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Contribuigées de BOLIVAR LAMOUNIER FRANCISCO C; WEFFORT BOLIVAR LAMOUNIER MARIA VICTORIA BENEVIDES CLOVIS CAVALCANTI ’ FABIO KONDER COMPARATO FRANCISCO C. WEFFORT JOAQUIM DE ARRUDA FALCAO PAULO SERGIO PINHEIRO PEDRO SAMPAIO MALAN, WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS (organizadores) Comentarios de ALBERTO VENANCIO FILHO DIREITO, DAVID TRUBEK CIDADANIA E PARTICIPAGAO HELIO PEREIRA BICUDO LUIS J. WERNECK VIANA \ MARCOS COIMBRA MARIO BROCKMANN MACHADO PAUL ISRAEL SINGER: Biblioteca MA PUuCSP ‘ ball 100021039 Sio Paulo Capa: DITO, bE ARTE DA TAO Diritos reservodos TA QUEIROZ, EDITOR. LTDA Rua Joaquim loriano, 733 — 4 (04534 Sto Paulo, SP. 1981 Impresso no Brasil SUMARIO Apresentacao (F.C. Welfort, B. Lamounier, M. V. Bene- vides)... ¢ficio (Raymundo Faoro) . DIREITOE CULTURA 1, Cultura juridica e democracia: a favor da democrat zagio do Judiciério Uoaguim de Arruda Faledo Neto) Comentarios (Mério Brockmann Machado) 2. Violéncia e cultura (Paulo Sérgio Pinheiro) Comentarios (Hélio Pereira Bicudo) DIREITO E ECONOMIA 1. Tristes processos econdmicos: 0 padrao recente de desen- volvimento do Nordeste (Clévis Cavalcanti) Comentarios (Paul Israel Singer) ve 2.; Desenvolvimento econdmico e democracia: a problem: tica mediagao do Estado (Pedro Sampaio Malan) Comentarios (Alberto Vendncio Filho) . DIREITOS SOCIAIS E PART IPAGAO 1. A cidadania dos trabalhadores (Francisco C. Weffort) Comentarios (David Trubek) 2. Reflexdes sobre a questo do liberalismo: um argumento provisario (Wanderley Guilherme dos Santos) ‘Comentirios (Marcos Coimbra) . DIREITOS POLITICOS E CIDADANIA A ASeguranga e democracia (Fibio Konder Comparato) Comentarios (Celso Lafer) Ix x1 2 31 61 a 105 ut 131 14 183 187 1 199 227 2. Representacdo politica: a importancia de certos forma- lismos (Bolivar Lamounier) .... Comentarios (Luis J. Werneck Viana) Encerramento (Eduardo Seabra Fagundes) . .. 233 261 a APRESENTACAO Este volume retine 0s trabalhos apresentados ¢ debatidos no 1° Seminério sobre Direito, Cidadania e Participacdo, realizado em Sao Paulo, na Pon- tificia Universidade Catdlica, de 26 a 28 de junho de 1979. Organizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contempordnea (CEDEC) e pelo Centro Brasileiro de Anélise ¢ Planejamento (CEBRAP), 0 Seminario contou com 0 patrocinio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) € da Associagdo Nacional de Pés-Craduaco e Pesquisa em Ciéncias Sociais, assim como com o apoio da Fundagdo Ford. Apés um longo perfodo no qual a preocupagio com os direitos umanos ¢ as liberdades democrdticas era, indiscutivelmente, prioritéria, as exigéncias do momento presente, reforgando aquela preocupacio, recolocam, de forma inarredivel, a busca de novos caminhos para a demo- cracia, Esses caminhos passam pela efetiva extenso da cidadania e da participago a todos os setores da sociedade, problema antigo € sempre mal resolvido na hist6ria brasileira. A questo da ampliagdo da cidadania da participagdo € percebida, hoje, como condigdo indispensavel para o desenvolvimento de uma sociedade mais livre e de uma democracia estvel no pais. E por ampliaggo da cidadania entenda-se também ampliagao no campo do Direito, seja através da reforma das instituig6es existentes (na area sindical, por exemplo), seja através da reivindicagfo por maior efi cécia no funcionamento das instituigbes (no caso da justiga, por exemplo). Mais do que 0 momento de uma afirmagio doutrindria de pri pios, 0 objetivo deste Seminario foi, portanto, marcar uma avaliagdo cr tica das relagdes entre Diteito e Sociedade no Brasil contemporineo. 0 desafio urgente na denuncia — jé cldssica, mas nao superada — das trati- g6es elitistas e autoritérias do pensamento ¢ da prética politica no Brasil aponta e justifica a prioridade dos temas abordados. Bastaria lembrar, entre utras questées,a persisténcia da mesma indiferenga ~ historica ~ da socie dade frente 4 violéncia institucionalizada, voltada sobretudo contra as clas- ses populares; da descontfianca, antiga e sempre renovada, das classes dom X ~ Apresentagio nantes em relacdo a todo e qualquer movimento reivindicat6rio dos traba- Ihadores; do ceticismo impenitente quanto & viabilidade de uma auténtica representacfo politico-partidéria; da defesa inquestiondvel de um modelo econdmico sabidamente marcado pelo aprofundamento das desigualdades; ¢, finalmente, do reforgo aos poderes do arbitrio, distanciando-se, na teoria ¢ na pritica, a possivel convergéncia dos interesses da sociedade civil e do Estado. caminho da assim chamada abertura democritica, iniciado com 0 fim do Ato Institucional n® 5, impde uma revisfo, mais atual e mais comprometida, das tarefas particulares e concretas que s¢ apresentam a inteligéncia brasileira. O seminério nasceu dessa consciéncia € dessas preocupag6es, motivado pela nevessidade de proporcionarse um encontro entre advogados, cientistas politicos, economistas, juristas € socidlogos, dedicados a um trabalho de interesse comum. A partir do levantamento dessas quest6es, vinculadas a reflexto biésiea sobre os novos caminhos para a democracia, 0 programa do Semi- nério foi elaborado em tomo de quatro grandes temas — Direito e Cultura, Direito e Economia, Direitos Sociais e Participagdo e Direitos Politicos ¢ Cidadania ~, cada qual dividido em dois subtemas ¢ contando com a par- ticipago de um expositor e um debatedor. Os painéis de debates foram presididos, respectivamente, por Cindido Procépio Ferreira de Camargo, Victor Nunes Leal, Evaristo de Moraes Filho e Miguel Seabra Fagundes. A sesso dé abertura do Semindrio foi presidida por Raymundo Faoro, presidente do Conselho Federal da OAB na ocasido das primeiras reuniGes para a realizago do encontro, e a sesso de encerramento, pelo novo presidente, Eduardo Seabra Fagundes. Ao decidir pela publicagao desses textos, os organizadores do Semi- nério, representando 0 CEDEC ¢ 0 CEBRAP, desejariam prestar uma contribuigo a0 debate nacional. Esperam, também, novas oportunidades para encontros desse tipo, € que sejam cada vez mais proximos do obje- tivo @ que se propdem: a consolidaggo de um espago para o debate li- ‘re, numa sociedade na qual temas como controle da coer¢do legal, tonomia sindical, representago partidéria ¢ eleigOes diretas, desigual- dades regionais, sociais e econdmicas, nfo sejam apenas retérica nos moldes eléssicos do liberalismo restrito, mas a expresso da conjugagfo concreta da liberdade e da igualdade, no entrosamento duradouro do Direito, da Cidadania e da Participagio. Maria Victoria Benevides (coordenadora) Francisco Corréa Weffort (CEDEC) Bolivar Lamounier (CEBRAP) So Paulo, abril de 1980. PREFACIO RAYMUNDO FAORO* Reaproximamos, ainda uma vez, depois do éxito da tentativa de Curitiba, durante a Conferéncia Nacional, os advogados dos cientistas sociais e poli- ticos, que, hd algum tempo, se encontram extraviados em especializagdes pouco compativeis com o seu papel na mesma cidade intelectual. De nossa parte, a dos advogados e juristas, cultivamos, pela presstio do mercado de trabalho, 0 ensino de amestramento no offcio, sem indagar do pressu- posto das leis e de seu alcance social e cultural. Dos cientistas sociais ¢ politicos — digo-o sem intengdo de formular reparos — estavamos distan ciados pelo hermetismo, nfo apenas de linguagem, senfo de uma teoria pouco comprometida com a dindmica social. O resultado desse desen- contro, que,nos dois campos bloqueou a teoria na prética, teria sido a ideo- logizagdo de nossos conhecimentos, ndo raro utilizados para justificar © passado e 0 presente, sem que cuidéssemos de mudé-to, transformé-1o € reconhecer-the a dialética nas suas contradigBes e na superagdo de ilhas ainda operantes, habitadas de gente hostil a atividade do continente. Este Semindrio, fonte e matriz de outros, experiéncia ¢ estudo de convivéncia, nfo tem o objetivo de explicar o pais. Se ele abrange a cida dania € a participago, problematizando-as, tem em conta, implicita- ‘mente, que no pretendemos preparar nenhum projeto, nenhuma receit enderegada eruditamente por um setor da sociedade civil para os labo ratdrios da sociedade politica. Esta fase, a do intelectual como assessor do poder, desejamos todos que nfo mais exista, que se dé por morta ¢ () Quero manifestar a0 Cento de Estudos de Cultura Contemporinea (CEDEC) @ 20 Centro Brasileiro de Andlise ¢ Planejamento (CEBRAP) o reconhecimento pela honra de presidir a sessfo de abertura do Seminirio Diseito, Cidadania © Participagio. Distingue-me a generosidade do CFDEC, pelo seu inspirador ¢ Presidente, Prof. Francisco Weffort, particularmente pelo fato de me haver ‘chamado para 0’ seu convivio apés 0 témino de meu mandato na Ordem dos Advogados, que teve a oportunidade, para engrandecé-a, de patrocinar este enoontt. XI — Preficio sepultada. Vamos buscar tragar 0 perfil de preocupagGes, como acentuet, ‘que ndo substituam a teoria pela ideologia, e que vinculem e reintegrem @ primeira na consciéncia e no préprio dissidio social e cultural, sem dissimuld-lo nem conciliélo na conhecida, ¢ muito conhecida, mani- pulagfo da conciliagéo dos inconciliéveis. O conflito, que esta na raiz da sociedade, hé de se legitimar — entra ai a fung0 do direito — sem escamoted-lo em fSrmulas, em favor da imobilizagio do transitério. A propria estrutura do compromisso, que muda de contetido de acordo com a técnica do momento social, como demonstrou Otto Kirchheimer, hé de atender aos interesses das forgas sociais e econdmicas realmente atuantes, sem que, sobre esta pedra, se consagre 0 dominio do velho sobre 0 novo, do caduco sobre o vivo. O cientista social, e mais do que ele, o cientista politico, hi de recor: dar sempre — como na fabula do escritor desventurado — que a viagem a0 territério da Mancha nfo se empreende solitariamente, mas na com- panhia do deménio que o prosaico escudeiro inventou para seu tormento, ‘onde os gigantes se transfiguram em seres do quotidiano e os esquadr6es saidos do pé a0 pé nfo retomam. s temas tratados neste semindrio, basicamente decorrentes de uma preocupacdo prioritéria com a defesa dos direitos humanos e o restabele- cimento pleno da democracia no pais, refletem o desafio da conjugaglo da liberdade politica a liberdade como participacS0, no reconhecimento explicito das quest6es de interesse social e popular. A avaliagSo critica das relagdes entre cultura e as instituig6es juridicas, entre direito e economia, entre direito e politica social, sugere questOes de atualissima urgéncia para todos os que frequentam esta drea de necessério e fértil inconformismo: a violéncia institucionalizada; a autonomia sindical e a representatividade partidéria; 0s falsos dilemas para a execugdo de politicas sociais e econd- micas do ponto de vista dos interesses da sociedade civil e nfo do Estado. Nao podia, considerados os temas que nos ocupam, ser mais proprio © tempo para os debates aqui travados. Esta é uma hora de reformulag6es, de esperangas na emergéncia da sociedade civil, compreendida além do formalismo hegeliano, que, para se expressar, hi de se articular a um pacto social e jurfdico, que, de alguma maneira, hd de depender de nés, de nossa inteligéncia, mas sobretudo do exereicio da determinago de atuar, prote- sido pelos direitos amplos da cidadania. DIREITO E CULTURA 1 CULTURA JURIDICA E DEMOCRACIA: A FAVOR DA DEMOCRATIZACAO DO JUDICIARIO JOAQUIM DE ARRUDA FALCAO NETO* Este trabalho! estd estruturado a partir de duas perspectivas interligadas. ‘A primeira retoma clissica discuss4o sobre 2 participagdo dos cidadaos no regime democrético. O ideal demoerdtico — atuando como idéia- forga — aponta para o aperfeigoamento constante dos mecanismos de participagio popular nas decisdes piblicas. Tendo a sociedade modema, tecnoldgica e de massas, tomado distante a possibilidade da participagdo direta de seus cidaddos na gestio do Estado, o ideal volta-se para 0 aper- feigoamento dos mecanismos de representagdo coletiva ‘A tarefa do aperfeigoamento da representagio coletiva tem focali- zado privilegiadamente ou o Legislativo, donde as discussOes sobre par- tidos politicos e sistemas eleitorais, ou 0 Executivo, donde as discussbes sobre grupos de pressfo, representacdo setorial ¢ institucional, e sobre 0 processo decisério das politicas piiblicas. Se, no entanto, entendermios, como o faz Bolivar Lamounier, que 0 problema da representagio envolve toda comunicagdo entre sociedade civil e Estado, também no Judiciério se coloca, ou deveria colocarse, a discussfo sobre a representagio coletiva, ‘Aqui reside nossa segunda perspectiva: a perspectiva que focaliza © Judicidrio como uma das instituigdes do Estado onde o ideal democré- tico impde também a tarefa de aperfeigoar os mecanismos de represen- tagfo coletiva. No Judicifrio esta tarefa abre duas possibilidades. A pri- meira, quando do recrutamento dos juizes e da selegfo do rito processual. Donde as discuss6es sobre a origem de classe da Justia, e a Justica po- pular. A segunda, quando da efetiva apreciago dos conflitos sociais jé transformados em aco judicial. Donde as discuss6es sobre os obstéculos (+) Professor do PIMES (Programa Integrado de Mestrado), de Recife, PE. (A) Agradego aos professores Délio Maranhdo, Jorge Hlilério Gouveia Vieira, Pedro Montenegro, Roberto Mangabeira Unger e Francisco Britualdo Canecant, ue discutiram e deram valiosas sugestdes & versGo preliminar deste texto, bem como a Alexandrina Saldanha Moura pela participagio na parte de pesquisas. A respons ilidade 6, no entanto, unicamente do autor. 4 ~ Direito e cultura que impedem determinadas classes sociais de levarem a0 Judiciério os conflitos em que se envolvem no quotidiano. Donde as dicuss6es sobre © acesso A Justiga. A primeira delimitagGo de nosso tema ¢ esta: tratase de focalizar 0 acesso a0 Judiciério como um mecanismo que pode ou nfo estar a favor da implementagio da representagfo coletiva dos cidadfos, como aperfeigoamento do ideal democratico, ‘Quando focalizamos © Judicidrio brasileiro pelo prisma do acesso que a ele podem ter as diversas classes sociais, no fundo colocamos inda gag%0 maior. Por um lado, reforgamos a crenga na organizacao tripartida do poder do Estado, como ainda sendo a melhor forma organizacional para se atingir o ideal democrético. Por outro, perguntamos como numa sociedade de classes como a nossa esta organizagdo do poder pode deixar de ser apenas operacionalizago do interesse egoistico da elite. Ou seja, estaria 0 Judicidrio cumprindo a fungdo que na democracia o legitima aos olhos do cidadgo: de equacionar conflitos sociais? E mais: de que maneira, na sociedade hierarquicamente estratificada, a favor de quem, contra quem € em nome de quem esté cumprindo essa fungao? Qualquer diagnéstico sobre o Judicidrio de hoje dificilmente deixaria de constatar trés aspectos desalentadores. Em face do baixo nivel de remu- neragdo de pessoal, do conservadorismo administrativo e do desaparelha- mento técnico, constata-se um Judicidrio operacionalmente ineficiente. Em face de elevados custos processuais, de excessivo ritualismo profis: sional ¢ de rigida estrutura de poder, constata-se um Judiciério social- mente elitist, Finalmente, em face de preciria autonomia econdmica ¢ financeira, de um processo formal de selegdo de juizes de subservientes telagdes com 0 Executivo, constata-se um Judicidrio politicamente depen- dente? Nao é, no entanto, sob nenhum desses trés aspectos — 0 da inefi- cigncia operacional, 0 do elitismo social e 0 da dependéncia politica — que pretendemos tratar do problema do acesso & Justiga. Nosso compro- isso temético € com a cultura juridica. Interessa, entfo, identificar os mecanismos da cultura juridica dominante que viabilizam ou nfo 0 acesso! das classes sociais a Justiga. Vale dizer, interessa identificar como, por exemplo, no direito processual, 0 conceito de partes legitimas de uma agfo esté ou nfo a favor do aperfeigoamento da representacio coletiva. Donde do regime democratico. Especifiquemos melhor nosso pensamento. A cultura juridica domi- nante fomece as caracteristicas das normas, das leis em vigor. Vale dizer, (2) Nos Giltimos 15 anos, © controle do Judicidrio pelo Executivo foi tecnicamente ‘aumentado pela maior parcela de poder que passou a deter o Procurador Geral da Repiblica, representante do Presidente da Repiblica na administragio a Justica. F, por exemplo, o caso da arguigfo de inconstitucionalidade das leis, que pasta agora antes pelo crivo do Procurador Geral Direito e cultura — § estabelece, por exemplo, a necessidade ou ndo de um Cédigo de Processo Civil, que por sua vez estabelece, através de seus artigos, quais os contflitos sociais que poderdo vir a ser apreciados pelo Judiciério. Ocorre que esta selegfo de conflitos que se pretende limitada a nivel jurfdico, traz conse- quéncias para a disputa que travam os grupos e classes sociais pelo poder e pela riqueza social. Em outras palavras, a tipologia dos conflitos sociais embutida em qualquer ordem legal, é também vitima da estratificagd0 social.? Aqui se faz necesséria a pergunta: “Até que ponto, selecionando direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, pouco importa, 08 conflitos apreciados pelo Judiciério, a cultura jurfdica seleciona também (os grupos e classes sociais que tém acesso a Justica? E em que condig6es?” ‘outras palavras, qual o eventual contesido politico da fungdo seletiva ‘da cultura jurfdica? A segunda delimitago do nosso tema é, portanto, (© eventual contetido politico da fungfo seletiva da cultura juridica atual. \-y Antes de tomar menos érido o inicio deste trabalho, descrevendo |trés casos de conflitos sociais e relacionando-os com 0 tema do acesso, hd que se explicitar desafio maior embutido no estudo da cultura jurf- dica como mecanismo que viabiliza ou dificulta 0 acesso a Justica. Na verdade, existe diferenga fundamental quando se admite como eventual obstéculo & Justiga, por um lado, a ineficiéncia operacional, 0 elitismo J social ¢ dependéncia politica, e, por outro lado, a cultura juridica | E que aqueles, os primeiros, so explicitamente patologias, desvios de | curso ideal. Ninguém os defende. Embora muitos deles se aproveitem. | Todos se unem contra tais patologias. Pelo menos a nivel de ret6rica, | © com certeza a nivel das intengdes. Com a cultura jurfdica ocorre o in- verso. A primeira vista nfo aparece como desvio, patologia, obstéculo, ‘Muito pelo contrério. Apresentase sempre como mecanismo viabilizador ideal democrdtico. O diteito processual pretende estar a favor, € nfo contra o acesso A Justiga. Pretende estar a favor, e ndo contra a participa- ‘980 de todos os cidadios no equacionamento judicial dos conflitos em que se envolvern. Se, no entanto, constatarmos que a cultura juridica dominante ¢ liberal e que, como ensina a Histéria, no liberalismo associado a0 capit lismo a separagdo entre o ideal democrdtico e igualitério ¢ a praxis autori- (dria e hierdrquica € levada ao extremo (Unger, 1976), temos que deixar a porta aberta para uma hipdtese. A de que a cultura jurfdica, em vez de aproximar, afasta a nagio do ideal democrético. Ou seja, situando histo icamente nossa temética: “Como se processa a fungdo seletiva politica @) Ver, a propésito, 0 trabalho do Prof. Boaventura de Souza Santos, sobre, a ‘ordem tegal numa favela do Rio de Janeiro em “The Law of the Oppress: Law and Society Review, U.S. A.,12 (Fall): 5-126, 1977. 