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"A UNICA IMPOSSIBILIDADE QUE 0 SOM EO SEN- 7TIDD COLOGA PARA GO LEITOR E A INDIFERENGA. O Livro E UM 005 ENSAIOS MAIS ERUDITOS, COM- PLEXOS © COMPLETOS SOBRE A HISTORIA DA ML SIDA EDITADOS NO BRASIL. MARIO DE ANDRADE — GARPEAUX, SE VIVOS, TIRARIAM G CHAPEU." Mario Cesar CarRvALHo, FoLHa bE S.PauLo "O s0M © © SENTIDO — MARAVILHOSDO, IMPERDI- VEL. DE UMA SABEDORIA E PROFUNDIDADE ES- PETACULAR. PARA QUEM GOSTA DE MUSICA — NUM SENTIDO QUE TOGA ATE A QUESTAO FILOSO- Fica —, & INDISPENSAVEL." José AmMérico Matta PessaNHa, Fa.xHa be S.Pauto "Mais DO QUE ESCREVER UMA NOVA HISTORIA DAS MUSICAS, 4 AMBIQAO DE WISNIK E FAZER UMA NOVA INTERPRETAGAD DA HISTORIA A PARTIR DAS MUSICAS. PARA ELE, AS MUSICAS SAD LIMA FORMA DE DECIFRAR O SENTIDO DO MUNDO." Carot GuBERNIKOFF, JorRNAL Do Brasit "PELA ABRANGENGIA DOS TEMAS E PELA SE- RIEDADE COM QUE AS QUESTOES SAD TRATADAS, ESTA OBRA JA NASCE NECESSARIA PARA AQUE- LES QUE SE INTERESSAM POR MUSICA E PELOS FATOS DA CULTURA." Jd. J. DE Moraes, JORNAL DA TARDE OO 50M € © SENTIDO — UM LIVRO DE MUITAS POSSIBI- UIDADES, UM LIVRG-NSTRUMENTO — ALGO GOMa uM ORGAO DE IGREUA COM MUITOS REGISTROS, OU UM GANIVETE SUl- GO COM INUMERAS LAMINAS. PODE-SE, POR EXEMPLO, LE- LO COMO UM BUIA — PERFEITAMENTE COMPREENSIVEL AD LEIGD GOMO UMA HISTORIA SEM NOMES OU DATAS, CONS- JANTEMENTE APOIADA EM DDIS ELEMENTOS BASICS! O RE- cuURSO A EXPERIENCIA AGUSTICA CONCRETA E A COMPARA GAD COM AS QUTRAS ESTRUTURAS PRODUTORAS DE SENTI- bo (A LINGUA, © MITO, A S@cIEDADE), POR OUTRO LADD, O mMUsiCD GU AQUELE QUE ESTA ACOSTUMADD A LER SO- RE MUSICA VAI SE DEPARAR COM UMA REDE DE QUESTOES (DAS Fisio-AcUisTICAS AS ESTRITAMENTE IDEQLOGICAS) QUE DIFICILMENTE SE ENCONTRARIAM, GOM TAMANHA AMPLITU DE E CAPACIDADE DE INTERCDNEXAG, NOS TEXTOS ESPE~ GIALizaoDs. : Mas © 5am © O SENTIDO TRAZ AINDA UM OUTRO RE- GisTRO (OU UMA OUTRA LAMINA): E TAMBEM UM ENSAID, COM UMA TESE A SER DEMONSTRADA. A TESE E QUE A EVOLUGAO DA LINGUAGEM MUSICAL DO DDIDENTE DESE- NHA UM GIRGULO, OU MELHOR, UM PERCURSO EM E! RAL QUE OSCILA ENTRE DUAS ALTERNATIVAS GOLOCADAS PE- LA PROPRIA NATUREZA DO SOM E DO NOSSO CORPO? A PULSAGAG (a BATIMENTO cARDIAcO) © A FREQUENCIA (A ONDA CEREBRAL). Uma GPOSIGAD QUE, ATRAVESSANDD DIA DONALMENTE TODAS AS PRATICAS (cANTO/OANGA) E TO" PAS AS TECNIDAS MUSICAIS (SERIALISMG/MINIMALISMG, PA a FICAR APENAS ENTRE AS MAIS RECENTES), REPOUSA MA NATUREZA ULTIMA 00 SOM, NG CORPO EM VIBRAGAO QUE & SIMULTANEAMENTE PULSAGAD E FREQUENCIA. DIANTE DE UMA ESTRUTURA TAD ABERTA © MULTIFA” erapa, 0 CD Que ACOMPANHA 0 LIVRO NAO PODERIA SE LIMIVAR AO PAPEL SEGUNDARIO DE MERD AUXILIAR DA LEI- TURA, TRATA-SE, NA VERDADE, DE UM DUPLO DO LIVRO, OF fl Auer Eao. UM PERCURSD DIDATICO, NA PRIK MINA PARTE, QUE DO SOM PURD CONDUZ PASSO A PASSO A® DIFERENTES FORMAS MUSIGAIS; E, NA SEBUNDA PAR- Te, A ANALISE DE LIM DOS MONUMENTOS DA LITERATURA HAHA PIAND (A Bonata arus 53 oe BEETHOVEN), QUE JEVELA, OGM MEIDS PURAMENTE SONOROS, TODAS AS SUAS RUTRATIPIGAGGES HISTORIGAS. UM MOVIMENTO CIRCULAR © unIrARIO gue DO RUIDO CHEGA A BEETHOVEN E DE Weeroven aeToRNA Ac RUIDS — UMA ESPECIE DE COM- WOBIGAD GIGLICA PROGRAMATIDA, DE POEMA SINFONICD ue TEM MOR TEMA TODA 4 HISTORIA A MUSICA. Lorenzo Mami ee Copyright © 1989 ¢ 1999 by José Miguel Wisnile Capa: Moema Cavaleanti Preparagio: Aungela Stepanovits Revisio: Maria Regina Machado ‘Ana Maria Barbosa dos tntcnacianas de Caslogaso na blag (") {Cara Beaseira do Lis, Brasil) jt Mig 14 ; Fe eerie | Jot Mie Wak, — Sto Tad ‘Companhia das Lewes, 1989. Aconpanha umn €D- 1300 978-85-7165.029 |. Masiea —Linguagem — Histris 2 Som 1 Tio 39-0935 eop-7810781.22 ® foxes para atop semi 1 Lingungem asia: Hina 781 2. Misa: Linguagem = Hina 781 3 Som musi + Tesi musical 782.22 | 2007 Todos os direitos desta ediglo reservados & EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandcira Paulista, 702, 6. 32 (04532-002 — Sio Paulo — s? | “Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 swwoeompanbiadasleras.com.bt AGRADECIMENTOS A Hélio Ziskind, cujo trabalho abriu e acrescentou muitas trilhas de som e de sentido a este livro. A Ricardo Breim, mestre de harmo- nias, ouvido e coragdo absolutos. A Mauricio Dottori, pela generosa competéncia com que ilustrou o texto. ‘A Willy Corréa de Oliveira, um brinde no meio do coro das con- tradigdes. A Edson da Cunha Swain, dentista transcendental, que afi- nou 0 teclado cosmobiolégico. Aos alunos que acompanharam 0 curso “O som ¢ 0 sentido”, pelo interesse, inquictagdes, contribuicdes. Aos promotores desse curso em varias cidades: Centro de Estudos da Escola da Vila (Sao Paulo), Edi- tora Brasiliense (S40 Paulo), Sui generis (Porto Alegre), SESC (Curiti- ba), Escola Cenario/NEP-FUNARTE (Rio de Janeiro). Em especial: Rosa Tayelber (Escola da Vila), Marcelo Levi e Flora Venancio (Brasiliense), Leoberto Brancher ¢ Jussara Quadros (Porto Alegre), Celise Helena Niero (Curitiba), Adauto Novaes (Rio). Aos mtisicos em Sao Paulo: NA Ozzetti, Vania Bastos, Suzana Sal- les, Eliete Negreiros, Teté Espindola e Cida Moreira, Arrigo Barnabé, Luiz Tatit, Carlos Renné, Itamar Assungao, Livio Tragtenberg, Péri- cles Cavalcanti, Hermelino Neder, Paulo Tatit, Walter Franco, Tom Zé, Arnaldo Antunes. A Fundagao de Amparo & Pesquisa do Estado de Sao Paulo, que financiou uma viagem para estudo do tema deste livro (1982), €& Fun- dagao Guggenheim, que me concedeu bolsa de pesquisa em 1984, da qual este livro resulta em parte. Aos editores da primeira edigao, Companhia das Letras ¢ Circulo do Livro, que encamparam em 1989 as dificuldades de produgao de 5 ——— << um livto-fita, Ao pessoal da equipe de produgio do Circulo do Livro, pela gentileza e atengio com que contribuit, naquela oportunidade, | para a solugao das dificuldades técnicas. ; / ‘A Marcia Maria Vinci de Moraes, pela mais-que-datilografia. ‘A Elisa Zein, José Antonio Pasta Jtiniot, Celia Eid, Marilene Fe- Linco, Joo Camillo Pena, Viriato Campelo, Z¢ Tatit, Paulo Neves, pe- — la ajuda, forca e inspiracio. ‘A Laura, musica silenciosa. Sao Paulo, junho de 19891 agosto de 1998 ‘José Miguel Wisnik Apresentagdo! vis’ sv aa ci ve ae dai 0 Wi ols ho Bu Pe an wes 9 I. Som, ruido e siléncio Fisica e merafisica do som 1. Sinal de onda, Som e siléncio . 2. Peviodicidade e pulso 3. Dunacoes e alturas .. 4, Complexidade da onda sonora .. 5. Fase e defisagem — Som-rutdo . 6. Coda . : Antropologia do ruido 1, Som e sacrificio . 2. Recalque e retorno do ruido .. B Cede eee cvernseee Introdugdo & mtisica Te Modal. sa iq oy ca se navees . 69 Composigio das escalas. ... 71 1. Osom ocednico ¢ os delfins de Apolo .71 2, A escala pentaibnica ¢ a economia politica . 73 3, O tempo circular ¢ a tbnica . 4, A excala diatonica e 0 problema do tritono . 81 5. Sociologia das alturas 83 ‘Territérios modais . . 89 1. Avabese indianos . es ang D, Pigwieds CbALABG senies scars 2 as x. v2 ws es an a wn 94 APRESENTAGAO 3. Modalismo e minimalismo .- +++ +++ “ exva net 96 Harmonia das esferas 99 1. A vitrola de Platéio : 99 2. O laboratoria das alturas . 105 IIT. Tonal 1 Este é um livro para miisicos ¢ nao-misicos. Ele fala do uso hu- 1. A grande diacronia oo. 10+ - 113 mano do som e da histéria desse uso. Mas nao é uma “historia da mi- 2 Harmasiides esferas em prigreso : vod LP sica” no seu sentido mais usual: histéria de estilos ¢ de autores, suas B, Opacto vvcrseanees 1135 biografias, idiossincrasias e particularidades composicionais. Nao é 4, Um paréntese fitustico Wa também uma histéria da musica tonal européia entendida como muisi- 5. Sonata dialética . 1 : ca universal. E, sim, um livro sobre vozes, siléncios, barulhos, acordes, 6, Texturas € parédia i tocatas ¢ fugas, em diferentes sociedades e tempos. Modos escalares 7, Um apéndice sobre 0 mito em contraponto com modos de produgao. Som dos anjos, dos astros, Ree in. dos deuses, dos deménios; miisica dos homens, das musas, das mé- , quinas. 1 7 _ Se é histéria, o livto poderia ser definido como o esbogo de uma 7 a81 hist6ria da linguagem musical, em seu contracanto com a sociedade e : . 184 com certas construgées mitol6gicas,filosoficas « literdtias, a “t89 ___ Oniicleo dessa hist6riaesté nos capitulos “Modal”, “Tonal” e “Se- 3 "194 rial”, precedidos de uma descrigao geral do fendmeno sonoro ¢ de seus 7 195 miodos de uso (“Som, ruido e silencio”), e seguidos de um comentétio e 702 ee miisicas io mold (‘Simultaneidades’). campo modal, tal como é entendido aqui, abrange coda a vasta Vv. Sirnuleaneidadl « wv 207 gama das tradig6es pré-modernas: as musicas dos paves aftcanos, dos Notas ..-- Ba 221 indianos, chineses, japoneses, arabes, indonésios, ind{genas das Améri- Discografia docb .. 253 cas, entre outras culturas. Ele inclui também a tradigao grega antiga Fidha eenica ... 255 (que s6 conhecemos na teoria) eo canto gregoriano, que se consti- Atrilha 257 tuem, ambos, em estégios modais da mtisica do Ocidente. Osomeosint 7 259 tonal abrange 0 arco histérico que vai do desenvolvimento da Roteiro do cD s polifonia medieval ao atonalismo (formacio, fastigio e dispersio do sistema tonal na musica chamada “erudita”, da Europa), ¢ tem seu mo- {indice remissivo +279 9 oT mento forte entre Bach e Wagner (ou Mahler), do barroco ao roman- tismo tardio, pasando pelo estilo classico, | © serial compreende as formas radicais da miisica de vanguarda no século XX, representadas por Schoenberg e Webern, ¢ pelos seus desdobramentos, que levam & miisica eletrdnica, formas essas que se- do comparadas, por contraste, com as tendéncias recentes & musica repetitiva, também chamada minimalista. i Habitualmente as historias da miisica sfo histérias da zona tonal, indo do harroco a Debussy, com uma breve incursio pelo dodecafo- rnismo e um final suspensivo sobre a miisica atual, em que o fio da his- teria se perde na completa impossibilidade de articular o passado ¢ © presente, Elas contém muiras vezes introdugdes sobre a musica modal, a qual permanece, por sua vez, completamente desligada da tradigao tonal européia e moderna, quando nao exética em sua estaticidade pré- moderna. Em Uma nova historia da misica (1950), Orto Maria Carpeaux resolveu o problema pelo avesso, assuimindo com todas as letras aquilo que considerou set uma condicao inevitével da nossa escura, a sua ovi- dentalidade, Ean outtas palavras, gravitamos, segundo Carpeaux, em torno da evolucdo tonal européia, ¢ nisso consistiria necessariamente pata nds a (histéria da) muisica. Convencido, como Spengler e"Toyn- hee, de que “a miisica, assim como a entendemos, é um fendmeno es- pecifico da civilizagéo ocidental”, de que “em nenhuma outra civiliza- cdo ocupa um compositor a posicdo central de Beethoven na historia da nossa civilizagao”, e de que “nenhuma outra civilizagao produziu fendmeno comparivel & polifonia de Bach”, Carpeaux omitiu cocren- temente 0 capitulo costumeito sobre miisicas modais “étnicas”, ¢ co- meca a sua histétia pelas melodias diatdnicas (¢ terminantemente oci- dentais) do canto gregoriano, porque elas séo a base sobre a qual se constitui o tonalismo. No entanto, fica cada vex mais claro, nos tltimos trinta ou qua- renta anos, que a musica “ocidental” (tal como ¢ referida por Otto Ma- ria Carpeaux como sendo “a” miisica) nao descreve mais a prépria “mic sica” ocidental. Alids, Carpeaux percebera esse ponto de ruptura, 20 terminar a sua histéria dizendo que a musica concreta ¢ a mtisica ele- tronica “nada tém nem poderao ter em comum com aquilo que a par- tir do século xin até 1950 se chamava miisica”. E conclui: “O assunto do presente livro esta, portanto, encerrado”. Modelar sob tantos aspec- 10 tos, o livro de Carpeaux € também um modelo do critério tonal “clas- sico” como modo de leitura da histéria, que se vé obrigada af a fechar- se sobre si mesma diante da verdadeira mutagdo que se operou nas mu sicas deste século. Assistimos hoje, a0 que tudo indica, ao fim do grande arco evolu- tivo da mtisica ocidental, que vem do cantochao & polifonia, pasando através do tonalismo e indo se dispersar no atonalismo, no serialismo ena mtisica eletrOnica. Esse arco evolutivo, que compreende o grande ciclo de uma miisica voltada para o parametro das alturas melédicas (em detrimento do pulso, dominante nas miisicas modais), é um trago singularizador da mtisica ocidental. E possivel que esse ciclo tenha se consumado na metade do século Xx e que estejamos vivendo o inter- mezzo de um grande deslocamento de parimetros, em que o pulso vol- taa ter uma atuacao decisiva (as mtisicas populares, o jazz, 0 rock ¢ 0 minimalismo dao sinais dessa diregao). Trata-se entéo de interpretar esse deslocamento, que pode ser lido nao apenas como uma espécie de “anomalia” final que perturba o bom andamento da tradi¢ao musical erudita, mas como o termo (ou 0 elo) de um processo que esté contido nela desde as suas origens. Entre os impasses declarados de algumas das linhas evolutivas da modernidade ¢ 0 impacto da repetigao nos meios de massa, fica im- possivel pensar a multiplicidadé das misicas contemporaneas a nao ser através de novos parametros Em primeiro lugar, hé um vazamento daqueles bolsées que sepa- rayam tradicionalmente o erudito ¢ o popular, além de que a mtisica ocidental redescobre as muisicas modais, com as quais se encontra em muitos pontos. Os balineses ¢ os pigmeus do Gabo s4o contempori- neos de Stockhausen. Os cantores populares da Sardenha, com suas impressionantes polifonias, assim como as mulheres builgaras (que man- tém vivo 0 canto imemorial da Tracia, patria de Orfeu e Dionisio), s40 focos brilhantes das sonoridades presentes no mundo. O funk ea mi- sica eletrénica convergem juntamente no sintetizador. O jazz ¢ especial- mente o rock se alimentam da oscilacao ciclica entre processos elabo- rados e processos elementares. A cangao faz, em momentos privilegiados, a ponte entre a vanguarda e os meios de massa. A questao é, pois, repensar os fundamentos da histéria dos sons tendo em conta essa sincronia, Ela exige que o pensamento, ele mes- mo, se veja investido de uma propriedade musical: a polifonia e a pos- Ly = sibilidade de aproximar linguagens aparentemente distantes ¢ incom- pativeis Este livro quer ser, ao mesmo tempo, didatico e ensafstico-intér- pretativo. Os termes técnicos si0 evitados na medida em que nie pos am set explicados e exemplificados (até onde isso € possivel). Algumas especificagSes importantes foram deixadas para as notas, 20 final do li- vro. Nao se pede do leitor uma formagio musical, mas 0 senso da es- cuta e uma disposi¢éo para pensar, como na misica, em varias claves «onde se podem combinar a percepgao das sonoridades, a interacio corporal ¢ também o pensamento poético, histérico-social, antropolé- gico ou outro. ‘As inteng6es didaticas, interpretativas e polifénicas do livro néo poderiam se realizar sem a presenga da prépria misica, acompanhan- do o percurso conceitual do livro através de um percurso sonoro, con- tido em Cb. Neste, o leitor-ouvinte encontrard uma montagem de exemplos, extraidos as vezes de gravacGes existentes (principalmente quando se trata das muisicas modais), mas produzidos quase sempre @ partir de sintetizadores ¢ seqitenciadores (quando se trata de mtisicas fonais ¢ seriais), Sem a intengao de reproduzir literalmente a versio original dessas pegas, no que diz respeito & sua instrumentagio ¢ e pressividade ‘naturais’, a versio seqiienciada permite tornar nitidas certas passagens, decompor seus elementos ¢ analis4-los concretamen- Te sem a mediagao excessiva — e abstrata para 0 leigo — da termino- logia técnica. Deve ficar claro, no entanto, que o acompanhamento sonoro nao foi pensado como linearmente paralelo ao desenvolvimento do livro, cmbora va incidindo sistematicamente sobre os pontos tratados ao lon- go dos seus diversos capitulos. Oprou-se, na preparagio da trilha, por tim roteiro que atendesse as necessidades do proprio material musical, 9 que daa ela uma certa autonomia em relagio ao livro, embora se mantenha integrada a ele. Para facilicar a coordenacio entre a leitura € t escuta, cada conceito, idéia ou obra presente no livro, que se encon- tre exemplificado no CD, vem marcado no texto com um asterisco”. ‘Assim, o leitor sabe que encontrar4 num lugar do CD (verificdvel no roteito presente no final deste livro) a versio audivel do que se di ali, ¢ pode ir procurando, através da escuta ¢ da leitura alternadas, 0 seu ponto de acerto entre 0 som € 0 sentido. © livro nao pretende enfim “waduzir” o “sentido” — intraduzivel 12 — da miisica, Ele pretende apenas se aproximar daquele limiar em que a musica fala a0 mesmo tempo ao horizonte da sociedade e ao vértice subjetivo de cada um, sem se deixar reduzir as ourras linguagens. Esse limiar esté fora e dentro da hist6ria. A musica ensaia e antecipa aque- las transformagdes que estdo se dando, que vio se dar, ou que deve- riam se dat, na sociedade. 