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-_CONDONINIO DQ DIABO. Ato Zatuar CONDOMINIO DO DIABO Alba Zaluar aS , CONDOMINIO DO DIABO Copyrigh © 1994 by Alba Zaluat Resists Barbar GuimartesArényi Sandea Pésaro| Praise elit « apa Ana Curcio Products grfice Ricardo Gort serinica Impee Graphos C1P-Brat, Cetlogasiocna-fonte Sindicat Nacional ds Edivres de Livos. Rl Zaluar, Alba 226¢ ‘Condorinia da diabo / Albs Zalust.— Bo de Janeiro Revan : Ed. UFRJ, 1994 280) ISBN 85.7106-064 9 1. Criminalidade urban. 2. Detingdeoter juve ‘ie. 3. Babren 4 Juventade urbana, Universidade Federal do Rio de Janivo cop - 364.2 94.0508 cu = 343.97 M7915 Universidude Federal do Rio de Jairo acum de Citncas © Culture Editors UFR] Gonsetho Editorial Darcy Footouts de Almeids, Gerd Bosnheim, Gilberto Velho, Gullo Masaran. Joa Mala de Carvalho, Margarida de Souse Never, Silvio Saatiago, Wanderley Guilherme dor Santos ‘Apolo Fundasto Univectitris José Bosificio Editors UFR) Forum de Citnca ¢ Caleura ‘Av. Farteut, 290 1° soda = Rio de Janeiro CEP 22306.240 Tel: 295-1595 «18/19 FAX: (O21) 295.2346 Em co-edigi com: Editors Reran ‘Aveaids Palo de Frontin. 63 ‘CEP 20260-010- Rio de Janeiro - Ry PBX (021) 293-4495. FAX; 273-6873 Sumdrio capteulo 1 CONDOMINIO DO DIABO 7 eapisala 2 [AS CLASSES POPULARES URBANAS EA LOGICA DO “FERRO” E DO FUMO 13, caplrulo 3 © RIO CONTRA O CRIME 36 capleulo 4 (© DIABO EM BELINDIA 42 capitulo 5 DEMOCRACIA TAMBEM SERVE PARA OS POBRES? 49 caplrulo 6 AROTINIZACAO DA MALANDRAGEM 52 caplrulo 7 CRIME E TRABALHO NO COTIDIANO DAS CLASSES POPULARES 58 capieulo 8 POBRE, LOGO CLIENTELISTA 69 capteulo 9 ‘CRIME, JUSTIGA E MORAL: A VERSAO DAS CLASSES POPULARES 72 capteulo 10 APOLICIA E A COMUNIDADE: PARADOXOS DA (IN)CONVIVENCIA 88 capleulo 11 DILEMAS DO NARCOTRAFICO 96 capitulo 12 ‘TELEGUIADOS F CHEFES: JUVENTUDE E CRIME 100 capteule 13 HIPERINFLAGAO E (E) VIOLENCIA 117 capitulo 14 PRISAO, TRABALHO B CIDADANIA: O CENSO PENITENCIARIO 121 capleule 15 CRIME NO RIO DE JANEIRO: UM BALANGO 128 eapirute 16 NEM LIDERES NEM HEROIS: A VERDADE DA HISTORIA ORAL 136 capitulo 17 JUSTICAE OPINIAD PUBLICA 151 capleule 18 AS MARGENS DALEL 156 capitulo 19 GENERO, CIDADANIA E VIOLENCIA 161 eapleulo 20 BRASIL. NATRANSICAO: CIDADAOS NAO VAO AO PARAISO 187 capteulo 21 RELATIVISMO CULTURAL NA CIDADE? 202 capitulo 22 AMOEDAE ALE! 219 eapieute 23 MULHER DE BANDIDO: CRONICA DE UMA CIDADE MENOS MUSICAL 224 - capttule 24 ACRIMINALIZAGAO DE DROGAS E © REENCANTAMENTO DO MAL 235 capleulo 25 A AUTORIDADE, O CHEFE E O BANDIDO: DILEMAS E SAIDAS EDUCACIONAIS 255 BIBLIOGRAFIA 271 1 Condominio do diabo lugar ndo importa, Pode ser qualquer um, conranto que seja pobre ¢ marginal a esta outrora encantadora cidade. Nele fiquei mais de um ano convivendo e conversando com 0s supastos agentes da vio~ Iéncia urbana. Alguns por serem simples moradores do lugar. Pois 0 que é para nés, além de um grande medo, assunco jornal{stico, para les é nédoa contea a qual tém que lutar diariamente, até com eles préptios na feente do espelho que certa imprenss Ihes montou. Mais tum estigma que, na pressa de descobrir 08 culpados alhures, se thes jimpés. Outros porque sealmente traficam, assaltam ¢ fazem uso da arma de fogo. Eu os vi, observei, escutei ¢ deles ouvi contar muitas estérias. Durante todo esse tempo ouvi também explicades, ou seja, centativas de encaixar o que para eles pode vir a ser uma terrivel tragé- dia pessoal numa Iégics qualquer, na ordem das coisas deste mundo. E claro. Todo