6 — Direito e cultura de uma cultura juridica, numa sociedade marcada pelo discurso liberal ¢ pela priéxis autoritéria?” Em outras palavras: uma das marcas que defi nem a faléncia do liberalismo, sobretudo em pais economicamente depen- dente, é menos seu discurso ideolégico que a associagGo deste discurso com meios radicalmente inadequados para realizar seus objetivos explici- tados. Esta associagéo nfo é gratuita, nem autdnoma. Ao contririo, ela resulta da evolugo das relagdes entre as diversas classes sociais, ¢ como essa evolugdo se traduz no relacionamento do Estado com a sociedade civil. Em nosso pafs, reflete basicamente tanto seu compromisso com 0 Estado como 0 compromisso deste Estado com a manutengfo da posigl0 privilegiada da elite na hierarquia da sociedade civil. ‘A cultura juridica, portanto, pode também revelar essa face, a de meio inadequado aos seus objetivos gerais explicitados. Por isso, a identifi- cagdo da eventual fungdo seletiva do direito provessual € tarefa que exige duplo esforgo. Exige ultrapassar a evidéncia do discurso juridico, que nega formalmente a fungdo seletiva, Exige buscar na constatagfo empirica, vale dizer, na avaliago das consequéncias da interferéncia, ou nfo, do Judicidrio no provesso onde as classes sociais disputam 0 poder, os even- tuais limites ideol6gicos da cultura juridica dominante. Assim, o problema da representag0 coletiva no direito processual, que ocupa a primeira parte deste trabalho, constitui um estudo de caso, através do qual identifi- camos a concepgao de conflito e de contrato que esté por trés da ordem legal e da praxis de nosso Judicidrio. Nao se trata, pois, de um trabalho exclusivamente de direito proces sual. O tema de direito processual faz parte de uma estratégia epistemol6- ica. Constitui a via de acesso que permite identificer as insuficiéncias do liberalismo cldssico como fundamento de uma cultura jurfdica que pre- tende viabilizar o ideal democrético. Estratégia epistemolégica que opde uo dogmaticamente dedutivel o empiricamente indutivel. Daqui por diante, o trabalho desdobrase em duas partes principais: a primeira € mais técnico-juridica, focaliza a préxis quotidiana do Judi- Cidrio através do estudo de trés casos, trés conflitos encontradigos no quotidiano dos nossos cidadfos, ¢ como estes conflitos chegam ou nfo a apreciagfo do Judiciério; a segunda, mais politico-juridica, pretende ana- lisar as conseqiéncias da interferéncia ou nfo do Judicidrio nos conflitos mencionados, tendo em vista o ideal democrdtico da sociedade. Trés casos. Conflitos exemplificativos [As questdes iniciais que nos orientam a0 descrever estes trés casos representativos da cena brasileira contemporénea sfo as seguintes: Em que condig6es pode o Judicidrio interferir no equacionamento dos con- flitos que a seguir descrevemos? Especificamente, quais as vias de acesso Direito e cultura — 7 abertas pelo direito provessual para que 0 Judicidrio aprecie estes con- fitos? © primeiro caso conta a historia de um assalariado que em 1969 obtém financiamento do Sistema Financeiro da Habitagfo, dentio dos programas habitacionais das COHABs. E 0 mutusrio do contrato de finan- ciamento para aquisiggo de bem imével, com pacto hipotecdrio adjunto, Diante de si, no correr do contrato, tem trés possibilidades: 4a) mantém seu nivel salarial, mantém em dia as prestagBes, no tem pro- blemas com a qualidade da construgfo nem com os servigos piblicos correlatos; +b) reduz seu nivel salarial, atrasa as prestagOes, tem problemas com cons- trugfo ¢/ou servigos piblicos; ¢) reduz seu nivel salarial, ndo paga prestagoes, fica inadimplente, o con- ‘rato € executado judicialmente. © que a imprensa e as estatisticas nfo reveladas do BNH indicam é que no Brasil, hoje, prevalecem as hipdteses 6 e c. © segundo caso conta a histéria de um jovem, do Nordeste, estu- dante da escola média, sem maior qualificago profissional, que depois de muita dificuldade consegue colocagzo numa grande empresa, Eo em pregado sob contrato de trabalho, servente, balconista ou caixa de super- mercado. Diante de si, no corter do contrato, a0 constatar as precdrias condigdes de higiene ¢ seguranga de trabalho, ou a exigéncia abusiva de horas extraordindrias, tem trés possibilidades: 4) reclama pot seus direitos junto ao empregador, é atendido, e mantém seu vinculo empregaticio; +) leva sua reclamagio ao Sindicato e/ou a Delegacia Regional do Traba- tho, que providencia junto a empresa o reconhecimento e 0 respeito 408 direitos do empregado; ) ou simplesmente adaptase a situago, com medo de perder o emprego € nfo conseguir outro, © que a imprensa ¢ a Justiga de Trabalho hoje indicam é que no Brasil prevalece a tiltima hipotese. © terceiro caso conta a histéria de uma empresa privada. Emprei- teira, ento credora da Secretaria de Obras do Estado pela prestagio de servigos jé executados. Ou industrial, ctedora de uma agéncia de desen- volvimento federal, SUDAM por exemplo, para receber a parcola de recursos pilblicos de incentivos fiscais, contrapartida dos recursos privados J4 investidos no projeto em implantago. Cumpridas suas. obrigagdes Contratuais a empresa tem diante de si trés possibilidades 4@) recebe seu crédito no prazo contratual estipulado; >) sfo feitas exigéncias suplementares, de servigos ou documentais, para lelas ao contrato, que protelam 0 recebimento; depois de cumpridas 8 ~ Direito e cultura © pagamento devido ¢ efetuado sem corregdo monetéria pelo atraso; ¢) simplesmente & obrigada a esperar pelo pagamento, sem maiores expli- cagbes, até o dia em que a disponibilidade de caixa da Secretaria de Obras ou da SUDAM o permita (© que a imprensa e as continuas reivindicagSes dos empresdrios indicam € que no Brasil, hoje, prevalecem as hipdteses b € A cultura jurfdica liberal Atualmente, para que 0 Judiciério aprecie qualquer um desses casos, as partes envolvidas tém que preencher os requisitos do artigo 3° do Cédigo de Processo Civil, que diz: “Para propor ou contestar ago € neces- sério ter interesse e legitimidade.” A doutrina chama esta legitimidade de legitimatio ad causam. Significa que “sd o titular de um diteito pode discutilo em juizo” (Barbi, 1975, p. 116). Consiste “na individualizagdo daquele a quem pertence o interesse de agir € daquele em frente ao qual se formula a pretensfo levada ao Judicidrio”. (A. Buzaid, apud Marques, pp. 160.) Por sua vez, ter interesse significa nfo somente ser o titular de ‘um direito, mas que este direito esteja ameagado. Significa que “sem a intervengfo dos érgfos juridicionais 0 autor sofreria um dano” (Chio- venda, apud Barbi, p. 29). Finalmente 0 artigo 69 do Cédigo de Processo Civil esclarece, complementando: “Ninguém poderd pleitear em nome préprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.” Minha primeira observagio & a de que na medida em que o direito processual reduz 0s conflitos, como 0s dos casos que mencionei, a con- flitos individuais, deixa de apreender sua natureza real, O conflito do assa- lariado com a COHAB, do empregado com o supermercado, da empresa com a Secretaria de Obras, dificilmente pode ser caracterizado como con- {lito individual. Trata-se, na verdade, de conflitos mais complexos, envol- vendo segmentos da coletividade. No decorrer do trabalho explicitaremos melhor nossa posigfo. Na verdade, a intervengo do Judicidrio, tal qual determinada pelo Cédigo ¢ pela doutsina dominante, foi desenhada a partir da concepe&0 de contrato, através da qual o liberalismo vé as relagSes sociais. As princi- pals caracteristicas deste contrato s40: 4) partes iguais e individualizadas; ) relacionadas por vinculo de coordenagéo; ¢) detentoras de autonomia de vontade. Concepgfo que entende 0 conflito, contrapartida do contrato, nfo como resultante de divergéncias entre grupos e classes sociais, mas de diver géncias entre individuos. Individuos iguais pela prépria natureza humana, aluando com determinagfo de vontade, livres. E 0 padrio liberal clés- sico. Quando traduzido @ nivel econdmico, serve para também legitimar, Direito ¢ cultura — 9 no regime capitalsta, a nBointervengdo do Estado, privilegiando © mer- ‘ado em detrimento do Estado, a concorréncia em detrimento do plane mento. © olhar atento do leigo dispensa qualquer verificagdo empitica quantitativa para constatar que este padrdo, liberal clissico, é dectes- Gente no Brasil de hoje. Encontradigo, talvez ainda, no direito de familia, ‘Mas, para as relagSes politicas e econdmicas, novo tipo de contflito emerge, ¢ estd latente nos {18s casos mencionados. Tratase de conflito que tem como partes de um lado um segmento da coletividade e, de outro, uma grande organizagfo estatal, sobretudo do Executivo. fo caso do mutuério com @ COHAB, da empresa com a Secretaria de Obras. E mais, 0 conflito do contribuinte com o Ministério da Fazenda, do empresirio com a SUNAB, do cidadio com o aparato policial, do consumidor com a empresa de servigos piblicos. Trata-se também de conflito entre um segmento da coletividade © uma grande organizagdo privada. SG0 0s casos do empregado com 0 supermercado, do posseiro com a imobilidria, do correntista com, © banco, do consumidor com a revendedora de automéveis, do assalariado com a construtora, do trabalhador rural com a usina, Ainda & dificil especificar detalhes deste novo padrfo. Vo depender sobretudo da evoluglo das relagbes entre sociedade civil e Estado. Se, no entanto, tomarmos como referencia 0s casos méricionados, identificamos alguns pontos de convergéncia. Trata-se de conflitos entre: 4) partes desiguais e ndo-individualizadas, de um lado um segmento da coletividade e, de outro, uma grande organizagdo publica ou privada; +) partes com graus diferenciados de autonomia de vontades; 6) partes relacionadas por vinculo de subordinagZo econdmica, politica, ou ambas. ‘este novo padrdo de contlito chamamos padifo emergent. ‘A inadequagio da cultura juridica que privilegia o padrfo liberal cléssico em lidar com 08 conflitos do padrlo emergente € faciimente explicitada. Da andlise do Cédigo de Processo Civil e da doutrina da legitimatio ad causam depreende-se que os mecanismos que viabilizam 0 a0ess0 a0 Judicidrio sf0 dois: o mecanismo da individualizagfo do conflito € 0 mecanismo da iminéncia ou ocorréncia do dano. Vejamos um a um. © mecanismo da individualizagZo dos conflites, para estar coerente com 0 arcabougo liberal ser socialmente eficaz, deve provar a existéncia das seguintes condigges empiricas 42) a condigfo de igualdade das partes; ) a condigdo do isolamento dos contfitos; €) a condigdo de que o beneficio € maior que o custo. A condigfo de igualdade das partes pressupde que as relagbes entre 8 cidadios sejam de coordenagio, ¢ desdobra-se em diversos aspectos b 10 — Direito e cultura como: partes conscientes e concordes com seus direitos legais e meios processuais para exercé-los; partes com alternativas de comportamento antes, durante e depois da ago judicial; e, finalmente, partes com idén: ticas possibilidades de suportar custos financeiros, politicos e sociais da ago judicial. Evidentemente, inexistem no Brasil estudos empitico: quantitativos que nos fornegam dados precisos, evidenciando a falécia destes pressupostos liberais. Facil de perceber, no entanto, pelo senso comum, que no Brasil de hoje dificilmente seu cidado mediano preenche a condigo de igualdade. Sem mencionar 0 cidadao das classes populares, @ maioria, Sdo requisitos encontradigos nas grandes organizagées piiblicas ou privadas, ou em poucos privilegiados membros da elite. Facil também de perceder 0 quio dificil € pressupor que numa sociedade de classes, como a nossa, as relagGes entre os cidaddos se caracterizem pelo vinculo de coordenagdo. Essa pressuposigfo idealiza as relagGes sociais. Formaliza a realidade. Obscurece-the a natureza. No maximo corresponde a algumas relagdes intraclasses, Nas relagdes interclasses privilegia os que detém o poder politico e econdmico. Raramente o assalariado ou o posseiro estfo conscientes de seus di teitos € sabem como exercé-los. E como nfo sabem, ¢ deveriam saber, @ concepefo liberal de conflito s6 sobrevive pelo artificio de formalizar a realidade, Dai a necessidade de principios juridicos como: a ninguém cabe ignorar a lei, Substituise constataggo empirica pela aparéncia legal Salva-se da explosto a concepgdo liberal. Mas, o prego pago é alto e duplo. A curto prazo, condena a cultura liberal funggo de mera legalizadora das desigualdades sociais, Legalize a desigualdade. E, a longo prazo, perde qualquer eficdcia, mesmo como instrumento de dominagao, ‘A segunda condigfo para que 0 mecanismo da individualizagao dos conflites possa estar coerente com o arcabougo liberal e seja social- mente eficaz, € a condigéo do isolamento dos conflitos. Condiggo que encontra dificuldades em sobreviver numa sociedade onde o aumento da complexidade das relag6es sociais e econdmicas intensifica as inter- dependéncias econdmicas e as aliangas politicas. A crenga liberal na possi bilidade de isolamento dos conflitos sociais faz com que 0 empregado Banhe a reclamacSo judicial pelas horas extraordinérias que nfo recebeu, mas perca 0 emprego; que o empresério ganhe o mandado de seguranga contra 0 ministro da Fazenda, mas perca 0 crédito do banco oficial; que a imprensa assegure sua liberdade de denunciar, mas percs 0 antincio que Ihe permite continua. Finalmente, a terceira condigfo € a do beneficio auferido com a Questo judicial maior do que 0 custo processual. CondigSo que encontra dificuldades em sobreviver, tanto numa situagdo de inflagfo crénica e Judicidrio lento quanto na de estabilidade econdmica e Judicidtio eficaz. Direito e cultura — 11 £ que 0s danos do padrfo emergente tendem a ser cada vez menores em ‘nimero cada vez maior de cidadaos. E 0 dano da indiistria no consumidor, da diretoria no acionista, da censura no piiblico. O direito processual atual pulveriza o dano coletivo numa pluralidade de danos individuais. Em determinados casos pode ser que o beneficio para o autor venha a ser maior do que 0 custo da agfo. Mas isso nfo é regra. E mais. Em termos da eficdcia do Jusiciirio, composigfo individual do dano é contrapro- ducente. Pelo simples motivo de que mesmo se 2 COHAB, a Secretaria de Obras, ou o supermercedo perder a causa e incorrer na pena monetéria, tratase, geralmente, de perda economicamente irrelevante se conside- rarmos os outros danos, fruto da mesma atuago do mesmo autor, que nfo chegam ao Judicidrio. Hoje em dia consideram-se estes custos do ilicito como custos previstos, assumidos empresarialmente e incluidos no prego do produto. Sfo custos estatisticamente suportéveis e estimulantes. Como tal, 0 direito processual paradoxalmente beneficia e estimula o grande infrator dos pequenos ilicitos. © segundo mecanismo, que ao lado do da individualizagfo dos conflitos determina 0 acesso a0 Judicidrio, € 0 mecanismo da iminéncia ou ocorréncia do dano. Para ser coerente com 0 arcabougo liberal que © produz e socialmente eficaz, pressup6e ¢ deve prover a existéncia das seguintes condigdes empiricas: a) existéncia de adequagfo entre a ocorréncia do dano e sua relevancia processual; b) a composigfo legal do dano, sobretudo monetéria, e/ou a punigfo do infrator, satisfaz 0 ideal de justiga da coletividade A percepgfo de que aguardar a ocorréncia do dano 6 insuficiente para proteger a liberdade individual nos conflitos entre cidadfos e Estado Jevou a criagdo do Aabeas-corpus ¢ do mandado de seguranga, de que ndo mais pode dispensar um Brasil democrdtico. A velocidade e complexidade das relagdes econdmicas numa situagéo de Judicidrio lento e inflagdo crénica indicam também a insuficiencia de uma intervengdo a posteriori € da composigdo meramente monetéria do dano. A intervengao quase sempre @ posteriori do Judicidrio pressupoe, a um primeiro nivel, um Judiciério operacionalmente eficaz, capaz de atuar com eficiéncia ime- dita, A um nivel maior de abstragGo, pressupde que a atuacfo a priori favoreceria uma das partes do mercado das relagdes sociais, desequili- bbrando 0 principio da live concorréncia. Ora, ambos os pressupostos fo devem ser focalizados apenas a partir de suas verdades abstratas. Na medida em que pragmaticamente determinam ¢ legitimam uma determi- nada atuago do Judicisrio, cabe aos que os defendem 0 onus de provar que de fato existem empiricamente. O que, de nossa parte, acreditamos improvével no Brasil de hoje. Como também é ingenuidade, de uma 12 ~ Direito e cultura cultura juridica que se leve a sério, acreditar que o direito do empregado 4 seguranga € higiene do trabalho se satisfaz com o empresirio pagando multas 20 Estado, Como também que o Sistema Financeiro da Habitaggo se satisfaz com a execugfo da hipotece do mutudrio inadimplente. Na verdade, a composigo apenas, ou mesmo sobretudo, monetdria do dano reduz todos os valores humanos ¢ sociais a apenas um: 0 monetério. Resulta no aprisionamento dos ideaisliberas 4 Iogica do capital. A inadimpléncia coletiva do SFH A anilise detalhada da intervengGo do Judiciirio nos casos de ina- ddimpléncia, nao pagamento, dos mutudrios que compraram iméveis da COHAB, com financiamento do Sistema Financeiro da Habitagdo € extre- ‘mamente ilustrativa da crise da cultura juridica liberal. A defasagem entre, de um lado, 0 aumento do valor da prestagao a pagar e, de outro, © aumento do custo de vida € do salério, gerou inadimpléncia ndo indivi- dual, mas coletiva. E © espeticulo dos conjuntos habitacionais abando- nados ¢ decadentes da periferia urbana das capitais. Inevitavel a inadim- pléncia, visto que 0 mutuirio outra fonte de renda nfo tem que nfo 0 saldrio, os agentes financeiros do Sistema Financeiro da Habitagdo entrar ram na Justiga e executaram o contrato, Na maioria dos casos, os mutuérios inadimplentes, os assalariados, foram condenados & revelia. Nao compare- ceram a0 Judiciério, Retomado, o imével ia a leildo. Se encontrava arrema- tante era por prego inferior ao débito corrigido contabilizado. Se ndo en- contrava, os agentes financeiros ficavam com a posse € propriedade do imével. Ambas as hipéteses nfo interessavam aos agentes. Tinham que rea- lizar prejuizo, diminuindo o fluxo de circulago de recursos financeiros do Sistema. A solugfo através do Judictério era social, econdmica e financeira mente ineficaz. Nem solucionava a necessidade de moradia do assalariado, nem a do Sistema de manter 0 fluxo de recursos financeiros crescente. Evidencia-se com este caso a ineficécia da intervencZo do Judicidrio que insiste em tratar como individual o que € conflito coletivo. Ineficaz mesmo como instrumento, comprometido a privilegiar @ pretensto finan- ceira do credor, em detrimento da pretensto de habitagdo condigna do devedor. Notese apenas que foi justamente para atender a pretensfo de hhabitago condigna das classes médias © populares que foi estruturado © SFH. As partes processuais, socialmente legitimas, nfo cram o assala- riado x contra a COHAB do Estado x. As partes processuais socialmente legitimas eram, de um lado, todo um segmento de assalariados em busea da casa propria e, de outro, os agentes financeiros, esteados na politica habitacional do Estado. Para que 0 Judiciério pudesse apreender toda a complexidade grave do conilito social em.foco, primeiro teria que admitir 0 cardter coletivo Direito e cultura ~ 13 da representagfo legal dos assalariados. Teria que admitir que fossem representados na Justiga por seu sindicato, por sua associagGo de bairro, pela Comissfo de Justiga e Paz etc. . A representacéo legal coletiva é, no entanto, proibida pelo artigo 62 do Cédigo de Processo Civil: “Ninguém poderd pleitear, em nome proprio, direito alheio (...).” Na medida em que se insiste na representagdo legal como representago individual, os assalariados no comparecem a Justia. Perde 0 Judiciério sua oportuni- dade primeira, caso pretenda viabilizar o ideal democritico: 0 de ouvir 0s argumentos de ambos os grupos e classes conflitantes. Em seguida, Judiciério teria que ter percebido que a inadimpléncia nfo dependia da autonoma vontade das partes: nem do mutuério — assalariado —, nem também do agente financeiro — como pretende fazer crer a concepeo liberal de contrato. Trata-se, na verdade, de um contrato de adesfo, cujas cldusulas foram determinadas nfo pelas partes, mas pelo Estado através do Banco Nacional de Habitagfo. Na verdade, a inadimpléncia jé era 0 desdobramento de um conflito anterior, que neste momento se expressava como um conflito entre mutuérios (classe média e popular) e agentes financeiros (elite econdmica e financeira). Era 0 desdobramento do con: flito pelo controle do Estado e de sua ordem legal. Se 0 Judiciério pudesse escapar 4 formalizago da realidade social que a cultura juridica liberal cldssica exige para sobreviver, teria percebido a verdadeira questo a deci- dir. Em termos da dogmética juridica, trata-se de decidir sobre a legalidade das resolug6es do Banco Nacional da HabitagZo que definem os programas de financiamento da faixa popular, tendo em vista o que diz o artigo 1° da Lei que criou o SFH: “O Govemo Federal (...) formulara (....)a pol tica nacional da habitago no sentido de estimular (....) 