mas civil; 12 ~ dé direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, pra~ ticamente sem restrigao. Haja vista 0 débito conjugal explicito nos e6digos civis inspirados no Cédigo Napolednico ¢ a ausén- cia sistemitica do tipo penal esiupro no interior do casamen- to nos c6digos penais. H& apenas uma década, e depois de muita Iuta, as francesas conseguiram capitular este crime no Codigo Penal, nao se tendo conhecimento de se, efetivamente, ha de- miineias contra maridos que violentam suas esposas. No Bra- sil, felizmente, nao hé especificagdo do estuprador. Neste caso, pode ser qualquer homem, até mesmo 0 marido, pois o que importa é contrariar a vontade da mulher, mediante o uso de violéneia ou grave ameaca; 3 — configura um tipo hierérquico de relac&o, que invade todos os espagos da sociedade; 4.~ tem uma base material; (Ginero,prevarend nein 7 5 ~ corporificase; 6 ~ representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideo- logia quanto na violéncia. Depois de extenso exame de dados de dezenas de nacées si- tnadas nos cinco continentes, informagées estas expostas nas paginas 169-285, Castells (1999) conelui: “[...] 0 patriarcalismo [sic] dé sinais no mundo inteiro de que ainda esté vivo e pas- sando bem [...]" (p. 278). Entendido como imagens que as sociedades constroem do masculino e do feminino, nao pode haver uma s6 sociedade sem género. A eles corresponde uma certa divisio social do trabalho, conhecida como divisio sexual do trabalho, na me- dida em que ela se faz obedecendo ao critério de sexo. Isto nao implica, todavia, que as atividades socialmente atribufdas as mulheres sejam desvalorizadas em relagdo as dos homens. Nas, sociedades de caga ¢ coleta, por exemplo, a primeira atividade cabe aos homens e a segunda as mulheres, Embora proteinas animais sejam necessarias a0 organismo humano (nunca, en- tretanto, se ouviu falar da morte de um vegetariano por carén- cia de proteina animal), em tais sociedades as mulheres eram responséveis por mais de 60% da proviso dos viveres neces- sarios ao grupo (LERNER, 1986). Enquanto a coleta é certa, acontecendo cotidianamente, a caga é incerta. Um grupo de homens pode voltar da cagada com um animal de grande ou médio porte, provendo as necessidades de seu grupo, como pode voltar sem nada. Logo, a atividade dos homens, realizada uma ou duas vezes por semana, no é confidvel em termos de produto, Jé a das mulheres Ihes permite voltar a sua comuni- dade sempre com algumas raizes, folhas e frutos. A rigor, en- to, a sobrevivéncia da humanidade, felizmente variando no tempo e no espago, com esta divisdo sexual do trabalho (no se pode afirmar que todos os povos hajam passado pelo esté- io da caga e coleta), foi assegurada pelo trabalho das mulhe- res, Johnson atribui a dois fatores histéricos a lenta transigio desta sociedade igualitéria as sociedades que se conhecem 58 ~ Hale 8 Saifioe hoje'*: 1) a produgiio de excedente econémico, cerea de 11 mil anos atrés; 2) a descoberta de que o homem era imprescindi- vel para engendrar uma nova vida, o que se deu logo depoi Baseada em resultados de pesquisas paleontologicas, arqueo- logicas e outras evidéncias, Lerner apresenta outro sistema de datagio, Desprezando a produgdo de excedente econémi- co, parte do conhecimento da participacao masculina na antropoprodugdo® (BERTAUX, 1977), 0 que dé mais poder aos homens, permitindo-lhes a implantagio de um regime de dominagio-exploracao das mulheres. Estas, embora nio fos- sem detentoras de mais poder que os homens, nas sociedades de casa e coleta, eram consideradas seres poderosos, fortes, verdadeiros seres magicos, em virtude de sua capacidade de conceber e dar a luz, presumivelmente sozinhas. Como a caga " Maurice Godelier (1982), antropéiogo francés, estudou, durante mais de uma década, 0 povo Barula, da Nova Guné, t quando de sua primeira viagem. Vivem numa tendo tide seu primeiro contato com brancos em 1951. Em 1960, a Aust 18 1960, este e, sem Estaco, 0 qua néo quer ialdades. Uma parte da sociedads, os homens, diga a fe; eles regiam a scciedade no sem as mulneras, mas }0). Como os homens davam gigantasca importancia ao ‘82 0 fellatio como prética sexual rotnsira dos casei 2 também incluida em its de passagem da idade infant ida. Como os menines nio produaiam sémen, eta neces- sitio que elas o bebessom, a fim de pederem ser considerados homens, ‘ou Seja, superiores &s meninas e mulheres de mais dade, isto tudo, na vyerdadé muito mais, esultou de urna importéncia exagerada aiouida 20 ‘sémen, qua ara o Unico responsdvel pela goragio de uma nova vida, pela rodugio dos nutiientes para o desenvolvimento do feto © pela fabrica- {980 de falta, com 0 qual almontar 0 bebs. Este livro, La production de {grands hommes, fi pubicado om 1982, Esto fato tem alta © leitor poderia Imaginar que esta Sociedade na qual a mutheres era enorme tivasse exstido hé milénios, quando, na verdade, {ua organizagio social, espocicamente sua astrutura de poder, fol esti {ada recentermente. Embora|é se tenha chamadoa atengao doleitor para fe ndc-recessidade desta otapa @ para sua nio-coincidéncia no tempo ° "No espaco, este exemplo é muito esciarecedor, porque, em termos hist Ticos, esta sociedad cniom. '® Aniropoprodugao consiste na procugao de seres humanos, ou seja, ha sua reprodugio nao apenas biol6gica, mas também social ava som classe dlrig Ginero, porianeada, 59 nio é uma atividade didria, aos homens sobrava muito tempo livre, imprescindivel para 0 exereicio da criatividade. Foi, por conseguinte, na chamada “sombra e agua fresca” que os homens criaram sistemas simbélicos da maior eficdcia para destronar suas parceiras. Este processo foi extremamente lento, gracas a resisténcia das mulheres, Segundo esta histo- riadora austriaca, vivendo nos Estados Unidos desde a as- censio do nazismo, 0 proceso de instauracéo do patriarca- do teve inicio no ano 3100 a.C. € 86 se consolidou no ano 600 aC. A forte resisténcia oposta pelas mulheres ao novo regi- me exigiu que os machos lutassem durante dois milénios ¢ meio para chegar a sua consolidacdo. Se a contagem for rea lizada a partir do comeco do processo de mudanga, pode-se dizer que 0 patriarcado conta com a idade de 5.203-4 anos. Se, todavia, se preferir fazer o céleulo a partir do fim do pro- cesso de transformagio das relagdes homem-mulher, a ide- de desta estrutura hierarquica é de tao-somente 2.603-4 anos. Trata-se, a rigor, de um recém-nascido em face da idade da humanidade, estimada entre 250 mil e 300 mil anos. Logo, nGo se vivem sobrevivéncias de um patriarcado remoto; 20 contrario, 0 patriarcado 6 muito jovem e pujante, tendo su- cedido as sociedades igualitérias. De maneira nenhuma se nega a utilidade do conceito de gé- nero. Embora 0 conceito nao existisse, 0 género, concebido como 0 significado do masculino e do feminino produzido pela vida gregéria, sempre esteve presente. A divisfio sexual do tra- balho nas sociedades de caca e coleta nfo se explica pela maior forga fisica do homem, pois hé sociedades nas quais cabe as mulheres a caga da foca, Nao se trata de pequeno animal, ha de se agregar. Além disto, a foca é to lisa quanto alguns politicos rasileiros e estrangeiros. Ela é cacada, inclusive por mulhe- res grévidas, quando toma sol nas rochas que circandam os oceanos e mares. Com o movimento das guas, pedras e focas ficam constantemente molhadas, Tais circunstancias dificul- tam ainda mais sua caga, uma vez que elas se tornam excessi- vamente escorregadias. Nao obstante, so cagadas por mulhe- 60 lieth iB Saion res. Logo, 0 argumento da forga fisica ndo se sustenta. A hip6- tese mais convincente para justificar a divisfo sexual do tra- balho nas sociedades de caca e coleta parece ser a que se se- gue. Como néo havia Nestlé, era obrigatério o aleitamento do bebé ao seio. Desta sorte, o trabalho feminino era realizado com a mulher carregando seu bebé amarrado ao peito ou as costas. Os bebés eram, assim, aleitados facilmente toda vez que sentissem fome, Como bebé nao fala, sua maneira de ex- pressar suas necessidades & 0 choro. Daf vem a sabedoria po- pular, inclusive em sentido figurado, dizendo: “quem nao cho- ra ndo mama”, Presuma-se que as mulheres fosse atribuida a tarefa da caga. © menor sussurro do bebé espantaria o animal destinado & morte ¢ as cacadoras voltariam, invariavelmente, para seu grupo, sem nenhum alimento. J4 as plantas, desde as rafzes, passando pelas folhas e chegando aos frutos, permane- cem imperturbaveis ouvindo o choro das criangas. Pelo me- nos era assim que se comportavam, antes de serem habituadas a produzir mais frutos ao som do “Adagio”, de Albinoni, toca- do pelo flautista Jean-Pierre Rampal. Esta brincadeira consti- ‘tui uma paréfrase do uso da misica cléssica para elevar a pro- dugio de ovos ou de leite, evidentemente por galinhas e vacas de bom gosto. Mas, por outro lado, se o gene, de fato, sofre influéncia das condigGes histéricas vividas, por que ndo pen- sar que tais condutas em granjas e estabulos auxiliam os argu- mentos de Keller? Enquanto animais ditos irracionais comem, dormem, pro- duzem ao som de uma bela miisica, mulheres séio espancadas, humilhadas, estupradas e, muitas vezes, assassinadas por seus proprios companheiros e, com freqiiéneia, por ex-companhei- ros, ex-namorados, ex-amantes. Sobretudo quando a inicia-~ tiva do rompimento da relagio & da mulher, esta persegui- 40, esta importunacao, este molestamento podem chegar ao femictdio, Varias mulheres nestas condig6es solicitaram protecdo policial. Como a seguranga das mulheres é conside- rada questo secundaria, 0 pedido nfo foi atendido, dai re- sultando a morte das ameagadas. Embora a violéncia tenha (Genero, patrascado seu ciclo, especialmente a doméstica, isto meramente des- critivo, nao induzindo sequer a atitudes preventivas. E mais adequada a percepgao de que a violéncia contra mulheres desenvolve-se em escalada. Isto sim pode mostrar a premén- cia da formulagdo e da implementagio de politicas publicas que visem a sua extingdo. A sociedade assemelha-se a um galinheiro, sendo, contudo, © galinheiro humano muito mais cruel que o galinéceo. Quan- do se abre uma fresta na tela do galinheiro e uma galinha esca- pa, 0 galo continua dominando as galinhas que restaram em seu territério geogréfico. Como o territorio humano néo é me- ramente fisico, mas também simbélico, o homem, considera- do todo-poderoso, nao se conforma em ter sido preterido por outro por sua mulher, nem se conforma quando sua mulher 0 abandona por ndo mais suportar seus maus-tratos. Qualquer que seja a razio do rompimento da relagio, quando a iniciati- va é da mulher, isto constitui uma afronta para ele. Na condi- &o de macho dominador, nao pode admitir tal ocorréncia, podendo chegar a extremos de crueldade. A sociedade, simi- larmente ao galinheiro, também apresenta uma ordem das bi- cadas, assunto a ser tratado, se possivel, mais adiante. LesGo Corporal Dolosa © trabalho de campo da Fundacdo Perseu Abramo produ- ziu dados que mostram que 20% das mulheres sofrem lesio corporal dolosa (LCD) considerada leve, o crime mais come- ido por homens contra mulheres, em particular quando vi- vem no mesmo domicilio, Nao é necessdrio que se trate de casais; as brigas podem ocorrer entre irmaos, em detrimento da mulher. Geralmente, porém, so mesmo os companheiros os agentes destas violéncias. Pouco menos de um quinto (18%) das interrogadas sofre violéncia psicolégica, sendo freqtien- tes as ofensas & conduta moral das vitimas. O erime de amea- a costuma acompanhar outras modalidades de violéncia ou substituir a violencia fisica. A pesquisa Violéncia doméstica. a } questdo de policia e da sociedade revelou uma tendéncia de queda da Lep e, em substitui¢do, uma elevacao do erime de ameaca, Lembra-se que tal pesquisa coligiu dados dos anos de 1988 e 