mundo sabe o fim dos bandidos pobres: morrer antes dos 25 anos. E ninguém quer ver seu fitho, seu iemia, seu parente ou seu vizinho com este destino, embora haja quem acredite que este ca- minho néo é escolha, é sina. Talvez seja 0 modo que encontram pata dizer que as condigdes em que vivern os levam forsosamente a agir as- sim, Porém, para nio colocar aqui o ponto final, vou me deter nas con- digées que assinalam a razio da escotha com os pedagas de entendi- mento que recolhi deles préprios. Pois capacidade de entender nao fal- taa nenhum ser humano, por mais silenciado e esquecido que seja. E, se algumas vezes seu pensamento nasce da ilusio ¢ se amedronta diante de fantasmas, por outras é de grande bom senso, que surpreende ape- nas aqueles que nao tém, como eu, de ouvi-los por oficio ¢ que desco- nhecem a inteligéncia que se esconde sob as marcas do inculto, inteli- Bincia esta a que se nega ceconhecimento € que, portanto, é cheia de duvidas sobre si mesma. Mas que pensa apesar de tudo. Quando Lemos diariameate estampadas nas manchetes dos jornais as conseqiiéncias funestas ¢ trégicas das batidas policiais, nao é 5 repisar 0 ja dito sobre os aspectos sociais do aumento da criminalidade, Existem claros indicios de que 0 desemprego sealmen- z CONDOMINIG BO DIABO te aumentou nos ltimos anos, com o rérmino do nosso suposto mila- gre. Mas este fato s6 toma proporgées alarmantes em paises como este, em que o desemprego nao sé afasta o trabalhador de qualquer tipo de assisténcia social provida pelo Estado, como o coloca na categoria de criminoso ¢ enquanto tal tratado. Este fato, além de criar situagdes em que o trabalhador, desempregado ¢ 2s vezes também 0 empregado, tem que enfrentar a violéncia do aparato policial, apaga perigosamen- tea distingio entre trabalhador e bandido, distingéo essa fundamental na visto social da populacio pobre desta cidade. “Tanto faz ser traba- Ihador ou bandido”, dizem-me , “o tratamento é igual”. Mas o desemprego ndo se faz sentir na mesma intensidade em codas as faixas de idade nem para tadas as categorias de trabalhadores. Ele é particularmente grave para os trabalhadores mais jovens e menos qualificados, isto é, parte substancial da populagéo economicamente ativa. Com 0 rebaixamento do salirio real dos trabalhadores de baixa qualificaco, os pais de familia no s6 tiveram que suplementar sua renda através de um esforso extra de trabalho, biscateando ou fazendo horas extras, como tiveram que contar cada vez mais com a ajuda de sua familia, inchusive dos filhos menores. Isso sem falar no alto percentual de familias chefiadas por mulheres entre esses trabalhado- res, que precisam ainda mais do auxilio de seus filhos para sobreviver. O problema é que essa entrada maciga de criangas e jovens no merca- do de trabalho nao encontrou a oferta necesséria para absorvé-los, nem as esperaveis modificacées na legislagao. Esses dados podem ser con- firmados pelas pesquisas do IBGE; mas o resultado dessas estat(sticas na vida real é, segundo me dizem, que os menores de 14 anos quase nunca sio empregados porque os patrées temem a fiscalizagio do Mi- nistério do Trabalho; que os maiores de 14 anos, apesar de jé poderem ‘ter suas carteiras assinadas, dificilmente 0 sfo porque 0 aprendizado téenico que recebem na FEEM e emt outras escolas profissionalizantes Pouco tem a ver com o know-how necessério para lidar com as mAqui- nas existentes nas firmas, Esta situagio agrava-se especialmente na pro- ximidade do