0 financiamento da aquisigGo da casa propria, especialmente pelas classes da populago de menor renda” (Lei 4.380/64). Deste modo, a inadimpléncia do assala- riado colocava para apreciagZo do Judicidrio uma questo muito maior: 4 da participagfo dos segmentos da coletividade envolvidos nos programas habitacionais, no processo de formulaggo da politica habitacional do Executivo. A nivel maior de abstragfo, tratava-se de julgar o autoritarismo introduzido na politica habitacional do BNH; de avaliar a compatibilidade do processo decisério normativo do SFH com o ideal democratico. Em outras palavras, tratavase de identificar o eventual conteiido de classe introduzido nas normas que regem 0 SFH. Na medida em que 0 Judicisrio do enfrenta esta questdo, abte mo de sua pretensfo de Poder indepen- dente. Sobretudo, perde em legitimidade aos olhos dos cidaddos, artis candose ao descrédito social e tornando mais distante o ideal democré: tico, Inadimplente no caso ndo foi o assalariado, mas a politica autor téria, habitacional e salarial do Executivo, ¢ ausente foi o Judicidrio. Este exemplo do SFH ¢ ilustrativo porque permite constatar, nfo s6 no direito q 14 = Direito ¢ cultura processual mas também no direito das obrigagdes, alguns dos mecanismos bésicos da cultura juridica liberal, como a miopia que vé no contrato de financiamento 0 resultado da vontade livre de partes individualizadas. direito liberal pretendeu inicialmente ser uma barreira a ago do Estado. Em favor da sociedade civil. No momento em que o Poder Execu- tivo reverte esta pretenséo ¢ coloca a ordem legal como expresso do seu expansionismo, paradoxalmente a insisténcia do Judiciério em pautar seu entendimento da ordem legal pelos principios liberais clissicos nfo limita, nfo & mais freio nem contrapeso, mas, 20 contrério, deixa livre © Executivo para agir. Neste sentido, por exemplo, o Judicidrio nfo admitindo entrar no mérito da questéo fundamental da inadimpléncia coletiva do SFH — a participagfo popular no processo decisério da politica habitacional do BNH —, ou seja, a legalidade e legitimidade das resolug6es do BNH, deixou livre 0s desejos expansionistas ¢ autoritérios do Executivo. Resulta num Judicidrio € numa cultura juridica ineficazes em relagio a0 proprio fim, a0 objetivo que pretendem inicialmente postular: a defesa da sociedade civil contra o Estado.4 Evidentemente, este aparente paradoxo entre meios fins da ordem legal liberal se desfaz quando enfatizamos o compromisso do liberalismo, antes com uma elite que foi revolucionéria, e depois com esta mesma elite sendo conservadora, preocupada em manter sua posigZo hierdrquica no Estado. O importante, no entanto, é perceber que a identi- ficagZo deste paradoxo viabiliza a critica ao liberalismo a partir dos pr6- prios principios liberais. Abrindo possibilidade concreta para desfazé-lo de seu compromisso com uma elite autoritéria. Redimensionando-o, enquanto ideal, a favor da democracia, A representagdo coletiva através dos sindicatos © Direito do Trabalho jé aceita 0 prinefpio da representagao legal coletiva, aceitando os sindicatos como partes legitimas nos casos de dissi- dios ¢ de convengdes coletivas de trabalho. Mas nfo aceita, ainda que 0 sindicato possa atuar de uma maneira mais ampla, através do Judicidrio, visando um melhor cumprimento das leis trabalhistas. Sua atuagdo de fiscal de cumprimento da lei, através do Judicirio, € quase nenhuma. Permita-se um paréntese. Desconfio que hoje em dia no Brasil a luta pelo respeito aos direitos ¢ garantias individuais, e por extensfo aos diteitos coletivos, nfo deva ser apenas uma luta em favor de inovagdo ¢ aperfeigoamento da legislagio. A universalidade destes direitos faz com 4) Em seu trabatho Seguranca ¢ Democracia, publicado neste limo, © Prof. Fabio Konder Comparato desenvole com mest esta contradifo ds order jw iti Direito ¢ cultura ~ 15 que dificilmente a elite de uma sociedade que se diga liberal capitalista deixe de aceité-los. Pode, quando muito, atrasar seu reconhecimento en- quanto lei. Mas, 0 compromisso internacional com 0 mundo liberal oci- dental acaba por forgar sua insergdo na ordem legal nacional. Com isto quero dizer que a principal arena da defesa dos direitos individuais e cole- tivos € outra, Esté muito mais perto da eficaz fiscalizagio pelo Judicigrio da ordem legal atual, do que da continua inova¢d0 pelo Legislativo. Tratase muito mais do cumprimento da lei, de sua obediéncia, do que de criar novas leis. Tratase sobretudo de criar mecanismos de répida identi. ficagio da violagdo dos direitos e pronto remédio. Ora, esta é tarefa que © Judiciério nfo pode exercer sozinho. A ela deveriam ser convocadas legalmente as diversas associagbes e organizagGes da sociedade civil. Sobre tudo as representativas dos interesses das classes majoritdrias. A expans0 da atuagfo dos sindicatos em favor da defesa dos interesses da classe operdria insere-se neste contexto. Evidentemente, nfo se trata de simplesmente dar aos sindicatos 0 direito de atuar judicialmente nos casos de lesfo do direito individual do empregado. Independentemente da vontade ou da iniciativa do empre- gado lesado. Trata-se apenas de evitar que seja tratado como de conse- héncias individuais 0 ato que lesa 0 direito de toda uma categoria. Trata: se apenas de dar poder ao sindicato para que possa atuar judicialmente quando a lesfo do direito individual extrapola o individual, aponta e sugere {que outros empregados, e talvez. toda uma categoria, estejam sendo igual- ‘mente lesados. Pelo menos ato, pela mesma pritica ilicita que necessita ser revertida, Mesmo que o sindicato saiba que em seu setor, ou numa determinada empresa, as normas de higiene e seguranga de trabalho no estfo sendo cumpridas, nada pode hoje em dia reclamar do Judiciério. Em nosso exemplo, mesmo que 0 empregado vé ao sindicato € peca providéncias para impedir o supermercado de adotar a politica abusiva de horas extraordinérias, o que atinge a todos os funcionérios, nada pode © sindicato reclamar a0 Judiciério, a nfo ser que o emapregado se predis- ponha a outorgar-lhe procuragZo, entrar na Justiga. © que, por um lado, equivale a perder o emprego e, por outro, a nfo resolver @ situagio dos seus demais colegss. Mesmo que um sindicato tenha participado de um dissidio estabelecendo a obrigatoriedade de fornecimento de uniforme para os empregados por parte da empresa, ou estabilidade provisdria para 4 gestante, e mais tarde venha a saber que estas clusulas nffo esto sendo obedecidas, nfo tem direito de reclamar na Justiga. O artigo 872 da CLT s6 dé 0 poder de atuar em juizo, independentemente de outorga de po- deres dos associados, no caso tinico de os empregadores deixarem de satisfazer 0 pagamento de salérios celebrado no acordo coletivo. Ora, esta possibilidade de atuagio independente de outorga deveria ser ant 16 — Direito e cultura pliada. No somente para 0s casos de convengdo, acordo ou dissidio, mas para os casos em que uma determinada prética de uma empresa ou categoria esteja a lesar os direitos ngo apenas de um, mas de uma plurali- dade de empregados. Desnecessério sublinhar que na medida em que a Justiga do Tra- balho admite a representaggo legal coletiva, ela se capacita a intervir com ‘maior eficécia no equacionamento dos conflitos entre empregado e empre- gador. Condiso primeira para que ela possa obter ganhos de legitimidade aos olhos dos cidadaos. Em outras palavras, condigo primeira para refazer a sua base de sustentago politico-social, dando-the outra alternativa que nfo apenas © compromisso elitista. Evidentemente, esta timida tendéncia a Justiga do Trabalho deveria se ampliar para outras situagGes, como por exemplo, a do cumprimento das normas preventivas de acidentes de trabalho. E em outras éreas do Direito, para a protegfo de seus associados nas questdes da aquisigio de moradia pelo SFH, por exemplo. Acredito jé estarem suficientemente claras as diferentes naturezas do padrio liberal cléssico ¢ do padrfo emergente, onde a necessidade de uma representagfo legal coletiva evidencia apenas um dos aspectos: 0 da insuficiéncia do pedrfo liberal cldssico em definir a natureza das partes conflitantes. Outras diferencas tém idéntica relevancia. Como bem indica Sargentish (1978), no padrfo emergente de conflito, o ato ilicito nfo € mais um ato, como o pretende o padrfo liberal cléssico. E sobretudo uma prética organizacional. A baixa qualidade da construgao de uma habi- tagfo dificilmente se resume numa parede rachada. O atraso de pagamento da Secretaria de Obras nfo é ato de vontade de um s6 funciondrio. Na verdade, em ambos 05 casos uma série de atos coordenados do SFH, em sistema, provoca 0 eventual ilicito. No caso do assalariado inadimplente, € mesmo mais do que uma pratica organizacional. E uma politica, uma po: litica publica. Por conseguinte, ndo se pode reverter uma pritica organiza ional ou uma politica piblica, como se reverte um ato, uma obrigagao de fazer ou de ndo fazer. Assim, também, o remédio juridico que a sentenga do juiz venha a oferecer tem que ser muito mais complexo. Trata-se de no apenas compor monetariamente 0 dano, mas tentar reverter a prética ilfct- ta, Tarefa bem mais complexa. Conseqiiéncias da intervengio liberal cléssica Nesta Gltima parte focalizaremos as consequéncis para o jogo politico democrético da intervengZo liberal clissica do Judicidrio, a partir de sua recusa em admitir a representagdo coletiva legal. Sfo duas as hip6- teses a analisar. A primeira, quando 0 conflito entre o segmento da co- letividade e a grande organizagio pablica ou privada chega ao Judicidrio. Esta hipétese contribui para a manutengdo da crenga de que 0 Judiciério Direito e cultura 17 esti aberto a todo e qualquer conflito, independente do grupo ow classe social envolvides. Donde contribui para a manutengdo da crenga de uma atuagdo politicamente neutra. Ocorre que ela s6 € vidvel na medida em que s teduz 0 conflito coletivo a mero conflito individual. Resulta no obscurecimento da natureza econdmica, social € politica do conflito. Resulta em pressupor formalmente 0 que empiricamente nfo pode ser provado: que 0 mutuério, o empregado e mesmo o emipresirio preenchem as condigSes antes jé mencionadas, tal quanto as preenche a COHAB, ‘0 supermercado e a Secretaria de Obras. Resulta em imaginar como ver- dade de todos 0 que € experiéncia concreta de apenas alguns (Cardoso, 1975). Tratase de reducio ideol6gica. Duas so as conseqiiéncias possivels. A primeira a nivel cultural. ‘Transforma a cultura juridica liberal em cultura juridica apenas formal. Formal aqui nfo significa o racionalismo formal cujas caracteristicas bésicas sto a universalidade e generalidade das leis. Formal aqui explicita apenas 0 processo de obscurecimento e enviezamento das condigdes empiricas da realidade social, onde os ideais liberais de igualdade ¢ liber- dade sfo meros topos legitimadores. Em outras palavras, mero discurso ideol6gico. A formalizagao das condigdes empiricas necessérias a eficacia dos ideais liberais, € 0 processo por exceléncia que possibilita sobreviver como dominagao ideolégica, a cultura juridica, que pretende ser a liberta- ‘fo social. A segunda, a nivel social, das relagOes entre os grupos e classes sociais. O Judiciério passa a privilegiar os que conseguem operacionalizar seus interesses através das grandes organizagdes piblices ou privadas. Sendo o nivel de organizagdo de classe em geral funcdo da sua posigdo na estratificagdo social, a intervengfo elitista do Judiciério tomna-se estatis ticamente inevitivel. Levando por égua abaixo a crenga de que “na relago processual, 0 juiz € o sujeito imparcial” (Santos, 1977, p. 291). Na segunda hip6tese os conflitos no chegam ao Judicidrio. O acesso Justiga esté impedido. Ora, esta recusa ou encolhimento do Judicidrio nfo faz com que esses conflitos desaparecam ou percam intensidade. So apenas remetidos para outras arenas de resolugfo. Informais, parale- fais, € mesmo ilegais. Em outras palavras, o Estado liberal abdica de equacionar os conflitos de seus cidadaos através de sua instituigfo especia- lizada, 0 Judicidrio, e através dos padrdes substantivos de sua propria cordem legal. E os remete aos padrdes e forgas atuantes no mercado, onde, ‘num pafs com 30 milhSes de cidadfos em estado de muséria absoluta, a impossibilidade de se alcangar padres consensuais, sobretudo para os conflitos econdmicos e politicos, aumenta @ inseguranga das relagdes € 0 risco da violéncia total. Abre entfo espago para os que detém o poder da forga. E a nivel econémico, acaba por entregar 0 pais a0 capitalismo selvagem, onde a concentragéo de renda € seu aspecto menos cruento, 18 — Direito ¢ cultura ‘A nivel politico, conduz ao autoritarismo, onde o centralismo burocrético € sua forma moderna. Em ambas as situagdes, o Judicidrio liberal se reco- the a um silencioso e constrangido ostracismo legitimador. Nitido entfo 0 dilema de um Judiciério aprisionado ao padrio liberal cléssico. Por uni lado, se abrir mo de sua cultura juridica coloca em risco a organizagfo hierdrquica da sociedade e ameaga perder a con- fianga da elite € do Executivo. Por outro lado, se insistir nesta cultur com 0s mecanismios que dificultam o acesso a Justiga, abre mo de intervir nos conflitos de padrfo emergente, condenando-se a0 progressivo isola- mento. Isolamento que exacerba o brilho légico-formal da cultura juridica, ‘Agrava sua ineficécia e explicitalhe a face de legitimador ideolégico dos conflitos solucionados pela via autoritéria. Reforga 0 autoritarismo, Nos lapsos democriticos da hist6ria politica brasileira, o Judiciério liberal clissico ainda conseguia colocar alguns limites a atuagio do Estado em relagfo a sociedade civil. Limites que, sob o manto didfano do bem comum, beneficiaram sobretudo a elite. No regime autoritério, o Judiciério no ostracismo e a impossibilidade de se estabelecer outro limite para a ago do Estado que nfo seja 0 proprio arbitrio do Executivo acabam por deteriorar de vez as relagdes do Estado com a sociedade civil. Uma das, caracteristicas deste processo € a colocagio da produgfo e aplicaggo das leis a servigo da seguranga e expansfo do Estado, a expensas da liber: dade dos cidaddos. Ndo € por menos que a contrapartida do Executivo autoritério € 0 Legislative e o Judicidrio dependentes ¢ obscuros. A nivel econdmico, por exemplo, abre-se a possibilidade de o Estado utilizar @ produgo ¢ aplicagdo de leis em beneficio da acumulagao estatal. Util zando no regime capitalista autoritério sua condigfo de regulador do mer- cado para beneficiar sua condigfo de concorrente. Em detrimento, por evidente, das pretensdes de acumulagfo da sociedade civil, sobretudo da sua elite nacional. A nivel politico, 0 Estado autoritério nfo abre smo de se legitimar através de processos eleitorais, na tentativa de obscu- recer a face antidemocrdtica. Apenas, a produgo das leis que regulam as eleigdes fica a servigo da manipulagdo necessdria a assegurar a vitéria do partido do governo. Essas evolugdes, econdmica ¢ politica, refletemse nna cultura juridica. As leis perdem seu cardter de universalidade e generali- dade, e passam a ser casuisticas. Com isso, o Estado autoritério choca-se com 0 Estado de direito, sobretudo com o Estado de direito democratico, A contrapartida da busca autoritéria de uma legitimidade artificial ¢ a eventual perda da legalidade residual. Por isso € que, para alguns setores, a redemocratizag%o pressup6e a desestatizago, cuja contrapartida da cultura juridica € a volta a0 Estado de direito apenas liberal. Ambos sintomas da perda de poder da sociedade civil, e de sua elite, em face do grupo encastelado no Estado. Direito e cultura — 19 Desconhecendo limites, 0 Estado autoritério voltase de inicio contra seus opositores iniciais. Em seguida, vai contra seus proprios alia dos. Todos impedidos de participar do processo de decisdo nacional. Reduzindo sua base politica interna e desfazendo suas aliangas com (08 grupos politicos nacionais, o Estado autoritério tanto caminha para uma crise de legalidade e legitimidade como para 0 exacerbamento de de- pendéncia externa, Estratégia que paradoxalmente provoca a instabilidade do regime e obriga-o a recompor sua base politica. ‘Acreditamos ser este © momento atual da cena politica e juridica brasileira. Na tentativa de reconsolidar uma base politica, o Estado autori tério necessita de recomporse com setores da nagio. A importancia e a influéncia potencial do Judiciério no quotidiano do cidaddo faz com que se tente reintroduzir 0 Judicidrio na vida politica da nagfo. Ao atender este chamado de volta, cabe ao Judicidrio decisto fundamental: a) Apenas restaurar 0 passado e sua alianga com a elite, sobretudo a que ‘operacionaliza seus interesses através do Executivo, transformando uum eventual projeto de redemocratizagZo numa renovagfo do ciclo de autoritarismo. Este caminho exige a volta do pais a0 Estado de Direito formal e a desestatizagfo econdmica. 