1992, quando a maioria dos crimes cometidos con- tra mulheres eram julgados pelo Cédigo Penal, uma vez que a legislagdo agora em vigor - a Lei 9.099 ~ entrou em vigéncia em novembro de 1995. Embora ndo seja agradavel viver sob ameaga, certamente é menos mau que sofrer espancamentos € outros maus-tratos. Lamentavelmente, esta tendéncia, con- siderada positiva, em virtude do medo infundido pela autori- dade policial - a delegada ~ no homem (este se continha na LCD, contentando-se com ameacar sua companheira), foi abruptamente interrompida pela aprovagio da Lei 9.099, que, segundo revelow a pesquisa Violéncia doméstica sob a Lei 9.099/95 (SAFFIOTI, 2003), legalizou pelo menos a vio~ Téncia doméstiea, enquadrada nos tipos penais apenados com até um ano de detencao. Retomando o fruto do trabalho de campo, 15% das entrevis- tadas afirmaram softer um tipo de violéncia dos mais tragicos, em termos de abertura de chagas na alma. Trata-se de uma conduta inaceitével do homem ~ quebrar objetos e rasgar rou- pas da companheira — em virtude de tentar destruiz, as vezes conseguindo, a identidade desta mulher. Os resultados destas agressdes ndo so feridas no corpo, mas na alma. Vale dizer feridas de dificil cura. Nas cerca de 300 entrevistas feitas com vitimas na pesquisa Violéncia doméstica: questao de policia e da sociedade, 6 freqiiente as mulheres se pronunciarem a res- peito da maior facilidade de superar uma violéncia fisica, como empurrées, tapas, pontapés, do que humilhagbes. De acordo com elas, a humilhagao provoca uma dor muito profunda. Pro- porgao nao negligenciével de mulheres (12%) relatou haver sofrido, com certa freqiiéncia, violéncias verbais desrespeito- sas ¢ desqualificadoras de seu trabalho, seja fora do lar, seja neste. LCD, provocando cortes, marcas ow fraturas, foi narra- da por 11% das entrevistadas. Este tipo de Lp é considerado de natureza grave (art. 129 do Cédigo Penal) e, dependendo 3 das seqiielas que deixar na vitima, é apenado com mais de um ano de reclusio (cinco anos), sendo julgado, portanto, de acor- do com o Cédigo Penal. Duvida-se, contudo, que os réus te- nham sido condenados, porque, jé na delegacia de policia, 0 crime & classificado como Lcb leve, cuja pena é de detengao* de trés meses a um ano, sendo julgado segundo os dispositivos da Lei 9.099, nos Juizados Especiais Criminais (secrim). O cér- cere privado foi sofrido por 9% das investigadas, que, uma vez trancadas em suas casas, foram obrigadas a faltar ao trabalho; 8% foram ameagadas com armas de fogo; e 6% foram forcadas a realizar determinadas praticas sexuais que ndo as agrada- vam. Considerando-se apenas mulheres que tém ou tiveram filhos (18%), 10% foram vitimas de acusagées reiteradas de que nao eram boas mies. Dada a valorizagio da mae nas cul- turas cristas, estas criticas infundem muita culpa na acusada ‘lids, as mulheres sao culpabilizadas por quase tudo que nao dé certo. Se ela é estuprada, a culpa é dela, porque sua saia cra muito curta ou seu decote, ousado, Embora isto nao se sustente, uma vez que bebés e outras criangas ainda peque~ nas sofrem abusos sexuais que podem dilacer4-las, a vitima adulta sente-se culpada. Se a educacdo dos filhos do casal resulta positivamente, o pai é formidavel; se algo da errado, a mie no soube educé-los. Mais uma vez, a vitima sabe, racio- nalmente, néo ter culpa alguma, mas, emocionalmente, é ine- vitdvel que se culpabilize. Benedict tem mesmo razo: pelo menos para as mulheres, a civilizagio ocidental ¢ a civilizagio da culpa. Eis por que é facil as snulheres assumirem o papel de vitimas. Pior ainda é 0 fato de muitas cientistas entrarem neste jogo, assumindo a posico vitimista, Ora, nem sempre as mulheres séo vitimas. Ha as que provocam o parceiro, a fim de criar uma situagio de violéncia; outras denigrem o nome de seus companheiros, inventando fatos que eles teriam cometido, mas nao o fez. As mulheres so © A detengfio & mais leve do que a reclustio. Os detentos podem alcan- Gar Deneficios Intorditados acs rociusos. 64 illo B Saot grandes espancadoras de criangas, em geral de seus proprios filhos. E verdade que, mesmo trabalhando fora do lar, a mu- Ther permanece mais tempo com seus filhos, o que Ihe possibi- lita ver certas atitudes destas criangas que merecem correcio. Nao se defende, aqui, a pedagogia da violéncia. Entretanto, quem convive muito com os filhos e os profbe de fazer certas coisas, depois de 20 reprimendas verbais sem éxito, perde a paciéncia, ou melhor, sente-se impotente e dé umas palmadas no(a) autor(a) das travessuras. Tal fendmeno pode também ser chamado de sindrome do pequeno poder (SAFFIOTT, 1989), A qual esto sujeitas ambas as categorias de sexo. E verdade que o homem entra em sindrome do pequeno poder com mais facilidade e freqiiéncia que a mulher. Pode-se até dizer que quando a mae di palmadas em seus filhos est, rigorosamente, exercendo o poder patriarcal, que Ihe foi delegado pelo pai das criangas. Isto se expressa, de maneira cristalina, na propria fala da mie ao filho punido: “Isto é s6 0 aperitivo. Vocé levaré aquela sarra quando seu pai chegar ¢ eu Ihe contar o que vocé fez”. A autoridade méxima é 0 pai, a quem a mie evoca, no momento da impoténcia, exatamente com este papel. Assim, embora as mulheres néo sejam citmplices dos patriareas, coo- peram com eles, muitas vezes inconscientemente, para a per- petuacao deste regime. As projecdes da Fundacao Perseu ‘Abramo, partindo dos dados coligidos, so: Como 11% das investigadas relataram vivéncias de espancamento (Lep) num universo de 61,5 milhdes, estima-se que, entre as brasileiras vivas, pelo menos 6,8 milhdes delas tiveram, ainda que uma s6 vez, esta experiéncia. JA que as casadas com espancadores contumazes relataram que a iiltima violéncia deste tipo havia ocorrido no perfodo dos 12 meses anteriores ao trabalho de campo, projetou-se, por baixo, cerca de 2,1 milhées de viti- mas de LeD ao ano, 175 mil ao més, 5,8 mil ao dia, 243 a cada hora, o que significa quatro vitimas por minute ou uma a cada 1g segundos. Esta realidade estava bem escondida. E foi des- coberta pela érea das perfumarias. E hé muitas owtras que, infelizmente, no conquistardo espaco neste pequeno livro. 6 Leo 6, sem dtivida, 0 crime prevalente contra mulheres, En- tre suas vitimas, 32% afirmaram ter este fato ocorrido apenas uma vez, enquanto outros 20% delas apontaram para duas ou wrés vezes. Entre as vitimas de 1cp, 11% admitiram sua ocor- réncia por mais de dez vezes. Hé, ainda, aquelas (15%) que certamente perderam a conta do ntimero de espancamentos que sofreram, preferindo mencionar o tempo em que ficaram expostas a este tipo de violéncia: mais de dez anos foi comum, havendo 4% que se referiram a mais de dez anos e durante toda a vida. O marido agressor comparece com 53% nos casos de ameaga a integridade fisica da companheira com armas, su- bindo sua presenga para 70% quando se tomam todas as mo- dalidades de violéncia investigadas, exceto 0 assédio sexual. ‘Se aos companheiros se somarem os ex-maridos, ex-namora- dos, ex-companheiros, os homens amados constituem a es- magadora maioria dos agressores. Talver. pelo fato de serem encarregadas da educago dos fi- lhos, as mulheres, em geral, sejam tio onipotentes. Julgam-se capazes de mudar 0 companheiro, quando, a rigor, ninguém muda outrem, A pessoa pode decidir transformar-se e, com auxilio de um bom profissional psi, ter éxito. Tal sucesso pode também ser obtido sem ajuda de ninguém, sendo, entretanto, mais penoso, mais lento e de duvidoso éxito, Os seres huma- nos sio condicionados a treinar suas habilidades e potencialidades numa certa diregio. Por assim dizer, especia- lizam-se. Isto no ocorre apenas no ambito do trabalho, mas em todas as atividades por ele(a) desempenhadas. Especia- lizam-se até nas manias, tornando-se compulsivas certas con- dutas. Nao se esté aderindo & maneira simpléria de resolver 0 problema da violéncia contra mulheres, ou seja, a patolo- gizago, mas ampliando o leque de perspectivas, embora néo se trate de uma adesio acritica aquilo que Bourdieu (1989) chamou de habitus. “[...] 0 habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital de um agente em agio [...]” (p. 61). Trata-se, pois, de dispositi- vos que operam “sem necessidade de 0 agente raciocinar para 66 “Hloeieth 1B. Sala se orientar e se situar de maneira racional num espaco” (p. 62). O habitus nasce justamente da interagdo entre 0 processo de socializagio ¢ 0 equipamento genético de que 6 portador 0 agente social. Este conceito tem utilidade, mas incomoda por sua quase absoluta permanéncia, ou seja, quase impossibilida- de de mudar. Se assim nfo fora, Bourdieu nfo teria escrito, com a colaboracao de Passeron, um livro sobre a reprodugio a0 qual atribuiu exatamente este titulo (BOURDIEU e PASSERON, 1970). O habitus mais forte em Bourdieu era exatamente 0 mecanismo da permanéneia (por esta razo, quase todos os seus conceitos sao fechados), em detrimento da transforma- cio. Todavia, estando alerta para isto, os cientistas sociais podem utilizé-los todos. Parece, no entanto, muito menos ou nada problematic o uso, quando cabivel, do conceito de con- servagdo-dissolugdo, formulado por Bettelheim (1969), inspi- rado em Marx. Este, fazendo a critica da economia burguesa, mostra a necessidade de se comecar pelo complexo, a fim de poder compreender o simples. Desta sorte, é preciso analisar a sociedade burguesa para se entender as que a precederam, mesmo porque aquela contém, ainda que de forma estiolada, travestida, a sociedade antiga e a sociedade feudal. “Uma formacio social jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forgas produtivas que ela pode conter, jamais relagdes de produto novas e superio- res substituem as antigas antes que as condigées mate- riais de existéncia destas relagdes desabrochem no pré- prio seio da velha sociedade. Eis por que a humanidade jamais levanta problemas que ela nfo pode resolver, pois, olhando-a de mais perto, saber-se-4 que o préprio proble- ma no surge sendo onde as condigdes materiais para resolvé-lo jé existam ou, pelo menos, estfio em vias de emergir” (Marx, 1957, preficio, p. 5). Assim, 0 novo e 0 velho coexistem até que prevalega o pri- meiro, sem, contudo, desaparecer completamente o velho, que (Ginero,patsaveado,vclenda oF se apresenta de outras formas. Na familia, coexistem novas ¢ velhas relagées até que as primeiras venham a ser prevalentes. As relagées violentas devem ser trabalhadas no sentido de se tornarem igualitdrias, democraticas, na presenga, portanto, ainda que contidas, auto-reprimidas, das antigas. As pessoas envolvidas na relagao violenta devem ter o desejo de mudar. £ por esta razio que nao se acredita numa mudanga radical de uma relagio violenta, quando se trabalha exclusivamente com a vitima, Sofrendo esta algumas mudangas, enquanto a outra parte permanece o que sempre foi, mantendo seus habitus, a relagao pode, inclusive, tornar-se ainda mais violenta. Todos percebem que a vitima precisa de ajuda, mas poucos véem esta necessidade no agressor. As duas partes precisam de au- xilio para promover uma verdadeira transformagio da relagaio jolenta, Em muitos paises, esta necessidade foi apreendida hé décadas, dando oportunidade para a emergéncia de servigos de ajuda aos agressores. Alguns paises latino-emericanos os tém, No Brasil, existem algumas ONGs, como o Paral, em Reci- fe, € 0 Noos, talvez 0 mais antigo, que opera na cidade do Rio de Janeiro e em mais dois ou trés muniefpios da regio metro- politana. Em So Paulo, 0 Pré Mulher trabalha com a vitima e com 0 agressor. Embora nao se possa fazer uma avaliagao de todos(as) os(as) profissionais destas organizagées, conhecem- se alguns entre os que prestam seus servigos no PAPAL € n0 Noos, Em ambos, hé profissionais de alto nivel, mas nao se conhecem todos. No