13 Pi SOM, RUIDO E SILENCIO FISICA E METAFISICA DO SOM 1. SINAL DE ONDA. SOM E SILENCIO Sabemos que 0 som € onda, que os corpos vibram, que essa vibra- sao se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagagio on- dulatétia, que 0 nosso ouvido é capaz de capti-la e que o cérebro a in- terprera, dando-lhe configurac6es e sentidos. Representar 0 som como uma onda significa que ele ocorre no tempo sob a forma de uma periodicidade, ou seja, uma ocorréncia re- petida dentro de uma cetta fregiiéncia Veriodividade da onda sonora O som é 0 produto de uma seqtiéncia rapidissima (e geralmente imperceptivel) de impuldes e repousos, de impulsos (que se represen- tam pela ascensao da onda) e de guedas ciclicas desses impulsos, segui- das de sua reiteragio. A onda sonora, vista como um mictocosmo, con- tém sempre a partida e a contrapartida do movimento, num campo praticamente sincrénico (ja que 0 ataque ¢ 0 refluxo sucessivos da on- da sao a propria densificagdo de um certo padrao do movimento, que se dé a ouvir através das camadas de at). Nao a matéria do ar que ca- minha levando o som, mas sim um sinal de movimento que passa atra- I7 modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, 0 vés da matéria, seu desenho. cu O som é, assim, 0 movimento em sua complementaridade, ins crita na sua forma oscilatéria. Essa forma permite a muitas sales pensé-lo como modelo de uma esséncia universal que seria regida pelo movimento permanente. O circulo do Tao, por aor ren o impeto yange 0 repouso yin, € um recorte da mesma onda que cos mamos tomar, analogicamente, como tepresentagao do som, O Tao do som . Em outros termos (agora mais digitais do que analégicos), pode- se dizer que a onda sonora é formada de um sinal que se apresenta ¢ sde dentro, ou desde sempre, a apre- vo registra essa oscilagao como pressGes.) Sem este lapso, © som Nao hé som sem pausa. O tim- som é presenga ¢ auséncia, ¢ es- de uma auséncia que pontua de sentagao do sinal. (O timpano audi uma série de compresses ¢ descom nao pode durar, nem sequer comecar. pano auditivo entraria em espasmo, O aaa oe td, por menos que isso aparega, permeado de siléncio. mais siléncios quantos sons no som, ¢ por isso se pode dizer ne Jai Cage, que nenbum som teme o silencio que o extingue’ Mas também, a maneira reversa, hé sempre som dentro do siléncio: mesmo quando go otivimos os barulhos do mundo, fechados numa cabine ‘ prova de som, ouvimos o barulhismo do nosso préprio corpo produror/recep- tor de ruidos (refiro-me & experiéncia de John Cage, que se tomnou a 18 seu modo um marco na mtisica contemporanea, ¢ que diz que, isolados experimentalmente de todo rufdo externo, escutamos no minimo 0 som grave da nossa pulsacao sanguinea e o agudo do nosso sistema nervoso). O mundo se apresenta suficientemente espagado (quanto mais nos aproximamos de suas texturas m{nimas) para estar sempre vazado de vazios, ¢ concreto de sobra para nunca deixar de provocar barulho. 2. PERIODICIDADE E PULSO A onda sonora é um sinal oscilante ¢ recorrente, que retorna pot perfodos (repetindo certos padres no tempo). Isto quer dizer que, no caso do som, um sinal nunca esté sé: ele é a marca de uma propaga- G40, irradiagao de freqiiéncia. Para dizer isso, podemos usar uma metafora corporal: a onda so- nora obedece a um puso, ela segue o principio da pulsagéo. Bem a pro- pésito, é fundamental pensar aqui nessa espécie de correspondencia entre as escalas sonoras ¢ as cscalas corporais com as quais medimos o tempo. Porque 0 complexo corpo/mente é um medidor freqiiencial de freqiiéncias. Toda a nossa relacZo com os universos sonoros ¢ a mtisica passa por certos padroes de pulsagao somaticos ¢ psiquicos, com os quais jogamos ao ler 0 tempo e 0 som. No nivel somatico, temos principalmente 0 pulso sanguineo e cer- tas disposigdes musculares (que se relacionam sobretudo com o andar e suas velocidades), além da respiragao. A terminologia tradicional as- socia o ritmo & categoria do andamento, que tem sua medida média no andante, sua forma mais lenta no largo, e as indicagdes mais répi- das associadas ja 4 corrida afetiva do allegro ¢ do vivace (os andamen- tos se incluem num gradiente de disposigdes fisicas ¢ psicolégicas). As- sim, também, um teérico do século Xvim sugeria que a unidade pratica do ritmo musical, 0 padrao regular de todos os andamentos, seria “o pulso de uma pessoa de bom humor, fogosa ¢ leve, & tarde” (!).? Os indianos usam 0 batimento do coragao ou 0 piscar do olho co- mo referéncia, esse ultimo ja préximo de uma medida mais abstrara, como aquela que certos tedricos chamam “duragao de presenga” (a 19 maior unidade de tempo que conseguimos contar mentalmente sent vubdividi-la). Essa seria uma unidade mental, relativamente varidvel de pessoa para pessoa e qu, como lembram bem os defensores da mt sica in natura, 6 mais importante do que o tempo mecanizado do me- tronomo ¢ a cronometria do segundo. © fandamento dessa unidade de presenca estaria possivelmente em certas freqiiéncias cerebrais, especialmente no ritmo alfa (sobre qual voltarei a falar, por causa de sua importincia para 0 caso das on das sonoras), que alguns consideram como 0 rife (ou, mais exata- mente, o piuso) cerebral que serve de base & interpretagso dos demais ritmos. (Os sons sfo emissGes pulsantes, que so por sua ver inverpretadas segundo os pulsos corporais, sométicos ¢ psiquicos. As mtisicas se fa- vem nesse ligamento em que diferentes freqiiéncias se combinamee se interpretam porque se interpenetram. 3, DURAGOES E ALTURAS Mas é preciso dizer como se apresenta 0 pulso na miisica. Assim como 0 corpo admite ritmos sométicos (a exemplo do sanguined) ¢ Titmos psiquicos (como as ondas cerebrais), que operam em diferentes fuixas de onda, as freqiiéncias sonoras se apresentam basicamente ¢M duas grandes dimensoes: as duragies* eas altura” (duragées ritmicas, alturas melédico-harménicas). © bater de um tambor ¢ antes de mais nada um pulso ritmico. le emite freqiiéncias que percebemos como recortes de tempo» onde s variacbes. Mas se as freqiiéncias ritmi- inscteve suas recorréncias ¢ suai rumento capaz de aceleré-las muito, a cas foram tocadas por um inst partir de cerca de der ciclos por segundo, elas véo mudando de cariter « passam a um estado de granulagéo veloz, que salta de repente para tim outro patamar, o da altura melddicd. A. partir de um cerco limiar de freqiiéncia (em torno de quinze ciclos por segundo, mas estabili- zando-se s6 em cem ¢ disparando em direg4o a0 agudo até a faixa aut- “tivel de cerca de 15 mil hertz), 0 ritmo “vira” melodia’. A aveleragito ct scelerugito ritmien progressiva e suat conversao em aleunas . . er os 0 monscouvila 86 percebe sinais discretos, separados ¢ portan micos, até o umbral aproxi : > imado de dez hertz (cic © a p tz (ciclos por segun- i ere deze oma de quinze hertz o som entra numa faixa if e ida entre a duragio e a altura i , que se define depois, nos regi ini ent luraca a , Nos regis- * ehsbeies mais rdpidos, através da sensacao de petmanéncia cs cializada do som melédice a 10 (quando a periodicidad 3 pectin periodicidade das vibragdes ‘a om que 0 escutemos com a identi a a identidade de um vel uum mi, um ki, um si). A dif itati setpten 5 5 . A diferenga quantitativa produz, ) , portanto, num certo ponto de inflexiio, ur itati 7 7 i , um salto qualitative: mud: a ja o parametro da es- cuta. Passamos a ouvir, ent i <7 entdo, toda a cambiante das distings ans Pasa das distingdes que vao jos graves aos agudos, 0 ca f , 0 campo movente de tessi mo € chamado 0 especti alee ro das alturas) no qual i poe shenad qual as notas das melodias lanca. Nesse campo, pel u , pelo mesmo enlace corporal que ja comentei a propésito do andaf i reitcomee andainento rftmico P , 0 som grave (ci on f Fa ‘omo 0 er prio nome sugere) tende a ser associado ao peso da matéria, com 3 A 5 5 , t bjetos ane proces pela lei da gravidade, ¢ que emitem vi ragdes m: igdo & ligei : ; pease ee rn ligeireza leye ¢ lépida do agudo (0 gk i como no francés /éger, esta associado A leveza). art a : be bari ce altura, os sons agudos vao progressivamente sain- esl epeeg a sua afinagio soa distorcida, ¢ eles vo intensidade até desaparece - ; r para nés, embora veis (por um cio, por exemplo). Seam ese 7 No suis é preciso lembrar que, em musica, ritmo ¢ melodia, — e alturas se apresentam ao mesmo tempo, um nivel depen ni i ; F oe vio nece sarlamente do outro, um funcionando como 0 portador ro. E impossivel a um som se apresentar sem durar, mini: mente ja, assi éi f sonora se ea! que seja, assim como € impossivel que uma duragao sonora se ente concretamente sem st i e encontrar numa faixa qual de tura, por mais indefinida e préxi wen préxima do ruido que essa al & e q altura possa ser. pensamos as duragoes ¢ as alturas como varidveis de uma mesma 21 ee seqiiéncia de progressio vibratéria, em que o ritmo, a partir de certo limiar, se toma melodia-harmonia (e sendo a melodia-harmonia uma outra ordem de manifestagio de relagbes ritmicas, escutadas agora es- pacialmente como alturas), poderemos perceber que essas das dimen- Ses constitutivas da musica dialogam muito mais do que se costuma imaginar, A pedagogia musical costuma dar arencéo nenbuma a essa passagem, a essa correspondéncia entre as diferentes dimensoes vibra- torias, e perde ai todo um horizonte de insights possiveis extremamen- te estimulantes para fazer ¢ pensar misicas. O prego que se paga €@ cristalizacio enrijecida da idéia de risma e melodia como coisas separa- das, perdendo-se a dinamica temporal (e 0s fluxos) que fazem com que tum nivel se traduza (com todas as suas diferencas e correspondéncias) no outro." ‘A ttadutibilidade subjacente entre dutag6es ¢ alturas ¢ estimulada por um outro dado extremamente intrigante que envolve a relagéo'en- tre as duas: aquele ponto de inflexio que as separa, entre dez € quinze vibragdes por segundo, no limiar oscilante entre as figuras rftmicas ¢ a vltura melédica, coincide muito aproximadamente com a faixa vibra- téria do chamado ritmo alfa. O ritmo alfe(situado entre oito ¢ treze hertz) é uma freqiiéncia cerebral que, ao que tudo indica, funciona pa- ra a nossa percep¢a0 como uma onda portadora de ondas, uma espécie de fundo condutor (desaparece no sono profundo ¢ € recoberto por putios ritmos quando a nossa atengio esta solicitada, mas é particular- srente marcado no cletroencefalograma — quando os olhos estio fe- chados mas em vigilia, ou quando olhamos sem fixar o olha). Segundo Alain Daniélou, em sua Sémantique musicale, “o ritmo alfa patece ser de fato a base que determina o valor do tempo relative ¢ conseqtientemente todas as relagoes do ser vivo com 0 seu ambien- ve". Segundo essa interpretacao, ele seria o fator constant ¢ subjacen- te, padrio vibratério que “condiciona todas as pereepgoes”, funcio- nando como um sinal de sincronizagdo que comandaria © andamento da nossa sensagio do tempo. (Quando drvores em série na beira da es- trada, por exemplo, em sincronia com a velocidade do carro, entram nessa faixa de freqiiéncia, causam forte incerferéncia sobre a atencao do motorista, podendo provocar acidente.) ‘A misica teria, no limiar decisivo entre duragio e altura, ali onde “a pulsagio deixa de ser percebida como um elemento rftmico para aparecer como cor sonora de uma escala melédica’, aquela freqiiéncia 22 vibrator que & digamos assim, a nossa medida no turbilhao das vi bragdes césmicas. © ritmo alfa, pulsasaosituada no coragao da musica {coon linha divisbiia'e ponte de cefecEnciaimplldeaencrearordem das duragdes ea das altura), setia 0 nosso dicpaido tempol, 0 ao deainatte'ds tihino humane Seneomcodavarcscslaatiateatsant, verso, ¢ que determinaria e m parte o alcance do que nos é percept ¢ imperceptivel.’ eae res 4. COMPLEXIDADE DA ONDA SONORA , Quando dizemos que o sinal sonoro corresponde a uma onda que {azemos representar por uma sendide, estamos procedendo a um ie dugao sionplificadora, a uma abstracio que se faz necessivia para a al sentagao mais elementar de um fundamento. Isso por eine concreto corresponde na realidade nao a uma onda pars paerad feixe de ondas, uma superposicao intrincada de firequencias de o i primento desigual. Os sinais sonoros nao sto na verdade sdmples esl: dimensionais, mas complexos ¢ sobrepostos, =< 0 Onda sinusoidal - Quase nunca (praticamente s6 em condigdes laboratorais, a par cfetivamente 0 produto de uma ondulagao pura e simples ( a se din wna Ghida ataagidal) Ussomiengelieal deseo tipo 4 ce pros diz erisintetealorenespareata comelesisad Silane de ye flitta transversal Se-o,mundo fosseainuaoidal, umvgrende Gonjuneo deonidas puleando'na'mesma freqUthila, iiss haveria miisica, Toda miisica “estd cheta de inferno e céu”, pulsos estaveis inst vei, ressondncisse defasagens, curva equinas, De modo geral, 0 son é um feixe de ondas, um complexo de ondas, uma imbricacao dl aio desig, etn atta telativo, ; a ‘A onda é 3 sonora é complexa, e se compée de freqiiéncias que se su- er pO i i perpOem e se interferem. Essa complexidade é antes de mais nada a 23 do som conereto, o som real, que é sempre, em alguma medida, las puro, Sao 0s feixes de onda mais densos ou mais esgurcados, sept centrados no grave ou no agudo, sio em suma os componenses d2 sua complexidade (produzida pelo objeto que 0 ge00) se dip spat aquelasingularidade colortsica que chamamos sind, Cma mesma nota (ou seja, uma mesnna altura) produzida por wma viola um clare neve ou um xilofone soa completamente diferente, gnapt bvonbing cao de comprimentos de ondas que so ressoadas pelo seip de cal instrumento, Essa ressonancia esté ligada a uma proprieda j lo me que é de vibrar dentro de si, além da freqiténcia fundamental eee cebemos como altura (a freqiiéncia mais lenta ¢ grave), spoleaete freqiéneias mais ripidas ¢ agudas, que nao ouvimos como sieuen iso Jada mas como um corpo timbristico, muitas vers caracterizado ¢o- mo a cordo som, Esse feixe freqiiencial embutido no font fon tro de ondas que o compde, pode ser, como através de umn prismay subdividido nos sons da chamada série harmdnica*. A série harmonica natural, inerente & propria ordem do fendmeno actis é a tinica “escala” ; ent ficiais das culturas, combina- ico. Todas Jo construgoes arti tico. Todas as outras séo construg nee <5es fabricadas pelos homens, dialogando, de alguma forma, c¢ a que permanece como referencia modelar subjacente, mergulharemos no entendimento desse do som, e cujas reftagdes dao as suas série harmonica, seu paradigma. (Mais adiante, fendmeno, que ¢ o prisma secreto cores harménicas.) Quanto ao timbre: Duas formas hipotétcas de timbre 24 a nota que escutamos como altura melédica corresponde, em cada ca- so, 4 mesma velocidade vibratéria fundamental. Mas cada um dos ins- trumentos vibra também em outras freqiiéncias mais répidas (os cha- mados sons harménicos), diferentes em cada um, freqiiéncias que nao escutamos como altura, mas cujo produto reconhecemos como tim- bre. O proprio corpo singular de cada som se faz, portanto, de uma multiplicidade de periodos conjugados.