servigo militar, j4 que é proibido despedir quem vai cum- pri-lo, Servir 0 Exército é, aliés, um pesado 6nus para as familias po- bres, pois elas se privam de um ganha-pio certo e tém que ascar com as pequenas despesas pessoais do fitho. O resultado disso & 0 que vemos nas ruas, sinais, feiras e fren- tes de supermercado, onde bandos de criangas e jovens vendem balas € Candaminis da diaba fazem carteto para ajudar a mae. £ nessa convivencia didria ¢ intensa de tantas criangas ¢ jovens, prematuramente independentes e afasta- dos da vigilancia materna, que se formam os bandidos, com suas pro- prias leis, constitufdas no contexto da luta didria pela sobrevivéncia seus inevitdveis conflitos. E é isto que gera forte solidariedade interna 2 gerasio © uma vida social perigosamente infensa a capacidade edu- cadora dos adultos. Pois slo estes jovens que, de usudrios, passam a comerciantes ou empresirios do téxico, 0 que os leva numa escalada de existéncia exclusiva e de adogio de métodos violentos. Para afugenté-los do trabalho, esses jovens néo contam apenas com as dificuldades de conseguir emprego. Forma-se entre eles, 2 partir de suas préprias experiéncias e da observacio da vida de seus pais, uma visio negativa do trabalho, termo que equiparam 3 escravidao. Escra- vidio ¢ trabalhar de “segunda a segunda" por irris6rios salérios duran: te quase todo o tempo em que se esta desperto. Escravidao ¢ também submeter-se a um patrio autoritério que humilha o trabalhador com cordens rlspidas, que nao ouve nunca, que 0 vigia sempre. Sem serem formados por escola ou religito que lhes passe uma ética rigida de ssabatho, esses jovens cedo aprendem os valores da machismo, 0 que exacerba ainda mais o caréter humilhante da submissio, negacio da marca de um homem. Como fazé-los, portanto, admirar ¢ tomar por modelo o pai que se curva a esta ardua rotina, & exploraga0 € a0 au- toritarismo? Seus herdis sio outros. Na falra de um movimento operi- rio forte de onde saiam I{deres trabalhadores com fama, eles se voltam para os eternos valentes da nossa cultura popular que desafiam, passam rasteira e se negam a este mundo do trabalho. Se antes, por {4, 08 valen- tes eram os simpaticos malandros, hoje sio 0s perigosos e armados ban- didos, A navalha foi substitufda pelo “oitéo” ou minimetralhadora, leal corpo a corpa pela acaia traisocica, a lei do mais valente pela lei do mais armado. Isto nfo quer dizer que, na cultura desta populaséo pobre, prevalesa a recusa de qualquer autoridade ou se descanheca o que € consentimento. Ao contritio, eles opdem muito claramente “vencer na moral” a violéncia das armas, A brutalidade, a dominagio crua dos que se recusam a0 uso das palavras porque com élas nao estio certos de manter 0 seu poder. O trdgico € que 0s que, entre eles, procuram agir “na moral” véem-se impotentes para conter essa avalanche de vis lencia e brutalidade que permeia toda a nossa sociedade hoje ¢ ques 9 CONDOMINIO DO DIABO. portanto, néo se gera ali. Bles também, perplexos, assistem a queda da moral ¢ 3 ascensio do ferro, da méquina, nomes que dio localmente & arma de fogo. Fortes simbolos visiveis do poder, estas armas tornam- se fetiches na cintura de adolescentes franzinos ¢ gatilhos mortiferos nos seus dedos. “Revélver na cintura imp6e respeito", eu aprendo. “Ser um matador”, “ter disposigio pata matar”, faz um garoto “criar fama”. Além do prestigio do local, 0 prestigio entre os bandidos no mundo dos téxicos, porque é de téxicos que se