Pré Mulher pode haver excelentes pro- fissionais. Como sé se conhece a coordenadora, 0 que se pode afirmar é que sua especialidade era patologizar os agres- sores, No entanto, o préprio servigo e as relagdes com a equi- pe podem ter produzido seu deslocamento para outra pers- pectiva. Desta forma, é melhor suspender o juizo até que se obtenham informagGes precisas ¢ atuais a este respeito. E chegado o momento de se esclarecer, com a precistio pos- sivel, as sobreposigées e diferengas entre vérias modalidades de violencia, 0 que serA realizado no proximo capitul a Hideiet LB. So 3. Para além do viol&ncia urbana H4, no Brasil, uma enorme confusfo sobre os tipos de vio léncia. Usa-se a categoria violéncia contra mulheres como si nonimo de violéncia de género. Também se confunde violén- cia doméstica com violéncia intrafamiliar, Far-se-4, aqui, um esforgo para demonstrar as sobreposigdes parciais entre estes conceitos e, mesmo assim, suas especificidades. Sem concei- tos precisos, pode-se pensar estar falando de um fenémeno, enquanto se fala de outro. Mais grave, ainda, é iniciar uma pesquisa com este emaranhado de constructos mentais, na medida em que isto comprometeria até mesmo a elaboracio do roteiro de entrevista ou questionério, levando o pesqi dor a deixar de obter as respostas que ele busea para obter informagSes que nao dizem respeito direto a sua pesquisa. A violencia de género é, sem chivida, a categoria mais geral Entretanto, causa um certo mal-estar quando se pensa este conceito como aquele que engloba os demais, cada um apre- 69 sentando tdo-somente nuangas distintas, Nao se trata propria~ mente disto, pois também apresentam caracteristicas espect- ficas. exatamente para estas especificidades que se pretende chamar a ateng&o do leitor. Por estas razdes, estima-se pru- dente mostrar estes fatos em suas peculiaridades, a fim de se trabalhar com um quadro teérico de referéneia, capaz de orien- tar 0 investigador, em vez de confundi-lo. Nao se pretende, por ora, voltar a discorrer sobre 0 conceito de género, pois o leitor ja conhece o fundamental sobre ele para acompanhar o racio- cinio deste capitulo. Recorrer-se-4 a ele no préximo capitulo para aprofundar o que ja foi expresso, No presente capitulo, ele ser evocado somente quando necessério. 0 uso deste conceito pode, segundo Scott (1988), revelar sua neutralidade, na medida em que nfo inclui, em certa instén desigualdades e poder como necessérios. Aparentemente um detalhe, esta explicitagéo permite considerar 0 conceito de género como muito mais amplo que a nogao de patriarcado ou, se se preferir, viriarcado, androcentrismo, falocracia, falo- logo-centrismo. Para a discussao conceitual, este ponto é ex- tremamente relevante, uma vez que género deixa aberta a possibilidade do vetor da dominag&o-exploragio, enquanto os demais termos marcam a presenga masculina neste pélo. Neste livro, considerar-se-& género independentemente de a quem pertenga a primazia: aos homens ou as mulheres. Que, entretanto, isto no seja tomado como adesio ao carter supos- tamente mais neutro do conceito de género, pois, de certo an- gulo, pode-se afirmar exatamente 0 oposto (JOHNSON, 1997). Embora aqui se interprete género também como um conjun- to de normas modeladoras dos seres humanos em homens e em mulheres, normas estas expressas nas relagdes destas duas categorias sociais, ressalta-se a necessidade de ampliar este conceito para as relages homem—homem e mulher-mulher, como, aliés, j& se mencionou, Obviamente, privilegia-se o pri- meiro tipo de relagio, posto que existe na realidade objetiva com a qual todo ser humano se depara ao nascer. Ainda que historica, esta realidade 6 previamente dada para cada ser hu- 70 Helecth LB Safiot mano que passa a conviver socialmente. A desigualdade, lon- ge de ser natural, é posta pela tradicio cultural, pelas estrutu- ras de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relagdes sociais. Nas relagdes entre homens e entre mulheres, a desi- gualdade de género nao é dada, mas pode ser construida, ¢ 0 com freqiiéncia. O fato, porém, de néo ser dada previamente ao estabelecimento da relago a diferencia da relagio homem~ mulher. Nestes termos, género concerne, preferencialmente, as relagdes homem-mulher. Isto nao significa que uma rela- Go de violéncia entre dois homens ou entre duas mulheres nao possa figurar sob a rubriea de violéncia de género. A dispu- ta por uma fémea pode levar dois homens & violencia, o mes- mo podendo ocorrer entre duas mulheres na competi¢io por um macho. Como se trata de relagdes regidas pela gramética sexual, podem ser compreendidas pela violéncia de género Mais do que isto, tais violéncias podem caracterizar-se como violéncia doméstica, dependendo das circunstancias. Fica, assim, patenteado que a violéncia de género pode ser perpe- trada por um homem contra outro, por uma mulher contra outra, Todavia, 0 vetor mais amplamente difundido da violén- cia de género caminha no sentido homem contra mulher, ten do a falocracia como caldo de cultura Nao hé maiores dificuldades em se compreender a violén- cia familiar, ou seja, a que envolve membros de uma mesma familia extensa ou nuclear, levando-se em conta a consangiii- nidade e a afinidade. Compreendida na violéncia de género, a violéncia familiar pode ocorrer no interior do domicflio ou fora dele, embora soja mais freqiiente o primeiro caso. A vio- Iéncia intrafamiliar extrapola os limites do domicilio. Um av6, cujo domicilio é separado do de seu(sua) neto(a), pode co- meter violéncia, em nome da sagrada familia, contra este(a) pequeno(z) parente(a). A violéncia doméstica apresenta pontos de sobreposi¢ao com a familiar. Atinge, porém, tam- bém pessoas que, nao pertencendo a familia, vivem, parcial ou integralmente, no domicilio do agressor, como é o caso de agregadas(os) e empregadas(os) domésticas(os). Estabelecido 7A Género, patiarcado, violencia 6 dominio de um territ6rio, o chefe, via de regra um homem, passa a reinar quase incondicionalmente sobre seus demais ocupantes. 0 processo de territorializagio do dominio nao é puramente geografico, mas também simbélico (SaFFIOT!, 19972). Assim, um elemento humano pertencente Aquele ter~ rit6rio pode sofrer violéncia, ainda que nfo se encontre nele instalado. Uma mulher que, para fugir de maus-tratos, se muda da casa de seu marido pode ser perseguida por ele até a con- sumagio do femicidio, feminilizando-se a palavra homicidio (RapForD ¢ RUSSELL, 1992). Este fendmeno néo é to raro quanto 0 senso comum indica. A violéncia doméstica tem lugar, predominantemente, no interior do domicilio. Nada impede 0 homem, contudo, de esperar sua companheira a porta de seu trabalho e surré-la exemplarmente, diante de todos os seus colegas, por se sentir ultrajado com sua ativi dade extralar, como pode ocorrer de a mulher queimar com ferro de passar a camisa preferida de seu companheiro, por- que descobriu que ele tem uma amante ou tomou conhee: mento de que a peca do vestudrio foi presente “da outra” Poder-se-ia perguntar, neste momento, se a violéncia de gé- nero, em geral, ou a intrafamiliar ou, ainda, a doméstica es- pecificamente so sempre reciprocas, Mesmo admitindo-se que pudesse ser sempre assim, 0 que néo é 0 caso, a mulher Jevaria desvantagem. No plano da forga fisica, resguardadas as diferengas individuais, a derrota feminina ¢ previsivel, 0 mesmo se passando no terreno sexual, em estreita vinculagio com o poder dos miisculos. E voz corrente que a mulher ven- ce no campo verbal. Entretanto, entrevistas com mulheres vitimas de violéncia doméstica tém revelado que 0 homem muitas vezes, irremediavelmente ferino (SAFFIOMI, inédito), Isto no significa que a mulher sofra passivamente as violén- cias cometidas por seu parceiro, De uma forma ou de outra, sempre reage. Quando o faz violentamente, sua violéncia 6 reativa. Isto néo impede que haja mulheres violentas. Sio, todavia, muito raras, dada a supremacia masculina e s cializagao para a docilidade. BR Heleith LD. Siow 0 femicidio cometido por parceiro acontece, numerosas ve~ zes, sem premeditacio, diferentemente do homicidio nas mes- mas circunstancias, que exige planejamento. Este deriva de uma derrota presumivel da mulher no confronto com o ho- mem. No Brasil, no ha pesquisas neste sentido. Na Inglaterra, ‘as penas para as mulheres que cometem homicidios de seus maridos so maiores que as sentenciadas aos homens que per- petram femicidio de suas esposas, ou uxoricidios, exatamente em razio da premeditagio, que constitui agravante penal. Nao obstante os maus-tratos de que podem ter sido vitimas duran te toda a vigéncia da sociedade conjugal, a puni¢ao é maior em virtude da menor forga fisica da mulher, que exige o planeje- mento do homicidio, ou seja, sua premeditagao. Resta discutir uma questo sobre a qual tampouco hé consen- so. A violéncia praticada por pai e mae contra a prole pode ser considerada violéncia de género, intrafamiliar e doméstica? Indubitavelmente, sua natureza é familiar. Para quem define a violéncia doméstica em termos do estabelecimento de um do- minio sobre os seres humanos situados no territério do patriar- erado, nfo resta diivida de que a hierarquia comeca no chefe e termina no mais frégil dos seus filhos, provavelmente filhas. Cabe debater o papel da mulher que, tendo seus direitos humanos violados por seu companheiro, maltrata seus filhos. ‘Apesar de que “as mulheres figuram em niimero importante dentre as vitimas de violéncia e em niimero reduzido dentre os autores de violéncia” (COLLIN, 1976), ha muitas mulheres que maltratam seus filhos, elementos inferiores na hierarquia do- méstica. Nio apenas o homem, mas também a mulher esta su- jeita a sindrome do pequeno poder, sendo uma freqiiente auto- ra de maus-tratos contra eriangas. Como afirma Welzer-Lang (a991), a violéncia doméstica & masculina, sendo exercida pela mulher por delegacio do chefe do grupo domiciliar. Como ela “6 0 primeiro modo de regulacio das relagSes sociais entre os, sexos” (WELZER-LANG, p. 23), 6 desde crianga que se experi- menta a dominagio-exploracio do patriarca, seja diretamen- te, seja usando a mulher adulta. A fung&o de enquadramento (Gener pairnrcado, violneia B el (BERTAUX, 1977) 6 desempenhada pelo chefe ou seus prepostos. A mulher, ou por sindrome do pequeno poder ou por delegacio do macho, acaba exercendo, nao raro, a tirania contra criangas, liltimo elo da cadeia de assimetrias. Assim, 0 género, a familia e 0 territério domiciliar contém hierarquias, nas quais os homens figuram como dominadores-exploradores ¢ as criangas como os elementos mais dominados-explorados. Nos termos de Welzer-Lang, “a violéncia doméstica tem um género: 0 mascu- lino, qualquer que seja o sexo fisico do/da dominante” (p. 278). Desta sorte, a mulher é violenta no exerefeio da fungio patriar~ cal ow viriarcal. No grupo domiciliar e na familia nao impera riamente a harmonia, porquanto esto presentes, com freqiiéncia, a competigio, a trapaca, a violéncia. Ha, entretan- to, uma ideologia de defesa da familia, que chega a impedir a dentincia, por parte de mies, de abusos sexuais perpetrados por pais contra sens (suas) préprios(as) filhos(as), para no men- cionar a tolerdncia, durante anos seguidos, de violéneias fisicas € sexuais contra si mesmas. No que tange a abusos sexuais de criangas, a gramitica portuguesa impée 0 uso do masculino, embora internacionalmente seja de cerca de apenas 10% a pro- porgao de meninos afetados por este fenémeno, Contudo, mes- mo que se tratasse de um s6 garoto, valeria a pena Iutar contra esta violéncia, significado da violéncia No que concerne a preciso de conceitos, é importante que se aborde, ainda que ligeiramente, o significado da violéncia nas modalidades aqui focalizadas. F ébvio que a sociedade con- sidera normal e natural que homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mées maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violéncia. Trata-se da ordem so- cial das bicadas (SaFFIO71, 1997a). -] a criminalidade, a violéncia publica 6 uma vio- Téncia masculina, isto & um fendmeno sexuado. A dispa- 7 lieth Soe ridade muscular, eterno argumento da diferenga, deve ser interpelada em diferentes niveis. [..] Nos confundi- mos freqiientemente: forga-poténcia-dominagao e viri- lidade” (WELZER-LANG, 1991, p. 59). Efetivamente, a questo se situa na tolerancia e até no incen- tivo da sociedade para que os homens exercam sua forga-po- téncia-dominagdo contra as mulheres, em detrimento de uma virilidade doce e sensivel, portanto mais adequada ao desfrute do prazer. O consentimento social para que os homens con- vertam sua agressividade em agressio no prejudica, por con~ seguinte, apenas as mulheres, mas também a eles préprios. A organizagao social de género, baseada na virilidade como for- a-poténcia-dominago, permite prever que ha um desencon- tro amoroso marcado entre homens e mulheres. As violéncias fisica, sexual, emocional e moral nao ocorrem isoladamente. Qualquer que seja a forma assumida pela agres- so, a violéncia emocional est4 sempre presente. Certamente, se pode afirmar 0 mesmo para a moral. O que se mostra de dificil utilizagdo 6 0 conceito de violéncia como ruptura de diferentes tipos de integridade: fisica, sexual, emocional, mo- ral. Sobretudo em se tratando de violencia de género, e mais especificamente intrafamiliar e doméstica, so muito ténues 0s limites entre quebra de integridade e obrigagio de suportar 0 destino de género tracado para as mulheres: sujeigo aos homens, sejam pais ou maridos. Desta maneira, cada mulher colocara o limite em um ponto distinto do continuum entre agressio e direito dos homens sobre as mulheres. Mais do que isto, a mera existéncia desta tenuidade representa violéncia. Com efeito, paira sobre @ cabeca de todas as mulheres a amea- ga de agressdes masculinas, funcionando isto como mecanis- mo de sujeiggo aos homens, inscrito nas relagdes de género. Embora se trate de mecanismo de ordem social, cada mulher 0 interpretard singularmente. Isto posto, a ruptura de integri- dades como critério de avaliagao de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade. Isto equivale a dizer 5 (Gane, pattareade, valinca que a violéncia, entendida desta forma, no encontra lugar ontol6gico™, como jé se mencionou. Fundamentalmente por esta razo, prefere-se trabalhar com 6 conceito de direitos humanos, entendendo-se por violéncia todo agenciamento capaz de violé-los. bem verdade que isto exige uma releitura dos direitos humanos. J4 desde a Revolu- gfo Francesa os direitos humanos foram pensados no masculi- no: Declaragio Universal dos Direitos do Homem e do Cida- dio. Por haver eserito a versio feminina dos direitos humanos (Declaragéo Universal dos Direitos da Mulher e da Cidada), Olympe de Gouges foi sentenciada a morte na guilhotina, em 1792. Como o homem sempre foi tomado como 0 protétipo de humanidade (FAcIo, 1991), bastaria mencionar os direitos daquele para contemplar esta. Rigorosamente, é ainda muito ineipiente a consideragao dos direitos humanos como tam- bém femininos. Tudo, ou quase tudo, ainda é feito sob medida para o homem. Os equipamentos fabris estdo neste caso, no obstante as mulheres terem penetrado nas fabricas desde a Revolugdo Industrial. Claro que a maquina de costura, inclusi- ve a industrial, é feita para o corpo da mulher, a fim de manté- la em suas fungdes tradicionais. Nos paises em que bordar & maquina constitui tarefa masculina, como 0 Senegal, o equipa~ mento 6 adaptado ao corpo masculino. Nem sequer se pensa na adequagio de outras m4quinas ao corpo feminino. Mulhe- res que passaram a trabalhar em equipamentos planejados para no existe uma percepsao undnime da violencia, cada socius Gofrninde-a como a sente, no se pods fazer ciéncia sobre a violéncia caracterizada como ruplura de integridades, uma vez cue no hi clén- a do individual, Se as integridad: fe, por conseguints, suas rupturas rentes, haveria uma mesma. tra, como se mostrou atrés, Sera possivel construir uma sociedade igualtéria, porque outras maltas este genero ocorreram no passado. A desigualdade, a violéncia, a rancia nfo 880 inerentes a0 687 social. AD contrario, 0 s80 a iden .do © a diferenga. Estas sim tém, por via de conseauiénci, lugar fol6gico assagurado, Decomponio’o vocabulo, anto = ser; 16gico ou ‘= estudo, cléncia, Ontologia = astudo do ser 6 elie B. Sot homens tiveram que a eles se adaptar, com prejuizo, muitas vezes, da propria satde. Entender que as diferengas pertencem ao reino da natureza, por mais transformada que esta tenha sido pelo ser humano, enquanto a igualdade nasceu no dominio do politico, parece fora do horizonte de uma ideologia de género, que naturaliza atribuigdes sociais, baseando-se nas diferengas sexuais. O pro- prio tabu do incesto, fato fundante da vida em sociedade (Live STRAUSS, 1976), € apresentado aos socii como se estivessse ancorado em razdes de ordem bioldgica. A naturalizagao do feminino como pertencente a uma suposta fragilidade do cor- po da mulher e a naturalizagio da masculinidade como estan- do inscrita no corpo forte do homem fazem parte das tecno- ogias de género (LAURETIS, 1987), que normatizam condutas de mulheres e de homens. A rigor, todavia, os corpos so gendrados*, recebem um imprint do género. Donde ser ne- 210 vocdbulo gendrado, cfiundo de gender (palavr tem sido utiizado por foministas, na falta de ‘20 substantive gBrero, Trata-se de um neologism (Gendered) 0 ainda néo Gcionarizedo. Pode-se falar em corpo gendrado para des.gner nao o corpo sexuado, mas © corpo fermatado segundo as Formas do ser mulher ou do ser homer. Estatisicamente, a sodallzarao {do babe ancore-se no sexo, mas no d to raro que familias com cinco fihas, e desejando um fiho, socializem a sexta Iteratura brasileira, pode ser lembrada a figura de Died imaginagdo de Guimarses Rosa, mas existente, por vez" Conereta da vida. George Sand néo constitu um bom exer Gete fato, Em aldeias agratias da ex-lugoslavia, na ex-Republica de Montenegro, ocorria esto fenémeno, embora néo se poss dzet com que frogiénela, 8m decorréncia da crenga de que familias sem nenhiurn fiho, Se com finas, sofreriam desgragas em razio do mau tempo, das mas olhettas, da fome, das doonpas. Quem se interessar pelo assunto, pode assistr ao filme Virgina, dsponivel em grandes locadoras, que mostia Sole casos reals rurma mesmma famila extensa. Obviamente, no se trata: laces, mas da enganar a comunidad, numa nga. Pode-se também dizer que o pal fazia um pacto com Sao Jorge, padroeiro do ago reside na fato de: se a comuridade acre Gitasse que aquela cvanga era de sexo masculino, a familia se Iivraria dos ‘males, porque, afin fava apenas de uma erence, nada mais. Virgina fa 09 sexo ferinino, mas seu corpo era gendrado como masculine. Logo, a pelavra sexuado néo substi gendrado, GEnero,patriacado, vieléndia 7 eee cessaria uma especial releitura dos direitos humanos, de modo a contemplar as diferengas entre homens e mulheres, sem per- der de vista a aspiragio & igualdade social e a luta para a obten- cio de sua completude (Facto, 1991). A consideracao das di- ferencas 6 faz sentido no campo da igualdade, Neste sentido, © par da diferenga é a identidade, enquanto o da ignaldade 6 a desigualdade, sendo esta que se precisa eliminar. Poder-se-ia argumentar que tampouco a compreensio dos direitos humanos é homogénea, pois varia segundo as classes sociais, segundo as racas/etniias, de acordo com os géneros. No seio mesmo de cada uma destas categorias encontram-se distingdes de entendimento, Grosso modo, entretanto, elas servem como balizas, evitando-se que se resvale para o indivi- dual. Por outro lado, ha uma consciéneia avancada da situa- Gio, capaz de definir os direitos humanos no feminino, como, alids, vem sendo feito nos campos da satide, da educacao, da violéncia, no terreno juridico ete. Os portadores desta cons- cigncia lutam por sua difusio, assim como pela concretizacio de uma cidadania ampliada, isto 6, de direitos humanos tam- bém para pobres, negros, mulheres. O respeito ao outro cons- titui o ponto nuclear desta nova concepgio da vida em socie- dade. Como afirma Saramago, enquanto a religido exige que os seres humanos se amem uns aos outros, 0 que depende de convivéneia, uma vez que nem mesmo o amor materno é ins- tintivo (BADINTER, 1980), a compreensio dos direitos huma- nos impée que cada um respeite os demais. Amar 0 outro no constitui uma obrigagZo, mesmo porque o amor nfo nasce da imposigao. Respeitar o outro, sim, constitui um dever do cida- dio, seja este outro mulher, negro, pobre. Ademais, 0 género, a raga/etnicidade e¢ as classes sociais cons- tituem eixos estruturantes da sociedade. Estas contradicées, tomadas isoladamente, apresentam caracteristicas distintas daquelas que se pode detectar no né que formaram ao longo da historia (SAFRIOTY, 1997b). Este contém uma condensagio, uma exacerbago, uma potenciagdo de contradigdes. Como t rece e exige tratamento especifico, mesmo porque é no né que 78 ele Sa atuam, de forma imbricada, cada uma das contradigdes mencio- nadas. Além disto, esta concepgao é extremamente importante para se entender o sujeito miltiplo (LAURETIS, 1987) e a motilidade entre suas facetas. Efetivamente, o sujeito, consti- tufdo em género, classe e raga/etnia, nfo apresenta homogenei- dade. Dependendo das condigées historicas vivenciadas, uma destas faces estard proeminente, enquanto as demais, ainda que vivas, colocam-se & sombra da primeira. Em outras circunstiin- cias, seré uma outra faceta a tornar-se dominante. Esta mobili- dade do sujeito miltiplo acompanha a instabilidade dos proces sos sociais, sempre em ebulicao. Pontos de referénci m face deste quadro teérico de referéncia, exposto ain- da que sumariamente, pode-se ressaltar certos pontos, fruto de reflexio embasada em dados empfricos, 1, A violéncia doméstica ocorre numa relacio afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, intervengao externa, Raramen- te uma mulher consegue desvincular-se de um homem violen- to sem auxflio externo. Até que este ocorra, descreve uma trajetéria oscilante, com movimentos de saida da relagio e de retorno a ela, Este é 0 chamado ciclo da violéncia, cuja utilida- de 6 meramente descritiva. Mesmo quando permanecem na relagdo por décadas, as mulheres reagem a violéneia, varian- do muito as estratégias. A compreensio deste fendmeno € im- portante, porquanto hé quem as considere ndo-sujeitos e, por via de conseqiiéncia, passivas (CHAUT, 1985; GREGOR, 1989). Mulheres em geral, e especialmente quando sio vitimas de vio- Iéncia, recebem tratamento de nao-sujeitos. Isto, todavia, é diferente de ser nfo-sujeito, 0 que, no contexto deste livro, constitui uma contradictio in subjecto (contradigao nos ter- mos). Como afirma Linda Gordon, “tem sido necessario mostrar que a violéncia familiar niio é a expressio unilateral do temperamento violento (Genero, patiareadovioincia ic de uma pessoa, mas é tramada conjuntamente — embo- ra nfio igualmente - por varios individuos no caldeirao da familia. Nao h4 objetos, apenas sujeitos...” (1989, P. 291). Isto ndo significa que as mulheres sejam cimplices de seus agressores, como defendem Chaui e Gregori. Para que pudes- sem ser ciimplices, dar seu consentimento as agressdes mas- culinas, precisariam desfrutar de igual poder que os homens. Sendo detentoras de parcelas infinitamente menores de po- der que os homens, as mulheres s6 podem ceder, nfio consen- tir (MATHIEU, 1985). Trata-se de caso similar A relaco pa- wio-empregado, Este tiltimo nao consente com as condigdes do contrato, tampouco com o salério, mas cede, pois quase sempre 6 abundante a oferta de forca de trabalho e es oferta de postos de trabalho, particularmente neste momen- to histérico. 