5) Ou, aprendendo do passado ainda recente, abrirse a participaggo dos cidados das camadas mais populares, reorientando ele também sua base de legitimagdo. Este caminho exige a volta do pais ao Estado de direito democratico, renega o formalismo legalizador das desigualdades e reorienta a estatizago da economia. Desta decisfo fundamental, da possibilidade de o Judiciério voltarse para a conquista de uma base de sustentago social ¢ politica prépria, vai depender os caminhos da nova cultura juridica brasileira. Antes de encerrar, gostaria de fazer duas mengGes, talver desneces- sérias. Primeira: evidentemente, o tipo de exposi¢o que fizemos obrigou- nos a trabalhar com um grau de generalizaggo bem maior do que gostaria- mos. A cultura juridica liberal formal no esté presente em todos os atos do nosso Judicidrio. Nem tem apenas as ingratas consequéncias para © ideal democrético que acabamos de explicitar. Existem muitas e impor- tantes sentencas, decisbes judiciais, e estou a lembrar a da Juiza Dra. Maria Rita, do Rio de Janeiro, justamente num caso de inadimpléncia de um assalariado num contrato de financiamento para aquisigfo de casa prépria, que se sabreple 4 formalizagto da realidade social e reencontra © quotidiano concreto do cidadio.> Como tenho certeza de que, em (5) Maria Rita Soares de Andrade, Despacho Saneador na agio entre INPS (autor) © Eloi Rabello e sua mulher (réus), em 07.12.72. Rio de Janeiro, obpia xe- rografads 20 — Direito ¢ cultura ‘muitos momentos da institucionalizagZo de nossa vida politico-jurfdica, © Judicidrio garantiu pelo formalismo a liberdade do cidado. A excessiva formalizago de um liberalismo cléssico caracteriza, no entanto, a cultura juridica dominante no Judiciério. E de consequéncias contraditsrias para © ideal democrético. Segunda: 0 caminho da redemocratizagfo nfo é uno, muito menos de tarefas isoladas. A redemocratizagdo do Judiciério & apenas uma dessas tarefas. O acesso das classes sociais majoritérias 4 Justiga é um dos aspectos necessérios, a partir do qual se pode pensar numa base social e politica que dé a0 Judiciério a independéncia que procura. Capaz de, desfazendo a crenca de um Judiciério acima dos inte- resses e paixdes dos grupos e classes sociais, aproximar a naglo do ideal democrético. Capaz. de evidenciar que a cultura juridica, 0 direito pro- cessual, 0 conceito de partes legitimas da agfo processual so também arenas onde disputam interesses sociais divergentes, concorrentes e mesmo conflitantes. Finalizando, jé se disse que democracia no implica extinguir a divergéncia de interesses e seus conflitos (Cardoso 1977, p. 61-83). Ao contrério, reconhece a divergéncia de interesses, 0 conflito deles, e, acres- cento, assegura mecanismos pacificos para sua solugfo. Neste sentido a contribuig#o do Judicidrio a redemocratizagfo implica nfo negar-se a lidar com os conflitos do padro emergente. Ao contrério, implica reconhecé-los ¢ tentar equacioné-los. Um passo, entre os muitos neces- sérios, € admitir a possibilidade da representagZo legal coletiva. A partir dai, 0 Judiciério poderé comegar a encontrar sua natureza de arena para onde correm e onde ocorrem contflitos sociais, ¢ onde tentam ser equacio- nados. Poderd reencontrar 0 cidadio brasileiro, viabilizando-the a partici- ago na administragfo da Justiga, que poderd deixar de ser processo do beneficio de uns ¢ do desalento de muitos. COMENTARIOS MARIO BROCKMANN MACHADO* Introdugo ‘A exposigo desta secgto apresenta questOes importantes para a nossa reflexfo. Estas quest6es so importantes, em primeiro lugar, porque esto relacionadas com 0 processo de relativa democratizagzo em curso em nosso pais, € porque se referem a um aspecto pouco salientado desse processo: a questfo do acesso ao Judicidrio, Na verdade, além da questo do acesso, 0 Poder Judiciério como um todo esté a exigir reflexfo maior ce mais sistemética de nossa parte. Em segundo lugar, as quest6es apresen: tadas pela comunicagfo sfo também importantes porque favorecem reflexfo interdisciplinar, jé que 0 tema da cultura juridica nfo pode ser pensado separadamente das outras dimens6es da cultura de nossa sociedade, estudadas por cientistas sociais em geral. E é pelo tema da cultura juridica que serfo iniciados estes comentarios, passando depois a0 Judiciério e, finalmente, a questo do acesso. Cultura jurtdjea A culturagjuridica é parte da cultura mais ampla de uma sociedade. E parte extremamente importante, porque ai se consolidam, de uma forma ou de outra, as norms bésicas de comportamento social. Essa cultura ‘mais ample, da qual a cultura juridica faz parte, é tema de longa e resp fivel tradigfo de estudo nas ciéncias sociais, sobretudo no ambito da antropologia, mas também no da sociologia, da psicologia social e da ciéncia politica! Os estudos sobre cultura, e sobre o permanente processo de () Professor adjunto do Instituto Universitério de Pesquisas do Rio de Jancixo UPERI), Disetor do Nicleo de Estudos e Pesquisas Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeito. (1) Ver, por exemplo, Louis Schneider © Charles Bonjean (orgs. The Idea of Culture in the Socil Sciences. Cambridge, The University Press, 1973. 2 Direito ¢ cultura transmissfo cultural (0 chamado processo de socializago), sendo reali zados por diversas disciplinas e sob enfoques variados, produziram, como go poderia deixar de ser, uma certa perplexidade sobre o significado exato do tema em questo. $6 na antropologia, para citar um exemplo. ‘quase duzentas definigdes do termo cultura foram coletadas e analisadas em publicagdo de 1952 por Kroeber e Kluckhohn (1952). Se considerar- mos que a preocupagio dos demais ramos das ciéncias sociais com o tema acentuou-se sobretudo 2 partir daquela época, podemos facilmente ima- fginar que 0 nimero de definigdes disponivel hoje em dia seja muitas vezes malor do que aquele. Mas, se esta situagdo & capez de produzir intolerével desespero para qualquer herdeiro intelectual do_positivis mo l6gico, ela por outro lado oferece aos que investigam 0 campo da cultura juridica uma fonte riquissime de sugestdes. E também de li- ges, porque muitos foram os caminhos seguidos que, infelizmente, no levaram a lugar algum de interesse. Provavelmente a literatura sobre cultura politica e socializagfo politica € mais vulnerdvel a essa critica do que a das outras disciplinas,? e por isso mesmo, creio, deveria ser especialmente analisada por quantos desejem trabalhar o tema da cultura juridica em perspectiva interdisciplinar. +O que estou sugerindo é que a andlise da relaggo entre a cultura jurfdica e 0 tema proposto pela comunicagfo do Professor Joaquim Faldo esté a exigir um trabalho prévio de pesquisa empirica sobre os elementos fundamentais da nossa cultura jurfdica, um trabalho de mapea- ‘mento das principais crencas, opinides, tradig6es, atitudes, valores ¢ hnormas que caracterizam nossa cultura juridica. Mas nfo apenas a cultura juridica tal como se encontra elaborada por nossos juristas mais famosos, ‘mas também tal como a encontramos intemalizada em nossa populagl0 em geral. Em outras palavras, seria interessante possuir uma descrigfo {Jo cuidadosa quanto possivel da maneira pela qual o, brasileiro se relacio- na, nos niveis cognitivo, afetivo e valorativo, com o nosso sistema juridico, as suas partes componentes e 0 seu funcionamento, e que nos desse uma visfo adequada da imagem que ele tem da sua prépria insergo — ow nndo insergdo ~ nesse sistema. Certamente um estudo como este nos daria elementos. valiosos para caracterizar varios fatores de ordem cultural que limitam 0 acesso ao Judiciério, (E isto, mesmo aceitando a premissa — que sem diivida eu aceito ~ de que os principais obstaculos a esse acesso nndo sejam de ordem cultural.) (2) Para uma critica da utiizagio dos conceitos de cultura e socializagio em ciéncia politica, ver Mério Brockmann Machado, “Political Socialization in Authorita Flan Systenis: The Case of Brazil”, Tese de doutorado, Universidade de Chicago, 1975 Direito e cultura — 23 ‘Apenas para exemplificar, gostaria de relatar sumariamente alguns resultados de pesquisa hd anos realizada por mim, jé citada, sobre aspectos da socializagio politica de estudantes de nivel médio, na qual inclui por curiosidade uma ou outra pergunta sobre o sistema jurfdico. Dos $72 alunos entrevistados, por exemplo, apenas cerca de 20% tinham uma vaga nogfo sobre a fungéo do Suptemo Tribunal Federal, ao passo que 39% responderam adequadamente a igual pergunta sobre o Congresso Nacional, ¢ 52% sobre o Presidente da Repiiblica. A baixa visibilidade do STF — sim- bolo méximo de nosso sistema juridico — ¢ evidente. Mas, se @ nivel cognitive essas respostas sugerem preocupagio, @ nivel valorativo tém implicagSes muito graves. Solicitados a manifestar suas opiniGes sobre a afirmago “Todas as leis e regulamentos sfo justos”, 44% dos estudantes responderam concordar, 43% disseram discordar, ¢ 13% nfo souberam como responder. Sobre o sistema politico hé também respostas desalen- tadoras: apenas 52% dos estudantes foram capazes de definir, em termos no minimo aceitaveis, a palavra democracia. Mais ainda: quando pergunta- dos sobre se “a democracia é a melhor forma de governo”, nada menos do que 41% responderam nfo saber. E evidente que nenhuma concluséo maior pode ser retirada desses dados isolados, mas eles sugerem, como disse antes, a utilidade de um conhecimento melhor de nossa cultura juridica popular. Por outro lado, é preciso também evitar o idealismo ingénuo de supor que o eventual desenvolvimento de uma cultura juridica democrdtica, a partir da caracte- rizago de uma cultura juridica — que presumimos estar distanciada desse objetivo —, possa ser realizado através de intervengdes apenas @ nivel de seu processo de transmisso, como até recentemente parecia sugerit a literatura sobre law and development com sua énfase na reforma do ensino juridico Tal impossibilidade, evidentemente, esté ligada a0 fato de a cultura juridica, apesar de sua relativa autonomia, estar enraizada fas condigdes econdmicas, sociais e politicas da sociedade, donde a impos- sibilidade de se obter uma cultura juridica democrdtica em sociedade onde ‘4 democracia no tem sido mais do que figura de ret6rica, (3) Para uma revisfo critica dessa literatura, ver David Trubek ¢ Mare Calanter, ‘Scholars un Sel-estrangement: Some Keflections on the Crisis in Law and De- velopment Studies in the United States". Ver também Joaquim de Arruda Fal- efo Netto, “Clase ditigente ¢ ensino juridico: uma releitura de San Tiago Dan- tas"; "Crise da universe e erise do ensino juridico”. Ver ainda Henry Steiner, Jacques Gleizal, “L’enseignement du droit, la doctrine et Pidéologie, in Mau- fice Bourjol e outros, Pour une critique du droit, p. 71-113. Uma coleténea bastante recente de textos sobre as fungSes ideol6gicas da Escola é Tosé Carlos Garcia Durand (org.), Edueapdo e hegemonia de classe 24 — Direito e cultura Esta altima observagfo no pode, no entanto, ser fundamentada no tipo de estudos descritivos sugeridos acima. Ela requer que se adicione aqucla tradigdo de estudos culturais, to caracterfstica da literatura anglo- americana, uma outra vertente, nfo menos longa e respeitével. Refiro-me 408 estudos te6ricos ¢ hist6ricos sobre a ideologia em geral, ¢ a ideologia Juridica em particular, das sociedades capitalistas, desenvolvidos dentro de uma ou outra perspectiva marxista.* Tal literatura nos levaria a refletir sobre as caracteristicas fundamentais de uma cultura juridica dominante de uma sociedade capitalista dependente em répida transformago eco- némica. Nos levaria a examinar, af sim, a importincia dos grandes juristas na elaboragGo dessa cultura, no desempenho de seu papel de intelectuais orginicos de que nos falava Gramsci. E nos levaria a detalhar os vérios processos sociais encarregados de sua permanente reprodugfo.5 Ao final, terfamos também novos elementos valiosos para a configuragfo de outros obsticulos a0 acesso ao Judicidrio. O Professor Joaquim Falco nos falou de um dos mais importantes desses obstdculos: © conceito indivi- dualizador de partes legitimas adotado por nosso diteito processual E inseriu esse conceito dentro de uma visio ampla da cultura juridica liberal. De qualquer forma, a nossa cultura juridica, apesar de sew alto grau de autonomia jé referido, nfo poderia ficar imune as crises econémicas sociais € politicas que nossa sociedade tem enfrentado. Também ela estd em crise, A harmonia dos grandes cédigos legais, resultante de uma fase hist6tica em que Direito e Sociedade se completavam — ainda que com base na exclusZo da grande massa da populagZo ~ est desmoronando, ¢€ tem dado origem a uma legislagdo casuistica e mutante, de origem execu- tivo-burocratica e nfo legislativa, sobretudo referida as atividades econd- mica e politica (Unger, 1975), Tal situag8o, por gerar inseguranca, ferti- liza a imaginaggo ¢ tora potencialmente vidveis novas formas de pensar © nosso sistema juridico, tal como 0 fez 0 Professor Joaquim Falco em relagfo a0 Poder Judiciério — segundo item de meus comentarios. Poder Judiciério © maior problema do Poder Judicidrio é que ele ¢ muito judi- cioso e pouco poderoso. Na verdade, 0 poder do Judiciario € muito ‘mais uma ficedo juridica do que uma realidade politica. Fssa fragili- dade do Judiciério, fato que extrapola o ambito das sociedades capita- listas, decorre da sua incapacidade de mobilizar e reter bases proprias (A) Sendo © texto bisico, evidentemente, A ideologta alemé, de Marx ¢ Engels. (5) Para uma teorizagio sistemtica sobre o tema, ver Piere Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodupdo, Direito e cultura ~. 25 de poder. Sua autonomia, com rarissimas excegdes, € apenas consen- tida € depende fundamentalmente das gragas do Poder Executivo. Sua autonomia, em iiltima andlise, é funedo de sua instrumentalidade para a manutengéo da ordem dominante estabelecida através do Poder Exe- cutivo. Embora essa opinifio sobre 0 Judicidrio tenha sido expressa de forma tfo contudente, a verdade é que nds, cientistas politicos brasileiros, somos possuidores de enorme ignorincia sobre o tema. Esta ignorancia € grave. Tem muitas causas ¢ pode ser explicada, mas nfo inteirames.ie justificada, Acho mesmo que uma das conclus6es mais importantes das presentes exposigdes seria o estabelecimento de uma agenda coletiva de cestudos interdisciplinares sobre a organizagfo, o funcionamento e a fungo politica do Judiciério, em nosso pais e, se possivel, também em perspectiva comparativa. Referi-me a fungfo politica do Judiciério. Este tema € central € deveria mezecer atengdo especial em tal agenda de estudos. Pois os juizes € 08 tribunais ao aplicarem as leis, através de suas agBes e omiss6es, de suas decisbes € nfo decisbes, participam da tarefa de estabelecer os limites do que pode e ngo pode ser demandado dentro da ordem (ou desordem) vigente. Essa tarefa pedagégica tem Sbvia natureza politica Tendo em vista essa fungo politica, pensar o Judicidrio sob a dtica do processo de democratizaso implica pelo menos duas quest6es bisicas. A primeira, antes mesmo de se pensar na eventual contribuigfo do Judicié- tio Aquele processo, diz respeito 4 democratizag0 do proprio Judiciério: como fortalecer um Judicidrio democratizado? Caso exista resposta po: sitiva para esta questo, ento uma segunda questo basica teria de ser respondida: como fazet com que o Judiciério, enraizado na sociedade civil, ‘possa manter a sua autonomia face ao arbitrio do Poder Executivo? Talvez esta pergunta seja ut6pica. Talvez ela expresse apenas o lamento de quem nfo viu no Judicidrio, nos iltimos quinze anos, a coragem de defender, entre 0s azares de nossa vida politica, pelo menos os mais simples e bisicos direitos humanos. Salvo raras excegdes, nfo deu o Judiciério — nem mes. mo a sua Corte Suprema — motivo para respeito ¢ admirago publica, 20 contrério, por exemplo, da Ordem dos Advogados do Brasil Acesso 20 Judicifrio De qualquer forma, também no hé razdo para deixar o pessimismo produzir paralisia, pois refletir sobre aquelas duas questdes bisicas, inde- endentemente de resultados préticos imediatos, pode nos trazer ensina- ‘mentos importantes, E € por isso que considero relevante o problema do acesso a0 Judicidrio, levantado pelo Professor Joaquim Falco. Ampliar e83e acesso, de tal forma a permitir a mais ampla representagfo de inte 26 ~ Direito ¢ cultura resses coletivos marginalizados, € tatefa intimamente ligada & expanso da cidadania, ceme do que deveria ser um auténtico processo de democra- tizagZo (Lamounier, 1978). Como tal, a questdo do acesso deve ser vista sob a Gtica mais ampla da teoria da participagfo politica em geral, objetivo final destes comentérios. Parto do principio de que vale a pene postular essa representagdo de interesses coletivos, mesmo admitindo que esta premissa possa ser questionada por razBes diversas, como veremos adiante. Imagino que em uma sociedade mais justa do que a que conhecemos, seria razodvel defender posigfo exatamente inversa: a da gradativa desregu- lamentagto estatal da vida social. Em tal situagfo, em vez de aumentar € facilitar 0 acesso de novas quest6es e atores 20 Judicidrio, melhor seria reconhecer e valorizar os mecanismos espontineos de solugo de conflitos sociais, melhor seria reconhecer e valorizar o judiciério popular. Mas, a situago no & essa, pois as referidas questdes ndo sZ0 questOes menores, quest6es individuais, Muito ao contrério, elas se referem a contlitos de vulto, quer contra grandes instituiges privadas, quer contra o proprio Estado. E nem se diga que remédios legais existem, pois o que se de- fende, segundo posso perceber, 6 0 direito de associag6es voluntérias defenderem em juizo, em nome proprio, direitos de terceiros, direitos que reflitam legitimos interesses coletivos de natureza variada. F a figura do substiquto processual, creio, 0 que se prope ampliar,jé que ela, em ‘nosso direito, depende da expressa autorizacdo legal. Ante tal perspec- tiva, a existéncia da apo popular, to limitads substantivamente e to invidvel financeiramente, se me apresenta como insatisfatdria, Reconhes?, no entanto, que tal proposta possa ser questionada, pelo menos por duas raz6es diferentes. A primeira diz respeito a baixa probabilidade de vitéria de demandas jurfdicas dessa natureza (supondo que elas possam ser even: tualmente admitidas), o que acabaria por arescentar a chancela do Judi- cidrio a legitimagio da injustiga social subjacente, que nfo é juridica, ‘mas ético-politica. Essa baixa probabilidade ndo depende necessaria- mente da existéncia de leis e juizes tendenciosos.