trata, significa poder controlar bocas e subir na hierarquia que vai do avio a0 vapor e por fim ao trax Gcante, tendo assim acesso a parcelas crescentes na divisio dos lucros. Sendo ainda trabalhador ou jé bandido, pois a passagem & de tsabalhador para bandido e dificilmente hi volta, o jovem vé diante de si esta alternativa: o trabalho duro, desinceressante e muito mal pago ow a vida perigosa, aventurosa e curta de bandido. Os mais destemi- 405 €, 4s vezes, os mais talentosos que viram frustradas as suas possibi- lidades de sai daquela vida opressiva de pobres, si 0s candidatos mais certos 8 ultima opcio, que lhes trard fama, poder, dinheito facil morte quase certa. O bandido, eu aprendo, € aquele que “arma a sua propria morte", 0 malandro é aquele que sobrevive. E 0 otitio € 0 que vrabalha muito para ganhar pouco. Nessa luta entre possibilidades, al- guns jovens preferem poder ¢ a fama, embora curtos, € 0 dinheiro, embora marcado. E muitos deles morrem. Porém, os que sobrevivem seclamam cada vez mais do seu viver, principalmente 0s “otarios”. As- sim 0 ciclo continua, aumentando a hoste dos bandidos. Mas muitos no fazem nenhuma opcio consciente e se véem, or circunstancias da vida, sob o révule de bandido. Depois, é dificil voltar atr4s. Néo porque a populacio local nio acredite em regeneta- 40, pois ali conheci alguns regenerados que se apontavam como tal, mas por causa da engrenagem em que entram, inclusive a da policia. © passe inicial pode ser dado por conta do roubo ou humilhagio so- fridos por algum jovem a caminho do trabalho e que tem a desventura de topar com um bandido de outro territério. Ou uma briga por causa de mulher. Ou ainda pode ter sido espancamento, tortura € prisio injusta softidos nas maos da policia. O posto policial local nem se preocupa em esconder que usa a tortura. Todo mundo sabe, todo mun- do ve. E por isso que, entre cles, o policial é uma figura muito temida, mas odiada e desprezada. Nao hi nenhum respeito miituo, nenhsma ética, nenhuma moral, 0 que nem sempre € 0 caso entre bandidos. 10 Condominio do diabe Qualquer um desses inforttinios leva o trabalhador ase armar, seja para defender a propria pele, seja para se vingar, seja porque nada mais importa num mundo injusto. “Revoltam-se", eu ougo, tomando uma arma de fogo emprestada ou comprando uma para botaf na cintu- ta, Este € 0 sinal de sua “revolta’. “Este ¢ 0 condominio do diabo", disse-me um desses jovens, porque, uma vez de arma na mao, 0 jovem se vé envolvido num circuito de trocas (de tiros) implacével nas suas re- gras de reciprocidade. Para sobreviver, 0 jovem “revoltado” tem que se juntar a uma das quadrilhas que dividem entre si o controle da érea. ‘Cada uma tem o seu tertitério proprio e, como disputam lucrative co- mércio, de vez em quando estoura uma guerra entre elas, provocada pela ambicio de dom{nio do territério alheio. Armar-se ¢ uma necessi- dade, pois “ficar desarmado”, eu ouso, significa entrega, a invasio do seu territ6rio, Essa linguagem militar nao é usada apenas pelos bandi- dos, mas por moradores locais que precisam da protecao dos bandidos de sua drea contra os de outra. Porque um bandido, a nao ser que desco- nnheca as regras bisicas da convivéncia com os trabalhadores, jamais rou- ba ou ataca alguém dali. De preferéncia, os bons bandidos, os benquis- tos por todos, coubam apenas aqueles a quem 0 produto do roubo “no vai fazer falea’, isto 6, os que moram nos bairtos ricos desta cidade. E esta a sua ética de bandido