* Assi como o timbre colore os sons, existe ainda uma varidvel que contribui para matizé-los ¢ diferencié-los de outro modo: é a in- tensidade dada pela maior ou menor amplitude da onda sonora. A amplitude da onda: intensidade A segunda onda apresenta a mesma freqiiéncia (altura), mas uma amplitude maior (que resulta em intensidade: a primeira soa piano, a segunda forte ou fortissimo). A intensidade é uma informacio sobre um certo grau de energia da fonte sonora. Sua conotagao primeira, isto é, a sua semAntica basi- ca, esta ligada justamente a estados de excitacéo energética, sempre dentro da margem de ambivaléncia (ow multivaléncia) em que se ins- creve todo ¢ qualquer sentido em misica. O som que decresce em in- tensidade pode remeter tanto & fraqueza e a debilitagao, que teria 0 si- léncio como morte, ou A extrema sutileza do extremamente vivo (podendo sugerir justamente 0 ponto de colamento e descolamento desses sentidos, o ponto diferencial entre a vida ¢ a morte, af potencia- lizados). O crescendo e o fortissimo podem evocar, por sua vez, um jorro de explosao protefnica e vital emanando da fonte, ou a explosao mortifera do rufdo como destruigao, como desmanche de informacoes vitais, Falta ou excesso de intensidade (embora a rigor s6 possam ser avaliados no contexto formal em que aparecem, denunciando a sua es- 25 tratégia espectfica) sao indices diferenciais de forga (potencidmeto a medidas humanas diante dos movimentos do mundo). As intensida tecem todas as gradacies dos erescendos ¢ diminuindos fanless ae sentadas em progressio, que se somam 3s melodias) ou rodo o quads importantissimo, das pontuagbes: destaques, forts ou plies a a acentuagdes minimais que sao decisivas para o resultado das pages (as intensidades séo um elemento auxiliar das drags na contour zo do suingue, do balanco, da levada, da curvatura do fluxo, do co tinuo no descontinuo, do descontinuo no continuo). , oa "Através das alturas e duragées, timbres e intensidades, repetidos c/ou variados, 0 som se diferencia ilimitadamente. Essas citesengae i dao na conjugagio dos parimetros e no interior de cada um Gasee (es produzem as figuras titmicas; as altura, os movimentos melGcico- hharménicos; os timbres, a multiplicagao coloristica das vozes; as inte sidades, a3 quiinas € curvas de forga na sua emissio). 7 Os pulsos rftmicos so complexos e se traduzem em tempos € ser eratempos; os pulsos mel6dico-harménicos s4o complexos ¢ projet 2 estabilidades e instabilidades harmOnicas, Tempo ¢ contratempo, co sondncia ¢ dissonancia so modos como interpretamos dererminadas combinagdes de certas propriedades basicas do som, que pene explicar mais adiante. Os sons entram em didlogo ¢ exzsinenl same Thang ediferengas na medida cm que péem em jogo @ complexidade da onda sonora. Eo didlogo dessas complexidades que engendra a misicas. As muisicas s6 s4o posstveis por causa das correspondéncias¢ desigualdades no interior dos pulsos. Todos os parimerros sio modo de uma mesma coisa: vibragbes, séries intervaladas de atritos, ruidos respirantes que projetam ondas. 5, FASE E DEFASAGEM — SOM-RUIDO ‘A natureza oferece dois grandes modos de experiéncia da onda complexa que faz 0 som: freqiiéncias regulares, censinines ents como aquelas que produzem o som afinado, com aleura cnaieet quénciasircegulares, inconstantes,instveis, como aquelas que produ- zem barulhos, manchas, rabiscos sonoros, rufdos. Camplin coal trios euja sobreposigo tende & estabilidade, porque ion os dura periodicidade interna, e complexos ondulatérios cuja sobreposico te 26 de A instabilidade, porque marcados por periodos itregulares, nao coin- cidentes, descontinuos. No n{vel ritmico, a batida do coragao tende a constancia periddica, & continuidade do pulso; um espirro ou um tro- vao, 4 descontinuidade ruidosa. Um som constante, com altura definida, se opde a toda sorte de barulhos percutidos provocados pelo choque dos objetos. Um som afi- nado pulsa através de um periodo reconhecivel, uma constancia fre- qiiencial. Um ruido é uma mancha em que nao distinguimos freqiién- cia constante, uma oscilagdo que nos soa desordenada. O som do mar: duragées oscilantes entre a pulsacao ¢ a inconstin- cia, num movimento ilimitado; alturas em todas as freqiiéncias, das mais graves as mais agudas, formando o que se chama um rufdo branco? Ao fazer misica, as culturas trabalharao nessa faixa em que som € ruido se opdem e se misturam. Descreve-se a musica originariamente como a propria extragao do som ordenado e periédico do meio turbu- lento dos rufdos, Cantar em conjunto, achar os intervalos musicais que falem como linguagem, afinar as vozes significa entrar em acordo profundo e nao visivel sobre a intimidade da matéria, produzindo ti- tualmente, contra todo o rufdo do mundo, um som constante (um tinico som musical afinado diminui 0 grau de incerteza no universo, porque insemina nele um principio de ordem).* Sem saber, as pessoas produzem uma constante invisfvel e numericamente tendente ao exa- to: um KA central se localiza em torno de 440 vibracoes por segundo. As vores entram em unissono, pulsando 0 tom melédico, intensida- des, timbres, ressondncias harménicas. Essa afinagéo do pulso ¢ da al- tura definida soa como metéfora subliminar do salto biolégico em que a vida sai do mar. (Um coro cantando uma tinica nota, contra o rufdo branco das ondas, contém, digamos assim, uma espécie de redugio su- miria de todas as possibilidades da miisica, oscilando entre a organiza- cao ea entropia, a ordem e 0 caos.) Nos rituais que constituem as priticas da mtisica modal invoca-se 0 universo para que seja cosmos ¢ nfo-caos. Mas, de todo modo, os sons afinados pela cultura, que fazem a mtisica, estarao sempre dialo- gando com o ruido, a instabilidade, a dissondncia. Alids, uma das gra- gas da mtisica ¢ justamente essa: juntar, num tecido muito fino ¢ in- tincado, padrdes de recorréncia ¢ constincia com acidentes que os desequilibram e instabilizam. Sendo sucessiva ¢ simultanea (os sons acontecem um depois do outro, mas também juntos), a muisica é ca- 27 ee puz de ritmara repetigio ea diferenca, 0 mesmo ¢ 0 diverso, 0 continuo co descontinuo. Desiguais e pulsantes, os sons nos remetem no seu val- ivo e linear mas também a um outro tempo’ au- e-vem ao tempo suces 1 outro. i sente, virtual, espital, circular ou informe, ¢ em todo caso nao cronol6 ico, que sugere um contraponto entre o tempo da consciéncia ¢ © wzo-rempo do inconsciente. Mexendo nessas dimens6es, a musica nao refere nem nomeia coisas visiveis, como a linguagem verbal faz, mas aponta com uma forga toda sua para o nio-verbalizével; atravessa cer- convedes defensivas que a consciéncia ea linguagem cristalizada opoem 4 sua agdo e toca em pontos de ligagao eferivos do mental ¢ do corpo- ral, do intelectual e do afetivo. Por isso mesmo € capaz de provocar as mnais apaixonadas adesbes e as mais violentas recusas. : Hé mais essa peculiaridade que interessa ao entendimento dos sentidos culturais do som: ele é um objeto diferenciado entre os obje- tos concretos que povoam o nosso imagindrio porque, por mais he tte possa ser, € invisivel e impalpavel. O senso comum identifica a vaterialidade dos corpos fisicos pela vis4o e pelo tato. Estamos acostu- nados a baseat a realidade nesses sentidos. A miisica, sendo uma or- dem que se constr6i de sons, em perpétus aparicao desaparisao, = capa a esfera tangivel e se presta a idencificagio com uma ourra ordem ddo real: isso faz com que se tenha atribuido a ela, nas mais diferentes ulturas, as préprias propriedades do espirito. © som tem um poder mediador, hermético: € 0 elo comunicante do mundo material com o mundo espiricual e invisivel. O seu valor de uso magico reside exata- mente nisto: 0s sons organizados nos informam sobre a estrucura ocul- ta da matéria no que ela tem de animado. (Nao hé como negar que hé nisso tim modo de conhecimento e de sondagem de camadas sutis da realidade.) Assim, os instrumentos musicais s4o vistos como on mmigicos,Ftichizados,cratados como talismas, ¢a musica ¢ cutivada com o maior cuidado (nfo se pode tocar qualquer musica a qualquer hora e de qualquer jeito). (Volrarei a falar longamente no cuidado ri: tual que cerca a pritica musical ¢ em seu carder sacrificial a propésito do mundo modal.) : (© som é um objeto subjetivo, que esté dentro ¢ fora, néo pode ser tocado diretamente, mas nos toca com uma enorme preciso,” As suas proptiedades ditas dinamogénicas tornam-se, assim, demonfacas (o seu poder, invasivo ¢ &s vezes incontrolével, ¢ envolvente, apaixo~ nante ¢ aterrorizante). Entre os objetos fisicas, 0 som € 0 que mais se 28 ptesta a criagio de metafisicas. As mais diferentes concepgdes do mun- do, do cosmos, que pensam harmonia entre o visivel ¢ o invisivel, en- tre 0 que se apresenta ¢ 0 que permanece oculto, se constituem ¢ se or ganizam através da misica, Mas, se a musica € um modelo sobre 0 qual se constituem metafi- sicas (¢, na tradigio ocidental, basta lembrar o cardter profundamente musical da concepgao pitagérica e plardnica do cosmo), nao deixa de ser metifora e metonimia do mundo fisico, enquanto universo vibra- trio onde, a cada novo limiar, a energia se mostra de uma outra for- ma. Pode-se pensar na seqiiéncia de uma ritmica geral em que passa- mos nfo s6 das duragées As alturas, mas daf, em freqiiéncias cada vez mais rapidas entrando pelo campo eletromagnético, as ondas de radio, de radar, as ondas luminosas visfveis e invisiveis (do infravermelho ao espectro das cores, seguindo depois pelo ultravioleta, e dat aos raios X, aos raios gama, aos raios cosmicos). Sao fenémenos de outra ordem, dos quais a muisica se aproxima, a0 ofetecer 0 modelo de um universo concebido como pura energia, cuja densidade é dada pela interpretacio do movimento. A estructura subatOmica da matéria também pode fazer com que esta seja concebi- da como uma enorme e poderosa densificacdo do movimento. A mt- sica traduz para a nossa escala sensorial, através das vibracdes percepti- veis e organizaveis das camadas de at, e contando com a ilusio do ouvido, mensagens sutis sobre a intimidade animica da matéria. E di- zendo intimidade animica da matéria, dizemos também a espirituali- dade da matéria. A miisica encarna uma espécie de infra-estrutura rit- mica dos fendmenos (de toda ordem). O ritmo esta na base de todas as percepcdes, pontuadas sempre por um azague, um modo de entrada e saida, um fluxo de tensao/distensao, de carga ¢ descarga. O feto cres- ce no titero ao som do coragio da mie, ¢ as sensacbes ritmicas de ten- so € repouso, de contragao ¢ distensao vém a ser, antes de qualquer objeto, 0 traco de inscricao das percepgbes. (Por isso pode-se também dizer que a misica, linguagem nao referencial, que nao designa obje- tos, nao tem a capacidade de provocar medo, mas sim a de provocar angtistia, ligada, segundo Freud, a um estado de expectagao indeter- minada, que se dé na auséncia do objeto.)"* ‘A musica € capaz. de distender ¢ contrair, de expandir e suspen- der, € condensar e deslocar aqueles acentos que acompanham todas as 29 percepcdes. Existe nela uma gesticulagio fantasmédtica, que est como que modelando objetos interiores. Isso da a cla um grande poder de atuacao sobre 0 corpo ¢ aamen- te, sobre a conscigncia e 0 inconsciente, numa espécie de eficicia sim- bélica."' Os hindus a véem (eo hinduismo ¢ talvez a mais musical das religides) como algo da ordem da materialidade sutil, quase titil, mo- delagem modeladora, toque em regiGes corporais psiquicas, psicosso- maticas. © vazio e a plenitude, dos quais 0 som emerge € nos quais mergulha, so 0 préprio duplo, o espelho, de uma ordem cosmica re- ida pela danga da ctiagto e da destruigéo.” Na mésica, como no sexo, a génese da vida e da morte deixa-se conhecer, por extrema magnani- midade dos deuses, como prazet, Quando a crianga ainda nfo aprendeu a falar, mas j4 percebeu que a linguagem significa, a voz da mae, com suas melodias ¢ seus toques, € pura mtisica, ou é aquilo que depois continuaremos para sempre a ouvir na mtisica: uma linguagem em que se percebe o horizonte de um sentido que no entanto nao se discrimina em signos isolados, mas que s6 se intui como uma globalidade em perpétuo recuo, nao verbal, in- traduzivel, mas, 4 sua maneira, transparente.” ‘A misica vivida enquanto hébitar, tenda que queremos armar ou tedoma em que precisamos ficar, canta em surdina ou com estridéncia a voz da mae, envelope sonoro que foi uma vez (por todas) imprescin- divel para a crianga que se constitu como algo para si, como self 6. CODA ‘A misica, em sua histéria, é uma longa conversa entre o som (enquan- to recorréncia periddica, producao de constancia) e 0 ruido (enquanto perturbacéo relativa da estabilidade, superposicio de pulsos comple- x05, itracionais, defasados). Som e ruido nao se opdem absolutamente ipa natureza: traca-se de um continuum, uma passagem gradativa que as culturas irdo administrar, definindo no interior de cada uma qual a margem de separacéo entre as duas categotias (a miisica contempord- nea é ralvez aquela em que se tornou mais frdgil e indecidivel o limiar dessa distingao). | Enquanto experiéncia do mundo em seu caréter intrinsecamente ondulatdrio, o som projeta o limiar do sentido na medida da sua esta- 30 bilidade e instabilidade telativas. Esse sentido é vazado de historicidade — nfo hd nenhuma medida absoluta para o grau de estabilidade ¢ ins- tabilidade do som, que é sempre producao ¢ interpretacao das culturas (uma permanente selegao dos materiais visando 0 estabelecimento de uma economia de som e ruido atravessa a histéria das muisicas: certos intervalos, certos ritmos, certos timbres adotados aqui podem ser re- cusados ali ou, proibidos antes, podem ser fundamentais depois). A instdncia decisiva para essa codificagao serd a constituigao de escalas musicais ou de sistemas escalares (assunto que comegard a ser tratado no segundo capitulo deste livro, “Modal”). © modo de concebet e pra- ticar as esealas musicais, nas mais diferentes culturas, € decisivo para a administragdo da relagao entre som ¢ ruido, ¢ define