® A questo pode ser facilmente visualizada sob a dtica da teoria dos jogos: quanto mais im- patciais forem os juizes ¢ as regras do jogo, maior a probabilidade de vit6ria para o jogador mais qualificado. O que permite predizer 0 re- sultado do jogo, com maior ou menor margem de seguranga, é a deter- rminaglo do diferencial da habilitagfo dos jogadores, exatamente sob as (©) Ver Max Rheinstein (org.), Max Weber on Law in Economy and Society, espe- cialmente p. 188-190, Ver também um antigo trabalho de Nicos Poulantzas, Na- ture de choses et droit. Um resumo da discussio de Poulantzas pode ser encon- ‘ado om “L'examen marxiste de l'état et du droit actuels et la question de Pal- ternative Direito e cultura 27 condigdes de que as regras sejam as mesmas para todos ¢ que os juizes sejam imparciais. Se as regras variassem e se os juizes fossem tendenciosos, entdo nfo haveria sentido em participar, jé que o resultado seria ou intei- ramente aleatSrio, ou predeterminado as escondidas. Assim, mesmo que assumissemos a imparcialidade das regras e dos juizes - 0 que obviamente nem sempre € 0 caso a probabilidade de vit6ria desses novos atores no Judiciério dependeria em grande parte da sua capacidade para satisfazer certas condigdes prévias bastante probleméticas. Essas condig6es foram objeto de um estudo bastante interessante de Mare Galanter, do qual retiro agora algumas indicagdes (Galanter, 1974). Como as partes a serem confrontadas no Judiciério seriam ou o proprio Estado ou poderosas instituig6es privadas, pode-se prever que, via de regra, elas estariam repre- sentadas por advogados dotados de boa infra-estrutura administrativa, de boa formaco e atualizada informagio, com maior disponibilidade de ‘tempo para acompanhar processos, com maior experiéncia adquirida no trato de sucessivas quest6es similares, com maior especializagfo, com maior facilidade de estabelecer comunicag6es informais com os ocupantes de cargos do Judiciério, com maior capacidade para estabelecer estratégias, que maximize ganhos e vitérias a longo prazo independentemente de eventuais perdas em casos isolados, com disposigdo para investir na gradual formagfo de jurisprudéncia futura com base em pequenos ganhos atuais, ete, Em suma, tais partes, porque possuidoras de recursos substanciais, podem ser representadas pelos mais caros ¢ melhores advogados. Inver- samente, os interesses coletivos populares seriam provavelmente represen tados legalmente por advogados muito idealistas, mas em geral de poucos recursos, trabalhando isoladamente € nfo em escrit6rios que possam for- necer apoio administrativo rdpido ¢ eficiente, sem biblioteca adequada, sem informaggo atualizada; com menor disponibilidade de tempo para acompanhar a multiplicidade de processos que necessitam aceitar para manter sua sobrevivéncia material; com menor especializago, com menor acesso aos ocupantes de cargos do Judicidrio, e impedidos pela pressfo dos clientes de aceitar perdas estratégicas. Se para o Estado ou a ‘grande instituigdo privada existem vérios casos similares, € © que importa € ganhar 0 maior mimero de vezes, para o particular 0 que importa é 0 seu caso, 6 ganhar aqui e agora o seu caso. E ele nfo tem tempo para esperar a lentidio do processo, e nem recursos para contratar os melhores advogados. ‘Ialvez, no entanto, nem todos esses obsticulos sejam intrans- poniveis. Talvez seja posstvel imaginar formas de fazer com que grandes € bons escritérios de advocacia se interessem pela representagio em juizo de interesses coletivos marginalizados, de tal forma a melhorar as chances de vitéria de demandas bem formuladas. A experiencia de outros paises com 0 tema deveria ser analisada 28 — Direito e cultura ‘A segunda razdo que poderia questionar a validade da proposta sobre a ampliagfo do acesso a0 Judiciério € esta: um esforgo de mobili zagfo nesse sentido desviar a atengo para longe da questo mais funda- fundamental, que é a feitura das leis, ¢ nfo apenas a sua aplicagio. E certo que tal critica nfo se aplicaria a sistemas juridicos onde jufzes e tribunais tém ampla autonomia para dizer o direito, que nfo é, via de regra, codifi- cado. No nosso sistema, entretanto, onde essa autonomia é severamente limitada pela legislagdo abundante e casuistica, a critica é relevante. Essa legislagdo, ao estabelecer o que pode e 0 que nfo pode ser substantiva- mente demandado ao Judiciério, € a0 definir quem pode e quem n&o pode ser formalmente aceito como parte legitima, estabelece limites? rigidos, dentro dos quais até mesmo uma certa indeterminagfo de resul- tados pode ser admitida. O ponto fundamental da ampliago do acesso 0 Judiciério, por esta razdo, tem a ver justamente com a ampliaggo desses limites, endo apenas em inventar formas que possam aumentar a probabilidade de ganhos dentro dos limites estabelecidos. E a ampliago ddesses limites tem de ser pensada tanto em termos substantivos quanto em termos formas, isto é, tanto em termos do que pode ser legitimamen- te demandado, quanto em termos de quem pode legitimamente demandar. Sob esta Stica, a quest¥o do acesso ganha relevincia politica, de tal forma que cada ganho jurfdico obtido seria uma vitéria democrética. Por outro lado, mesmo algumas derrotas jurfdicas poderiam resultar em ganhos politicos, na justa medida em que aqueles limites acima referidos fossem desnudados, se tomassem mais transparentes. Isto sem falar no fato de que 0 volume ¢ a variedade das novas demandas fatalmente colocaria © Judicidrio sob severo stress, forgando-0 a uma redefinigo de sua orga- nizaglo e funcionamento. Retirar o Judiciério da penumbra tecnocritica na qual ele acredita existir, trazé-lo para fora, para um amplo debate, é,creio, parte integrante de um processo de democratizagéo. Finalmente, ¢ mesmo na hipétese pessimista de que, a0 fim e a0 ‘cabo, pouco se consiga nessa tentativa, é claro que a organizagfo e mobi zagfo de interesses coletivos marginalizados tém importancia que trans- cende a do eventual acesso ao Judicidrio. Essa importancia esté relacionada com um programa de reformas democriticas que requer a permanente organizagfo e mobilizagdo de contingentes substanciais de nossa populagdo, organizagdo e mobilizago que possam estar atentas para tomar partido das. oportunidades que se apresentem para uma agfo coletiva. Das Grandes Poténcias jf se disse que foram grandes porque estavam sempre preparadas para intervir eficazmente nas conjunturas internacionais favoréveis, e que (D Vero excelente artigo de Adam Przeworsky, “Material Bases of Consent: Econo: mics and Politics in Hegemonie Systems" Direito ¢ cultura ~ 29 estas conjunturas internacionais s6 eram favordveis precisamente porque as Grandes Poténcias estavam preparadas para aproveitélas.8 O mesmo raciocinio pode ser aplicado aos que, no ambito menor de uma sociedade, deve prepararse para os grandes embates de um verdadeiro proceso de democratizagfo. (8) Ver Antonio Gramsci, Mequiavel, a politica e 0 Estado moderno, p. $4 2 VIOLENCIA E CULTURA* PAULO SERGIO PINHEIRO** “As ag6es perpetradas pelos soldados, especialmente nas cidades do interior; a prepoténcia dos carcereiros para com os presos provocam a revolta até dos espiritos mais inflexiveis (....) O italiano Alberto Miche- otto foi outro dia convocado a mencionada delegacia de policia (Rua Barflo de Iguape, S40 Paulo) € preso por haver, no dia anterior, discutido com um funcionédtio que estava num bonde, ditigido pelo proprio Miche- lotto (...) Michelotto, tf logo foi trancafiado na prisfo, foi espancado com bastonadas e ferido em diversas partes do corpo, tanto que era voz corrente fora da prisfo que ele estivesse morto.” (Fanfilla, 29 de dezem- bro de 1898.) Cena na Delegacia de Policia de Nova Iguagu, Rio de Janeiro: “Os policiais esto sem camisa, suam muito e fazem chacota. Depois que todos saem do carro, podese ver, no cho da Brasilia, dois homens. Um sob © outro, deitados de costas com as mfos amarradas para trds (.. .) Ambos esto sem camisa, calga rasgada € com arranhdes pelo corpo. So levados 4 presenga do delegado titular (...) O delegado manda levar 0 preso para 4 sego de roubos. Lé comeca o interrogatério (....) Ipanema fala pouco € por isso apanha mais. © policial Nielsen empunha a palmatéria e a cada pancada o bandido grita e se contorce em dor.” (Manchete, 5 de maio de 1979, n9 1141.) (*) Gostaria de agradecer a Michacl Hall, companheiro de pesquisa e meu colega ba UNICAMP, as inimers sugests, quant a0 recorte do tera da violencia, {que foram incorporadas a0 texto e d discussfo desse trabalho; a Jorge Eduardo de Souza Hue pela coluboragio na pesquisa de imprensa 1946-1966 e na local 4zagdo de fontes; ao jornalisia Octavio Ribeiro pelas informagSes sobre 0 apa relho policial e sobre 0 atual sistema penitencidrio que gentilmente me forneceu, Agradeso, também, ao Arquivo de O Estado de S. Paulo, o acesso a sua vaio colegio de relatérios e de imprensa, A responsabilidade pelo resultado € somente minha, (**) Professor de Cigncia Politica na Universidade Estadual de Campinas e Membro 0 Conselho Diretor do Centro de Estudos de Cultura Contempotinea (CEDEC). Direito e cultura ~ 31 Durante toda a hist6ria republicana as classes subalternas no Brasil estiveram regularmente submetidas ao emprego de maus tratos e da tortura por parte do apareliio do Estado. Entretanto, a violéncia organizada do Estado somente se tornou um tema de preocupasao da sociedade a partir do momento em que os atingidos por essa violencia passaram a incluir largos contingentes das classes médias (e as vezes até mesmo mem- bros das classes dominantes). ‘A preocupago inicial deste trabalho era mostrar como esse tema jamais fez perte integrante do discurso sobre a democracia, nas diverfas ‘etapas da histéria politica. Nfo seria demais lembrar que essa omissfo ocorreu mesmo nos momentos de democracia limitada, como nos perfodos de 1933 a 1937 ou 1946 2 1964: a insensibilidade da sociedade durante esses longos ands permaneceu inalterada. A pauta das questdes em debate que poderia ter incluido esse tema da represso das classes subaltemas, ‘mesmo quando elaborada pelas oposigdes liberais, parece ter ficado sempre determinada pela hegemonia das classes dominantes. Os maus tratos ¢ @ tortura aos presos comuns, por exemplo, sempre foram entendidos como ‘uma distorgao devida somente a0 despreparo do aparelho de repress4o policial ou as condigdes subdesenvolvidas do sistema penitencidrio. Nunca foi conveniente colocar em questo 0 verdadeiro sentido dessa prética repressiva do Estado porque se faz crer que 0s principios de politica penal ou policial se deduzem dos interesses da sociedade como um todo: principalmente para as classes médias, para sobreviverem enquanto tais, € preciso continuar crendo no mito do Estado acima das classes (Pasukanis, 1970, p. 160-161). A eventualidade de uma reformulagdo desses princi- pios, ou a mera discussgo deles, implicaria colocar em questo o proprio ‘modo de organizaggo do poder na sociedade: como o sistema penal é a forma pela qual o poder se mostra de maneira mais manifesta, cumpre preservar sua dissimulagdo por uma moral que the dé justificagdo e enqua- dra seu exercicio ¢ até mesmo as distorgdes. Essa tirania brutal pode aparecer entdo como dominagfo serena do bem contra o mal, da ordem sobre a desordem. Para que o exercicio dessa tirania passe a ser incluida no debate sobre a democracia deve ser posta abaixo a distingfo entre abusos na repressfo politica e na represso aos presos comuns. A tortura, (os maus tratos e toda a violéncia em relagdo as classes subalternas tém uuma fungfo eminentemente politica — no sentido de contribuir para reservar a hegemonta das classes dominantes ¢ assegurar a participagao iluséria das classes médias nos ganhos da organizagfo politica baseada nessa repressfo. O exercicio continuado dessa violéncia organizada conso- (1) Michel Foucault © Gilles Deleuze, “Les intellectuels et le pouvois™. L’Are (499256, 32 ~ Direito e cultura lida as imagens de seguranga de status social das classes médias diante da permanente “ameaga” que constitui para elas qualquer ampliaglo das pautas de participagfo popular. Com efeito, a auséncia do controle através da violéncia implicaria a implantagfo de um programa social redistributi- vista, por exemplo, que provavelmente iria obrigar as classes médias a agarem impostos de renda a nivel americano ou europeu, agientar reves e privar-se de toda a gama de subemprego que ampara as condicOés de vida de todos os setores das classes médias. “ Justamente o debate sobre a criminalidade e a repressfo as classes subalternas tem deixado em geral de levar em considerago qualquer articulagZo entre a lei penal ¢ seus abusos com o sistema de propriedade, que € necessério recuperar. Seria conveniente verificar se além de uma intensificagdo do crime, que essa violéncia organizada teria a veleidade de enfrentar, nfo se esté também diante de um alargamento da pauta de repressio provocado pelo pavor das classes dominantes (e suas classes de apoio) diante das ameagas 4 Sua propriedade e modo de vida pelos espoliados, produto direto do agravamento da concentragfo de renda levada a cabo pelo regime militar. Ao mesmo tempo que os crimes aumen- tam e a repressio ilegitima se torna corriqueira, a legislago repressiva se multiplica, passando @ contemplar como crime o que até agora ngo era considerado como tal ou diminuindo a tolerincia diante de delitos que ‘do eram reprimidos com tanta severidade no passado, tornando difundido © uso da repressto fisica. No primeiro caso estfo todos os direitos consti- tucionais que sucessivas leis transformaram em crime na atual ditadura, como a liberdade de reunigo, a liberdade de organizaséo politica, e a liber. dade de imprensa. No segundo caso, a sofisticagdo dos métodos de tortura ao preso comum ¢ o Esquadro da Morte. Urge recuperar a nogo de que a_lei_penal ¢ a repressio policial continuam sendo um dos. principais instrumentos ideol6gicos das classes dominantes: a lei e a repressfo sto criticamente importantes para manter lagos de obediéncia e deferéncia das classes subalternas em relagdo as classes dominantes (e classes médias), em legitimar o status quo, recriando constantemente e reproduzindo aes- trutura de autoridade que decorre da propriedade e que protege a0 mesmo tempo os interesses de seus detentores (Hay, 1975). Em virias fases da Pri- ‘meira Republica e na ditadura instalada apés 0 golpe de 1964 aparece mais claramente, como pretendemos demonstrar no decorrer deste trabalho, que @ manipulaydo da lel e da repressao por parte dos proprietirios e dos detentores do poder permitiria propor que estamos, na verdade, diante de uma politica deliberada por parte do Estado, levados em conta o nivel a que chegou a violéncia ilegitima e a extensfo dos contingentes atingidos. Durante os periodos de democracia limitada, essa situaglo ficou dissimulada porque a repressto fisica propriamente dita foi posta em Direito e cultura — 33 segundo plano, permanecendo sotto voce, em favor de outros mecanismos. de controle social mais sofisticados. Ao mesmo tempo em que se abran- dava a taxa de espoliagdo, elevavamsse salérios € punha-se até em pratica uma politica de bemestar social. Nas fases de autoritarismo, como na Primeira Repiiblica, e de ditadura, como no Estado Novo e a pattir de 1964, essa dissimulagéo vem abaixo (mesmo que se preserve a politica de bemestar social): a necessidade de intensificar a repressfo politica aque assegure 0 controle sem participagdo das classes subalternas derruba as fronteiras entre 0 exercicio da repressio politica € a0 crime comum. Os organismos responsaveis por essa represso passam a agir, sem limites de atuagdo, de acordo com as necessidades. Assim, o autoritarismo des- venda na pritica para 0 observador 0 que nas outras fases democriticas fica dissimulado: 0 cardter politico da repressio ao crime comum. Creio que 0 confronto desses perfodos pode dar condig6es para se tentar compreender 05 fundamentos da tradigfo de maus tratos e tor- turas postos em prética pelo aparelho de repressio em relagdo as classes subaltemas. Por condicionamento da propria documentagdo que tenho trabalhado nos iltimos anos, a énfase aqui serd dada a documentagdo rela- tiva a Primeira Replica, pois certamente seria uma pretensfo abusiva tentar dar conta da repressfo do Estado no Brasil republicano dentro dos limites deste estudo. Em uma observacdo mais detida daquele periodo, confrontado com elementos de outras fases subseqientes, procurarei formular algumas hipéteses para discuss4o © Chama a atengdo na imprensa operdria das primeiras décadas da repiblica a referéncia incessante aos maus tratos por parte das autori- dades policiais. Geralmente se tende, quando se dé relevo a essa repressf0 do Estado, limitar-se o exame dos maus tratos perseguigdes de natureza mais propriamente politica: nada impede que essa distingio redutora seja rompida para que se possa refazer os fundamentos dessa prética. Em 1896, 0 chefe de policia de Sdo Paulo expde limpidamente as motivagdes para o tratamento dado aos anarquistas. Ao assumir a chefia da policia, essa autoridade teve noticia das atividades de “um grupo de cestrangeiros anarquistas, constituidos em grémio de propaganda subver siva” que tinham recebido ordem de deportagdo, mas afinal, postos em liberdade, haviam voltado a Sdo Paulo. Por isso “determinou que se tomas- sem as necessérias providéncias, seguindo-se todos os passos dos sectirios, até que pudessem ser presos em flagrante”. Tendo sido presos quatro deles, do interrogatério “‘saiu a confissfo franca de que eram propa- gandistas convencidos e ardentes do socialismo anarquista, solidérios com todas as manifestagdes dessa crenga ¢, por isso, elementos infensos e peri 34 — Direito e cultura {g0s0s 4 ordem piblica”.? Quando 0 movimento operirio urbano de porte comegou a surgir na sociedade brasileira as classes dominantes se assus taram. As liberdades consagradas pela constituigo e veneradas pela defi- nigfo liberal do regime nfo funcionaram para esses primeiros grupos das classes subalternas que ousavam submeter a critica a organizagdo social e politica vigentes. Os grupos anarquistas © anarcosindicalistas sero o elemento reve: lador da verdadeire natureza do Estado liberal da Primeira Replica. Enquanto 0s contingentes urbanos das classes subaltemas eram extrema. mente reduzidos, gerados no préprio contexto urbano e cuja atividade predominante eram 0s servigos e 0 comércio, um limitado espectro de instrumentos de repressfo dava conta do controle social dessas classes. © que nfo quer dizer que esses contingentes fossem anémicos ou vivessem em meio @ amenidades propiciadas pelo Estado. De qualgier modo, as iniqiidades @ que estavam sujeitas essas classes subalternas nfo eram atribufdas ainda a exploragdo das classes dominantes. Além do mito da educago (segundo 0 qual as classes subalternas nfo tinham preparo para participar), © conformismo e fatalismo generosamente fornecidos pela Igreja catélica ¢ por outras religies populares? contribuiam para abran- dar a face explicitamente repressiva do controle social por parte do con- trole oligérquico. No campo, as largas massas rurais eram reprimidas pelos esquemas tradicionais do clientelismo, baseado na dependéncia econémica com 0s proprietarios da terra. Mas aqui os esquemas de repres- sfo ideoldgica eram ainda mais atuantes, dada essa dependéncia econd- mica ¢ vistas as condig6es subumanas de existéncia dessas massas. Além dos mecanismos especificos de controle ~ relago de dependéncias senhor- empregados, 0 peso da Igteja catélica ~, 0 total enfeixamento dos apare- thos de Estado locais nas maos dos senhores de fazenda e engenhos, con- fundia todas as instancias da justiga e da coagfo nas mesmas mfos. Nada hhavia que temer dessa érea. Essa situagfo de controle social incontestado por parte das classes dominantes comega a se complicar a partir do momento em que a mdo: de-obra européia, a que 0 Império comecara a fazer apelo visando manter a remuneragdo da forga de trabalho em niveis irvis6rios, aumenta a sua Presenca na cidade e passa a fazer pressto, apresentando reivindicagSes quanto a salérios, condig6es de vida e diteitos civis. E sobre esses que se desencadela uma legislagfo repressiva especifica e se torna mais visivel (2) Relatério apresentado ao Secretdrio dos Negécios da Justiga do Estado de So Paulo pelo Chefe de Policia Bento Pereira Bueno, Sf0 Paulo, 1896, (©) Ver Jofo do Rio (Paulo Barreto), As relies do Ro, 1904 (cede 1976), passim. Direito e cultura 35 fa pritica de maus tratos, tradicional no relacionamento com as classes subaltemas. A reconstituigo dessa prética especifica pode permitir recu- perar-se para a andlise o emprego da repressfo a0 conjunto dessas classes. ‘Ao mesmo tempo essa contestago inusitada as classes dominantes aumen: ta a desconfianga e © medo em relagSo a classe operéria em particular, as classes subaltemas em geral. ‘A descrigo do emprego de maus tratos pelo aparelho policial nas primeiras décadas da Repiblica mostra uma perversa semelhanga com as préticas contemporineas da policia. Um jornal destinado & comuni- dade italiana, Fanfulla,* bastante conservador, desde 1898 se queixa da policia que “comete dia a dia atos de suprema prepoténcia e abusos de todo 0 tipo”, mostrando que “as agSes perpetradas pelos soldados, especialmente nas cidades do interior, a prepoténcia dos carcereiros para com 0s presos provocam a revolta até dos espiritos mais inflexiveis”. E cita 0 caso de um motorneiro de bonde brutalmente espancado numa delegacia policial. Até mesmo O Estado de S. Paulo, em relagfo a esse ‘mesmo caso, profere que “constitui grave afronta aos préprios senti- mentos de humanidade ¢ muito vem depor contra nossos créditos de povo civilizado”.