social e ¢ por causa dela que alguns se tornam herbis para 0 povo do local. Esse acordo técito de protegio ¢ respeito miituos s6 nao vale nas “trocas” entre dois bandidos da mesma drea. “Isto é Id entre eles”, dizem-me, e ninguém se mete, embora comentem, lamentem ¢ discu- tam 05 resultados das disputas, Mas hoje os trabalhadores pobres des- ta cidade vivem num clima sempre muito perto da guerra declarada, que envolve a todos, bandidos ou nio. E por isso que s40 contra a pena de morte. Ajém de ter visto crescer ou crescido junto com os que passaram a viver como bandidos, eles precisam da protesio dos alti- mos. Ruim com eles, pior sens eles seria. Um casamento infeliz, mas necessério. Parte do problema parece estar, portanto, no modo como sé organiza o tréfico de drogas nesta cidade, até mesmo o da inécua ma- conha. A necessidade de se municiar constantemente, de melhorar suas armas e de pagar o policial corrupto em caso de flagrante ou prisio, acaba levando 0 bandido ambicioso a praticar assaltos. Conheci uma mulher que vendeu 2 casa comprada da CEHAB para soltar o filho u CONDOMINIO DO DIABO reso. Mas este meio, como se vé, nio se pode repetir. O niimero cres- cente de assaltos pode ter sua explicasio nisso. Nao se trata apenas de assaltar para ter acesso aos bens de consumo valorizados na nossa soci edade, que sio simbolos através dos quais construfmos nossas identi dades e marcamos nossas posic6es sociais. Trata-se também de assaltar pata conseguir 0 dinheiro cada vez mais necessario na manutengio do comércio e na alimentagéo dessa engrenagem inexordvel do crime or- ganizado. Uma engrenagem que vincula 0 bandido pobre a certos po- liciais pela corrupcio, que o aprisiona 3 quadrilha pela lealdade devi- da, que o submete 3 hierarquia da organizagio, que o usa como con- denado sem julgamento ¢ como bode expiatdrio e que o faz pagar com sua propria morte os crimes dessa gigantesca rede organizada, a qual ele préprio desconhece, deixando os poderosos chefes impunes. E essa 4 rg fig do bandtiamo urbano no Rio de Jancro, sida por ser lesenterrada, Pensat em conter essa torrente de crimes com batidas polici- ais € como tentar conter Aguas caudalosas com diques de cimento gas- to € corrompido. Mesmo porque, bandido que se preza no sai de casa em dia de batida. Publicado no Jornal do Brasil, 1° de marco de 1981. 2 2 As classes populares urbanas ea légica do “ferro” e do fumo Avvioléncia urbana esté nas ruas ¢ nos jornais didrios. Est no ridio, na televisio e nas nossas preocupagées cotidianas, No entanto, nao somos atingidos por essas diferentes fontes de informagoes sobre a violéncia da mesma maneira, e isso se teflete nas nossas conceps6es acerca dela. A classe social a que pertencemos, o local onde moramos, 0 jornal que lemos, o progiama a que assistimos, bem como a imagem que estes nos dio de nossa classe social e do local onde moramos, constituem ¢ compéem o modo como vivenciamos € pensamos essa violncia. Foi exatamente este aspecto da questio que mais me cha- mou a atenclo & medida em que procurava entrar num bairro que no éhabitado por pessoas de minha condigao social e que, provavelmente por isso mesmo, é considerado um antro de banditismo. Seu nome esteve diariamente estampado nas manchetes dos jornais ¢ seus habi- tances cram acusados da maior parte dos crimes cometidos na Zona Sul do Rio de Janeiro e numa vasta regigo em volta, esta sim habitada or pessoas que tinham acumulado suficiente riqueza para levar a0 