o cardter mais es- tavel ou instével dos materiais sonoros. O som se produz negando ter- minantemente certos ru(dos e adotando outros, pata introduzir insta- bilidades relativas: tempos e contratempos, ténicas e dominantes, consonancias ¢ dissonancias, Vale adiantat, jé, que a musica contem- poranea é aquela que se defronta com a admissio de todos os mate- riais sonoros posstveis: som/rufdo e silencio, pulso ¢ nao-pulso (a ne- cessidade histérica dessa admissao generalizada inscreveu nela, como problema permanente ¢ assumido, um grau muito maior de improba- bilidade na medigdo ou na configuragao do limiar diferencial entre a ordem ea nao-ordem). Hé no ar um suspense, apocaliptico, sobre essa dificuldade gene- ralizada para instaurar diferenciagao, sintoma de um processo de desa- gregacao geral do sentido, que alguns véem como estégio terminal da sociedade de massas. Tal situac&o pode ser interpretada também como episddio de um grande deslocamento de parimetros, que estaria se dando como processo de mutagio. Este livro pretende aprofundar 0 exame dessa pergunta, Vamos discutir essa histéria através de um certo mapeamento his- t6rico-cultural, que passa pela musica modal, pela musica tonal e pela miisica pés-tonal (que tem no serialismo ¢ no minimalismo os seus ca- sos-limites), sobre 0 fundo constante das miisicas populates e das mui- sicas de ma ANTROPOLOGIA DO RUIDO 1, SOM E SACRIFICIO © som peribdico opse-se a0 rudo, formado de feixes de defasa- sens “arilumicas” ¢ instaveis, Como ja se disse, no entanto, o grau de fuido que se ouve num som varia conforme o coatexto. Um incervalo de cerca maior (como o que hé entre as noras dé e mi) é dissonante “harante steulos, no contexto da primeira polifonia medieval, ¢ worna- se plena consonnela na musica ronal. Um grito pode ser um som hs bitual no patio de uma escola e um escindalo na sala de aula ow num nancatto de musica clisica, Uma balada “brega” pode ser embaladora hum baile popular ¢ chocante ou exética numa festa buiguesa (onde pode se roma frson chique/brega). Tocar um piano desafinado pode ser uma experiéncia interessante no caso de um ragtime ¢ inviével em se ratando de uma sonata de Mozart. Um cluster (acorde formado pe- Ip aglomerado de noras juntas, que um pianista produ batendo 0 pul- «a. mfo ou todo o brago no teclado) pode cauisar espanto num reci- wor andictonal, sem deixar de ser tedioso e rotinizado num concerto de vanguarda académica. Um show de rock pode ser tm pesadelo para os Guvidos do pai e da mie e, no entanto, funcionat para o filho como canglo de ninat no mundo do ruido generalizado. Tiste uma ecologia do som que remete a uma antropologia do ruldo, e que eu vou rentar percorret flando dos mundes modal, tonal is-tonal ces aan isso € til combinar 0 conceito habitual de ruido sonore com oda teoria da informacio, derivado deste, que entende ruido como » cefertncia na comunicagao (ruido torna-se assim uma categoria mais 32 relacional que natural). O rufdo ¢ aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou desmancha a mensagem, ou desloca 0 cédigo. A microfonia é rufdo, nao s6 porque fere o ouvido, por ser um som penetrante, hiperagudo, agressivo ¢ “estourado” na intensidade, mas porque est interferindo no canal e bloqueando a mensagem. Essa definigéo de ruido como desordenagao interferente ganha um cardter mais complexo em se tratando de arte, em que se torna um elemento virtualmente criativo, desorganizador de mensagens/c6digos cristaliza- dos e provocador de novas linguagens. O radio é uma boa metéfora para que se entendam as relagdes en- tre som, rufdo e siléncio, em seus muitos niveis de ocorréncia. Como no radio, o siléncio é um espagador que permite que um sinal entre no canal. O ru{do é uma interferéncia sobre esse sinal (¢ esse canal): mais de um sinal (ou mais de um pulso) atuam sobre a faixa, dispu- tando-a (0 ruido é a mistura de faixas ¢ de estagdes). O som € um tra- go entre o siléncio eo rufdo (nesse limiar acontecem as miisicas). (Em Radio music, Cage pos em cena essa relacao fazendo ouvir aleatoria~ mente siléncios, estatica, mtisicas ¢ falas misturadas.) O jogo entre som e ruido constitui a misica. O som do mundo é rufdo, 0 mundo se apresenta para nés a todo momento através de fre- qiiéncias irregulares ¢ cadticas com as quais a misica trabalha para ex- trair-lhes uma ordenagao (ordenagao que contém também margens de instabilidade, com certos padrées sonoros interferindo sobre outros). Se vocé tem um barulho percutido qualquer ¢ ele comeca a se re- petir ¢ a mostrar uma certa periodicidade, abre-se um horizonte de ex- pectativa ea virtualidade de uma ordem subjacente ao pulso sonoro em suas regularidades ¢ irregularidades. Do mesmo modo, se vocé est falando e de repente produz ¢ sustenta um som de altura definida, re- mete a fala para um outro lugar, o paradigma das alturas continuas, nao codificado pela lingua, com toda a estranheza que isso implica ( pode-se saltar entao do patamar da fala para o do canto, ou habitar 0 espaco intercalar entre ambos). Um tinico som afinado, cantado em unissono por um grupo hu- mano, tem o poder magico de evocar uma fundagao césmica: insemi- na-se coletivamente, no meio dos ruidos do mundo, um princfpio or- denador. Sobre uma freqiiéncia invis{vel, trava-se um acordo, antes de qualquer acorde, que projeta nao sé 0 fundamento de um cosmos so- noro, mas também do universo social. As sociedades existem na medi- 33 da em que possam fazer mtisica, ou seja, travar um acorde minimo so- bre a constituicao de uma ordem entre as violéncias que possam atin- gi-las do exterior ¢ as violéncias que as dividem a partir do sen inte- riot, Assim, a musica se oferece uradicionalmente como-o mais intenso modelo utdpico da sociedade harmonizada e/ou, a0 mesmo tempo, a mais bem acabada representacao ideoldgica (simulagao interessada) de que ela nao tem conflitos. Pois bem, no mundo modal, isto é, nas sociedades pré-capitalis- tas, englobando todas as tradi¢6es orientais (chinesa, japonesa, india- na, drabe, balinesa e tantas outras), ocidentais (a musica grega antiga, 0 canto gregoriano e as miisicas dos povos da Europa), todos os povos selyagens da Africa, América ¢ Oceania, a musica foi vivida como uma experiéncia do sagrado, justamente porque nela se trava, a cada vez, a luta césmica e caética entre 0 som ¢ o ruido. Essa luta, que se torna também uma troca de dons entre a vida € a morte, os deuses e 05 ho- mens, é vivida como rito sacrificial. Assim como o sacrificio de uma vitima (0 bode expiatério, que os gregos chamavam pharmakés) quer canalizar a violéncia destruidora, ritualizada, para sua superagdo sim- bélica, o som € 0 bode expiatério que a musica sacrifica, convertendo 0 rufdo mortffero em pulso ordenado e harménico. Assim como 0 pharmakos (a vitima sacrificial) tinha para os gregos 0 valor ambivalen- te do veneno ¢ do remédio (a palavra é da mesma raiz de “farmAcia”, firmaco, droga), o som tem a ambivaléncia de produzir ordem ¢ de- sordem, vida e morte (0 ru/do € destruidor, invasivo, cerrivel, ameaga- dor e dele se extraem harmonias balsamicas, exaltantes, extaticas). A matisica primitiva trava antes de mais nada uma relagéo com o corpo indiviso da terra: seus fluxos germinais intensos sao inscritos ruidosa- mente, dolorosamente, no corpo dos homens ¢ das mulheres, e dessa inscrigao se extrai o canto sonoro, 0 vapor barato da miisica (ouca-se a fusio de profunda dor e alegria césmicas que ha nas maravilhosas tex- turas polifénicas da misica dos pigmeus do Gabio). Nas estruturas despéticas, onde 0 corpo da terra ¢ do som ¢ apropriado pelo poder mandante, 0 som passa a ser privilégio do centro despético, e as mar- gens ¢ as contestacdes tendem a se tornar ruidos, cacéfatos sociais a se- rem expurgados. A mtisica comega a dar corpo sutil aos conflitos so- ciais. Vou voltar a esse ponto mais adiante. Por ora, assinalo que na muisica modal esses conflitos sio marcados pelas intensidades da eco- 34 homia sacrificial de base, onde 0 rufdo esté sempre no limite de inva- dir o som." A mtisica modal* é a ruidosa, brilhante e intensa ritualizagao da tama simbélica em que a muisica esté investida de um poder (mégico, terapéutico ¢ destrutivo) que faz com que a sua pritica seja cercada de interdigGes ¢ cuidados rituais. Os mitos que falam da mtisica estao cen- trados no simbolo sacrificial, assim como os instrumentos mais primi- tivos trazem a sua marca vistvel: as flauitas sao feitas de ossos, as cordas de intestinos, tambores sao feitos de pele, as trompas ¢ as cornetas de chifres. Todos os instrumentos sao, na sua origem, testemunhos san- grentos da vida e da morte, O animal ¢ sacrificado para que se produ- 2a instrumento, assim como o ruido é sacrificado pata que seja con- vertido em som, para que possa sobrevir 0 som (a violéncia sacrificial é a violencia canalizada para a produgao de uma ordem simbélica que a sublima). Num setmo, Santo Agostinho compara Cristo a um tambor, pe- le esticada na cruz, corpo sacrificado como insttumento para que a miisica (ou ruido) do mundo se torne a cantilena da Graca, holocaus- to necessério para que soem as aleluias. Marius Schneider, que cita a comparago de Santo Agostinho, diz também que a propria palavra “aleluia’, que vem de jubilare, esté associada na sua origem & imitagao onomatopaica do canto das aves de rapina."* Os anjos sao terriveis: nas suas vozes aleluidticas esplende necessariamente a historia da cruelda- de. (A forga da cangao Carcard, de Joao do Vale, esté ligada igualmen- tea fusto de juibilo cruel que se encontra nessa aleluia nordestina,) O mundo € barulho ¢ ¢ siléncio, A miisica extrai som do rufdo hum sacrificio cruento, para poder articular o barulho eo siléncio do mundo, Pois articular significa também sactificar, romper 0 continuum da matureza, que é ao mesmo tempo silencio ruidoso (como o mas, que é, nas suas ondulagées ¢ no seu rumor branco, freqiiéncia difusa de to- das as freqtiéncias). Fundar um sentido de ordenagao do som, produ- 2ir um contexto de pulsagées articuladas, produzir a sociedade signifi- ca atentar contra 0 universo, recortar 0 que é uno, tornar discreto 0 que € continuo (ao mesmo tempo em que, nessa operagio, a musica é © que melhor nos devolve, por via avessa, a experiéncia da continuida- de ondulatoria ¢ pulsante no descontinuo da cultura, estabelecendo o citcuito sacrificial em que se trocam dons entre os homens e os deuses, 0s vivos e os mortos, o harmonioso ¢ o informe) 35 H4 um mito arecuna (tribo do norte do Brasil e da Guiana, co- lhido por Koch-Grunherg e analisado por Lévi-Strauss em O cru ¢ 0 cozide) que formula essa questo com a maior beleza possivel. Trata-se do mito da “origem do veneno de pesca” (0 timbé, uma raiz que tem 0 poder de narcotizar os peixes, ¢ que tematiza ali as imbricagées poli- valentes da passagem da natureza & cultura)."” Num certo ponto desse mito, 0 atco-fris é uma serpente d’4gua que é morta pelos pissaros, cortada em pedagos ¢ a sua pele multicolorida repartida entre os ani- mais. Conforme a coloragao do fragmento recebido por cada um dos biichos, ele ganha o som de seu grito particular e a corde seu pélo ou da sua plumagem. O nticleo desse epissdio é 0 sacrificio como origem do som e da cor na escala zooldgica (0 som e a cor percebidos nitidamente pelo pensamento selvagem como gradagbes crométicas de um mesmo prin- cipio). A serpente arco-iris € 0 continuum dos matizes, a escala os in- tervalos mfnimos ¢ indiscerntveis, como é a ordem das alruras em mi- sica, antes de ser recortada pelas escalas produzidas pelas culturas, ¢ como €o préprio atco-fris, do qual s6 uma conviegio muito etnocén- trica pode afirmar que tem sete cores (a leitura das cores do arco-ftis varia enormemente entre as culturas, assim como as escalas musicais). O sacrificio da serpente (que era um deslizar cromatico de nuances sem divisio) ¢ o seu espedacamento em porgGes discretas provocard produriré a ordem coloristica e sonora que particulariza as espécies vi- vas (cuja profusa organizagio, ricamente anotada pelo mito com gran- de acuidade etnozooldgica, j4 é obra da cultura). ‘A garca branca pegou seu pedago e cantou: “a4”, grito que ¢ seu ain- da hoje. © maguati (Ciconia maguari) fer 0 mesmo e langou o seu grito feio: “4(o) — 4(0)”. O socd (Ardea brasiliensis) colocou seu pedago sobre a cabeca e sobre as asas (onde se encontram as plumas coloridas) e can- tou: “koré — kord — kor6”. O martim-pescador (Alcedo sp.) pds seu pe- daco sobre a cabeca e sobre o peito onde as plumas se tornaram verme- thas, ¢ cantou: “sé — tx — txé — txé — txé”. Depois foi a vez do tucano que cobriu seu peito e sua barriga (onde as penas so brancas ¢ verme- Ihas). Ele disse: “kidn — hé, kién — hé — hé”, Um pedago de pele ficou preso no seu bico, que se tornou amarelo. Entéo veio 0 mutum (Cra sp.); ele pds seu pedaco sobre a garganta e cantou: “hm — hm ~hm ~ hm’, e um retalho de pele que ficou fez.o seu nariz. amarelo. Em segui- da veio o cujubim (Penelope sp.) cujo pedaco fez brancas a cabega, 0 pei- 36 to eas asas, € que cantou: “kerr”, como, a partir dai, toda manhi passaro “acha sua flauta bonita ea guarda”."