® No ano seguinte, o Fanfulla descreve diversas atroci- dades ocorridas em Campinas e em Rio Claro e num editorial condena (0s abusos policiais, que, se bastante graves na capital, “nas localidades do interior — diante da leitura e das reclamagbes que continuamente aparece — é alguma coisa absolutamente vergonhosa, tanto se descurar do comportamento prepotente dos delegados ¢ da conduta provocante € bastante bestial dos soldados bébados, que prendem e dao bastonadas segundo seu capricho no primeiro desgragado que encontram, esque- cendo-se completamente da disciplina e de seu dever”.” Os ataques da policia as classes populares soam como um tema cons- tante: um artigo sobre a delegacia policial de Barto de Iguape indica “que se dé bastonadas com muito entusiasmo, se mantém gente no cércere por mero capricho”® e registra que “todos os dias somos constrangi- dos a registrar atos de prepoténcia selvagem, bastante vergonhosas e as crdnicas, entretanto, nfo registram tudo o que se sabe”.? O Fanfulla deixa claro que esses incidentes nfo ocorrem exclusivamente contra os (8) agrasego a wich! Hal, protesior do Departamento de Hutri da UNICAMP, 2 omoniagdo que me fez das deninciascotaas no Fnfula€os relatos Siplomaics talianos (5) Fanflla, 9 de dezenbro de 1898, (©) OBuado de Palo, cit, Fanull, 30 de dezembo do 1698 (1) Finfula, 6 6 janezo de 1899. 10dejaneto de 1901 Se argo de 1901 36 ~ Direito e cultura imigrantes italianos, mas generalizadamente contra as classes subalteras, Mas, do mesmo modo que a8 criticas reformistas em relagdo aos abusos € 20s excessos, o jornal imputa a violéncia a uma falta de disciplina da policia, menos do que a0 resultado de uma politic, como de fato se tratava __ Varios documentos dfo conta dessa politica deliberada, da conspé: ragdo das clases dominantes em relagfo as classes subalicmas. Num relatério enviado pelo diplomata italiano Di Cariati, a0 ministro das relagdes exteriores italiano, sobre uma conversa com o chanceler brasileiro © Barfo do Rio Branco, essa politica fia claramente dlineada. Di Cariat relata que havia enviado 20 Barfo um memorial compilado por um funcio- nério de seguranga pablica italiano contendo informagdes sobre a props: ganda anarqusta, juntamente com uma lista dos anargustas italianos ‘mais perigosos de Sio Paulo”. Tranqiliza o diplomata italiano o seu ministro: “sei que ambos os documentos jé foram transmitidos ao ehefe de poliia do estado de So Paulo, com a recomendasio de proceder com todo 0 rigor que o caso requer. Diste-me o Harfo do Rio Branco que estd convencido da necessidade de providencias enérgicas para reprimir a auddcia dos agitadores estrangeiros, os quais gozaram até agora de uma longa tolerincia por parte das autoridades brasieias. Tolerincia al comejam a verse ob fates ma agasdo das masa operas € no caréter ameagador das gr r ntr08 gn cater avesendor dus pees que 36 segue 08 principal ent Como se pode ver pelo relatrio polical é citado, do final do século XIX, essa “tolerincia” nunca existiu, No ano de 1895 0 anarquismo jf estavaincluido na definigso das ilegalidades; para o Estado o anarquis. ‘mo era um delito comum, 0 aparetho polcial néo facia a dstinggo que a historiografia mais tarde’ vai aprender estabelecer, Na lista de motivos dos individuos recolhides aos postos polciais em a0 Paulo durante 0 ano de 1895 Id estdo registrados os seguintes: “requisigfo dos juizes, agtessfo, anarquists, averiguagdes, cartomancia, cumplicidade, crime de dano, defloramentos, deméncia, desersfo, desordeitos, embriqguer, gtunos, homicidas, indigéncia, infantcidio, lenocinio, ofensas fiiets, Vindos do interior, suspeitos, tentativa de morte, uso de armas, vagabun- dos". Se levarmos em conta as profissdes dos detidos, nfo fica muita divide quanto a estarmos diante de uma politica deiberada do Estado (40) Koma, Minsteo deg Afni Ester, Archivio Store, S . nt Ester, Archivo Storie, Serie pola (1891- 1910), pe47 po 8 Anareti,19000908, Dy Ca Mess Re Ge Jeneto, 23 deagoo de 1903, in Palo Seige Pnexo «Mocha alla ele operina no trast. Documenta, 1889-1990, 2 volumes. Sto Polo, Al 2, 1979 (no pelo) Doravante todos os documenta referent serio seguidos das iniciais ACOB. esses lire Direito ¢ cultura ~ 37 em relagfo as classes subalternas: num total de 17.387 detidos, a maioria € constituida de 6.089 operérios (jornaleiros) ¢ 1.173 artifices (artistas). Durante o ano de 1903 persistem as mesmas reclamagbes em So Paulo: “A policia de Sdo Paulo recorre a métodos incivis ¢ desonrados. Mantém privados de alimento os presos que teriam todo o direito de serem tratados como homens ¢ a respeito dos quais a justiga ndo se havia ainda pronun- tiado; eles so mantidos seminus dias e noites num cércere frigidissimo, a fim de que se decidam falar.”!? A policia € acusada de torturas, de sevicias, de coisas que trazem a desonra para a civilizagdo brasileira”. 13 Mesmo fora das delegacias e pris6es, a violéncia € a mesma: “Nos cafés, nos botequins, penetram de imprevisto um, dois, trés agentes de policia, com uniforme ou sem, e ~ nfo apresentando nenhuma autorizagSo legal se poem a investigar as pessoas, como se a0 invés do livre Brasil, se encon- trassem na santissima Rissia (....) Os agentes tém um etemo argumento para dar como justificativa de sua intemperanga: ordens superiores.”)* ‘Alisa associagZo com a Russia czarista parece ser uma constante: 0 pre~ sidente do Estado, Washington Luis, & apresentado como 0 “Trepoff- tirim” por ter iniciado “hd anos, uma reagdo sistemética contra o movi- mento opersrio, assaltando as sedes das organizagSes operdrias ¢ roubando (0 seus méveis, criou um espirito de retraimento que envergorha a classe trabalhadora. Todos os chefes de policia seguiram o método do ““Trepoff- mirim”, procurando cada qual defender melhor os interesses dos pa- tr6es"15 Ainda em 1919, numa das raras dendncias de violéncias feitas na Cimara de Deputados, 0 deputado Nicanor Nascimento, que fora a Sto Paulo a convite de associagdes operdrias, a descrigf0 do procedimento habitual nas delegacias policiais nfo apresenta nenhuma modificaglo; (8 espancamentos so a regra e as sevicias atingem operérias, pintadas com as cores da época: “Donzelas tiveram em seus seios castos as mHos brutais de soldados perversos ¢ foram arrastadas, de vestes rotas, desnudas pelos secretas que faziam rir ao subdelegado Schmidt ¢ arrebentavam risos no facies canibalesco do delegado Bandeira de Melo."16 ‘Apesar de preocupados especificamente com os cidadfos italianos, 6s relatérios dos agentes diplomidticos no Brasil confirmam as mesmas impresses, desde o final do século XIX. Em 1899, © ministro italiano (11) Relatério SP 1896, op. cit. entre 6,160 detidos, somente 1.932 sfo brasileiros, tendo s maior, portanto, constituida de estrangeiros, entre os quais 2.533 ia lianos, podendo-se supor que se tratasse de trabalhadores imigrantes. (12) Fanfulla,19 de maio de 1903. (13) Fanfulla, 20 de maio de 1903. (14) Fanfulla, 11 de setembro de 1904. (15) A Vor do Trabathador, 8 de junho de 1915 (16) Nicanor Nascimento, discurso, Camara dos Deputados, sessio de 22 de maio 461919, Anais da Cémara, 1919, 412-460 ACOB. 38 — Direito e cultura no Rio de Janeiro, Antonelli, depois de uma visita a SG0 Paulo, onde se encontrou com Iideres politicos, s¢ queixava de que 2 policia bate nas pessoas, tanto brasileiras como estrangeiras, e explica que “seria necesséria & punigfo dos agentes culpados de fatos verdadeiramente reproviveis ¢ nfo suportéveis num pais civilizado (...) A antiga tradigdo de bater no escravo infelizmente ainda nfo esté de todo desaparecida” 17 Impunidade provavelmente julgada no minimo natural, se levadas em conta as préticas vigentes no campo: um inspetor italiano da imigragfo do Brasil a respeito afirmava: “nfo creio que 0s anais judicidrios do Estado de So Paulo reyistrem um caso, um $6, de fazendeiro que, tendo aplicado bastonadas num colono, tena sido legalmente punido”.!® Q proprio cOnsul italiano em S40 Paulo, igualmente preocupado com a repressfo 405 agitadores, observava porém que “a policia age certamente, mas com critérios antiquados, sendo violenta agressiva” e espantando-se que © chefe de policia nfo consiga fazer “nenhuma distingfo entre greve ¢ insurreigfo” 19 Essa facilidade de confundir classes trabalhadoras ¢ classes perigosas fica patente quando se analisa 0 procedimento do aparelho de Estado diante das manifestagdes populares urbanas que marcaram 0 periodo. Quando essa prética de maus tratos, violéncia e tortura nfo parecia ser suficiente & pretensfo do aparelho de repressto, como nos uiltimos quinze anos, era livrarse dos maus elementos, fazer desaparecer os supostos causadores das revoltas. Até quando se pode retroceder na histéria da repiblica a temética da infiltragdo e dos agitadores estranhos as classes populares jd estd presente. Entre as “medidas de repressfo contra as pessoas” a impor durante 0s estados de sitio, a resposta institucional, revista no pardgrafo 2 do artigo 80 da Constituigfo Federal de 1891, para o enfrentamento das manifestagdes populares nas crises politicas era ‘0 desterro para outros sitios do territ6rio nacional”. Aqui interessa re- sistrar que as revoltas urbanas serviram de pretexto para que a repressfo se alastrasse, quando argos contingentes das classes subalternas se apro- veitaram das revoltas militares € das dissidéncias das forgas politicas dominantes para expressar sua insatisfaco. 17) Serie politica, Brasle, 1896-1901, pacco 283. Antonelli (ministro italiano no Rio) al Ministero degli Affari Ester, 22 de maio de 1899. (18) Silvio Coletti (R. Ispettore viaggiante del'emigrazione al Brasil), Gi S. Paolo e Pemigrzione italiana”, Bolertino dell’Emigrazione (15): 8,1908 (que me foi comunicado por Michael ila. (19) Serie politica, Brasile 1896-1901, pacco 283, relatério do oSnsul geral em ‘io Paulo a0 MAE, 21 de outubro de'1909. Direito e cultura — 39 (© método mais comum para lidar com essa manifestagdo eram as deportagdes em massa: tinha-se a ilusfo de que fazendo desaparecer os insatisfeitos, o fermento da revolta também seria eliminado. E um dos meios de que o Estado se serviu foram os navios de prisioneiros que até oS anos 1930 permanecerio como uma pritica corrente. Afonso Arinos de Mello Franco aponta a “tradigéo dos navios-fantasmas — as chamadas presigangas — que transportavam nos por6es uma espécie de gado humano, perdido em imprecag6es e lamentos, quando nfo atirado em lutas de desespero, homens enjaulados como feras nos cascos fechados, clamando por dgua eat, rolando de borco na lama fétida de sangue, vomitos excrementos” que ndo se limitava aos navios negreiros. Esses navios podem ser localizados pelo menos desde 1823 quando mais de 200 “celerados” envolvidos em motins em Belém do Pard foram recolhidos aos pordes do brigue Palhaco e sedentos despedacaramse como animais durante a noite de forma que ao amanhecer somente quatro estavam vivos (Afonso ‘Arinos, 1973, p.424). Paralelamente a essa prética, também fazendo uso de navios, estavam as expuls6es ou deportagGes de operdrios anarquistas ou anarco-sindica- listas, Da mesma forma que em relagfo aos nacionais desterrados constitu- cionalmente, a motivagdo era a mesma: livrarse dos elementos estranhos 205 meios populares naturalmente sadios, dos agitadores estrangeiros, “a escumalha social rejeitada pelas velhas civilizag6es da Europa”,?0 colocando-os a ferros nos navios, devolvendo-os para seus paises de origem (onde geralmente caiam nas mdos das policias locais). Além dos signi- ficados de uma politica deliberada de classe, nessa prética podem ser identificados alguns dos tragos que Michel Foucault atribui as stultifera havis, as naus em que os loucos eram encerrados na Idade Média, na Europa; € preciso nfo reduzit a eficécia prética imediata e incontestavel dessa politics, confiando os delingientes aos marinheiros para evitar que cles permanesam dentro da cidade, para se assegurar que eles iro mais Tonge — “‘mas a isso, a dgua acrescenta a massa obscura de seus proprios valores; ela leva embora, mas mais do que isso, ela purfica; e depois 4 navegagdo entrega o homem & incerteza de sua sorte; Ié cada un é con- fiado a seu prOprio destino, todo embarque é, em poténcia, o iltimo”” (Foucault, s/d, p. 22). As classes dominantes quanto a essa “purifica fo" da sociedade através do desterro e da deportagdo nfo tinham ne- ‘Bhuma dtvida, desde quase a proclamagav da Replica. Logo depois de promulgada a constituigfo de 1891, o dispositive que autorizava o desterro é inaugurado na repressdo a0 golpe de 10 de (20) “Circular” do Centro dos Industeais de Fiagio ¢ Teeelagem (CIFTA), 38, 25 de julho de 1921, ACOB. 40 ~ Direito e cultura abril de 1892 contra Floriano Peixoto. Uma pléiade de marechais, te entes-coronéis, majores € bacharéis sf0 enviados para So Joaquim, em Rio Branco, e para Tabatinga, no estado do Amazonas (Carone, 1971, p. 77). Mas, na medida em que as revoltas passam a abranger contingentes populares, o desterro serd um instrumento suplementar para atingir as classes subalternas — ainda que as revoltas estejam longe de ter um caréter predominantemente popular. Tratase mais de manifestagdes que na histéria social da Europa tém sido caracterizadas como da agressive mob explos6es hostis a ordem constituida por parte de multid6es, expressas em atividades como greves, motins, rebelides, insurteigdes ¢ revolugSes (Rude, 1964, p. 4). Geralmente essas explosdes na Primeira Repiblica — a revolta contra a vacina de 1904, a luta contra a carestia, greves dos anos 1910, rebelides tenentistas dos anos 1920, em especial a revolugo de 1924 em Sto Paulo — quando envolveram a participagfo popular, essa tem sido reduzida pela crOnica oficial a atividades de delinguentes, pouco se tendo considerado a composigao social e as reivindicagOes das multiddes nas revoltas. Essa generalizagfo da delinqUencia oculta na reali dade o cardter de politica deliberada que fundamenta a atuaggo do apare- Iho de Estado naqueles momentos. Foi 0 que ocorreu durante o levante popular contra a vacinagfo obrigatéria em 1904, no Rio de Janeiro, quando os protestos da populagfo foram enfrentados por tropas regulares do exército. Depois de a agitacZ0 assumir um cardter nitidamente politico, a repressfo se tomaria furiosa: “Qs amotinados foram rapidamente varridos da praga publica, indo os mais audazes e cabecudos entrincheirarse no velho baitro da Saide, perto das obras do porto, onde, cercados pela infantaria do exército e bombar- deados pela artilharia da esquadra tiveram de renderse 2 autoridade. © governo mostrouse entdo de uma severidade deveras espantosa para com a gente miserdvel do Rio de Janeiro. Sem direito a qualquer defesa, sem a minima indagagdo regular de responsabilidades, os populares sus peitos de participagfo nos motins daqueles dias comegaram a ser recolhi dos em grandes batidas policiais. Ndo se fazia distingfo de sexo nem de dade. Bastava ser desocupado ou maltrapilho e nfo provar residéncia habitual, para ser culpado. Conduzidos para bordo de um paquete do Lloyd Brasileiro, em cujos pordes jé se encontravam, a ferros e no regime da chibata, 0s prisioneiros da Satide, todos eles foram sumariamente expedides para o Acre” (Santos, 1930, p. 414). Cerca de 334 individuos patticipantes das desordens foram embarcados em dezembro de 1904, @ bordo do navio /taipava, para o Acre, amontoados nos pordes, guardados a vista por soltados do 12 Q. Batalhdo de Infantaria, Durante dias, meses, outras levas de desterrados se sucederam, para o Acre, Amazonas ou outros Estados do Norte (Afonso Arinos, op. cit, p. 424). Direito e cultura ~ 41 ‘Tudo leva a crer que a participaggo da populagZo na revolta tenha ido origens mais no malestar quanto as condig6es de vida e de subsis- téncia do que no protesto contra vacina obrigatéria ou muito menos ainda com os objetivos politicos (no sentido estreito da cena politica dominante) dos elementos antigovernistas que se utilizaram também da rebeligo. Mas essas liderangas foram tratadas com indulgéncia, enquanto 1 severidade se descarregou sobre 05 elementos populares. Funcionava nessa revolta um pacto nfo escrito entre as classes dominantes, segundo ‘0 qual, no caso de rebelides contra o poder central, mesmo que haja par- ticipagdo popular, os elementos dissidentes das forgas politicas dominantes nfo sto eliminados fisicamente. Esse pacto somente seré rompido em 1964, quando a repressfo deixaré de respeitar as barreiras de classe: fo Estado permitird que se eliminem fisigamente elementos das classes dominantes em oposigo (Martins, 1976, passim). E a partir de 1904 que 0 historiador José Maria dos Santos situa 1 postura violenta do aparelho policial em relagfo as classes populares: “Foi a partir daquele momento que se tomaram correntes na nossa policia 5 hébitos de grosseira e infinita brutalidade que especialmente a carac- terizam nas suas relagdes com a gente pobre. Entrouse 2 falar, também aqui, de uma “questo social” e, imitagZo do Velho Mundo, tomouse um. grande medo dos anarquistas. A prisdo policial, sem processo, por tempo indeterminado, agravada pela aplicagao de sevicias corporais, ficou sendo ( meio usual de incutir a boa conduta Daquela época, mais ou menos, data o emprego do cano de borracha no espancamento de presos, recomen- dado de preferéncia a qualquer outra espécie de calabrote, pela vantagem de magoar profundamente sem produzir estigmas evidentes. O processo de depuragdo dos meios proletérios, foi admitido como normal, mesmo sem qualquer perturbacdo da ordem piiblica, Em Sko Paulo deportava-se para a regifo a noroeste de Bauru, que entfo comegava a ser aberta; no Amazonas, para 0 Alto Rio Branco; no Pard, para o Xingu.” (Santos, op. cit. p. 414 — grifos meus.) Mesmo situando um pouco tardiamente ‘© surgimento do pavor dos anarquistas e dos maus tratos nas repartigdes policiais, nfo deixa de ser significativa no texto a mengfo quanto ao acirramento da repressfo: 0 aumento da participaggo da multido urbana intensifica 0 panico no meio das classes dominantes. E como remédio para esse panico a pritica de “batidas” policiais, sem mandato legal, nos baitros populares comeca a surgir como importante operagdo de “prevencdo 20 crime”, como na versdo atual. © que havia acontecido em 1904 se repetiu em 1910 no Rio de Janeiro, quando da revolta contra o uso da chibata na marinha, desenca- deada por marinheiros sob a lideranga de Jofo Candido. Apesar de os ‘marinheiros envolvidos na revolta haverem sido anistiados apés a rendigfo, 42 ~ Direito e cultura foram postos a ferros no navio Satélite ¢ sumariamente enviados para a regio amaz6nica. Esse desterro dos revoltosos serviu como pretexto para uma nova depuragdo nos bairros populares da capital: “Havia no Rio de Janeiro um grande nimero de individuos desocupados, tidos natural- mente por incOmodos e inquietantes. A policia aproveitou a perturbagdo causada pela revolta dos fuzileiros navais, para desembaragarse daqueles infelizes” (Idem, ibidem, p. 430). Duzentos e noventa e trés homens foram retirados da Casa de DetengSo e jogados no porgo do navio, com destino a Santo Antonio de Madeira, em plena selva amazOnica, qualifi- cados como “ladrdes e assassinos”, destinados a trabalhar na linha telegré fica ém construgfo pela Comiss#o Candido Rondon; sessenta e seis mari- nheiros que estavam recolhidos numa masmorra do Quartel do Exército também foram embarcados, mais trinta e um marinheiros que estavam no 19 Regimento de Infantaria e sete marinheiros, informantes da policia, encarregados de promover um motim no navio que propiciasse a execugao de alguns lideres da revolta previamente assinalados no livro de embarque (houve nove fuzilamentos). Juntaram-se a essa carga humana quarenta € cinco mulheres retiradas também da Casa de Detengdo (Morel, 1959, p. 152-153). 