paroxismo o medo de perdé-las. Aos primeiros foi reservado o estigma de criminoso indiseriminadamente aplicado a todos os que morassem ‘em tal lugar, aos segundos 0 medo € 0 pinico dos seus pobres morado- res. Este artigo é, portanto, 0 resultado da experiéncia que vivi em contacto com a populasio de uma das areas consideradas mais perigosas neste mal afamado conjunto habitacional da Zona Sul do Rio de Janeiro. Nao é um estudo estatistico para provar a maior ou menor incidéncia de crimes no Rio de Janeiro, nem tampouco a corre- lagao entre criminalidade e pobreza. A abordagem nao é nem quant tativa nem patologizante. Nio lido com estatlsticas e sim com 0 im- pacto da criminalidade na vida social local, ou seja, como os morado- res percebem a criminalidade, 0 banditismo, a violéncia ¢ quais sao, de fato, as categorias verbais que empregam para expressar tais fend- menos. £ 0 modo como circunscrevem estes fenémenos ¢ a que eles se 3 CONDOMINIO DO DIABO opéem no pensamento que procurei registrar. Tampouco avalio 0 ca racer anti-social ou “lumpenizador’das préticas consideradas, seja ju- ridicamente, seja nas concepg6es sociais locais, como criminosas. Ao invés de categorizd-las de fora, procuro perceber como estas praticas se misturam € constituem, com outras, 2 vide sacial local. E como 0 contacto com membros de classes sociais privilegiadas, ou no trabalho ou em atividades extratrabalho, vem a ser a matéria-prima do proces- 0 que leva ao molde social destas priicas ¢ da reflexio sobre elas. ‘Mas, sem diivida nenhuma, nfo entenderia esse proceso se no consi derasse o impacto da presenca fisica da policia no focal, da sua vi lancia constante e acintosamente opressora. £ este 0 organismo do apatetho de Estado que tem agio mais imediata e mais efetiva nas pré- ticas sociais que aqui abordaremos. A pesquisa que iniciei neste conjunte habitacional ndo tinha por finalidade e estudo do banditismo local. No entanto, no decorrer do ano que por Id fiquei, fui juntando um razoavel material acerca do problema, Na verdade, a meu ver, para estudar as quadrilhas interna- mente, ganhando a confianga de seus participantes, seria necessério ficar por lf muito mais tempo, 0 que nao fazia parte dos mews planos. Entrevistei poucos bandidos assumidos, isto é, aqueles que andam de revélver na cintura € que sio reconhecidos como tais pela populacio local. Botar o revélver na cintura tem, entre eles, o sentido de declarar publicamente uma opgio de vida, ¢ de passar a ter com a populagio local relagdes marcadas pela ambigtlidade. Ser bandido € pertencer a esta categoria de pessoas que carregam um estigma e uma indiscutfvel fonte de poder: a arma de fogo. Sua presenga, mesmo quando ausentes fisicamente do local, nos acontecimentos difrios desta populagao é constante. Assim, recolhi muitos cestemunhos de terceiros acerca de seu modo de vida e de seus dramas pessoais e pude reconstituir, atra- vés das estérias variadas e das lendas cristalizadas sobre os poucos que adquitiram uma dimensio heréica no local, o processo através do qual se fez. a sua reputagio. Além disso, como’ qualquer set humano por ais silenciado e esquecido que seja, o pobre que pensa em suas con- digées de vida e centa explicar por que de repente todos se viram en- volvides numa guerra, fossem bandidos ou nio, Juntos, reconstroem a sua histéria, marcando mudancas, assinalando passagens, criando per- sonagens importantes. Essa etno-hist6tia € material imprescindtvel para quem quer que se