* . Cada E assim segue a narrativa mitica, fazendo cada animal (a arara, 0 papagaio, o jacu, 0 rouxinol, o tapir, a capivara, 0 veado, a cutia, 0 cai- titu, 0 macaco), numa longa série, encontrar as suas cores € a sua “flau- ta’. O nascimento da musica, na tragédia sacrificial, ¢ brilho e beleza se erguendo sobre o siléncio ¢ a dor. Com a decomposigéo do espectro das possibilidades sonoras e crométicas ¢ sua refragao sobre 0 mundo animal surgem as unidades distintivas de cada som, portanto 0 subdi- vidido espectro de suas significagées plumirias. Marius Schneider (0 estudioso mais informado sobre o lastro mi- tico do mundo modal, que ele estudou nas mais diferentes tradig6es), afirma que todas as cosmogonias tem um fundamento musical, “Toda vez que a génese do mundo é descrita com a preciso desejada, um ele- mento actistico intervém no momento decisivo da acao.”"” Em outros termos, sempre que a histéria do mundo fosse bem contada, ela reve- laria a natureza essencialmente musical deste. A mtisica aparece af co- mo o modo da presenga do ser, que tem sua sede privilegiada na vos, geradora, no limite, de uma proferigao analégica do simbolo, ligada ao centro, ao cfrculo, ao mito/rito € d encanta como modo de arti- culacao entre a palavra e a musica. (£ contra essa “metafisica da pre- senga’, imposta pelo primado da voz ¢ pela precedéncia do som sobre a letra, mais a concepgio de sujeito uno que a acompanha, que Derti da opde um discurso desconstrutor calcado no primado do trago dife- rencial ¢ da escritura; segundo ele a metafisica advém de um mal-enten- dido logofonocéntrico, como aquele que estaria na base do platonismo. Contra Derrida, Daniel Charles afirma que, se bem entendida, a vor, ao contrario de uma presenga a si do fonocentrismo, faz tessoar 0 pas- sado do ser — sua desaparicso — ¢ seu devir incessante ¢ sempre pro- blemético: “a voz veicula a ‘quarta dimensao do tempo’, aquela que engloba ¢ rege as trés outtas; ela nao deixa o tempo ressoar sendo por intermiténcias”. Essa seria uma longa discussio, que nao temos como fazer aqui.) Vamos acompanhar 0 percurso de Schneider pelas mais diversas mirologias (indianas, arabes, chinesas, afticanas, esquimés) e ver até aonde nos leva uma concepgéo do mundo como investidura sacrificial do som. Na origem do universo, o deus se apresenta, se cria ou cria ou- tro deus ou cria o mundo, a partir do som, Um jacaré batendo na bar- 37 riga com a propria cauda, como num tambor, num mito egipcio. O deus profere o mundo através do sopro ou do trovao, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta, ou da oralidade em todas as suas possibili- dades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, solugo, vomito). “A fonte de onde emana o mundo é sempre uma fonte actistica.” A voz criadora surge como um som que vem do nada, que aflora do vazio: “© abismo primordial, a garganta aberta, a caverna cantante [...] a fen- da na rocha dos Upanichades ou o Tao dos antigos chineses, de onde 0 mundo emana ‘como uma drvore’, sao as imagens do espago vazio ou do nio-ser, donde se eleva 0 sopro apenas perceptivel do criador. Esse som satdo do Vazio é 0 produto de um pensamento que faz vibrar 0 Nada e, ao se propagar, cria o espaco. E um mondlogo em que © corpo sonoro constitui a primeira manifestacao perceptivel do Invisivel”. O abismo primordial é pois “um fundo de ressonancia e o som que dele emana deve ser considerado como a primeira forga criadora, personifi- cada na maior parte das mitologias por deuses-cantores”." No hinduismo, que é, como jé disse, uma religiao intrinsecamen- te musical, toda constituida em torno do poder da voz ¢ da relevancia da respiracéo (onde 0 proprio nome do deus, Brama, significa origina- riamente forca mégica, palavra sagrada, hino, ¢ onde todas as ocorrén- cias miticas e eventos divinos séo declaradamente recitag6es cantadas com carter sacrificial, mantra), atribui-se & proferigao da silaba sagra- da OUM (ou AUM), 0 poder de ressoar a génese do mundo. O sopro sagrado de Atman (que consiste no proprio deus) “é simbolizado por tum passaro cuja cauda corresponde ao som da consoante , enquanto a vogal a constitui a asa direita ¢ 0 wa asa esquerda”. A mtisica ocupa tum lugar entre as trevas e a luminosidade da aurora, entre o silencio € a fala, o lugar do sonho, “entre a obscuridade da vida inconsciente e a clareza das representagdes intelectuais”. Freqiientemente o deus que profere o mundo através do som € um deus hermafrodita, que contém em si 0 principio ativo ¢ o passi- vo, 0 solar eo lunar, a impulsdo instantinea e o repouso. O perfil on- dulatério do som ¢ erigido ou reconhecido como o proprio “principio concertante das forcas da natureza”. Num contexto ritual e mitico como este, a mtisica é um espelho de ressonancia césmica, que compreende todo 0 universo sob a dimen- sao — demasiado humana — da voz. O canto nutre os deuses que can- tam e que dao vida 20 mundo (os deuses, por sua vez, sao seres mortos 22 que vivem da proferic&o do canto dos homens). Mas 0 homem que canta profundamente, ¢ realiza interiormente o sacrificio, acede a0 mundo divino na medida em que se investe da energia plena do ser, ganhando como homem-cantor a imortalidade dos deuses-cantores. Esta passagem ¢ impressionante: Entio ele sente sua forga se elevar ao longo da coluna vertebral. Seu so- pro sonoro sobe por seus canais intetiores, dilata seus pulmdes e faz vi- brar seus ossos. Assim transformado em ressoador césmico, o homem se (in)veste como Atvore que fala. Essa forga sonora tomar assento na sua pele ou no seu esqueleto, se 0 sacrificio tiver sido total. Entao ele nao sera mais que um instrumento entre as maos de um deus, ¢ seus 03505, ainda impregnados de sta forca sonora materializada, constituirao amu- letos preciosos entre as maos de seus filhos. Sua parce imortal (0 som fundamental de sua alma) se encaminhard para a Via-Lactea. Mas logo que cla tenha conseguido passar 0 ponto perigoso situado a oriente, en- tre Orion, Gémeos ¢ Touro, onde os astrélogos situam a laringe do mun- do, ela se incorporaré ao corago dos mortos e participard de seu canto na caverna de luz que langa 0 ovo solar € 0 fixa sobre 0 chifte do touro primaveril. A laringe do mundo é a caverna de luz, a garganta aberta dos deuses que, a cada primavera, renova a acio do abismo primordial abrindo suas portas ao sol que sobe como uma drvore, um ovo resplan- decente ou um cranio cantange. E é esse crinio que enuncia novamente ‘0 mundo através de uma mtisica, cujos raios ressoam primeiro como a silaba OM [...] Ora, para emitir esse sombrio canto dos comegos, desti- nado a se clareat cada ver. mais, foi preciso que os labios do cackiver vivo se arredondassem para formar 0 cfrculo O, sfmbolo da saida da caverna de ressonancia de onde s: sol a cada primavera para renovar a subs- tincia sonora de tudo o que existe”. No ritual sacrificial, corpo é um aparelho de som poderosissimo (pen- se-se num lama tibetano cantando ao mesmo tempo a nota fundamen- tal e seus harménicos: uma voz que profere acordes explicitos, harmo- nias, uma voz que penetra na dimensio subjacente da ressonancia). A forca da profericdo do verbo musical, no contexto inicidtico, é imor- tal, irredutivel, som que impregna a pedra e que se impregna de sua solidez, Fstd indicado af, nese quadro mitico, que as muisicas modais so miisicas que procuram o som puro sabendo que ele esta sempre viva- mente permeado de ruido. Os deuses sao ruidosos. A natureza sonora 39 do mundo, que nfo perde nunca o pé do pulso, se faz. dessa mescla em que mora o niicleo do sactificio, isto é, da ritualidade do som. Como se ver no capitulo dedicado ao modal, essa musica é vol- tada para a pulsacio rftmica; nela, as alturas melédicas estio quase sempre a servigo do ritmo, criando pulsagdes complexas e uma expe- riéncia do tempo vivido como descontinuidade continua, como repe- tigdo permanente do diferente. (Por isso mesmo elas apresentam esse carter recorrente, que nos parece estatico, mas é bem mais extitico, hipnético, experiéncia de um tempo circular do qual é dificil sair, de- pois que se entra nele, porque é sem fim.) A miisica modal participa de uma espécie de respiragao do universo, ou entao da produgao de um tempo coletivo, social, que € um tempo virtual, uma espécie de suspensio do tempo, retornando sobre si mesmo. Sao basicamente mui- sicas do pulso, do ritmo, da produgao de uma outra ordem de dura- fo, subordinada a prioridades rituais. Pois bem: essas muisicas no po- deriam deixar de ter a presenga muito forte das percussées (tambores, guizos, gongos, pandeiros), que so os testemunhos mais préximos, entre todas as familias de instrumentos, do mundo do rufdo. E é tam- bém um mundo de timbres: instrumentos que so vozes e vozes que sao instrumentos (vozes-tambores, vozes-citaras, vozes-flautas, vores- guizos, vozes-goz0). Falsetes, jodls (aquele ataque de garganta que ca- racteriza 0 canto tirolés € que est em certas mtisicas africanas), vozeios, vocalises, sussurros, sotaques, timbres.” Em muitas tradigées, especialmente entre arabes ¢ indianos, os sons so cantados como notas (que se localizam num ponto preciso da altura melédica), mas também “glissados”, deslizados em torno dessas referéncias “fixas” através de nuances melismticas*, quartos de tom ow menos, variagées minimais de altura e timbre que criam, em torno de cada som discreto € articulado, uma espécie de danga irreverente que teverencia 0 continuo ruidoso. © canto obedece as medidas ¢ as distingées escalares, aos intervalos regulares e descontinuos, mas tece em cada ponto uma espécie de rumoroso comentario sobre 0 continuo em que se inscreve cada som (em torno de cada som gravita um cam- po de forca que, além de diretamente ritmico — 0 que a musica de- senvolve fartamente —, é timbristico ¢ micromelédico). O rufdo cerca 0 som como uma aura. O som desponta alegre ¢ dolorosamente em meio ao ruido. O social se inscreve sacrificialmente (como uma tatuagem sonora) no corpo, e essa inscrigao ruidosa, que 40 nega o rufdo, funda e mantém o som, Som e rufdo esto presentes na musica modal em ziguezague. 2. RECALQUE E RETORNO DO RUIDO As historias da miisica ocidental ¢ moderna costumam tomar co- mo sua referencia primeira, seu ponto de partida reconhectvel, © canto gtegoriano (j4 que nao se tem senao sinais indiretos da miisica cultiva- da na Grécia, ja que as prdprias origens do cantochao sao mal conhe- cidas ¢ que as outras culturas permanecem como referéncias exdticas). O canto gregoriano, que inaugura uma tradi¢do que conhecemos bem, aquela que vai dar na mtisica bartoca e cléssico-romantica dos séculos XVH, XVIII € XIX, € uma musica que primou por evitar sistematicamen- te os instrumentos acompanhantes, nao s6 os percussivos, como tam- bém 0 colorido vocal dos multiplos timbres. E uma mtisica para ser cantada, em prinefpio, por vozes masculinas em unissono, & capela, na caixa de ressonancia da igreja, sem acompanhamento instrumental. A histéria da adocio € da rejeigao da mtisica pela Igreja, durante toda a Idade Média, é cheia de idas e voltas. Por um lado, ha momentos de rigorismo em que a prépria miisica € concebida, roda, como ruido dia- bolico a ser evitado (quando se percebe, até com razdo, que é impossi- vel purgé-la de componentes ruidosos: a muisica abre sempre o flanco da falha, da assimetria, do excesso, da incompletude e do desejo). Em outros momentos so os barulhos animados'das misicas populares, suas percussdes, cantos ¢ dancas, que nunca se calaram na histéria hu- mana, que entram em alguma medida nas igtejas ¢ chegam a se mistu- rar com os cantos litirgicos em sugestivas polifonias (veja-se por exem- plo 0 caso dos motejos, cantos a varis vozes misturando elementos sactos ¢ profanos). Essa histéria participa da luta entre 0 carnaval (que entroniza no calendario cristéo aqueles ritos pagios que liberam 0 rui- do ea corporalidade) e a quaresma (com seu som silencioso e ascético). Em todo caso, € apesar da complexidade da histéria concreta, a nossa tradigéo musical tem seu marco inicial, sintomaticamente, na- quela “zerada” pelo canto littirgico catélico, no plano das manifesta Ges ritmicas pulsantes e das diferenciagoes timbristicas, Teremos oca- ‘do de ensaiar interpretagGes sobre esse fato histérico, que terd relagdes 41 possiveis, além do anti-sensualismo clerical, com uma decorréncia da mmiisica das esferas pitagérico-platonica. Interessa assinalar duas coisas. Primeiro que, ao abolir instfumen- tos ritmico-percussives, pondo toda a sua ritmica puramente frésica a servico da pronunciagao melodizada do texto littirgico, 0 canto grego- riano acaba por desviar a musica modal do dominio do pulso para o predominio das alturas (0 cantochio consiste num circunstanciado passeio pelas escalas melédicas, percorridas em seus degraus). Com is- so, inaugurou de certo modo o ciclo da mtisica ocidental moderna, preparando o campo da miisica tonal, que iré explorar amplamente, ja com envergadura instrumental e com outras complexidades discurs vas, as possibilidades de desenvolvimento de uma organizagio do cam- po das alturas em que a melodia vem para o primeiro plano (e onde a instdncia ritmica nao teré mais a autonomia e a centralidade que tinha antes, servindo agora de suporte para as melodias harmonizadas); Em segundo lugar, a musica que evita 0 pulso ¢ 0 colorido dos timbres é uma muisica que evita 0 rufdo, que quer filtrar todo 0 rufdo, como se fosse possivel projetar uma ordem sonora completamente li- vre da ameaca da violencia mortifera que esté na origem do som (ja dissemos que hd, em Santo Agostinho, a consciéncia do cardter pro- blemdtico desse designio). A liturgia medieval se esforga por recalear os deménios da musica que moram, antes de mais nada, nos ritmos dancantes ¢ nos timbres miltiplos, concebidos aqui como ruido, além daquele intervala* melddico-harm6nico evitado a todo custo, e sobre 6 qual falaremos mais adiante: 0 #rétono*, Recalcar os deménios da mti- sica equivale de certa forma, no plano sonoro, a cobrir (ow rasurat) © sexo das estatuas. ‘A mtisica tonal* moderna, especialmente a miisica consagrada co- mo “cldssica’, € uma musica que evita também o ruido, que esté nela tecalcado ou sublimado. A musica sinfénica ou cameristica evita a per~ cussio (limitando-a A pontuagio localizada de pratos ou timpanos, que so, por sinal, esses iltimos, percussfo afinada, rufdo tendendo a altu- ra definida). ‘A inviolabilidade da partitura escrita, 0 horror ao erro, 0 uso ex- clusivo de instrumentos melédicos afinados, o siléncio exigido a pla- téia, tudo faz ouvir a musica erudita tradicional como representagao do drama sonoro das alturas melddico-harménicas no interior de uma camara de siléncio de onde o rufdo estaria idealmente exclufdo (0 tea- 4? wo de concerto burgués veio a ser essa camara de representacao). A re- presentagio depende da possibilidade de encenar um universo de sen- tido dentro de uma moldura vistvel, uma caixa de verossimilhanga que tem que ser, no caso da muisica, separada da plaréia pagante ¢ margea- da de silencio. A entrada (franca) do ruido nesse concerto criaria um continuo entre a cena sonora e o mundo externo, que ameagaria a re- presentagao ¢ faria periclitar 0 cosmo socialmente localizado em que ela se pratica (0 mundo burgués), onde se encena, através do movi- mento recorrente de tensdo e repouso, articulado pelas cadéncias tonais, a admissao de conflito com a condigdo de ser harmonicamente resolvido.” O percurso que estou fazendo aponta, evidentemente, para um lugar previsivel: a volta em massa do ruido na misica do século xx. Como pensé-la, e como pensar os impasses que se apresentaram & m- sica contemporanea no quadro dessa histéria mais ampla? Parece-me que sé € possfvel resgatar a idéia de um sentido (enquanto orientagio) desse processo se pensarmos em ciclos (de tempo, de culturas, de paré- metros estruturais) maiores do que aqueles que nos tém sido ofereci- dos pela historia da misica (que geralmente pega o bonde andando a certa altura da mtisica medieval européia, ¢ nao questiona os funda- mentos desse corte, que é segregativo e tende cada vez mais rapida- mente a ser ultrapassado pelos acontecimentos simultaneos das miisi- cas contemporaneas). Os tiltinios desdobramentos da mtisica pedem que as mtisicas modais voltem a ser pensadas no quadro do contempo- rneo. Acho também que essa perspectiva antropoldgica poderé facili- rar uma visio sociolégica mais adequada da situacao da musica indus- trializada. A partir do inicio do século xx opera-se uma grande reviravolta nesse campo sonoro filtrado de ruidos, porque barulhos de todo tipo passam a ser concebidos como integrantes efetivos da linguagem mu- sical. A primeira coisa a dizer sobre isso ¢ que os ruidos detonam uma liberagao generalizada de materiais sonoros. D4-se uma explosio de ruidos na musica de Suravinski, Schoenberg, Satie, Varése (para citar alguns nomes decisivos). E de se pensar na relagao entre o desencadea- mento desses eventos na mtisica ¢ o contexto da Primeira Guerra Mun- dial (da qual, diz Walter Benjamin, os soldados volearam pela primeira ver, para perplexidade das familias, mudos, sem histérias para contar: 0 potencial acumulado das armas de guerra, sua capacidade mortifera e ruidosa, muito amplificada, estoura a dimensio individual do espago 43 imagindtio, ¢ 0 silencia).