0 relat6rio do comandante do navio Sarélite, Carlos Brando Storry, registra que haviam partido “‘conduzindo 105 ex-marinheitos, 292 vagabundos, 44 mulheres ¢ 50 pragas do Exército” (para vigilincia. Depois de registrar os fuzilamentos motivados pela revolta detectada pelos marinheiros-policiais, a viagem comegada em 25 de dezembro de 1910, no dia 3 de fevereito chega a seu destino; “foram entregues Co- missfo do Capitfo Rondon 200 homens, conforme ordem do governo, Os restantes teriam de descer com eles deixando-s pelas margens do rio. Os seringueiros ao longo do rio iam pedindo os homens, E assim ‘no mesmo dia, ficamos livres das garras de to perversos bandidos.”(Morel, op. cit, p. 103-108; Brando, 1950, p. 99-111.) Aqui, ao contrério da revolta de 1904, o aparelho do estado se dispensa o pretexto da partici- pagfo na rebelifo: 0 desterto dos marinheiros anistiados serve para esva- iar-se a Casa de Detengfo. A pena da reclusfo de superpée, sem qualquer processo, uma outra ao arrepio de qualquer determinagdo legal. Depois da revolta de 1924 em Sfo Paulo, sfo as mesmas cenas arbitrérias: 0 niimero de prises realizadas na cidade foi de 10.0002! Muitos presos sfo enviados a bordo do vapor do Lloyd, Comandante Vasconcelos: 0 pordo desse navio ficou ocupado por mais de 140 presos, (21) Sucessos Subversivos de S£o Paulo, Deniincia apresentada ao Exmo. Sr. Dr Juiz Federal da 14 Vare de Séo Pauio pelo procurador Criminal da Repiblica, ‘em comissfo no Estado de Si0 Paulo, Rio de Janeivo, Imprensa Nacional, 1928, passim; E, Catone, op. eit, p. 381. Direito e cultura — 43 representando dezenove nacionalidades, aos quais se juntaram mais de cem sargentos, cabos e marinheiros que estavam presos na fortaleza de Santa Cruz, acusados de participagio nas revoltas dos navios Séo Paulo Goyaz, Depois de vinte dias a bordo desse navio e em seguida de um navio fluvial Qyapock, foram desembarcados em Clevelandia, sede de um colénia agrfeola que © governo mantinha na margem esquerda do rio Oiapoque, a quatrocentos metros da Guiana Francesa2? Entre 1924 ¢ 1925 trés navios levaram mais de novecentos prisioneitos para o Centro Agricola de Clevelindia, havendo estimativas que quatrocentos ¢ um ali foram enterrados. Um dos porta-vozes do governo afirmava que a taxa de morta- lidade em Cleveléndia alcancava 43%. E nfo se tratava somente de mili- tantes politicos, como os cinco anarquistas paulistas que morreram na regifo do Oiapogue. (Dulles, 1973, p. 260.) O primeiro navio que chegou a seu destino a 26 de dezembro de 1924 levava 250 prsioneiros que © governo considerava “perigosos por causa de seus muito maus antece- denies” — entre os quais estavam operdrios, ladrdes e vagabundos do Rio de Janeiro (Dulles, op. cit, p. 266). ara 0 aparelho regressivo do Estado, portanto, os desterros eram medidas profildticas, através das quais se impedia que “mendigos ¢ vaga- bundos” continuassem vagando pela cidade ou aliviava a superlotaggo crdnica das cadeias da cidade. Operagdo incrivelmente mais onerosa do que 0 Esquadrfo da Morte, mas levada a cabo durante pelo menos trés décadas sem que 0 aparelho judicidrio criasse grandes embaragos ¢ com © apoio (as vezes entusiéstico) da opinio das classes dominantes. A compulsfo profilética € um elemento intr{nseco 20 discurso policial, especialmente em relagZo aos classificados como "*vagabundos”, categoria que pelo menos j4 esté presente desde 1896.23 Em 1922, na lista de presos recolhidos a cadeia piblica de Sto Paulo, 0 motivo “‘vadiagem” cupa © quarto lugar (com 1.014 detidos), logo depois de embriaguez (2.543), desordem (1.639) ¢ jogo (1.028)24 A possbilidade de se livrar fisicamente desses “vagabundos” devia ser sempre muito atraente, visto (que ainda em 1945 0 chefe de polfcia de Sto Paulo, referindo-se ao Reco- lhimento da Penha destinado aos “mendigos ¢ pessoas sem domicilio ou profissfo", declara que era urgente a construsfo ou adaptagfo de acomodagSes convenientes, as quais, por uma questo de humanidade (22) Documentos Parlamentares, Estado de sitio, vol. 12, 1930, p. 486-487. (23) Relatério Sao Paulo, 1896, op. cit. (24) Estado de Sfo Paulo, Secretaria da Justica © da Seguranca Péblica, Relatério apresentado a0 Exmo, St. Dr, Washington Luis Pereira de Souza, presidente do Estado, pelo Secretério da Justiga e da Seguranga Piblica, Francisco Cardoso Ribeiro, 1922, Curiosamente, essa Usta registta também trés casos de "feitigatia” (num total de 6.083 detidos), 44 — Direito e cultura além de favorecerem 0 proprio detento ~ que era antigamente recolhido 4 xadrezes sem ar ¢ sem luz —, favorecem igualmente a ag8o das autori- dades policiais. “Os mendigos ¢ vadios, no referido departamento sfo submetidos a rigoroso regime de reeducago moral, de melhoria das condigdes fisicas e de readaptagfo para o trabalho.”25 Sob a temética da recuperagfo fica pelo menos evidente que, até o momento, nJo havia conde recolher efetivamente os “mendigos”, dificuldade agravada por 1ii0 poderem contar com 0 expediente do desterro. Menos de vinte anos mais tarde 0 Esquadrfo da Morte retomard a tradig&o interrompida, com igual apoio do aparelho de Estado.26 Assim, quer nas revoltas politicas, com putticipagZo de multidges urbanas, quer nas manifestagBes do movimento operdrio, a interpretagfo das classes dominantes é a mesma: tudo é 0 resul: tado dos “agitadores de profissdo” e nada resta sengo se livrarem deles para que a paz social possa reinar. O chefe da policia do Rio de Janeiro fem seu relatério, em 1904, expressa certamente esse ponto de vista: “as classes operdrias, pela humildade de sua condigfo ou porque ndo hajam atingido a um certo grau de cultura, nem sempre sabem repelir a interferéncia de uns tantos elementos estranhos a elas e constantemente prontos a toda sorte de exploragdes (...) Tenho observado que, em regra, quando uma parede degenera em desordem € porque esses elementos, que aludo se metem no meio, pregando reivindicagdes, cujo exato valor nem sequer podem compreender € arrastando assim os operdrios de verda- de por um caminho ingrato em que 0 menos que estes perdem é a simpatia do piblico."27 E para tanto é preciso isolar os elementos estranhos as classes subalternas, tanto os que se recusam a trabalhar (vagabundos, vadios, mendigos), desterrando-os, como aqueles que “agitam” as classes trabalhadoras, expulsando-os, A esse respeito 0 representante do governo brasileiro nums reunigo dda Organizagfo Internacional do Trabalho, em 1924, em Genebra, nos dé uma deliciosa definigfo dessa dupla politica, ao pretender negar que estrangeiros estejam sendo enviados para as colénias no Oiapogu (25) A Policia de So Paulo em 1944 na gestio do Exmo. Sr. Dr. Fernando Costa, Aignissimo interventor federal no Fstado, tendo como Sectetatio dos Negécios dda Seguranca Pablica o Dr. Alfredo Issa Assaly, SP., Brasil, Bureau de Informa- fs Policais, Secretaria de Seguranca de So Patio, 1945. (26) A Terra Lire 05.02.1907, eit. E- Rodrigues, Socilismo © Sindicalismo no Brail, 1969, 172, Sobre expulsfo de miitantes ver Paulo Sérgio Pinheiro, “O Proletariado Industrial na Primeiza Repiblica” in Boris Fausto (org.). Histbria Geral da Civlizagdo Brasileira, periodo republicano, 1911, vol. 2, p. 156-159. (27) Relatério apresentado a0 Exmo. Sr. Dr, J. J. Seabra, ministro da Justiga e dos Negécios Interiores pelo chefe de policia do Distrito Federal A. A. Cardoso Castro, Rio de Janeiro, 1904, ACOB. Direito e cultura — 45 portanto, de acordo com nossas leis, houve deportagdes para o Oiapoque, essas medidas eram perfeitamente legitimas, e elas devem ter sido aplicadas somente aos nacionais, pois os estrangeiros indesejdveis nf sf deportados mas expulsos do territério nacional.”28 Com efeito, em 1893 ja havia sido promulgado 0 decreto 1.566 que, a0 regular a entrada dos estran- geiros, tratava também da expulsfo dos mesmos durante 0 estado de sitio. E em 5 de janeiro de 1907 & promulgada uma nova lei (a lei Adolfo Gordo) que formulava no seu artigo 19: “O estrangeiro que, por qualquer ‘motivo, comprometer a seguranca nacional ou a tranguilidade piblica, pode ser expulso de parte ou de todo 0 territério nacional.” Nesse mesmo ano foram expulsos 132 estrangeiros (ainda que algumas sentengas tenham sido suspensas por habeas-corpus). Em 1913 0 Congresso, apavorado diante de nova leva de greves, alarga a legislago de expulsfo aprovando a eliminago da protegdo aos estrangeiros tendo mais de dois anos de residéncia continua no Brasil ou com mulher e filhos brasieiros. Edificante foi no caso ainda 0 procedimento do Supremo Tribunal Federal, acompa- nhando o pavor dominante: apesar de continuar @ achar inadmissivel @ expulsfo de residentes com mais de dois anos no pais — por causa das garantias da Constituig#o no artigo 72 ~ no caso dos anarquistas, apesar do decurso do prazo de dois anos de residéncia continua, nfo serdo consi- derados como residentes. Por se oporem a ordem social ¢ pretendé-la destruir através da violéncia, constituiriam, para os juristas das classes dominantes, um “elemento flutuante” que vagava pelo pais para difundi seus métodos ¢ ideais. ‘Apesar de a expulsto e a deportago serem instrumentos usuais nna época em virios paises para 0 tratamento do conflito com os movi- mentos operdrios, no Brasil, como mostrou Sheldon Maram, foi uma arma muito mais poderosa para as classes dominantes locais, porque utilizada contra um dos raros movimentos operdrios compostos basicamente de operdrios estrangeiros, permitindo livrar-se do grosso das liderangas ope- rérias do Rio de Janeiro, Sfo Paulo e Santos — “a legislagto de deportagao permitia que as elites se livrassem dos militantes operdrios ¢ 20 mesmo tempo mantivessem ao menos a fachada da tradicfo legalsta to venerada nos setores urbanos como um marco do progresso ¢ da civilizagto”. (Ma ram, 1974, p. 36-37) ‘Nos anos vinte, apesar da manutengfo dos instrumentos de desterro de expulsfo para lidar com as classes subaltemas, ocorre uma progressiva (28) Discurto do delegado governamental brasileiro, Castello Branco Clark, Sovieté des Nations, Conférence Internationale du Travail, Septigie Session, Genéve, Douziéme Séance, Compte Rendu Provisoire, x® 13, 19/6/1925, 182-185, ACOB. 46 — Direito e cultura especializagfo. Se durante as duas primeiras décadas da Repiblica pouca distingfo se fizera entre a repressdo a crimes comuns e a crimes politicos, como se tentou aqui mostrar, a partir dos anos vinte as distingSes come- garam a aparecer, sendo em seguida mais aprofundadas. A composigfo da mdo-decobra havia-se modificado, principalmente com o ingresso de filhos de imigrantes e nacionais (as migragdes do nordeste se intensificam a partir dos anos quarenta com as primeiras estradas rodovidras ligando © Sul ao Norte do pais). Ndo era possivel continuar a lidar com as classes subalternas com os mesmos métodos que outros governos passados haviam dedicado a questo. O terror experimentado pelas classes dominantes na revolugSo de 1924 em So Paulo, levando o governo a abandonar a pital ¢ ordenar 0 bomibardeio aéreo da cidade, pode ser considerado um ‘marco nessa periodizagio da violéncia: “somente em 1924 € que o Estado veio a sentir a necessidade de uma vigilancia mais séria, e permanente, em tomo das atividades desintegradoras dos principios tradicionais da Religifo, Patria e Fam@lia, Data dai a criagfo da primeira Delegacia de Ordem Politi- ca e Social — Lei 2.034, de 30 de dezembro daquele ano.”29 Alguns anos depois, uma circular do Centro dos Industriais de Fiago e Tecelagem (CIFTA) comunica com satisfago que a partir daquele momento nfo era mais necessério que fossem mantidos registros particulares sobre os operd- ios porque o governo tinha tomado a nobre iniciativa de constituir aquela Delegacia.30 A constituigo do DOPS um indicador do processo de qualificago da repressdo. Perdura ainda a nogo de que todos os males nas fébrices advém da impossibilidade de os patrdes distinguirem os bons operdrios dos maus, de promoverem uma depurago adequada: mas as expulsoes nfo sero mais o remédio nem mesmo a demissfo dos trabalhadores que protestavam serd considerada eficaz. A preocupagio principal dos patrOes durante os anos vinte serd a identificagfo “cientifica” do opera- riado. © objetivo é impedir que “os indesejéveis consigam trabalho em outras fabricas” depois de terem sido expulsos de alguma, Em algumas cidades do interior do estado essa identificagfo era feita na propria de- legacia policial. Na capital de S40 Paulo, entretanto, levando em conta 0 nivel de consciéncia da populaggo ¢ a visibilidade de uma operagdo de tal teor, as empresas mantinham fichétios de operdrios indesejéveis, e as (29) Chefatura de Policia do Estado de Sfo Paulo, Relarério de atividades da policia civil, no exercicio de 1939, apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Adhemar Pereira Ge Barros, interventor federal no Estado, pelo chefe de policia, Dr. JoZ0 Cli- merijo da Fonte, So Paulo, 1940. (30) Esses registros eram as “listas negras™ elaboradas por cada empresa ¢ coligidas Direito e cultura — 47 associag6es patronais, como ja dissemos, se encarregavam de citculé-ios en- tre a8 diversas empresas. Assim, 0 aparellio econdmico durante um largo perfodo, até que o Estado chame a si esses servigos, em 1924, desem- penhou essa fungio de controle, em estreita colaborago com 0 aparelho policial. Perdurava a noglo de que “a grande massa do operariado paulista € boa e s6, mas ninguém ignora que no meio dela existem elementos francamente indesejéveis, que vivem no sonho de reivindicagdes abstrusas m3 Creio que cotejando-se o discurso empresarial e 0 discurso policial podese demonstrar que se esté diante de uma ampliaggo do quadro repressivo — resultado direto da especializapdo. As violéncias nas delegacias, nas prises continuam as mesmas ¢ a elas agora se superpde uma pratica especifica em relaggo as classes operdrias, agora percebidas com mais nitidez no interior das classes subalternas.? A cooperagao dos empresérios € da policia indica 0 aumento da atividade especializada da policia na Tepressfo as classes subaltemas. Assustados com uma manifestaglo dos {graficos, em So Paulo, promovida pela Unigo dos Trabalhadores Graficos, 0 empresdrios aprofundam essa cooperagio: “a nossa alta policia comeca a alarmarsse: 0 exemplo da classe em parede pode frutificr, estendendo-se a classe dos tecel6es, que & a mais numerosa como se sabe. A Policia de Capturas € InvestigayGes tomou a resolugfo de ir prendendo todos os operirios em tecidos que the forem apontados como mentores de sua classe, no tocante a xeivindicagdes mais ou menos cabiveis”. E os empresd- ros so solicitados que se em suas fabricas “existit alguns operdrios nessas condig6es, V. Sas. se dignarfo a dar o seu nome, residéncia, sinais carac- terfsticos etc.; e este Centro, em via confidencial, imediatamente faré com que o operirio apontado desaparega por algum tempo, até que seja passada a atmosfera de agitagGo que parece cercar todo 0 nosso mundo operério”.33 Ainda € a mesma intengfo de depurar, extirpar da classe os maus elementos, mas agora as técnicas sfo mais sofisticadas € nfl se tem mais, por enquanto, pretensdo de exterminio fisico. Sfo iniimeros os depoimentos na década apontando que as leis de nada valiam quando se tratava de aplicé-las as classes trabalhadoras: “Ali [Brasil] o que domina é o arbitrio. Um chefe de policia pode mijar a seu beltprazer sobre a Constituigo todas as vezes que a camarilha que esté no poder lhe ordena, ou todas as vezes que por uni ataque hemorroidal, ‘ou uma bebedeira mel digerida, se sente com vontade de lancar a cavalaria em cima do povo, invadir 0s domicilios privados, prender algum infor- GL) Cireutar, CITA, n® 10, 4/4/1921 (32) Por discurso policial se entendem aqui os textos produzidos pelos chefes de policia ou secretdrios de Estado. (33) Circular, CIFTA, n° 187, 3/3/1923, 48 — Direito e cultura tunado € fazé-lo desaparecer. Mas ndo existem juizes ali? Existem sim, até muitos: mas eles s40 simples empregados do Estado e o cargo que cocupam dado a eles de presente pela oligarquia que domina, ou pelos fazendeiros que 05 investiram do poder de dar ordens a0 carcereito, jus- tamente para mandar para a prisfo os proprios inimigos, os proprios adver- sdrios € 08 colonos que nfo achassem do seu préprio agrado os usos e cos- tumes medievais da fazenda; usos e costumes que vlo do jus cosciandi, a compensagdo negada, as chicotadas e ao tiro de carabina que alcanga os que desertam do feudo”, registrou Gigi Damiani, um dos militantes operd- ros ativos do periodo (Damiani, 1920, p. 37-43). Nao ¢ exagerado dizer que as classes subalternas no Brasil ndo tinham garantidos nenhum dos direitos que em outros paises, na mesma época, jd estavam sendo respeitados: direito de associagf0, dieito de Feunifo, direito de opinigo, direito de greve. quadro que pode ser reconstituido através das impresses da época é de extrema brutalidade “Ora no Brasil, esses direitos, embora assegurados pela Constituigo da Repiblica, se acham praticamente abolidos. Eles estfo a meroé do arbi- trio policial, feroz ¢ estupidissimo. (...) As prises regorgitam a cada periodo de agitagdo de milhares de trabalhadores, detidos semanas inteiras, ‘nfo raro meses inteiros, sem nota de culpa nem qualquer sombra de pro- cesso. Nessas prisdes sinistras, so os trabalhadores maltratados, postos @ fome, cobardeamente espancados. As expulsbes iniquas se fazem em ‘massa, revoltantemente.”