2, As mulheres lidam, via de regra, muito bem com micro- poderes. Nao detém savoir faire no terreno dos macropo- deres, em virtude de, historicamente, terem sido deles ali- jadas. Mais do que isto, nfo conhecem sua hist6ria e a hist6- ria de suas Iutas, acreditando-se incapazes de se mover no seio da macropolitica (LERNER, 1986). Entretanto, quando se percebem de que hé uma profunda inter-relagéo entre a nicropolitica e a macropolitica, elas podem penetrar nesta Itima com grande grau de sucesso, Na verdade, trata-se de rocessos micro e processos macro, atravessando a malha al, Nao ha um plano macro e um plano micro, como créem ‘ertos intelectuais (GUATTARI, 1981; GUATTARI e ROLNIK, 1986). Evidentemente, hé uma malha grossa e uma malha fina, ma sendo o avesso da outra, e nao niveis diferentes. A rigor, der-se-ia dizer que os processos sociais apresentam duas ces: uma micro e outra macro, sobressaindo-se uma ou ou- , dependendo das circunsténcias. Transmitindo as pala- \s plano e nfvel a idéia de hierarquia, as pessoas pem logo © macro acima do micro. Esta nova terminologia pretende evi- O Heleeth1. B.Saifiot tar esta hierarquizagio, além de mostrar o emaranhado des- tes processos. E as mulheres sabem como tecer a malha so- cial, operando em processos macro e em processos micro. Converter a consciéncia dominada das mulheres (MarHisu, 1985) em detentoras deste conhecimento, certamente, aumen- taria seu ndmero na politica institucional e em outras instén- cias de decision making. 3. Violéncia de género, inclusive em suas modalidades fa- miliar doméstica, nfo ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organizagdo social de género, que privilegia o masculi- no, Diferentemente da taxionomia que divide os diferentes ti- pos de espago-tempo em doméstico, da produgao e da cidada- nia (SANTOS, 1995), Propde-se, aqui, uma nova maneira de se conceberem estes fendmenos. © espago-tempo doméstico seré substituido pelo espago-tempo do domicilio. Este se subdivi- de em espaco-tempo doméstico, espaco-tempo do trabalho resultante da producdo antroponédmica (BERTAUX, 1977), emi- nentemente, para nio dizer exclusivamente, feminino, ¢ espa~ go-tempo privado, do écio, da intimidade, quase totalmente restrito aos homens. Quantas so as mulheres com privacida- de, se a sociedade inteira considera dever da mulher cumprir 0 que no Cédigo Civil de 1917, recém-reformado, era chamado de débito conjugal (felizmente abolido no novo Cédigo Civil), ow seja, ceder a uma relagio sexual contra sua vontade, a fim de satisfazer 0 desejo do companheiro? De que privacidade se pode falar se milhées de mulheres séo literalmente estupradas no seio do casamento todos os dias, duas vezes por semana ete.? 0 espaco-tempo da produgio é muito restrito. Propée-se sua substituigao por espaco-tempo piiblico. Finalmente, 0 es- pago-tempo da cidadania nao pode ser concebido separada- mente como se a cidadania s6 pudesse ser exercida na arena da politica institucional. Deve, ao contrério, penetrar os de- espagos-tempos para que, de fato, 0 ser humano possa desfrutar de sua condigo de cidadao em todas as suas rela- gGes sociais. Pelo menos é esta a Iuta da perspectiva feminista, que busca ser o mais holistica possivel. (Gener petrarsadoviléncia 81 4. No hé duas esferas: uma das relacées interpessoais (relations sociales) e outra das relagées estruturais (rapports sociaux), como querem certas feministas francesas e algumas brasileiras, Nao existe a classe social como entidade abstrata. Uma classe social negocia com outra por meio de seus repre- sentantes, que tampouco sio entidades abstratas, mas pesso- as. Todas as relagdes humanas sao interpessoais, na medida em que sto agenciadas por pessoas, cada qual com sua historia singular de contatos sociais. Por mais que desejem desvincular- se desta historia para representar sua classe, seu passado e sua singularidade pesam tanto que se chamam alguns de bons ne- gociadores e outros de maus negociadores, O mesmo se passa com as categorias negros e brancos. Afirmar que as relagdes de género sfo relagdes interpessoais significa singularizar os casais, perdendo de vista a estrutura social e tornando cada homem inimigo das mulheres (DELPHY, 1998). Nesta concep- Go, 0 encontro amoroso seria impossivel. E ele é possivel, apesar de os destinos de género ~ tragados pelas estruturas de poder ~ apresentarem muita forca. Em outros termos, nunca é demais realear, 0 género & também estruturante da socieda- de, do mesmo modo que a classe social ¢ a raga/etnia. Per- correndo a literatura sobre violéncia contra criangas e adoles- centes no Brasil, verificou-se que sé as classes sociais eram tomadas como categoria historica fundante, passando-se ao largo da raga/etnia e do género. Ora, sio palpaveis as diferen- gas entre as formas de violéncia que atingem brancos e negros, m como meninos e meninas (SAFFIOTI, 1997b). O pri- vilegiamento da classe social obscurece as demais clivagens existentes na sociedade. 5. Também obscurece a compreensio do fendmeno da vio- léncia de género o raciocinio que patologiza os agressores, In- ternacionalmente félando, apenas 2% dos agressores sexuais, por exemplo, sio doentes mentais, havendo outro tanto com passage pela psiquiatria, Ainda que estes também sejam con- siderados doentes mentais, para fazer uma concessio, perfa- zem, no total, 4%, o que é irrisério. O mecanismo da patologizagao a Heliot LB Saliod ignora as hierarquias e as contradigdes sociais, funcionando de forma semelhante & culpabilizagao dos pobres pelo espantoso nivel de violéncia de diversos tipos. Imputar aos pobres uma cultura violenta significa pré-conceito e no coneeito. A violén- cia de género, especialmente em suas modalidades doméstica familiar, ignora fronteiras de classes sociais, de grau de indus- trializagio, de renda per capita, de distintos tipos de cultura (occidental x oriental) etc. Aliés, é mais facil entender relagdes incestuosas quando, As vezes, nem mesmo um cobertor separa 08 corpos do que nas residéncias em que cada um tem seu pro- prio dormitério. Esta questiio da pobreza relacionada a violén- cia nfo tem sido posta em termos adequados. Pode-se interro- gar a realidade, a fim de se tentar descobrir se as condigbes materiais que caracterizam a pobreza tém um peso significative na produgio da violencia. Como desencadeadoras da violéncia, acredita-se que tenham uma fungio, como, alias, tem o alcool. E necessirio testar se o ser humano se habitua as circunstancias da miséria ou se clas The causam estresse. Se confirmada esta iiltima hipétese, os pobres seriam agentes de mais violéncias que os ricos, nfo por possufrem uma cultura da violéncia, mas por vivenciarem, mais amitide, situagdes de estresse. Ainda que esta mudanca de angulo de observagdo tenha um peso extraor- dinario, convém sublinhar que hé formas de violéncia s6 possi- veis entre 0s ricos. Haja vista 0 uso do patrimdnio, que homens fazem para subjugar suas mulheres, A ameaga permanente de empobrecimento induz muitas mulheres a suportar humilha~ ges e outras formas de violéncia. Cabe, agora, a pergunta: 0 poder do homem rico, no uso do patriménio como mecanismo de sujei¢&o e/ou intimidacfio da mulher para fazer valer sua vontade, néo compensa a eventual maior violéneia perpetrada pelo homem pobre, vivendo em condigées materiais precérias? Cabe interrogar a realidade, a fim de se poder tomar posigéo a respeito desta questéo. 6. Como a maior parte da violéncia de género tem lugar em relagées afetivas ~ familia extensa e unidade doméstica — acredita-se ser itil o conceito de co-dependéncia. insia “83 (Glere patiaveads, “Uma pessoa co-dependente é alguém que, para man- ter uma sensacdo de segurenca ontolégica, requet outro individao, ou um conjunto de individuos, para definir as suas caréncias; ela ou ele nfo pode sentir autoconfianca sem estar dedicado as necessidades dos outros, Um rela~ pnamento co-dependlente é a duo esté ligado psicologicamente a um pare atividades so dirigidas por algum tipo de compu Isic]. Chamarei de relacionamento fixado aquele em que © proprio relacionamento ¢ objeto do vieio” (GIDDENS, 1992, p. 101-102). Sem diivida, mulheres que suportam violéncia de seus com- panheiros, durante anos a fio, sio co-dependentes da com- pulsio do macho ¢ o relacionamento de ambos é fixado, na medida em que se torna necessério, Neste sentido, ¢ a propria violencia, inseparivel da relaglo, que 6 necessiria. E verdade, por outro lado, que hé mulheres resilientes (KOTLIARENCO, CACERES, FONTECTILA, 1997), que nao se deixam abater por condigdes adversas. 7. O poder apresenta duas faces: a da poténeia ¢ a da impo- t8neia. As mulheres sfo socializadas para conviver com a im- poténcia; os homens ~ sempre vinculados & forga — sdo prepa- rados para o exercieio do poder. Coavivem mal com a impoténcia. Acredita-se ser no momento da vivéncia da impo- t8ncia que os homens praticam atos violentos, estabelecendo relagGes deste tipo (SAFFIOTI e ALMEIDA, 1995). Ha numerosas evidéncias nesta diregio. Por esta ra7o, formula-se a hipéte- se, baseada em dados parciais, de que a violéncia doméstica aumenta em fung%o do desemprego. Todos os estudiosos de violéncia urbana sabem o quao dificil, se ndo impossivel, 6 Gescobrir associagbes entre este fendmeno, de um lado, e de- sigualdade, pauperizacdo, desemprego, de outro. A violéncia doméstica constitui um caso especial. © papel de provedor das necessidades materiais da familia é, sem diivida, 0 mais definidor da masculinidade, Perdido este status, 0 homem se 8d Helaethi 0 Sofioa sente atingido em sua propria virilidade, assistindo & subver- so da hierarquia doméstica. Talvez seja esta sua mais impor- tante experiéncia de impoténcia. A impoténcia sexual, muitas vezes, constitui apenas um pormenor deste profundo senti- mento de impoténcia, que destrona o homem de sua posicgo mais importante. Viole A violéncia doméstica apresenta earacteristicas especificas. Uma das mais relevantes é sua rotinizagio (SAFFIOT!, 19970), © que contribui, tremendamente, para a co-dependéneia ¢ 0 estabelecimento da relagio fixada. Rigorosamente, a relagao violenta se constitui em verdadeira prisio. Neste sentido, 0 proprio género acaba por se revelar uma camisa-de-forga: 0 homem deve agredir, porque 0 macho deve dominar a qual- quer custo; e a mulher deve suportar agressées de toda or- dem, porque seu “destino” assim o determina Nao se pode negar a importincia da chamada urbana, que atinge homens e mutheres, embora de modos dis tintos. De acordo com as estatisticas de mortalidade (Morra- LIDADE BRAStL, 1997), havia diferencas gigantescas entre ho- mens e mulheres no que tange aos dbitos por causas externas, que incluem homieidio. No total, em 1994, morreram, por cau- sas externas, quase cinco vezes mais homens que mulheres. Na faixa etaria de 15 a 19 anos, as mulheres mortas desta me- neira representaram apenas 20% dos homens. Entre 20 € 29 anos, morreram 7,7 veres mais homens que mulheres por caut~ sas externas, atingindo esta proporgo 6,9 vezes na faixa etdri de 30 a 39 anos. O espago pubblico é ainda muito masculino, estando os homens mais sujeitos a atropelamentos, pasando por acidentes de transito chegando até ao homicidio. As mulheres ainda tém uma vida mais reclusa, estando infinita- mente mais expostas A violéncia doméstica. Diferentemente da violéncia urbana, a doméstica incide sempre sobre as mes~ mas vitimas, tornando-se habitual ioléncia (Genero, patireado,vielindia 85 © pais carece de estudos nesta érea, Realizou-se 0 mapea- mento deste fenémeno em quase todas as capitais de estados, no Distrito Federal e em 20 cidades do interior do estado de Sio Paulo (SaFFIOn!, inédito). Esta pesquisa, que contow