°” A ecologia sonora do mundo moderno esta- r4 alterada, e rufdo e siléncio entrarao com inevitavel violéncia no tem- plo leigo do som, a redoma da representagao tonal em que seconsti- tufa o concerto. (O fim da Segunda Guerra Mundial aprofundaré esse quadro: a bomba atémica anuncia uma forma definitiva de maximali- zacao do ruido ¢ do siléncio — depois dela a historia humana ganha um carter péstero, ou, se quisermos, pés-moderno.) Mas, voltando ao contexto moderno, a invasao do ruido tem dois niveis diferenciados de manifestagao: a propria textura interna & lin- guagem musical, ¢ a eclosao espetacular de ruidismos externos, como indices do habitat urbano-industrial, a metrépole chocante. No primeiro caso, 0 rufdo atua exatamente como interferéncia sobre 0 cédigo ¢ as mensagens tonais (que vinham se tensionando na segunda metade do século XIX, mas que decolam agora para um efeito cascata de alterages harménicas, com “dissonancia” generalizada, alte- rages ritmicas, desmantelamento da métrica do compasso, alteragdes timbristicas e de texturas, uso de agregagbes de rufdos, barulhos con- cretos e conseqiiente esgargamento, rarefacao e dispersao das linhas melddicas) Stravinski, na Sagragéo da primavera (1913), introduziu agrega- dos de acordes, quase-clusters que funcionam como ruido, impulsées ruidosas, percussio operando numa métrica irregular que volta a ques- tionar a linha perdida na tradigao do Ocidente: a base produtiva do pulso, (A matéria sonora liberada por Stravinski pode ser pensada hoje como processo primdrio daquilo que se tornaré depois a base do rock, da qual ele faz uma espécie de prefiguragao descontinua ¢ assimétrica.) A Sagragao é heavy-metal de luxo, ¢ vem a set o primeiro episédio exemplar de que rufdo detona ruido (rompendo a margem de siléncio que separa, no concerto, o som afinado, ¢ harmonicamente resolvido, dos ruidos crescentes do mundo). A Sagraeao, estrutura sonora provo- cando polémica ¢ pancadaria na platéia, rufdo gerando ruido, desloca o lugar do siléncio, que sai da moldura e vai para o fundo, onde se re- cusa a responder & pergunta sobre a natureza do cédigo musical (de- pois da dispersao do cédigo tonal), A introdugao do ruido atua ambi- valentemente como acréscimo de carga informativa das mensagens e acelerador entrépico dos cédigos (o que realimenta entropicamente as mensagens). Est4 inaugurado o mundo moderno, com tudo aquilo que ele j4 contém de crise de proliferagao pos-moderna.”* 44 Schoenberg, por sua vez, no Pierrot lunaire (1912), usa o canto no limite da fala, como Sprechgesang, “cantofalado”, 0 que significa trazer para o dominio melédico toda a gama de ruidismos dos timbres da voz e das entoacées.” Mario de Andrade, num manusctito da déca- da de 20, nunca publicado por ele, percebeu com enorme acuidade 0 espantoso deslocamento do campo de produgéo da miisica que estava embutido nessa nova interferéncia do ru/do, via timbres, sobre a eco- nomia do som. “Si na verdade a mtisica nunca foi tio musical como agora, depois que abandonou a vacuidade cémoda do som abstrato ¢ impés como elemento primério de sua manifestacao o timbre, é in- contestével também que certas combinagoes de harmonias, certas con- cepgses de escalas melédicas, a participacio freqiiente do rufdo isola- do ou em combinagao com os timbres sonoros, faz com que, ao lado da musica de agora, aparegam freqiientissimamente manifestagbes que rompem todas as experiéncias, evolugio e conceito estético que vieram se desenvolvendo apurando por vinte € cinco séculos musicais.”® Essa verdadeira mutacio captada por Mario (embora nao forme o campo em que se desenvolveu seu pensamento) langaria, segundo ele mesmo, a musica para um novo limiar de cruzamento contraditério entre o mais moderno e o mais primitivo: “Com efeito na admiravel ctiagao de Schoenberg a voz nao é nem fala nem canto é... € a ‘sprech- gesang’. Dessa experiencia resultou [...] num poder de experiéncias de todo género, vocais, instrumentais, harménicas, ritmicas, sinfonicas, conjugagao de sons e de ruidos, etc. etc. de que resultou a criaggo duma por assim dizer nova arte a que, por falta de outro termo, chamei de quase-muisica, Arte esta que pela sua primitividade ainda nao é musica exatamente como certas manifestagées de clas africanas, amerindios (sic) € da Oceania, E arte ao mesmo tempo que pelo seu refinamento, sendo uma derivagao e tiltima conseqiiéncia das experiéncias e evolu- sao progressiva musical de pelo menos vinte e cinco séculos, desde a Grécia até Debussy, j4 nao é mais intrinsecamente musica. Resumin- do: essa arte nova, essa quasi-muisica do presente, si pelo seu primiti- vismo inda nao é muisica, pelo seu refinamento jé nao & miisica mais” Esse texto ¢ daqueles que hoje fazem ainda mais sentido do que quando foram escritos: 0 encurvamento do caminho da mtisica tonal, que se ultrapassa em direcao a uma musica pés-tonal e antitonal (co- mo ser o dodecafonismo ¢ o serialismo), ao mesmo tempo em que evoca de maneira diferida as miisicas modais primitivas é o proprio né 45 € 0 micleo das simultaneidades contempordineas. A quase-miisica 6 essa Grea limiar que est aquém ¢ além da mdsiea (tonal) e que oscila entre modos opostos de se organizar, entre o discurso do tipo progressive ¢ © puro ritornello, uma mtisica que nao se decide ainda entre 0 pés-to- nal (de uma linguagem feita de polifonias descontinuas de ruidos sem retorno) € o eterno retorno modal (que também nos parece inacessi- vel). Essa dicotomia serd encenada ao longo do século pela contraposi- G40 entre o serialismo* (que dominou de certo modo a cena da primei- ra metade) ¢ 0 minimalismo* (que marca a segunda, voltando a focalizar a questéo da mtisica, com certo apoio nas musicas modais, mais na pulsagao do que na organizacéo das alturas). A coluna ausente que su- porta esses dois processos opostos ¢ John Cage. Retomando, pode-se dizer que a miisica dodecafonica e serial, que se dirige para uma organizagio pés-tonal e antitonal dos sons ¢ que é um desdobramento localizado do cantofalado expressionista ¢ atonal do Pierrot lunaire, fax parte também, por menos que possa parecer, dessa reversio getal que abate a musica das alturas (a miisica concen- trada na organizagao de melodias e harmonias), devolvendo-a a uma misica dos timbres ¢ dos rufdos (dentro da qual o minimalismo des- pontard depois propondo uma musica que se organiza em torno de ipulsos, de repeticdes alteradas por ciclos de fases ¢ defasagens). Nessa passagem ou nessa inflexao paradoxal, em que uma miisica contra to- da forma de repetigao “desemboca” numa musica repetitiva, temos 0 triangulo das Bermudas da mdsica contemporanea, o lugar onde se perde o fio de muitas meadas e onde muitos projetos de inspiragao vanguardista acalentados na primeira metade do século saltam dos ti- Ihos ou descartilam diretamente. (Muitos compositores € tedricos sen- tem af o fim da mtisica, da cultura, da sociedade capitalista, da vida sobre o planeta, ou, em uma palavra, o fim do mundo em gradagies apocal{pticas diversas.) E, de fato, parece acabar um mundo: 0 longo ciclo ocidental em que se percorreu toda a escala harménica perseguin- do as varias verses da musica das esferas. Resta ainda saber quais sao as implicagées proféticas desse fato. O sistema dodecafénico de Schoenberg, como proposta de organi zagao melédico-harménica de uma musica pés-conal, sem centro, sem 0 mecanismo de tensio-e-repouso que marca o tonalismo, e que foge a toda polarizagao, radicalizada depois no serialismo, é nao s6 a musica do nao-pulso como também o limiar da do-altura, Ela ja é miisica do 46 ruldo e do siléncio (duas categorias que, como estou tentando mostrar, vao ganhando cada vez maior relevancia tedrica e pratica). O seu desti- no histérico (ao contrario do que supunha: criar diretamente 0 novo idioma musical contemporaneo) ¢ talvez brilhar intensamente nas for- mas hiperconcentradas e fugazes da mtisica de Webern, e dissipar-se no turbilhao galdctico-eletrénico das mtisicas sintetizadas que cle prenun- cia, junto com as ionizagGes timbristicas € ruidisticas de Varése. Além de ser o elemento que renova a linguagem musical (e a poe em xeque), 0 rufdo torna-se um indice do habitat moderno, com 0 qual nos habituamos. A vida urbano-industrial, da qual as metrdpoles so centros irradiadores, € marcada pela estridéncia e pelo choque. As méquinas fazem barulho, quando nao so diretamente maquinas-de- fazer-barulho (repetidoras ¢ amplificadoras de som). O alastramento do mundo mecanico e artificial cria paisagens sonoras das quais o ruf- do se torna elemento integrante incontorndvel, impregnando as textu- ras musicais, Sao exemplos conhecidos 0 balé Parade, de Satie, em que ele utiliza maquina de esctever como instrumento de percussio e te- clado, sirene e tito de revélver; os bruitismos (“tuidismos” ou “baru- Ihismos”) do futurista Russolo — os futuristas estavam interessados nas maquinas em geral como produtoras de musica, ou “quase-mtsi- ca”. Honneger imita a locomotiva, no Pacific 1921 (que tem um cor- respondente mais idilico no Tienzinho caipira de Villa-Lobos). Um outro dado fundamental faz recrudescer a margem do ruido do ambiente: proliferam os meios de produgdo ¢ reprodugo sonora, meios fonomecinicos (o gramofone), elétricos (a vitrola e o radio), ele- trénicos (0s sintetizadores). O meio sonoro nao é mais simplesmente aciistico, mas eletroactistico. O desenvolvimento técnico do pés-guer- ra fez com que se desenvolvessem dois tipos de muisica que tomam co- mo ponto de partida nao a extragao do som afinado, discriminado tualmente do mundo dos rufdos, mas a produgao de rufdos com base em mdquinas sonoras. £0 caso da meisica concreta e da milsica eletrb- nica, que disputaram polemicamente a primazia do proceso de ruidi- ficagao estética do mundo. A primeira (cujo mentor € 0 compositor Pierre Schaeffer) tinha a sua estratégia na gravacao de rufdos reais (co- mados como material bruto), alterados e mixados, isto é, compostos por montagem. A segunda, que conta entre seus praticantes com os nomes de Henri Pousseur ¢ Stockhausen (cujo Canto dos adolescentes é sem diivida uma obra definitiva, um marco na contemporaneidade), 47 toma como base rufdos produzidos por sintetizador, rufdos inteira- mente artificiais (embora na obra citada Stockhausen manipulasse tam- bém 0 som de voz gravada), De lA pra c4, os sintetizadores se refinaram e se massificaram (alinhando-se praticamente entre os eletrodomésti- cos marcando forte presenga nas muisicas de massa, nas quais exci- tam uma permanente corrida ao timbre). Suas derivagées mais recen- tes, os samplers, sio aparelhos que podem converter qualquer som gravado em matriz. de miltiplas transformag6es operiveis pelo teclado (seja a voz de qualquer pessoa, 0 pio de um péssaro, uma tampa de pa- nela, um bombardino, ou ondas estelares captadas em radiotelescépio ¢ transformadas em ondas sonoras). O sampler registra, analisa, trans- forma e reproduz ondas sonoras de todo tipo, e superou de ver a ja ve- ha polémica inicial entre a musica conereta e a eletrdnica (pois num estado tal de produgao de simulacros dilui-se a oposigao entre 0 grava- do ¢ o sintetizado, 0 som real eo inventado). As mquinas de produ- cao € reprodugao sonora, além de terem seus terminais disseminados em rede por todo 0 tecido social (com sonorizadores fixos e ambulan- tes nos espacos mais ptiblicos e nos mais privados), implantaram um modo de tratamento do som totalmente relativistico, em que nenhum dos seus componentes ou propriedades inscreve-se em nenhuma or- dem de hierarquia ritual. O objeto sonore € 0 rufdo que se reproduz em toda parte, além de passar por um processo sem precedentes de ras- treamento € manipulagao laboratorial das suas mais {nfimas texturas (gravado, decomposto, distorcido, filtrado, invertido, construfdo, mi- xado).! ‘A cletrificagao dos instrumentos foi dar também, no coragao € margem dessa histéria, num dos sons cruciais do nosso tempo, o da guitarra elésrica, a harpa farpada, com a qual Jimmi Hendrix distor- ceu, filtrou, inverteu ¢ reinventou o mundo sonoro, dando a mais lan- cinante atualidade a forga sacrificial do som. Pulso e desagregacio, vi- da e morte — simultaneidades contemporaneas. (Enquanto isso, a estratégia politica do som deixou de se dar pela clivagem ideolégica entre a misica oficial, apropriada enquanto musica elevada € harmo- niosa, € as musicas divergentes, consideradas baixas e ruidosas; a in- dustrializacéo tornou-se uma processadora de toda forma de ruido re- petitivo, disseminado em faixas de consumo diversificadas. Nao se trata mais de tocar 0 som do privilégio contra 0 ruddo dos exploradas, mas ope- rar industrialmente sobre todo 0 rufdo, dando-lhe um padrao de repe- 48 titividade. E nesse campo que as mtisicas ocorrem, 0 que nao quer di- zer que elas se reduzam a ele, ¢ estd ai a complicacao ¢ 0 interesse do assunto.)* O grande deslocamento do campo sonoro foi prefigurado no int- cio do século por Eric Satie, com sua misica performética, suas parti- turas cheias de anotagGes insdlitas e certas idéias que, parecendo extra- vagantes, estavam na verdade anunciando com grande precisio 0 processo de mudanga das condigées de produgio musical no mundo emergente do imaginario industrializado como mercadoria. Conta Da- ius Milhaud que Satie concebeu a certa altura uma pega para ser exe- cutada nao no palco de concerto, mas por musicos espalhados pelo teatro, durante o intervalo, enquanto o ptiblico conversasse. Mas co- mo na pratica este permanecesse mudo e imével diante da misica ines- perada e fora de lugar, Satie, enfurecido, gritava: “Mais parlez, donc! Circulez! N’écoutez pas!”” Essa situacao aparentemente sé anedética indica mais uma vez a irrupgao do ruido no contexto do concerto, Sa- tie estava pensando, segundo o relato de Milhaud, numa musica que figurasse como fido de conversa, dispondo daquela espécie de pre- senga quase invistvel dos desenhos de papel de parede ou do mobilié- rio, ocupando uma faixa secundaria da atencao. Vale dizer que queria uma miisica em contraponto com o ruido, que entrasse em relagio po- lifdnica e constitutiva com o ruido, prenunciando assim a fungao de fundo da atengio que a mtisica passa a desempenhar no mundo da sua repetigao generalizada. Além disso, realizava 0 que se pode chamar de uma estereofonia avant la lettre, com a musica emanando ao mesmo tempo de pontos separados do espaco. Reside aqui 0 parentesco de Satie com o dadaismo tal como esse movi- mento € visto por Walter Benjamin: a musica fere o ouvinte, adquire um “poder traumatizante” no mesmo tempo em que nao se pode fazer dela “objeto de contemplagao”. No caso citado, a obra sairia da érbita da contemplagao silenciosa, que cultua o objeto, para dispor de fungdes diferentes num novo horizonte do mundo técnico: assim como o da- daismo com suas “manifestagdes barbaras” buscava produzir através da pintura (ou da literatura) os proprios efeitos que o puiblico, hoje, solici ta do cinema, as manifestag6es, mais insélitas que barbaras, de Satie, chamariam a musica a cumprir um novo papel, que 0 rédio, 0 disco ¢a fita magnética passaram a desempenhar.