disponha a entender a questio da violéncia urbana no Rio de Janeiro. “4 As claues populares urbana ea ligica do “ferro” & do fume A associagao entre criminalidade e pobreza ¢ evidente quan- do penetramos nas ruas internas de qualquer dos cconjuntos habiracio- nais “reservados” & poptulacdo pobre dessa cida de. Mas nfo € exatamente a sugerida pelos nimeros das séries e statistic as. Nestas ruas as marcas do que denominamos criminalidade aparecern lade a lado com claros sinais de miséria social e moral. Ruas esburac adas, cheias de lama ¢ de dejetos fétidos dos esgotos jé arreberntados emcami-nham os passos de ‘quem por elas anda, Nelas cruzam.-se sempre (sabalhadores a caminho do srabalho, bébados, mulheres losicas andanclo senm destino, donas de casa quase tempre ocupadas nos seus eterno s afazeres ¢ unr ntimero cada vez maior de desocupados e diese mpregaclos, eriquanto nas esq) nas estratégicas permanecem atentos ¢ Vigilarates os olheiros, os avédes ou 0 vapor. De vez em quando este quadro cotidiano é agitado por uma briga mais violenta a vista de toclos ou u ma “troca”de tiros entre os bandidos e a policia. Muitos mors em esbuacacadwos por ali mesmo. ‘Suas mortes sio presenciadas e comentadas por muitos tempo seo morto tera famoso no local. Antes mais dor que agora pois, © numero de mor- tos jd é tao grande que uma clara dindiferenca ¢ a re agao atual as suias mortes. E nesse cendrio opressor, nes se espago de segregagao moral, nese campo definido de fora como o campo a critrainalidade, que os trabalhadotes urbanos de baixa qualifi cagdo acrumamn e enfeitam suas casas, educam seus filhos, inventam. est ratégias_ de sobsrevivéncia, mon- tam organizagées vicinais para reiv ind icar meLhorias no bairto © para tornar alegre 0 seu lazer. A convivé ncia com os que Optaram pela vida criminosa ¢ inevitével, mas a experdéncia da vi olénci a € didria e cons- tante e vai muito além daquilo que se delim ita como o mundo do crime. Ela perpassa habitos didrios da vida familiar, estd presente nas rotinas da opressio de classe, seja pela preseraga do aparato policial que se comporta de maneira caracteris ticamen.te rep-ressiva diante da populagao pobre, seja pelo quadro de miséria q ue desfila sempre pelas tuas ¢ casas de seu bairfo, seja pela imagem connstruffda por certa im- prensa do criminoso e do crime, vimculando-o sempzxe 3 esta popula- ‘40 pobre. Com a policia, a papulagao local mantém uma relasio a0 mesmo tempo de medo ¢ hostilidade disfargada, desconfianga ¢ bajulacdo, reacio & postura repressiva adotada poor aquiela. Esta postu- 112 se expressa no préprio andar do polieial, na manera de ollaar para 4s CONDOMINIO DO DIABO 0s moradores, no modo de dirigir-se 20s que se encontram naquilo que os policiais definem, quase que por exclusiva autodefinigio, como seu campo de intervengio, bem como na fama que ji adquiriram pot ali de torturadores, matadores etc. “Quem faz 0 bandido é a policia” ouvi de muitos jovens vivendo a crise que antecede a op¢io entre a vida de teabalhador ¢ a vida ctiminosa. Esta afirmagio nunca me foi desenvolvida por nenhum deles, mas o sentido dela me era indicado pelo processo da repressio-medo-revolta do qual vi espocarem intime- ros exemplos diante dos meus préprios olhos. Uma simples festa lo- cal, em que um destacamento da palicia militar participou exibindo seus cies amestrados, serve de ilustragdo para isso. Nela, os cAes pasto- res adestrados pela PM obedeciam imediatamente as ordens que seus