com © apoio do Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nagdes Unidas para a Mulher), do Unicef (Fundo das Nages Unidas para a Infancia), da ops (Organizagzo Pan-americana de Sa- de), da Fundagio Ford, da Fundacio MacArthur, da FAPESP (Fundago de Amparo A Pesquisa do Estado de Sao Paulo) e do cng (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico ¢ ‘Teenolégico), desenvolveu-se durante muitos anos, enfrentan- do toda sorte de dificuldades. & extremamente dificil coorde- nar uma investigagio deste porte num pais como o Brasil, no qual a consciéneia profissional é precéria, mas se espera que, dentro em breve, se tenha um relatério contendo todos os da- dos. Por ora, conta-se com dados parciais, uma vez que nfo houve tempo para informatizar todos os coligidos. Em parte, a morosidade resulta do cardter artesanal da pesquisa. Nao se trata de um survey da populagio, que seria ideal, mas de um estudo bastante exaustivo da violéneia denunciada. Foram examinados todos os boletins de ocorréneia (#0) lavrados nas Delegacias de Defesa da Mulher (pp31), todos os Bos de 10% dos tritos policiais (DP) e todos os BOs de delegacias de homici- ios, quando existem, anotando-se manualmente (a falta de laptops) 08 dados do agressor ¢ da vitima, informagées estas que, posteriormente, foram introduzidas no computador. Logo, realizou-se 0 mesmo trabalho duas vezes. Acompanhou-se 0 20, que podia ter sido arquivado ou convertido em inquérito policial (1P), Neste primeiro passo, j4 existia um grande funil Outro gargalo existia entre 0 IP € 0 processo criminal. A maio- ria dos IPs era arquivada ou por falta de provas ou por falta de vontade de prosseguir. Como jé se onviu de um procurador, respondendo a uma pergunta do porqué de a justica ser lenta: “Os juizes perdem muito tempo cuidando da surra que o Sr. José deu na Dona Maria e, enquanto isto, os problemas impor- tantes se avolumam, retardando as decisdes” (citagio de me- 86 Beldath LB Safin méria), Nao é apenas este procurador que tem este entendi- mento. Na verdade, ele apenas reflete a complacéncia que a sociedade tem para com a violéncia doméstica. E, entretan- to, ela talvez seja o fendmeno mais “democratico”: quase to- das as mulheres recebem seu quinhao. Poucos sio, entZo, os 1s transformados em processos-crime. Destes, muito pou- cos terminam em condenagio. Dados parciais de 1988 reve- lam que a proporeio de réus condenados era de 11%, tendo crescido para 12,5%, em 1992, para Leb; 7% para estupro e abuso sexual, nos dois momentos; tendo aumentado de 5% para 7%, para o crime de ameaga, muitas vezes de morte, que acaba se consumando. A solugdo nao consiste em agravamento de pena, mas na certeza da punicéo, De 1988 para 1992, anos escolhidos para a investigagao, com a difusio de ppMs, houve uma mudanga ficativa nos tipos de crimes cometidos: Lep, que repre- sentava cerca de 85% da violéncia doméstica, caiu para 68% Em compensagio, o crime de ameaga aumentou de 4% para 21% no intervalo mencionado. Na maioria das vezes, quando a mulher procurava uma pbM, na verdade, esperava que a delegada desse uma “prensa” em seu marido agressor, a fim de que a relagao pudesse se estabelecer em novas bases (leia~ se harmoniosas). A ambigiiidade da conduta feminina é mui- to grande e compreende-se 0 porqué disto. Em primeiro lu- gar, trata-se de uma relacdo afetiva, com miltiplas depen Géncias reciprocas. Em segundo lugar, reras so as mulheres que constroem sua prépria independéacia ou que pertencem & grupos dominantes. Seguramente, o género feminino nao constitui uma categoria social dominante. Independéncia & diferente de autonomia. As pessoas, sobretudo vinculad por lagos afetivos, dependem umas das cutras. Nao hA, poi para ninguém, total independéncia. “Grupos dominantes sio geralmente auténomos no sentido de que.no sao responsaveis por aqueles que lhes esto abaixo ¢ nfo tém que pedir permissio para fazer 0 (Ginoro,patraneedvildnes a7 que desejam. Entretanto, isto nfo toma os grupos domi- nantes independentes. [...] porém, eles tém a vantagem de ter muito mais controle sobre o modo como a realidad 6 definida e podem usar isto para mascarar 05 aconteci- mentos (JOHNSON, 1997, P- 147). Em terceiro lugar, na maioria das vezes, o homem é o (inico provedor do grupo domiciliar. Uma vez preso, deixa de sé-l configurando-se um problema sem solugdo, quando a mulher tem muitos fillhos pequenos, ficando impedida de trabalhar fora. Entre outras muitzs razées, eabe mencionar, em quarto lugar, a prossio que fazem a familia extensa, os amigos, a Igreja ete. no sentido da preservacio da sagrada familia. Importa menos 6 que se passa em seu seio do que sua preservacio como insti- tuigdo. H6, pois, razées suficientes para justificar a ambigtiide- de da mulher, que num dia apresentava a queixa e, no seguin- te, solicitava sua retirada, Isto para nfo mencionar as amea- cas de novas agressdes ¢ até de morte que 2s mulheres rece- ‘Diam de companheiros violentos. Embora nunca haja existido a figura da retirada da queixa no ordenamento juridico da na~ cio, ela era engavetada. Logo que se instalou a primeira DDM brasileira, em Sao Paulo, em agosto de 1985, a delegada Rosmary Corréa, conhecida como delegada Rose, atualmente doputada estadual, no segundo ou terceiro mandato, tentou abolir este procedimento, considerado masculino, querendo isto dizer que prosseguir com o processo era secundirio para os homens. nos referentes a crimes freqiientes contra mulheres, mas que néo se configuravam como violéncia doméstica, eram, ndo propriamente enotados, mas tabulados num formulério espe~ cial, a fim de que se pudesse caleular quanto, por exemplo, os estupros domésticos representavam do montante numérico total deste crime. Assim, embora o fulero da pesquisa tenha sido violénefa doméstica, a nfo-doméstica também era compa- tada para efeito de comparagio, evitando-se, assim, que a pri- meira viesse a constituir um universo fechado. a8 Hiseleh 8 Satin, (0s processos criminais foram acompanhados em foruns, ano- tendo-se 08 fatos principais da ocorréncia, assim como depoi- mentas e provas materiais, como laudos do Instituto Médico Legal (IML), armas etc., chegando-se a sentenga prolatada por juiz singular ou a decisfio do Tribunal do Jtiri, em casos de crimes contra a vida. Esta fase da investigagio ficou prejudica- da om alguns estados, em que no se conseguiu permissfo para ‘examinar processos-crime, Outros organismos de deniincia — 508 CRIANGA, conselhos tutelares ~ foram procurados, na ten- tativa de se detectar a mae agressora, que xaramente aparece em registros de delegacias de policia. A pesquisa envolven, ainda, entrevistas com vitimas de violéncia doméstica que apresentaram queixas em DDMS, assim como com polici tas delegacias especializadas. O objetivo destas entrevistas consistia, de uma parte, em aprofundar o conhecimento quali tativo sobre a violéneia doméstica e, de outra, avaliar os servi gos prestados pelas puts. Delegacios de defesa da mulher A idéia de criagdo de delegacias especializadas no atendi- mento a mulher apresenta, inegavelmente, originalidade e in- tengio de propiciar as vitimas de violéncia de género em geral ¢, em especial, da modalidade sob enfoque, um tratamento diferenciado, exigindo, por esta razéio, que as policiais eonhe- cessem a irea das relagdes de género. Sem isto, ¢ impossivel compreender a ambigilidade feminina, Todavia, os poderes publicos nao implementaram a idéia original. Em Sao Paulo, s6 em 1998, houve um curso® sobre violéncia de género, com 2Na dona, existiam cerca de 128 oows no estado de So Paulo. As do ior foram trazidas 6 hospedadas com recursos do erério pblico, Eu Favia ministrado, com a colaboracio de S. S. de Almeida, um curso para lta (pw) Rio de Janeiro portant, nha o programa que elabore e, posteriormante, desenvotvl fem sala de aula, O-curso fol ministrado graciosamente, na tentatva do Guo se rotnizasse, Nio Batisia era vice-governador do Ric de Janeiro, ‘Gheero patrncado, visita 89 duragio de 40 horas, ministrado as entao 126 delegadas de ppms do estado. Embora haja demanda por mais cursos, 0 se- gundo ainda nio se realizou. Nao se trata de afirmar que as delegadas so incompetentes. Como policiais, devem ser to- das muito capazes. O problema reside no conhecimento das selagdes de género, que nfo é detido por nenhuma categoria ocupacional. Profissionais da sade, da educacao, da magis- tratura, do Ministério Piiblico ete. necessitam igualmente, ¢ com urgéneia, desta qualificacgo. Ademais, h4 que se formularem diretrizes a serem seguidas por todas as DMs, a firm de se assegurar um tratamento de boa qualidade ¢ homogéneo a todas as vitimas de violéncia que buscam este servigo. Talvez a primeira eseuta nao deva ser izada na DDM € por policiais. Uma assistente social ow uma psicdloga poderia, em local separado, mas préximo da ppm, fazer a triagem dos casos ¢ dar a suas protagonistas o encami- nhamento correto: servigo juridico, de apoio psicoldgico, po- licial ete. Por enquanto, a orientago das pps depende das boas ou mas intuigGes de suas delegadas, estando muito longe de ser uniforme. As DMs constituem apenas uma medida iso- Tada, sendo de pequena eficécia sem 0 apoio de uma rede de quando apresentela propesta, ¢ ele teve mula sensiblidade, aderindo & |dbia, Quando o curso fol minstrado, ole ers gavernador, Como eu havia ido esta experiencia, a detegada Dra. Mata Inés Valenta, ccordenadora do todas ae Cos do estado, vabalhou, jurtamente com Marla Aparocida de Laia, presidente do Consehe Eetadua! da Condige Ferinina, junto 20 gaverno para obler a varba necessérla para tansporiar, hospedar e alimentar as delagacas do intaror. Tarmbém conseguiram numeréelo pare xeragrafar artigos, captulcs de Iivos ¢ trabalhos da autora das profes: fal este distrbutdo as delegadas. Numa Valente, S. Pimentel, M. Ap. de Laia, pos humanos, a cargo de gem psicolégica da questao, sob encargo da psicsloga Malina Muszkat Por serem multas, as celegadas foram dvidléas om dols grupos @ cade lm deles teve 0 mesmo curso semanai. Em certas oportunicades, en entra-me com algumas ox-alunas destes grupos, sempre prontas & rewvindicar outros cursos. 