™ 49 Ao fazer emergir esse dado inconsciente (o descentramento do cir- cuito sonoro) na cena aberta do teatro, Satie estava deslocando a eco- nomia da sala de concerto tonal, onde misicos no palco produzem som afinado, o ptiblico permanece em siléncio ¢ o rufdo fica fora da sala (56 voltando ritualmente ao final da execucéo na forma do aplau- so, que indica, pela intensidade do seu retorno, 0 grau do recalcado) Aqui, hé 0 sinal de que todo esse campo sofre um deslocamento que poderd ser visto como um pequeno mas decisivo terremoro: os miisi- cos, 0 som, o piiblico ¢ o rufdo esto em trinsito, deixando um vazio nos seus lugares usuais, vazio que corresponde ao silencio do cédigo. Silencio que torna imiteis ou redobradamente irdnicas as palavras do compositor: “Parlez, donc!”. John Cage ira converter essa situagao e esse silencio, que é indice em Satie, em elemento articulador de sistema, sistema constituido de siléncio/ruidos encadeados, como veremos mais adiante. Mas antes de falar de John Cage, vale a pena percorrer um texto altamente sintométi co ¢ interessante, de Eric Satie. Nas Notas de um amnésico, cle escteve! Perguntem a qualquer um ¢ ele também Ihe diré que nao sou misico. E pura verdade. Desde o comego de minha carreira, eu tenho sido um fo- nometografista. [...] Eo espirito cientifico que predomina. Eu meso 0 som. Com 0 fonémetro nas maos cu peso alegremente tudo de Beetho- yen, tudo de Verdi, etc. A primeira vez que usei um fonoscépio, exami- nei um mi bemol de média intensidade. Eu asseguro a voces, com toda asinceridade, que estou ainda para ver algo to repulsive. Chamei mi- nha empregada para observ4-lo. Na minha balanga fonométrica, um fa sustenido comum atinge o peso de noventa ¢ trés quilos (emitido por um tenor gordo). Vocés j4 ouviram alguma coisa como a ciéncia de se limpar 0 som? Isso é imundo, sabiam? Esta arte ¢ conhecida como fo- nometria ¢ requer um olho muito acurado, Para minhas frias pegas, usei um gravador caleidoscépico. Elas me tomaram sete minutos — chamei minha empregada para escutd-las. Creio que a fonologia é superior muisica. Ela é mais varidvel, ¢ as possibilidades monetarias sao de longe maiores. Com a ajuda deste equipamento, estou apto a escrever tao bem quanto qualquer miisico. O fucuro, por esta razao, pertence a filofonia (estudo da composigao dos sons os mais diversos possiveis).. A ironia do texto esta mais uma vez. em que as coisas desproposi- tadas que ele diz dio uma descrigao precisa de processos que esto acontecendo materialmente ou que esto na iminéncia de acontecer. sn O “fonoscépio” a que Satie se refere nfo existia na sua época, era um objeto puramente delirante que ird ganhando uma realidade cada vex mais flagrante & medida que progridem as técnicas de registro e mani- pulagdo do som. Um osciloscépio mostraré mais tarde a forma da on- da de um som, permitindo analisé-lo nos varios parimetros — altura, timbre ¢ intensidade —, que despontam aqui nesta aluso parddica & quantificagao de uma qualidade: os 93 quilos (intensidade) do mi be- mol (altura) de um tenor gordo (timbre). A “mtisica” vira outra coisa diversa do objeto cultuado ¢ auritico, uma espécie de “nome de fanta- sia” da fonometografia. A “ciéncia de se limpar 0 som” manipula a de- sorganizacdo mortifera e impura do rufdo (“Isso é imundo, sabiam?”), numa alusio ao substrato concreto ¢ corporal do som, recoberto cini camente pela aura de objetividade asséptica. “Para minhas frias pegas usei um gravador caleidoscépico”: este poderia ser ainda um bom no- me para 0 atual seqiienciador, computador acoplado a um sintetizador que permite gravat, corrigir ¢ escrever seqiiéncias que teclados milti- plos tocarao sozinhos em qualquer ordem, andamento, intensidade ou altura que se deseje (“com a ajuda deste equipamento, estou apto a es- crever to bem quanto qualquer miisico”), A fabricagao de timbres em sintetizador também poderia ser chamada, sem problemas, de filofo- nia, “estudo da composigéo dos sons os mais diversos possiveis”. (Mui- tas pecas pianisticas de Satie, por sua vez, tém um cardter repetitivo, como se fossem compostas por seqiienciagio maquinica.) E toda essa especulacao fantasiosamente certeira contém uma teferéncia ao carter de mercadoria industrializada que a miisica assumird, programando-se para todos os puiblicos: “Chamei minha empregada para escuté-las, Creio que a fonologia ¢ superior & musica, Ela ¢ mais varidvel, e as pos- sibilidades monetérias sao de longe maiores”, Para ser uma anedota, trara-se na verdade de um pequeno tratado profético sobre o desloca- mento da arte musical no mundo da reprodugao sonora em larga es la, € uma antopologia do rufdo resumida. A famosa pega de John Cage, Tacet 433” (1952), com sua cons- tatagao do carater ruidoso do siléncio, faz uma ponte com os lances de Satie, Um pianista em recital vai atacar a peca, mas fica com as mos em suspenso sobre o teclado durante quatro minutos ¢ 33 segundos; 0 ptiblico comega a se manifestar ruidosamente, Aqui também ha um deslizamento da economia sonora do concerto, que sai de sua moldu- ra, como uma mascara que deixa ver um vazio. A mtisica, suspensa pe- Ss] lo intérprete, vira siléncio. O siléncio da platéia vira rutdo. O rufdo é fo som: a mtisica de um mundo em que a categoria da represensagdo dei- xa de ser operante, para dar lugar a infinita repetigao. Repetteao do qué? Pegas como essa nao correspondem, evidentemente, & categoria usual de obra, Elas operam mais como uma marea, uma dobra sinto- médtica ¢ irrepetivel, frisando enigmaticamente 0 campo da escuta pos- sivel, 0 campo daquele silencio que pode ser ouvido também nas “mu- races FOnicas imptevisiveis, ocednicas” das belfssimas pegas pare piano _preparado” (silencio pleno de ruidos porque é “abandono ao tempo, ao puro movimento do tempo”, tempo que jamais se repete contendo to- das as repetigbes em graus alterados de intensidade), Nessas pegas Ca- ge fez com que o piano, de instrumento produtor de alturas, se trans- formasse num multiplicador.de timbres ¢ rufdos: com a interferéncia de pinos, parafusos, borrachas e outros materiais atuando sobre as cor- das do instrumento, ele passa a soar formas alteradas de pandeitos, ata- baques, marimbas, caixas de miisica, guizos. © procedimento antecipa também uma possibilidade dos sintetizadores atuais: “splitar” o teclado e fazer com que cada tecla, ou cada regio, produza um timbre dife- rente. Mas essa paraferndlia visa & delicadissima apresentacio de quase- sons (quase-ruidos) em oscilagao ritmica, num tempo em que despon- tam pulsagoes e nao-pulsagées, como se a miisica buscasse devolyé-las a um estado de indistingao entre ambas. O ritmo para Cage nao esta na tegularidade das batidas nem na mensurabilidade das duragées, mas nna flutuacao “sobre a crista de uma vaga métrica” ou de uma nao-mé- trica enquanto tal.“ A miisica nao se organiza em torno de um pulso (como a miisica modal), nem evita sistematicamente o pulso (como a imtisica serial), Fases e defasagens alternam-se ao sabor ¢ na pulsagéo do préprio acaso em som, ruido e silencio. O rufdo branco é 0 modelo desse universo (ou multiverso): 0 total sonoro é silencioso (mattiz de toda comunicacio possivel, de toda canalizagao de qualquer que seja a mensagem, matéria de todas as paisagens sonoras, freqiiéncia das fre- giiéncias, pulso dos pulsos, ruido/zero).” Siléncio no cédigo: metalin- guagem de toda miisica quando ela atinge aquele limiar paradoxal de que falamos antes, indo para o ponto de mutagao em que, depois de séculos, ¢ através de sua caotizacéo “multiversal”, aponta para um cam- po que est4 aquém e além da “miisica”. (Mas isso supe toques sutis, em filigrana, que promovem silenciosamente uma desativagao do tem- po do ego, do prazer como descarga de energia acumulada, ¢ uma des- 6D sactalizacao radical do som, que, nao sendo mais sacrificado nem no altar do mito nem no altar do progresso, se desgarra como verdadeiro objeto nao identificado, em sa obviedade.) 3. CODA Quem se dispuser a escutar o som real do mundo, hoje, e toda a série dos ruidos em série que ha nele, vai ouvir uma polifonia de simul- taneidades que esta perto do ininteligivel e insuportdvel. Nao sé pela quantidade de coisas que soam, pelo indice entrdpico que parece acom- panhar cada som com uma particula de tédio, como por nao se saber mais qual ¢ 0 registro da escuta, a relagio produtiva que a escuta esta- belece com a miisica. No caso da miisica de concerto contemporanea, a complexidade vem acompanhada de um trago esquismogenético:® 0 sistema est cor- tado ao meio por uma fissura que parece caminhar no sentido de rom- pé-lo no ponto de descolamento entre as alturas eo pulso, e a escuta est exposta, geralmente sem sabé-lo, a essa ruptura latente (a miisica de concerto exporia na verdade de maneira mais evidente uma questao que poderia se transportar hoje para a musica em geral). A questio nao se resume, pois, em saber se a nnisica hoje € capaz de criar novas orga hizages sonoras ou se se torna cada vez mais pura repeticao, ruido ¢ silencio (essa é certamente uma boa pergunta de ecologia simbélica, mas um pouco simples demais para indagar do estado das coisas). A mmiisica de concerto vem de uma tradigao herdica, em que ela se constitu pela criagéo de uma linguagem, a muisica tonal, ¢ pela explo- ragio até os seus limites extremos dessa linguagem, no quadro de um grande arco evolutivo que vai do século xv ao fim do xix. No século XX, esse arco esgotou as possibilidades dadas pela gramatica do sistema tonal prometeu, durante certo tempo, a sua superacao na forma de um outro modo de organizagao das alcuras (depois estendido aos de- mais paramettos): o serialismo, 0 mais radicalmente progressivo entre os caminhos da miisica contemporanea. Nos tiltimos tempos essa pro- jegio, que pressupunha a idéia de um progresso permanente da forma através dos saltos de linguagem dados pelas obras, reflui para um esta- do anti-heréico, acompanhado de um forte mal-estar. E que a proje- cao evolutiva do cédigo mostrou-se presa de muitos impasses e, no li- 53 mite, sem “perspectiva” (com isso, €a propria idéia de insergao da mit- sica numa grande histéria do sentido que periclita, junto com o prestt- gio da idéia de progresso). Muitos compositores silenciaram (Boulez), outros retornaram a um cultivo (que nao deixa de soar retroativo) do tonal (Penderecki), outros oscilam num terreno eclético (no ambito do qual Stockhausen continuou seguindo uma bela trajet6ria indivi- dual), outros partiram para uma musica engajada na lura de classes (como Willy Corréa de Oliveira, no Brasil), ou entéo voltada para a recuperagao de uma utilidade pedagdgica ou ambiental (como aparece nas propostas de Koellreutter). Essas miiltiplas alternativas soam como sintomas agudos de impasses ou da expectativa de caminhos que no se abriram concretamente. O que contribui para reforgar o lado apo- caliptico da situagio: desgarrado de uma hist6ria do sentido, dada pela tradicéo ocidental, o som se dissolveria para alguns num conglomera- do caético de interferéncias ruidosas, um cluster que s6 teria como ho- rizonte a barbarie da extingo da cultura e uma inimagindvel e terrivel implosao terminal. Essa hipétese veria a situagéo da musica hoje — a dissolucao do campo de definigao do som enquanto oposto ao ruido, ea neutralidade zerada do cédigo musical, que se torna incapaz de di- zer nada que nao seja repeticéo, ruido e siléncio — como sintoma pro- fético do fim do social no mundo das massas (cuja opiniao insondvel, que nao se define senao erraticamente, seria buraco negro de todo sen- tido).” A incapacidade para introduzir diferenciagao seria a sindrome dessa terminalidade. A negatividade da arte como recusa do social (co- mo aquela recusa & consolagio que Adorno viu na miisica de Schoen- berg, expondo a angistia contempordnea) iria tomando assim, irrever- sivelmente, o cardter de uma natureza declinante do social. Essa situagdo terminal (ligada a uma antropologia do rufdo) teria seu correspondente numa psicossociologia defensiva da escuta (0 ou- vinte se fecha numa concha de som onde se embala sé com o géneto de sua preferéncia, seja 0 jazz, 0 sambio, o rock, a miisica ligeira ou a experimental, numa redoma refrataria a qualquer diferenca, a qual- quer deslocamento de seu cddigo de adogao, 0 que significa nao-escu- ta). A escuta indiscriminada de qualquer coisa também € néo-escuta. Cumprir-se-ia, assim, em toda escala, no circuito vicioso e fechado da mtisica de mercado, aquele fetichismo da musica e a regressao da audi- 4o previstos por Adorno.’ O minimalismo seria 0 estilo estético desse eu minimo (fechado defensivamente numa camara de som repetitivo)." S54 Mas, reconhecido 0 que ha de real nesse quadro, cle pode passar por outras avaliagdes. Porque podemos estar passando por um desloca- mento de parimetros muito maior do que conseguimos imaginar ago- ra, € 0 blackout do sentido pode fazer parte dessa migracao dos cédi- gos (ou sua estabilizagao em outro lugar: 0 mundo tonal, vale dizer, 0 da cultura ocidental moderna, pode ter sido nada mais que a migracdo do mundo modal a um outro que s6 agora comegamos a entender). A coincidéncia do término do mundo tonal (e suas representagdes) com o estado terminal da cultura e da sociedade no fim do século Xx pode ser encarada como um desafio para escutar o lugar para onde o senti- do se desloca. Correndo por fora da tradicao da miisica erudita, misicas popu- lares continuaram a fazer os seus sons, que se misturaram em demo- crdticas mixagens ¢ assumiram lugares singulares na modernidade. A miisica européia se juntou com a africana no territério das Américas. Esse evento é produtor de uma extraordinéria forga multiplicadora: ele contribuiu para criar experiéncias de tempo musical de uma grande complexidade e sutileza. O {ma da musica puxa agora de novo para questionamento € a criagéo sobre o pulso, 0 tempo, o ritmo. Essas mii sicas devem ser relidas ou escutadas em nova situacao. Elas fazem par- te do processo de codificagao das relagdes entre som, ruido e siléncio como modos de admitir fases e’defasagens, de trabalhar sobre o cardter simulsaneamente ritmico e arrttmico do mundo, Ali, no pulso do pulso, pode estar se formulando uma outta coisa, para a qual é preciso pro- duzir uma escuta correspondente (0 que significaria a volta do pulso modal num mundo descentrado e dessacralizado?). E preciso dizer também que, em todo esse processo, a cangdo (ou certa linha de cang6es) funciona como um verdadeiro equilibrador ecoldgico (as cangées s40 a reserva de oxigenacao da musica e do mundo simbélico). A misica tornou-se sincrénica, simultanea. A sincronicidade va- zou os campos de producao em que ela se dividia. E preciso que a re- flexao sobre miisica dé conta dessa simultaneidade e seja capaz de ver situagbes novas. ‘A produgio de uma escuta em relagao dindmica com esse proces- so de simultaneidade passa por embaracos fortissimos. Antes de mais nada, os registros de escuta habitual estio completamente embaralha- dos. O modo dominante de escutar (em ressonancia com o da produ- 40 de som industrial para o mercado) é 0 da repeticdo (ouve-se musica 55 repetitivamente em qualquer lugar ¢ a qualquer momento). Um modo recessivo € 0 da contemplacdo (tonal): escutar mtisica sob uma reserva de atencio, em condigoes especiais de siléncio (é uma escuta diferen- ciada, que aparece em situagZo mais rara, inacessivel ou impensével para muitos). Outro modo recessivo ¢ 0 da participagao sacrificial (mo- dal), o envolvimento do ouvinte num ato ritual. Para muitos ouvintes esses modos esto misturados numa indistingao