instrutores thes passavam de atacar “individuos suspeitos” (repre- sentados na ocasiao por jovens de aparéncia desleixada, cabeludos ou vestides pobremente) para descobrir-lhes, pelo olfato, os pacotes de téxico ¢ imobilizé-los com os dentes até que os policiais os prendes- sem. A ligdo tinha endereso certo ¢ isso ficava patente nos olhares amedrontados dos jovens que assistiam 3 exibigao. A representagio de criminoso como um pobre é suficientemente indicativa por si. Mas isso nao é tudo, O posto policial local nfo se preocupa em esconder que usa a tortura ea violencia fisica sobre os presos, culpados ou no. Ao contririo, este fato bem sabido por todos faz parte da imagem do policial poderoso. E isso que garante o grande medo que inspiram. E © nenhum respeito conquistado na base da moral, que nunca chegam a conseguir, Nio é por coincidéncia que o alvo dessa técnica de amedron- tamento, que decerto no podemos chamar de educadora, € o jovem morador. Pois sabe-se por Ié que o recrutamento para a “vida de ban- jo” se dé na faixa de idade que comeca por volta dos 10 anos, quan- do os garotos jé iniciaram a carreita fazendo mandades para os trafi- cantes, ¢ termina por volta dos 25 anos, quando a maioria dos bandi- dos pobres desta cidade jf dessangrou com algum tiro no corpo. O processo através do qual o jovem opta pela vida de trabalhador ou pela vida de bandido ainda néo tem um quadro completo na histéria trdgica das familias de trabalhadores urbanos pobres. Do que registrei de histérlas de vida e de entreviseas com jovens, posso repetir pedagos de entendimento recolhidos deles préprios, embora esse entendimen- to se revelasse muitas vezes conttaditério. Mas € certo que estamos diante de um personagem novo ~~ 0 bandido — que é bem diferente 16 Ar clases popular urbanas¢ 4 igica do “ferro” ¢ do fume malandro que outrora mandava nestas paragens, e que 0 apa recimentto desse novo personagem nfo se deve excRusivamente a faltrde emprepso provocada pela crise econdmica. - E na faixa de idade dos 10 aos 25 anos que o jovem comega a se inserir no mercado de trabalho ¢ que dificuldades de var ias orders passam a surgir, A existéncia de centros profissionalizantes mo conjura- to habitacional nao ¢ suficiente para araular o efeito de uma aprend3- zagem paralela ¢ muito mais aprofundlada que é feita por qualquer garoro na complementagio da renda familiar: o biscate. Esta é uma expetiéncia intransponivel. Nao € mais: possfvel para as familias Le trabalhadores urbanos de baixa qualificagio, sejam familias completas ou familias incompletas chefiadas por mulheres, prescindir da ajud.a de seus filhos menores na formagio da renda Familiar. E isso os leva a sair de controle materna ¢ pracurar meios de renda em biseates pel a cidade junto com muitas outras criangas. Mesmo os jovens que consegue m freqiientar escolas ¢ curso s profissionalizantes tém que enfrentar mais tarde a inadequagto deste s 3 realidade da maquinaria usada nas fibbricas dle tecnologia avangad= existentes hoje no pals, bem como as barseiras colocadas pela atua 1 legislagao 20 trabalho do menor € 20 candidato ao servigo militar. Come a lei probe despedir aquele que vai servir as forgas arrnadas, 03 PatrSes preferem nio contratar jovens menores de 18 anos, « servir pitria acaba tornando-se um pesado énus para a familia pobre. Para complerar 0 quadro de dificuldades de acesso a0 empre— g0, as barreiras sociais do preconceito e

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