50 Halse 8 Satin servigos. Emboraa figura da retirada da queixa nfo existisse, de que outra maneira poderia se conduzir uma delegada, quan- do a mulher voltava DM com esta demanda por estar sendo ameagada de morte por seu companheiro, senfio “esquecen- do” a notitia criminis, em virtude da auséncia de albergues apropriados para acolher esta mulher? Atualmente, hé cerca de 80 abrigos para vitimas de violéncia em todo o pafs, 0 que é, no minimo, ridiculo. Uma verdadeira politica de combate a violéncia doméstica exige que se opere em rede, englobando a colaboracao de diferentes Areas: policia, magistratura, Minis- tério Pablico, defensoria piiblica, hospitais e profissionais da satide, inclusive da area psi, da educagio, do servigo social etc. e grande niimero de abrigos muito bem geridos. Cabe res- saltar, uma vez mais, a necessidade urgente de qualificagio aestes profissionais em relagdes de género com realee espe- cial da violencia doméstica, Exatamente em razio do esvazia- mento, em termos de fungdes, das poms, cabe operacionalizar uma rede de servigos, com todos os seus profissionais qualifi- cados no assunto relagdes de género. Os anos escolhidos para comparacto ~ 1988 € 1992 ~ sio anteriores & lei 9,099, que entrou em vigor no final de 1995 criow os Juizados Especiais, nas areas civel e criminal. Esta nova legislagio alterou o rito processual, para os crimes ape- nados com até um ano (a lei pode abranger crimes apenados com mais de um ano de privagio da liberdade, mas, no que concerme & violéneia doméstica, so os apenados com até um ano que interessam), com extinggo da figura do réu, da perda da primariedade, dependendo das circunstancias, das penas de privacao de liberdade, substituides por penas alternativas, em beneficio da oralidade, da agilidade, da conciliagio, Prova- velmente, funciona bem para dirimir querelas entre vizinhos, mas tem se revelado uma léstima na resolugio de conflitos domésticos, na opiniaio da maioria das delegadas de poms € outros profissionais do ramo. Da pesquisa terminada recente- mente (SAFFIOTI, 2003), pode-se concluir a urgéncia urgen- tissima de, no minimo, reformar a lei 9.099, mas seria muito ‘Ginero,paiarado, viola 74 mais interessante legislar especificamente sobre a violéncia doméstica. Alguns paises latino-americanos tém feito isso, entre eles 0 Equador. No Brasil, a multa irriséria tem sido uma pena alternativa muito utilizada, ficando os homens legalmen- te autorizados a voltar a agredir suas companheiras. Paga a multa ¢ sem perda da primariedade — é verdade que depen- dendo do comportamento do acusado —, os homens sentem-se livres para contimuar sua “carreira” de violéncias. Ha casos de mulheres que apresentaram queixas a Dpsts, tendo sido elabo- rados os termes cireunstanciados (1c), que substituiram os boletins de ocorréncia em crimes de menor potencial ofensi- vo, por trés e até sete vezes. Seus companheiros néo apenas voltaram a praticar toda espécie de violéncia, especialmente a Lc, contra elas, como assassinaram algumas. Audiéncias so realizadas, muitas vezes, nos corredores dos foruns, por mesérias, sem a presenga de juiz nem de promotor. De acordo com a lei referida, o juiz é obrigado a nomear um advogado gratuito para as vitimas que ndo constituiram o seu particular, caso de praticamente todas, j4 que sdo as pobres que recorrem ao scrim (s6 hd um em S40 Paulo, mas todas as varas crimi nais de todos os féruns sto obrigadas a obedecer & lei, de cardé- ter nacional, porque federal). Foram muitas as audiéncias as- sistidas e nunca se viu uma vitima entrar com seu advogado, nem dispor de um nomeado pelo juiz. A lei jé no serve para tratar de violéncia doméstica, mas pior ainda é sua imple mentago. Por ter visto bem de perto como as coisas funcio- nam, pode-se repetir que a Lei 9.99/95 legalizou a violéncia contra a mulher, em especial a violéncia doméstica. Na familia, na escola e em outras instituigdes ensinam-se as criangas a nfo aceitar convites, doces ¢ outros presentes de estranhos. Raramente uma mulher, seja crianga, adolescen~ te, adulta ou idosa, sofre violéncia por parte de estranhos. Os agressores so ou amigos ou conhecidos ou, ainda, membros da familia. Isto 6 muito claro em casos de abuso sexual, crime no qual predominam parentes. Na violencia de género, teori- camente podendo ter como agressor tanto o homem quanto 92 leat LB Sik a mulher, na prética a prevaléncia 6, com uma predomindn- cia esmagadora, de homens, parentes, amigos, conhecidos, raramente estranhos. Os tipos mais difundidos de violéneia contra a mulher sio de violéncia doméstica e de violéncia intrafamiliar. 6, pois, prudente manter o olhar em diregio aos que habitam 0 mesmo domicflio, a fim de no se dom com o inimigo. ‘Nos anos escolhidos para a investigagio sobre méstica, a legislagio entio vigente previa penas de privagio da liberdade mesmo para crimes de baixo potencial ofensivo, mas raramente um homem era detido a primeira vez que es- pancava sua mulher. Mesmo na reincidéncia, a impunidade grassava solta. Os baixos indices de condenagio ilustram gros- seiramente este fenémeno. A rigor, nfo bastava ser condena- do, mas seria necessério cumprir 2 pena. Ora, o que ocorria em muitos casos era a evasiio do sentenciado, havendo milhares de mandades de prisio sem cumprimento. A situagao anterior & Lei 9.099, portanto, nfo era adequada 20 combate da violén- cia doméstica. Todavia, @ nova legislagio tornou-a ainda pior, na opiniio da maioria de profissionais desta Area ¢ desta pes- quisadora. Como jé se revelou, os operadores do Direito, in- clusive 0 advogado do povo (promotor), implementam-na com tal desprezo pelas vitimas, com tanto sexismo, que conseguem torni-la bem pior. Eis por que tais profissionais carecem de qualificagao em relagdes de género. E verdede que hi nela pontos positives. O crime de Lep, an- teriormente de acio piblica incondicionada, hoje exige re- presentacfio da vitima, Este pode ser considerado um elemen- to de tratamento da vitima pelo menos como pessoa adulta, responsdvel por seus atos. Entretanto, nao se oferecem as mulheres os servigos de apoio de que elas necessitam, nem se implementam poll joléncia do- de empoderamento* desta pazcela da * Empedaramento 6 tadugdo Iteral do inglés empowormont. Signiica atibur podar 4s mulheres, elovando, por exerpio, sua auto-estima. ‘Também se empoderam mulheres por melo de ages al tals, Com a Lei 9.09995, antrotanto, operou-sa da modo inerapatarace, line 8 populag&o. E sem isto a nao apenas injusta para com as imas de violéncia doméstica, como também altamente ine- 7 mesmo em seus aspectos positives. Seus efeitos revelam preenchidas da nacido. O patriarcado o masiadamente fort Jj se afirmou. Isto posto, por que a Por que ela deixaria de proteger o status quo, se aos operado- res homens do Direito isto seria trabathar contra seus pr6- prios privilégios? E por que as juizas, promotoras, advogadas, mesérias sio machistas? Quase todos 0 sé0, homens e mulhe- res, porque ambas as categorias de sexo respiram, comem, debem, dormem ete., nesta ordem patriareal de género, exa~ tamente a subordinacao devida ao homem. Se todos séo socializados para ser machistas, néo poderd esta, , mas sempre uma hierarquia geradora am de ser femininas, io poder masculino. jada, que lutam sem cessar pela igualdade social entre homens e mulheres, entre rancos e negros, entre ricos e pobre: pasearam a sar sinénimos de costa badsica. Os juizes, em gai do um sexlsmo exacerbado, mas ser imaginagso, adoram sentanciar ‘98 acusados com: © pagamento de uma muita, geralmente de 60 reais, de ura cesta basica a uma in de caridads. Anda forum, 0 acusado az & vilima que ela passara a fazer q ‘axinas por semana em vez de duns, perqus olo tera de comprar duas caslas bacloas, ja quo Ihe daré duas surras om lugar de uma, 94 Heleth 1 Slice 4. “Nao hd revolucio sem feoria” (Rrase de Le feministas, especialmente as conhecidas como radicais, presta- ram grande servigo aos ento chamados estudos sobre mulher, utilizando um coneeito de patriarcado cuja sig mantinha qualquer Rigorosamente, muitas delas nem conheciam Weber, exce! de segunda mao, sendo sua intencfio bastante pol io, suspei- da sociedade seja tripartite - politica, econd- mica e social -, isto é, de filiago weberiana. Por este lado, é possivel, sim, estabelecer um nexo entre esta vertente do pensamento feminista e Weber. Muito mai: e- 8 centemente, feministas francesas cometeram 0 mesmo erro (ComBES ¢ HAICAULT, 1984), situando a dominagio no campo politico e a exploragéo no terreno econdmico, A hierarquia entre homens e mulheres, com prejuizo para as siltimas, era, entio, trazida ao debate, fazendo face a abordagem fancionalista, que, embora enxergasse as discriminagdes perpetradas contra as mulheres, situava seus papéis domésticos ¢ puiblicos no mesmo patamar, atribuindo-Ihes igual potencial explicativo. Estudos sobre familia*s, notadamente os de Talcott Parsons (1965), cua leitura de Weber foi realizada com categorias analiticas funcionalistas, apresentavam este trago, assim como pesquisas incidinde diretamente sobre mulheres, Neste iltimo caso, esta- vam, entre outros, Chombart de Lauwe (1964) ¢ demais pesqui- sadores que colaboraram em sua antologia. ‘Nao foram tio-somente feministas radicais que contestaram esta abordagem homogeneizadora dos papéis sociais femini- nos. Juliet Mitchell, j4 em 1966, publicava artigo, ancorada em uma leitura althusseriana de Marx, atribuindo distintos relevos as diferentes fungSes das mulheres. Embora, mutatis mutandis*, veafirmasse velha tese deste pensador, contesta- ‘ya o que, em seu entendimento, era representado pelo privilé- gio desfrutado pela produedo stricto sensu, e mesmo lato sensu, no pensamento marxista. Considerava imprescindivel, para a liberagde das mulheres, uma profunda mudanga de to- das as estruturas das quais elas participam, ¢ uma “unité de rupture” (p. 30), ou seja, descoberta, pelo movimento rev Tucionério, do elo mais fraco na combinagio. ‘As estruturas por ela discriminadas — produgao, reprodugao, socializagito e sexualidade ~, contrariamente ao procedimento 2% Uma coletanea apresentando numerosas abordagens foi organize~ dda por Arlene &, SKOLNICK © Jerome H. SkoLNex. (1971) Family in Transition ~ Rathinking Merriago, Soxvality, Child Reating, and Family Organizetor. usaiCanada: Lite, Brown & Company Liited. 20 primelro a afimar que o desenvoWvimento de uma sociedade mede pela concigko da mulher fol o eocilista utépico Charles Four teneampado pasterlormante por Marx e, scbretudo, por Engels 96 lee 1 Sein homogeneizador, sio percebidas como apresentando um de- senvolvimento desigual, cuje importineia 6 ressaltada, inclusi- ve para a estratégia de luta, Mitchell estabelecon instigantes interlocugées com a Psicanélise € com distintas correntes do pensamento marxista, O primeiro didlogo continua muito vivo até hoje, tendo dado alguns frutos interessantes tanto para a Paicandlise quanto para outras ciéncias que se debrugam sobre a questo de género. Nao se pode afirmar 0 mesmo com relagio 4 interlocugdo estabelecida com 0 pensamento marxiste. Na década de 1970, Hartmann (1979a) publicou artigo em que con- siderou os conceitos marxistas sex-blind (cegos para o género), opinido que prosperou e calou ampla e profundamente, fazen- do-se presente até os dias atuais. Nenhum(a) feminista interpe- Jou desta forma o positivismo e a Sociologia da compreensfo, de Weber. E, no entanto, os conceitos formulados por estas ver~ tentes da Sociologia nao discernem o género, ou seja, também so sex-blind. B bem verdade que o marxismo adquiriu muita evidéncia, tendo sido um dos pensamentos dominantes do culo xXx, ao lado da Psicanélise, Todavia, ndo cbstante a misoginia de Freud e de muitos de seus seguidores, no houve este tipo de interpelagdo de sua teoria. Note-se ~ e isto faz a diferenca ~ que o questionamento das categorias marxistas deu-se no campo epistemolégico, enquanto isto nfo ocorreu com a Psicanélise. Freud tratou da filogénese”, mas jamais fez qualquer referéncia A ontogénese*. Ha, certamente, uma componente ideol6gica importante nes- sas interlocugées, a. merecer mencio. O pensamento psicana- Iitico foi subversivo e conservador, 20 passo que 20 marxista nfo se aplica o segundo termo. Neste sentido, havia possibili- dade de finalizar o enquadramento da Psicanélise no status = Filogenase significa 0 desenvolvimento, no ease do ser humana. = A ontogenese 4 axatamente a busca das origens do ser. Pera Freud, do ser hurrane, A ontolog'a busca compreander a natureza ea géne- $8, 2 origem, para Mare, do ser social, ou soja, da sociedade, & Isto ‘que Freud no faz. (Genero, patiascade, vielen 7 quo, por intermédio do que Foucault (1976) chama de edipianizagéo do agente social, ou seja, de sua sujeicéo & lei do pai. Um dos grandes méritos deste altimo autor foi compreen- der a historicidade da sexualidade. Com efeito, o exercicio desta no se d& num vacuo social, mas obedace as normas so- ciais do momento. Isto nao significa que a sexnalidade esteja sempre vinculada a lei do pai, Sociedades igualitérias do an- gnulo do género nio sio presididas por esta lei, o que nfo equiva- Te a dizer que nao haja regras para o exerefeio da sexualidade. Certamente, Freud foi, neste particular, 0 grande inspirador de Foucault (1976). Como o marxismo no se presta a cumplicidades com o status quo, as eriticas a ele dirigidas, no passado e no presente, so superficiais, nao atingindo sequer