confusa. A capacidade de combiné-los e fazer deles uma composicao é uma alternativa para viabilizar a escuta: saber ter uma relagdo polimodal com a musica (é essa esctita que a mtisica que comega a existir pede). A escuta esta po- larizada pela repetigao do mercado, mas outros modos de escuta esto latentes nela como ressonancia harménica. A medida que nos apro- fundamos no tempo da dessacralizacao, toda a histéria dos simbolos, que vibra num acorde oculto (modal, tonal, serial), fica paradoxalmen- te mais exposta na sua simultinea contemporaneidade. ‘Temos uma situagao singular. O som é ondulagio corporalizada césmica, ondulagéo analdgica (ligada até aqui a toda a concepgao cir- cular de tempo, que vai do relégio ao disco). O mundo da repetigao generalizada decompée ¢ desconstréi a onda sonora na sua produgao ¢ na stra recepcao. A dessacralizagao total do som significa que a onda nao tem mais aquele poder magico de ressoar a si mesma pela prépria forga, uma vez detonada. O consumidor liga ¢ desliga a onda no mo- mento que quiser. No mundo sacrificial a onda tinha seu tempo pré- prio, assim como a agua produz circulos quando cai nela uma pedra (esse tempo da ressonancia soava ao mundo pré-moderno como um poder cdsmico a ser reverenciado). Agora, quando a generalizagao das relacées de mercado se totaliza, a onda nao tem poder, 0 cosmo nao tem nenhum poder diante do ouvinte aparelhado ou desatento (s6 es- te parece ter poder sobre toda e qualquer miisica).. Suponhamos um lama tibetano gravado em compact dis capaz de fazer ouvir os harménicos, esta quase como um holograma yocal na sala, cavando do fundo e da fenda do universo 0 som primor- dial, podendo ser interrompido a qualquer momento ¢ contrapor-se a qualquer outro ruido. A aparelhagem € digital, nao analégica. Nao ha nenhum sacrificio: a partir daqui, voce pode liga 0 som sem sacrificar nada aos deuses do som (eles é que foram sacrificados aos deuses do mercado na forma das tiltimas novidades em aparelhos de som). A li- turgia das ondas, da vibracao, seus ciclos de apresentagao, de entrada e sua voz, SK saida, 0 tempo necessirio ao cumprimento desse ciclo, a musica das esferas (0 fluxo dos sons segundo a curva das préprias forcas ¢ das for- gas que ele descreve), tudo se cala diante do consumidor atuante (que pode recalcitrar nas formas do colecionador fugaz e permanente da uil- tima novidade, do critico preporente ¢ toda uma familia de pretensos aptopriadores das ondas instantaneas que o som inscreve no nada). E, no entanto, é preciso assumir o estado de repetitividade (ne- nhum mundo com bilhGes de pessoas, como 0 nosso, existira sem ela). Nesse mundo, a miisica fiz fiundo, mas a musica de fundo saltou pra frente, Brian Eno (autor das musicas ambientais para hospitais, aero- portos, musicas para trilhar rufdos, como aquela primeira, de Satie) diz que a ambiéncia timbristica, a criago do espago sonoro, tornou-se um campo privilegiado de composigao contemporanea, embora pouco notado. Diz também que na cangio de massa muitas vezes 0 mais in- teressante é 0 fundo ruidistico, timbrfstico, que est sob a voz cantada, ¢ no qual esto se compondo elementos para novas miisicas. (O tem- po nao é propriamente de obras, mas de processos disseminados, dis- persos num turbilhao de eventos.) A misica pulsante e timbristica salta instantaneamente, se da a conhecer num segundo, em bloco. A miisica se dé em pilulas, pasti- Ihas, efervescentes, desodorantes, comprimidos, sabonetes. A mtisica “alta” é, entre as outras, uma espécie de concentrado (xarope que as di- ferentes escutas ou reinterpretacées vio diluir em concentragdes varia- das), Tende a se dissolver a divisio entre misica erudita e popular, mas continua a haver, de maneira incisiva, distingao entre estructura pro- funda e estrutura de superficie (sem que esse tiltimo termo seja pejora- tivo). Como eu tinha sugerido antes, Sagracéo da primavera é estrutu- ra profunda daquela musica de ritmos e timbres, de ruido pulsante que rock vai mostrar como estrutura de superficie (portada pela evidén- cia de suas cadéncias harménicas ¢ seu compasso quaterndrio). Cage € estrutura profunda da mtisica em seu estado absolutamente superficial (flutuagio do som, siléncio, ruido em sua intranscendéncia, evidéncia nao evidente do carater superficial de toda miisica). O minimalismo é a passagem do profundo cagiano ao superficial (a evidéncia do cardter repetitivo dos fluxos em fluxos explicitamente repetitivos). Joao Gil- berto é a superacéo da oposicao entre o profundo eo superficial.** A miisica passou a tramar outras tramas. Para muitos amantes da itisica isso ¢ insuportével. Para outros, esse estado de coisas nega tudo 57 © que ela foi. O meu assunto é manter vivo o campo da escuta, toman- do como base o que se tornou evidente, que a mtisica passa a pedir uma escuta propriamente musical, isto é, polifénica. E possivel reouvir a sua histéria dentro de uma base sincrénica. E preciso produzir novos mapas. E possivel ouvir tudo de novo ¢ estar soando jé diferentemen- te. Modal, tonal, serial. Tocar a primeira escala. 58 INTRODUCAO A MUSICA Para fazer miisica, as culturas precisam selecionar alguns sons en- tre outtos: jé falamos sobre o carter ordenador de que se investe essa triagem, na qual alguns sons sao sacrificados (vale 0 termo, também sentido), isto é, jogados para a grande reserva dos ruidos, em fa- vor de outros que despontardo como sons musicais doadores de or- dem, Para fazer esse recorte, que equivale 4 decomposicao arbitréria do continuo do arco-fris ¢ consiste na decomposigio do continuo das alturas melédicas numa infinidade de escalas musicais posstveis, as cul- turas estargo fundadas na intuigéo de um fendmeno aciistico decisive, que é a série harménica subjacente a cada som. Por raz6es fisicas que nao cabe explicar aqui, uma corda, vibran- do numa certa freqiiéncia fundamental, ressoa internamente outras freqiiéncias que sao seus miiltiplos, freqiigncias progressivamente mais répidas, muito dificilmente audiveis, mas que Compéem o corpo tim- bristico do som. (Muitas vezes o ensino de miisica passa completamen- te ao largo da experiéncia da escuta da série harmonica e do conheci- mento de suas implicagdes; pensar a musica sem ela é algo assim como imaginar que os bebés sio trazidos pelas cegonhas.) nes 6 bo bo oe =f ————— = A série harménica Estas so as “notas” da série harménica*, se tomarmos como pon- to de partida, ou como som fundamental, a nota dé. (A escrita con- 59 vencional, assim como 0 teclado do piano, com sua afinagao tempera- da, s6 podem nos dar essas notas aproximadamente; vamos tegistré-la af, portanto, sob essa ressalva.) ‘ As alturas ressoadas pelas freqiténcias componentes da “escala” harménica produzem uma série de éntervalas* (intervalo é a distincia que separa dois sons afinados no campo das alturas). Um som musi- cal, de altura definida, tocado por um instrument, ou cantado por uma voz, ja tem, embutido dentro de si, um espectro intervalar. Isto vale dizer que ele contém ja uma configuracao harménica virtual, da- da por miiltiplos intervalos ressoando ao mesmo tempo. Mais do que uma simples unidade que vai produzir frases melédicas, cada som j4 € uma formagao harménica implicita, um acorde oculto. Quando um som se encontra com outro, é a série harménica dos dois que est4 em jogo. A seqiiéncia dos harménicos é dada por uma progressao freqiien- cial. © primeiro harménico de uma fundamental é a “mesma nota” re- petida uma oizava* acima (novamente o dé num registro mais agudo) ¢ resulta do dobro do ntimero de vibragdes do som fundamental (que se obtém, numa corda, com a sua divisao ao meio, ou com a duplica- cio do seu grau de tensao por esticamento). (Num violao, por exem- plo, a corda mi, se for dividida no ponto médio dela, com o dedo so- bre o traste, produzira um mi mais agudo; se suportar um estiramento que duplique a sua tensdo, produziré também o som oitavado.) Dé-se 0 nome de oitava a esse intervalo porque, na seqiiéncia das notas bran- cas do teclado (que fazem a escala diaténica), cle €a oitava nota a par- tir da sua fundamental. O segundo harménico ¢ a nota sof que compée o intervalo de quinta* (nota que esta, no teclado do piano, cinco notas acima do som anterior, 0 dé), ¢ resulta de uma multiplicacdo freqiiencial da ordem de 3/2 em relagio ao som anterior, ou da divisto da corda em uma por- ao correspondente a 2/3 dela. O terceiro harménico, que consiste na volta da nota dé, faz com 0 sol (segundo harménico) um intervalo de quarta*, resultando de uma multiplicagio de 4/3 da freqiiéncia do som anterior (ou de uma divi- sao em 3/4 da corda). Os dois harménicos seguintes, 0 mie 0 sol (que retorna oitavando sobre o primeiro), introduzem os intervalos de zerga maior” e terga menore resultam, dentro da mesma progressio, das re- lagdes numéricas de 4/5 ¢ 5/6, respectivamente, 60 monicamente em uma quinta (dé-sol) ¢ uma quarta (sol-dé), integran- do as relagGes intervalares 1/2, 2/3 e 3/4 (2/3 x 3/4 = 1/2), evidencia as propriedades unificadoras do simbolo. Mas a oitava dividida pelo tritono em duas partes iguais (d6-fa sustenido-d6, ou fé-si-fa) projeca as propriedades esquizantes do diabolus (o que joga através, 0 que joga cortando, 0 que joga para dividir)."* O fato de que a escala diaténica abrigue dentro de si necessariamente a “falha” do uitono, a dissonan- cia incontorndvel, se tornar4 na Idade Média um problema ndo sé mu- sical, mas moral ¢ metaffsico: o diabolus in musica intervém na criagdo diyina, penetrando na escala diaténica no tltimo momento da sua constituigao (a sétima nota do ciclo de quintas), devendo ser evitado e contornado por uma série de expedientes composicionais (como vere- mos mais adiante). Por esse mesmo motivo (isto é, 0 “defeito” que in- troduz na ordem escalar) a nota si, embora existisse na escala, nao ti- nha nome durante toda a Idade Média: ela consiste propriamente no inomindyel, ¢ assim como é contornada e desconversada na pratica compositiva, € nomeada através dos complexos torneios de solmizagao, sistema de nomeacio e de transposigao de intervalos que se acopla & evitacao sistematica do tritono."* As historias da musica nao costumam se demorar na interpreta- Gio desse recalque, que tem a maior importancia para o entendimento da economia simbélica (sonora ¢ cosmolégica) da misica modal euro- péia, que prepara o campo da tonalidade: 0 canto gregoriano e seus desenvolvimentos polifdnicos entre os séculos 1x-xV. Esse assunto ser objeto de consideracao mais adiante. Por ora, importa assinalar que a escala diaténica, que permitira grandes desenvolvimentos & musica me- édica, ¢ posteriormente polifnica ¢ harménica, pelas possibilidades contrastivas ¢ conflitivas que ela comporta, oferece, em certo passo da sua histéria, a Amago mundi da perfeigao defeituosa, de uma ordem on- de uransam harmonia e perversio potencial, campo dramatic sobre 0 qual a tonalidade se constituir4, mais tarde, fazendo desse conflito, ¢ de sua resolugéo, 0 seu elemento mobilizador. 5. SOCIOLOGIA DAS ALTURAS Edmond Costére sugere um modo de visualizar a estrututa esca- lar que pode ser extremamente itil, Trata-se de um sociograma das no- 83 tas, um grafico que procura registrar a rede de afinidades atrativas que as interliga.”” O critério adotado, ¢ jé indicado anteriormente, é o seguint da nota, além de polarizar a si mesma e & sua oitava, tem uma tendén- cia atrativa reciproca pata a sua guinta* ea sua quarta* (que cotres- ponde A quinta inferior), primeiros intervalos da escala harménica, € para os semitons superior e inferior (atragGes deslizantes da ordem da sensivel*). No caso das quintas a afinidade é paradigmtica, ¢ corres- ponderia a relagGes de filiagao. No caso dos semitons, a relagio é sin- tagmatica, metonimica, ¢ corresponderia a relagées de alianga. ‘A nota f&, por exemplo, faz conjunto atrativo com dé e si bemol (quintas superior e inferior) e com f4 sustenido e mi (semitons supe- rior ¢ inferior). O mi, por.sua vez, ¢ pelo mesmo critério, relaciona-se atrativamente com o si ¢ o Id, o ff e mi bemol, Fazendo um diagrama das suas afinidades atrativas interhas, a ¢s- cae cala pentaténica mostra-se assim: fd + do =» so] «+ ré + ld ‘Todas as notas se interligam através das quintas (¢ suas inversées em quartas) — sem semitons. F, uma escala plana, onde os elementos apresentam uma grande homogeneidade formal, sem que uma das no- tas se destaque das outras em potencial atrativo, Como jé disse antes, se passearmos melodicamente ao longo da escala, perceberemos que qualquer nota pode funcionar indiferente- mente como t6nica, ponto de partida ou de chegada, indice atrativo se distribuindo por todos os graus em condigdes muito préximas, Jaa escala diatonica tem uma dimensio diferente: A par da variagao de intervalos que oferece com seus tons ¢ semi- tons, a escala diatnica contém uma diversificagio de enlaces atrativos, sendo que as notas dé e mi apresentam, com as suas trés ligagdes, um potencial de polatizagio maior do que o das outras. Se a pentatOnica é a escala cuja historia est especialmente vincu- lada ao Oriente (embora apareca também em outras partes), a hepta- ténica® ¢ a escala ocidental por exceléncia. Ela constitui o sistema esca- lar grego, os modos gregorianos, e atravessa como gama dominante todo o sistema tonal. Ela vigora com firmeza como “vocabulario” mu- sical no Ocidente, desde 0s gregos até as portas da musica eletrénica. Curiosamente (ou sintomaticamente), 0 sistema grego tomava como ponto de partida o modo de mi em sua forma descendente (mi-ré-d6- si-lé-sol-fi-mi), e o sistema tonal consagrou modo de dé, em sua for- ma ascendente, como a escala padrao. Num caso ¢ noutro as tonicas so mie dé, aquelas novas que aparecem no sociograma como dotadas do maior poder atrativo.'* O que caracteriza o sistema modal, no entanto, é a multiplicagao de escalas ¢ configuragGes escalates, que aparecem como provincias s0- noras, territérios singulares, cujo colorido e cuja dinamica interna es- tarao associados a diferentes disposigdes afetivas e a diferentes usos ri- tuais ¢ solenizadores. No caso do uso modal, pré-moderno, da escala diaténica, seja gre- go ou gregoriano, submetia-se a escala a um rodizio de tOnicas. Va- riando a nota que se tomava como referéncia fundamental para o de- senvolvimento da melodia, variava-se a dinamica modal, alterando 0 contexto estrarégico da distribuicao dos tons e semitons, e, com isso, 0 ambiente afetivo a que o modo estava ligado. Entre os gregos, por exemplo, cada modo, evidenciando o seu carater de verdadeiro territs- rio sonoro, era associado, pela sua denominagao, a uma regiao ou po- vo. O modo dérico (formado pelos intervalos que vao de mi a mi), rela- cionado ao carater viril dos lacedemonianos, era ligado tradicionalmente a solenidade (sonora ¢ ética); 0 frigio (de ré a ré), de afinidades orien- tais, era ligado por sua vez ao dionisismo."” No cantochio, o primeiro entre os quatro modos “auténticos”, 0 protus (chamado indevidamente dérico), desenvolvia-se no ambito de réa ré (ré-mi-fé-sol-la-si-dé-ré)."* Nesse caso, os dois semitons da escala esto entre 0 segundo eo terceiro graus (mi-f4), € entre 0 sexto ¢ 0 sé- timo graus (si-d6). J4 0 segundo modo “auténtico”, o deuterus (ou fii- 85

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