sua epistemologia. Nao se conhece nenhuma abordagem ontolégica da obra de Freud, certamente em razéo da auséncia de uma ontogénese. E 0 pré- prio contetido das categorias do pensamento marxiano, res- ponsiveis pelo processo de conhecimento, que é posto em xeque, As assim denominadas suspeitas, e até mesmo recusas veementes, com relagdo as explicagdes universais, ndo justifi- acusagzo de que os conceitos marxistas so ineapazes de perceber 0 género. Weber esté na base de porgao significa- tiva dos pensadores pés-modernos, sem que seus porta-vozes mais proeminentes, ou nem tanto, se interroguem a que con- duzira tio extremado relativismo ou se seus tipos ideais po- dem ser corretamente utilizados quando aplicados a situagdes distintas daquelas com base nas quais foram formulados Grande conhecedora da obra de Weber (1954, 1965), Maria Sylvia de Carvalho Franco (1972) mostra como 0 ordena- mento dos fendmenos sociais € feito com prinefpios @ priori, niio apenas pelo autor em questo como também por outros idealistas filiados ao pensamento kantiano. A autora detecta, no pensador em pauta, a presenga de uma “subjetividade instauradora de significados” como alicerce do objeto, 0 que Ihe permite afirmar, a respeito de tipologia da dominagio, que 0 sentido empirico especifico das relagdes de dominagéo 98 Ea Salo é produzido pela atividede empirica de uma subjetividade. Este mesmo sentido define o objeto ¢ constitui a autojus- tificagéo por meio da naturalizagio das desigualdades. Weber analisa, assim, as bases da legitimidade recorrendo a fatos sempre redutiveis a subjetividade, inscrevendo-se a auto- justificagdo como processo pelo qual se erige em lei univer- sal 0 conceito subjacente a dominagio. A tradicao opera como principio tedrico, constitutive de uma das formas de dominagao. Tanto o método quanto 0 objeto encontram seu sustentéculo no sentido. O rigor da interpreta- cdo € assegurado pela identidade, no que tange @ racionalidade, no objeto e no método. Neste sentido, a agdo racional com relagdo a fins permite a captagio da irracionalidade das agées dela discrepantes. Observam-se, ao lado de um relativismo praticamente absoluto, outros pecados inaceitéveis até mes- mo para aqueles em cujo pensamento Weber penetrou. Na medida em que o método e o objeto apresentam a mesma racionalidade, e a subjetividade instaura sentido, o primeiro ganba primazia: a razdo ¢ coextensiva a sociedade. Isto posto, no € dificil perceber as dificuldades, ou a impossibilidade, de se utilizarem conceitos weberianos em outros contextos. Se- gundo a autora em pauta, as configuragGes historicas so tinicas em termos conceituais e so apreensiveis como formagées de sentido fechadas sobre si mesmas. Trata-se de formagées nao- passiveis de fragmentagdo. Embora a andlise exija a decomposi- go dos fendmenos, ¢ sempre presidida pelo sentido, earacteri zado por um prinefpio sintetizador no seio do qual se situa a logica substantiva do sistema. A anilise de Franco, que incide sobre o mau emprego dos constructs mentais weberianos pelos teéricos da moderni- zagio, é, sem diivida, de alto nivel e totalmente pertinente Em outros termos, 0s tipos ideais weberianos nfo se prestam ao exame de outras realidades distintas daquelas que lhes deram origem. Efetivamente, o tipo ideal € construido de maneira a até-lo a especifieidade do contexte social no qual teve sua génese, Trata-se de conceitos genéticas, O préprio ‘Gerrards, vend 39 Weber define seu esquema de pensamento como um univer- 80 nfio-contradit6rio de relagdes pensadas. Como o pensa- mento opera uma acentuagdo unilateral de certos aspectos da realidade, os conceitos nao correspondem exatamente a esta, sendo, neste sentido, uma utopia. O vinculo do constructo mental com a realidade é resumido pelo proprio ., autor como uma representagio pragmética, elaborada segun- > do a intuigéo e a compreensio, da natureza especifica destas relagSes de acordo com um tipo ideal. Amséquina do patriarcado Esta incursio por Franco ¢ por Weber, ainda que xa patente a nfo-utilizagio do conceito weberiano de patriar- cado por parte de feministas*, sejam elas radicais (FIRESTONI 1972; REED, 1969; KORDT, LEVINE, RAPOWE, 1973; MILLET! 1969, 1970, 1971) ou marxistas (MILLET, 1971; REED, 1969; DAWSON ef alii,-1971; EISENSTEIN, 1979; SARGENT, 1981). Cer- tamente, todas as feministas que diagnosticaram a dominagao patriarcal nas sociedades contemportineas sabiam, no que os coneeitos genéticos de Weber sfo intransferfveis, mas que ja no se tratava de comunidades nas quais 0 poder politico esti- vesse organizado independentemonte do Estado". Por que, entao, nfo usar a expressio dominacdo masculina, como 0 tem feito Bourdieu, ou falocracia ou, ainda, androcentrismo, falo-logo-centrismo? Provavelmente, por numerosas razies, entre as quais cabe mencionar: este’ conceito reformulado de patriarcado exprime, de uma 6 ver, o que 6 expresso nos ter- *itam-se apenas algumas. Hé femiristas que entram em duas catego ‘ies. As vezes, como 6 0 caso de Sargent, organizadora da colelénea ade, trata-s0 do varias autoras com posigées motodoidcicas distintas 6, Inclusive, opostas. A classificagde usada 6, pertanto, precéria. To- das, porém, utlizam o concelto de patrarcado, Disperisa-se, aqul. @ tapé0 de Marx @ Engels, culo usc do referido conceto é nots ® MELLASsOux, Claude (1975), mostra bem esto ferdmens, enal comunidades coméstioas, 60 tee. B Sofie OCUMENTACAL 0 DE BIBLIOTECA E mos logo acima sugeridos, além de trazer estampada de forma muito clara a forga da institui¢ao, ou seja, de uma maquina bem azeitada, que opera sem cessar e, abrindo mio de muito rigor, quase automaticamente. Como bem mostra Zhang Yimou, no filme Lanternas vermethas, nem sequer @ presenea do patriarea & imprescindivel para mover a maquina do pa- triareado, levando & forca a terceira esposa, pela transgressio cometida contra a ordem patriarcal de género, Téo-somente recorrendo ao bom senso, presume-se que nenhum(a) estudioso(a) sério(a) consideraria igual o patriar- cado reinante na Atenas cléssica ou na Roma antiga ao que vige nas sociedades urbano-industriais do Ocidente. Mesmo tomando sé © momento atual, o poder de fogo do patriarcado vigente entre os povos africanos ¢/ou muguimanos é extre- mente grande no que tange A subord das mulheres aos homens. Observam-se, por conseguinte, diferencas de grau no domfnio exercido por homens sobre mulheres. A natureza do fen6meno, entretanto, é a mesma, Apresenta a legitimida- de que the atribui sua naturalizacio. Por outro lado, como prevalece o pensamento dicotémico, procura-se demonstrar a universalidade do patriareado por meio da inexisténcia de provas de eventuais sociedades ma- triareais, Neste erro, alids, nfo incorrem apenas as pessoas comuns. Feministas radicais também procederam desta for- ma, De acordo com a logica dualista, se hé patriarcado, deve haver matriarcado, A pergunta cabivel naquele momento ¢ ainda hoje é: houve sociedades com igualdade social entre homens e mulheres? Esta interrogagao teria, muito segura~ mente, dado outro destino a valorizagao da importincia do conceito de patriarcado na descrigo e na explicagéo da infe- rioridade social das mulheres. 0 filme Lanternas vermethas apresenta imagens e trama do acima expresso. Além de o patriareado fomen- tar a guerra entre as mulheres, funciona como uma engrena- gom quase autométiea, pois pode ser acionada por qualquer ‘um, inclusive por mulheres. Quando a quarta esposa, em esta- reveladora! (Gasero,patineado, ieléncia 101 do etilico, denuncia a terceira, que estava com seu amante, & segunda, é esta que faz o flagrante e que toma as providéncias para que se cumpra a tradigo: assassinato da “traidora”. O patriarea nem seque: estava presente no palacio no qual se Gesenrolaram os fatos. Durante toda a pelicula, nao se vé o rosto deste homem, revelando este fato que Zhang Yimou cap- tou corretamente esta estrutura hierérqui e confere aos homens 0 direito de dominar as mulheres, independentemen- te da figura humana singular investida de poder. Quer se trate de Pedro, Joao ou Zé Ninguém, a maquina funciona até mesmo acionada por mulheres. Alids, imbuidas da ideologia que dé cobertura ao patriarcado, mulheres desempenham, com maior ou menor freqiiéneia e com mais ou menos rudeza, as fungées do patriarca, disciplinando filhos ¢ outras criangas ou adoles- centes, segundo a Tei do pai. Ainda que nao sejam ciimplices deste regime, colaboram para alimenté-lo ‘Também ha categorias profissionais cujo papel consiste em enquadrar (BERTAUX, 1977) seus subordinados neste esque- ma de pensar/sentir/agir. Estes trés termos representam facetas de uma unidade: 0 ser humano. Isto é importante para nao se reduzir 0 patriarcado a um mero adjetivo de uma ideo- logia. Nao que esta nfo tenha um substrato material. Ela o tem ¢ clo assume enorme importéncia quando ago se opera por categorias dicotémicas, separando corpo de mente, natureza de cultura, razio de emocdo. Embora haja profundas diferengas entre as trés esferas ontologicas ~ a inorganica, a orginica e 0 ser social ~, uma nGo prescinde das demais, Na primeira, ndo hé vida e, por conseguinte, nfo ha reprodugio, Ha um proceso de trans- formagao de um estado em outro estado, a rocha tornando- se terra, por exemplo. Na segunda, hé vida e, portanto, re- producio. Uma mangueira produziré sempre mangas, jamais jacas, Na esfera propriamente social, a consciéncia desem- penha papel fundamental, permitindo a pré-ideagéo das ati- vidades e até, pelo menos parcialmente, a previsio de scus resultados. Na verdade, as trés esferas ontologicas consti- 102 Fleck 8 Sod tuem uma unidade, como bem mostra Lukées (1976-81), sen- do irredutiveis uma(s) A(s) outra(s). O ser social, dotado de consciéncia, é responsavel pelas transformagées da socieda- de, permanecendo, entretanto, um ser natural. A sociedade tem, pois, fundamento biolégico. (© pensamento cartesiano separou radicalmente o corpo da psique, a emog&o da razdo, gerando verdadeiro impasse. Efeti- ‘vamente, se a cultura dispde de uma enorme capacidade para modelar 0 corpo, este € 0 proprio veiculo da transmissiio das tradigdes. Como, entretanto, restabelecer a unidade do ser humano sem recorrer a uma abordagem ontolégica? Entre as feministas, ¢ extremamente raro este tipo de aproximagao. Whitbeck (1983) tenta, em interessante artigo, apropriar-se do real em termos de uma ontologia feminista, capaz de conter — e aj reside sua importéncia ~ 0 diferente e 0 anélogo. Nao procede, contudo, em termos de uma ontogénese, a uma and- lise das relagdes homem-mulher. Duas tentativas de tratar esta questo nestes moldes foram realizadas, ao que se sabe, no Brasil (Sarri0T!, 1991, 1997). B preciso, ainda, trabalhar mui- to nesta diregio, talvez ligetramente neste livro, ao analisar 0 conceit de género. Nao se trata de defender a tese de que os estudos sobre multher(es) devam ceder espaco, inteiramente, aos estudos de género. Ha ainda muita necessidade dos primeiros, na medida em que # atuagdo das mulheres sempre foi pouquissimo regis- trada e que, por via de conseqiiéncia, a maior parte de sua histé- ria estd por ser estudada, Historiadoras feministes (BRIDENTHAL e KONN2, 1977; CARROLL, 1976; FIGES, 1970; FISHER, 19795 GimBUTAS, 1982; HARTMAN e BANNER, 1974; JANEWAY, 1971, 1980; LERNER, 1979, 1986; THOMPSON, 1964) tém, & verdade, realizado esforgos nesta dirego. Mas hé, ainda, um longo cami- mho a percorrer, E é absolutamente impreseindivel que esta tra- jetoria seja descrita para que haja empoderamento, nfio de mu- heres, mas da categoria social por elas constituida. Hé uma ten- so entre a experiéncia histériea contemporfinea das mulheres e sua exclusio dos esquemas de pensamento, que permitem a ‘Genero, paulareado,viebncia 703

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