>4 Quando da passagem de Albert Thomas, diretor geral da Organizaggo Internacional do Trabalho, em 1925, pelo Brasil, foram-he remetidos dois documentos dando conte do predominio da violencia organizada do Estado. Numa carta alguns trabalhadores, provavelmente liderancas anarco-sindicalistas, Ihe expSem « situago do operariado na cidade de Sfo Paulo: “Aqui, senhor, nfo existe o direito de associago. Criaramsse leis de excego onde o estrangeiro que pleiteia seus interesses com as armas da greve pacifica, é incontinenti deportado; f, a8 associag6es de classe, a policia tem a faculdade de feché-las quando assim entender, sem que haja motivos plausiveis. Ai daqueles que preten- dem defender seus interesses através do apoio de sindicatos de resisténcia! Serfo presos, metidos nas mais tmidas enxovias policiais, deportados para sert6es bravios do nordeste brasileiro, espancados, humilhados (...)"35 outro documento ¢ um relatério de um operdrio holandés hé dezoito anos fora da Europa, membro de uma associagfo de trabalhadores, em (34) 4 Plebe, 11 de junho de 1921, p. 1. G5) “Uma exposigio comovedora da repressfo contra 0 operariado de Sio Paulo, apresentada 20 sx. Albert Thomas para que nfo alegue ignorincia", Lisboa, A Batalha, 10/10/1925, ACOB, Direito ¢ cultura — 49 ‘So Paulo, Nele relata que a forga policial intervém sem maiores motivos fem todos os casos de greve, como naquela das fébricas de tecidos em ‘So Paulo, no ano de 1924: “*Nessa greve a cavalaria da policia procedeu sem motivo, sem intimagdo, atacando com espadas desembainhadas, gyagas a que algumas diizias de operérios © operdrias foram gravemente feridos. Em abril de 1925, na greve dos operitios das fébricas de tecidos no Rio de Janeiro, atirou-se nos operdrios em greve sem nenhum motivo, sem intimagfo. Em agosto de 1924, apés o término da revolugo de de julho, foram presos, sem nenhum motivo, cinquenta dirigentes da Fede- ragio Operiria de Sf0 Paulo, ¢ ainda o esto noje (...) Aqui entfo nfo se permite mais, sob pena de prisfo e demissfo pelos patrdes, fuzer propos- tas coletivas para aumento salarial e apresenté-las a0 patro. Os operdrios tém que ficar quietos, fazer sua obrigacZ0, e ... esperar pela miserieérdia do patrdio, Entfo, eles vo ter de esperar muito tempo.”36 ‘Ao justapor nos limites deste trabalho — e as vezes até mesmo confundir — a repressfo generalizada em relagfo as classes subalternas a repressfo qualificada em relagZo as classes trabalhadores, pretendo indicar que toda especializa¢fo, com a criagZo de 6rgf0s novos no aparelho policial, deve ser entendida como a institucionalizagdo da violéncia pelo Estado. Tudo leva a crer que as brutalidades nas delegacias e nas prises tenham continuado dentro da mesma pauta descrita pelos depoimentos aqui enumerados, No final da década de 1920, quando o espantalho do anarquismo jé havia sido substituido pelo comunismo, 0 adido militar da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, ao comentar a atuagdo das forgas de repressfo num comicio de propaganda absolutamente pacf- fico dos comunistas, comenta que “a policia do Rio nunca parece li- dar com uma situagio como essa com calma e ponderasdo, e portanto comesou a dar cacetadas a torto € a direito ¢ chegando mesmo a usar seus revélveres, embora ndo houvesse na verdade séria resistencia por parte dos comunistas. Trés homens mais tarde tiveram de receber atendimentos médicos, por causa de ferimentos de revélver, no pronto-socorro, € outros em grande nimero foram brutalmente tratados pela policia."37 (26) John de Bruin, Rapport uber die arbeidens verhoridingen in Brasilien (Relat6rio sobre a situacdo operitia no Brasil). SZ0 Paulo, manuscrto, 1925, 24 p., ACOB. GN) Lester Baker, GS, Miltary Attaché, Brazil, n° 895, november 8, 1929, G- Report, 3520, Records of the Dept, of State Relating to Internal Affairs of Brazil 1910-1929, 832. OOB/8, ‘National Archives Microfilm Publication, Microcopy $19, roll 8, frames 26-37, ACOB. 50 — Direito ¢ cultura Seria pueril continuarmos a acreditar que com a revolugdo de 1930, a pauta de violéncia infligida as classes subalternas nas delegacias,prisoes, se tivesse alterado substancialmente, pelo simples passar de um ano na folhinha. E inegével que haviam mudado os termos da politica deliberada de repressfo as classes subaltemas: a legislagdo trabalhista promulgada a partir desse ano seré uma decorréncia dessa nova tendéncia a utilizar novos mecanismos de controle, mais sofisticados. Os primeiros passos jé haviam sido ensaiados mesmo durante os anos vinte: 0 Conselho Nacional do Trabalho € criado em 1924, sucedem-se os ensaios de “beneficéncia” dentro das fébricas (escolas matemais, assisténcia médica, seguro privado). A legislagfo social serviu de certa forma para dissimular as pautas de violéncia ilegitima que permaneceram intocadas. A hipdtese que deve set verificada € de como o sindicato oficial funcionou como um instru- mento de controle das massas ¢ como instrumento regulador das relagOes sociais. (Sapelli, 1978, p. 627-656.) A partir do golpe de estado de 1937 essa caracterfstica aparece mais clara quando 0 sindicato corporativista se concretiza numa institu- ionalizagfo definitiva no quadro ditatorial que se explicita através da des- truigo dos organismos representativos auténomos da classe operéria, na proibigGo da greve ¢ da liberdade de associacdo, no terrorismo € na violéncia exercida contra os trabalhadores. Mas ¢ uma institucionalizaggo ‘que nfo se resolve completamente através da repressfo, de modo que a reprodugfo da forga de trabalho possa ser assegurada (abandonava-se @ postura predatéria da Primeira Repiiblica) e diante da necessidade de ‘nfo mais se exercitar uma violéncia direta sobre a massa dos produtores, sob pena de uma paralisia do mecanismo social. Estado nfo podia mais proceder em relago & massa dos trabalhadores como diante dos militantes anarquistas e anarcosindicalistas, dado 0 aumento da forga de trabalho ‘em niimeros absolutos ¢ a intensificagfo do peso relativo da industria na economia (¢ no bloco do poder). Em relagio ao sindicalismo oficial implantado aps 1937 poderse-ia raciocinar como Giulio Sapelli em relagfo ao sindicato fascista: “Se destt6i uma representagfo real e confli- tual dos interesses legitimada pelo consenso operdrio generalizado para substituf-la por uma representagZo institucional coercitiva e mediadora ‘40 mesmo tempo, a qual, para ser como tal, deve apresentar-se como uma organizag#o menos rigidamente determinada no seu funcionamento no sistema politico complexo, devendo acolher exigéncias e reivindicagdes para encamé-la numa espécie de dispersio das tensdes. (Sapelli, op. cit., p-628.) Esses elementos, a meu ver, esto presentes na conceituagfo do chefe de policia de So Paulo, em 1940, em pleno auge da consolidaggo do Fstado Novo: “A esse tempo, a questo social no Brasil entrare em Direito e cultura — $1 plena fase de perfeita compreensto governamental. E que, procurando resolver as complexas equag6es do dificil problema, de hé muito vinha o Exmo. Sr. Dr. Getillio Vargas estudando e realizando medidas, consubstan- ciadas em leis sbias humanas que o haveriam de apontar como grande legislador social em todo 0 mundo. A ele, em verdade, deve 0 Brasil, particularmente depois do movimento renovador de 10 de novembro de 1937, a construtora tranguilidade em que vive, organizado dentro de uma nova concepsio politica: a Repiiblica dos homens que trabalham para 0 engrandecimento da patria comum; a Repiblica dos que trabalham, dentro da qual os que nfo produzem por incapacidade material sfo assistidos convenientemente, ¢ os que nada fazem, por vicio ou por incapacidade moral, sf0 considerados fora da lei."38 0 que chama a atengZo neste discurso € a facil articulagdo entre a legislagdo social e os altos intexesses da repressio policial, a dupla natureza mediadora e coercitiva que Sapelli apontava: num outro trecho do relat6rio sublinhava-se a necessidade de uma cooperago maior entre 0 Departamento do Trabalho e a Policia, “uma vez que se exercem paralelamente as agGes de cada um para consecu- ‘40 do mesmo fim".39 A hist6ria oficial do regime instalado em 1930 tem apagado habitual- mente a estreita associag#o que esse discurso deixa entrever entre a organi- za¢o compuls6ria dos trabalhadores e a repressfo. Como as classes traba- Inadoras, especialmente 0 operariado urbano, pesam no conjunto das classes subalternas, falar em repressfo ao trabalhador é referir-se 4 pauta geral de represso. Desde 0 comego, 0 novo regime dedicou carinhosa ateng&o a repressfo: em outubro de 1930 ¢ criada a Delegacia Revolucio- niéria de Ordem Politica e Social. Depois de algumas modificagdes em 1931, essa delegacia € mantida e em 1938 transformada em Delegacia de Ordem Politica e Social (DOPS). Logo depois da revolugo uma das primeiras realizagBes é a criago de uma segdo de repressfo ao comunismo (entendase por esse termo qualquer veleidade de protesto auténomo ppor parte das classes subalternas). Nesse mesmo ano é reprimida uma manifestaggo, a “marcha da fome” que apresentava a reivindicaggo de ‘uma Confederagfo Geral do Trabalho: o policiamento esteve justamente 4 cargo da recém-criada Delegacia da Ordem Politica e Social, chefiada pelo delegado Joaquim Salgado Filho, que em 1932 se tornaris ministro do Trabalho. Em 1934, consolidada a derrocada da Repiiblica Velha e estando em pleno rigor o regime constitucional, oy métodus de lidar com a gasse operdria permanecem os mesmos: 0 ministro da Justia, por ocasito de uma greve da Light do Rio de Janeiro, solicita a diresgo (38) Relatério SP, 1940, op. cit. G9) Idem, ibidem. 52 — Direito e cultura da empresa os nomes dos Iideres da manifestago para que se proceda 4 sua expulstio do tetritério nacional — 2 mesma preocupago em livrar as classes traballiadoras dos maus elementos. Dispensamo-nos de aprofundar aqui a descrigdo da repressto gene- ralizada posta a cabo apés o levante militar de novembro de 1935. A legis- lagdo de excecdo, 0 Tribunal de Seguranga Nacional ¢ seus ritos sumarios de julgamento, as torturas, os assassinatos na prisfo serviram, como no passado, para levar 0 terrorismo do Estado as classes subalternas, sob 0 pretexto de agir preventivamente contra uma insurreigdo em marcha. Como no passado a retomada da repressdo “politica” repercute no acitra mento dos maus tratos nas delegacias e nas prisdes: a experiéncia dos lltimos dez anos demonstra que toda vez que o autoritarismo se reforga através de um regime discriciondrio, as arbitrariedades, a violéncia orga nizada contra as classes subaltemas aumenta, Se durante os perfodos de plena vigéncia das garantias constitucionais a protego do individuo nnas classes subalternas nfo € respeitada, em tempos de regime de exce- fo 0 desrespeito & aprofundado. A continuidade no emprego dos maus tratos is classes subalternas apresenta na histéria politica brasileira uma espantosa continuidade, pouco abalada pelas formas que assume a orge- nizagdo politica: principalmente quando o Estado jamais renuncia, mesmo nos interregnos, curtos, de democracia limitada aos instrumentos com que foi dotado nos perfodos de excegio. Mas, com instrumentos legais ou no, estamos diante de uma pritica jamais interrompida, sempre alar- gada e cada vez mais intensificada, Durante 0 Estado Novo, a desenvoltura que o aparelho de Estado assume em relagdo as classes trabalhadoras, permite inferir 0 que seria 0 tratamento do diaadia com as classes subaltemas como um todo. Na medida em que a greve foi declarada, pela constituigo outorgada apés © golpe de novembro de 1937, “recurso anti-social, nocivo 20 trabalho © ao capital ¢ incompativel com os superiores interesses da produgo nacional”, a preocupagfo do Estado, apesar da lezislagfo social “mais adiantada do mundo”, chega 3s raias da paranoia, “urge tomar efetiva 4 aplicagdo da lei, organizandose um servigo de observagdo permanente dentro das fabricas de modo a permitir 0 conhecimento dos inimigos da ordem e da disciplina” e para que a policia nfo permita a desmoralizagfo das instituigdes alega que “devido a falta de ligagdes permanentes dentro das fabricas, que nos permitam colher os agitadores em sua faina deli- tuosa para levé-los ao ajuste de contas com a justiga” e propde “uma fiscalizag#o dentro das fabricas ¢ estabelecimentos de trabalho” através da qual “poderiam chamar a responsabilidade os inimigos da ordem e em bre- ve tempo veriamos se extinguir, definitivamente, os surtos grevistas que, ante a atual organizagdo politica do pais, constituem um atentado reprimi- Direite ¢ cultura 53 vel pela lei”. Esse discurso fascinante retoma, apesar da legislagto traba- Ihista — mais correto dizer articulado com a legislagdo trabalhista ~, as mes- ‘mas pretensOes de controle policial almejado pelo Estado nos anos vinte: “Como expurgar as fébricas de pernicioso elemento?” Perguntava uma cir- cular do CIFTA, em 1921, “vamos indicar a terapéutica adequada a esse virus maléfico, se assim nos podemos exprimir. Essa terapéutica é uma ago conjunta entre os senhores industriais e a Policia do Estado (...)8° Mesmo as vésperas do golpe de estado de 1945, em nome da “rede- mocratizago", os empresdrios persistem nas mesmas veleidades de con- trole. Ha uma carta de Euvaldo Lodi, presidente da Confederag&o Nacional da Indistria ¢ ditetor do Departamento de Servigo Social para a Indistria, a Roberto Simonsen, vice-presidente da mesma confederagdo e antigo presidente do Centro das Indistrias do Estado de S40 Paulo, expondo a necessidade de os industriais formarem em apoio ao presidente para a preservagdo do terreno jé conquistado pela industria, a preocupagio de controle é dominante: “A entrada do Oliveira Ribeiro para a Secretaria de Seguranga, segundo me disse o Coriolano vai facilitar sobremaneira 6 trabalho de fiscalizagfo nas fabricas. Convém espalhar 0 maior miimero possivel de agentes secretos ¢ télos nos estabelecimentos de maior niimero de trabalhadores. AS instrugdes so sempre as mesmas: 0 agente se insinua ‘nos meios openirios, dizendo-se comunista, contra 0 governo. Depois, (0 trabalho é 36 de registrar os nomes dos elementos que os colocario contra nds contra o governo. O resto é coma policia.""*1 Durante 0 periodo de democracia limitada que se abre em 1946, a situago em relago aos presos comuns nas delegacias ¢ prises segue © mesmo padrfo dos periodos precedentes, A leitura da imprensa, ainda aque as deniincias nfo alcancem a visibilidade dos dias atuas, dé a entender ue nfo houve nenhuma alteragdo dos métodos vigentes pelo menos desde 4 Primeira Repiblica. O uso da palmatéria, como em 1979, 6 algo absolu- tamente corriqueiro, incorporado a0 diaa-dia das delegacias: numa sindi- cdncia efetuada no Departamento de Investigag®es, da polfcia de Séo Paulo, segundo 0 depoimento de quatro operirios da Estrada de Ferro (40) “Represso dos roubos e furor mas Sia, anexo Cheats CIFLA, n® 20, 2, ACO (41) Folie ad Roberto Sinonen neo de 1945, Hecors ofthe Depatnent Ere Seon ets Fed Olen Reo (Overs), ange feato de pelica que se hava notibizado por tus métodos de vole sfsado Secure at pica: Colon de Goes (Conolno) antigo chefe de Fo de Waahngon Lut, coneci por sexe métodos voles até eno Ger 3 Banco fo Bras 54 — Direito e cultura Sorocabana, acusados de furto, esses “diariamente eram submetidos a interrogat6rios e eram espancados” — entre os “instrumentos de suplicio” foi encontrada na propria gaveta do subchefe do Departamento, uma palmatéria.*? Na delegacia de Roubos eram frequentes no mesmo periodo as acusag6es de maus tratos infligidos aos detidos.$3 Menos de dez. anos depois, as denincias persistem a respeito dos maus tratos: em 1955 é insta- lado um inguérito sobre a violéncia na Delegacia de Roubos: dois suspeitos presos sob a acusagio de roubo foram agredidos no ato da pristo e alge- mados; a0 chegarem a Delegacia foram recebidos a socos, pontapés ¢ bofetadas, um deles perdendo a audig8o durante varias semanas.44 Apesar da profusio de inquéritos e de sindicéncias por parte do proprio Estado, esses casos — maus tratos, tortura, desrespeito pela pessoa do acusado — se repetem monotonamente, jamais se chegando a algum resultado con- creto. A investigaglo — as vezes conduzida pelos proprios Oreos acusados — transformou-se no Brasil num ritual de dissimulagSo que de imediato serve para aplacar a revolta diante de algum excesso, mas que jamais tem condigGes de interromper uma pratica que se confunde com o proprio poder, Seria ilusto esperar que 0 proprio Estado, caso nfo se alterem fun- damentalmente as bases da organizagdo politica, tenha condigBes de interromper a pritica da violéncia ilegitima que colabora eficazmente para sua sustentagS0. Entretanto, a imagem que as classes dominantes circulam através dos meios de comunicago, nos perfodos de democracia limitada, que essa situagdo de opressfo permanente das classes subalternas se ameniza. © que € equivoco: na verdade © que ocorre, levando em conta o que aqui foi exposto, é um descolamento entre a repressio especifica de proteglo 40 regime e a repressfo ao crime comum. Como o alvo da primeira, gragas, a eficdcia dos mecanismos de controle das classes trabalhadoras postas em pritica pelo Estado Novo, € predominantemente as classes médias, ainda poupadas da climinaggo fisica até 1964, fécil criar a imagem de um abrandamento geral da repressdo ¢ um faz de conta de que a vio- léncia organizada em relago ao conjunto das classes subalternas diminuiu. ‘Mas 0 aparelho policial no Brasil jamais se deixou permear pela demo- cratizagfo: qualquer que seja a fundamentaggo politica do Estado a policia continuow a exercer uma politica de controle das classes subal- temas. Especialmente porque nenhuma alteragdo dessa fundamentagfo politica do Estado pos em questdo a exclusao das classes subalternas do processo de decisto. (42) 0 Estado de S. Paulo, 14/02/1946. (43) Idem, 02/02/1946. (44) 0 Estado de S, Peulo, 01/06/1955. Direito e cultura - $5 Mas, além desse descolamento, aqui sugerido, que permite fazer crer que © nivel geral de repressdo diminuiu, & preciso ser dito que outros ‘mecanismos confluem para esse resultado. E essa sofisticagdo progressiva que ocorreu nos perfodos “democriticos” a repressto 4s classes subal- temas também pode ser camuflada por causa da ampliagfo de outros mecanismos de controle social que nfo sfo basicamente repressivos. Na Primeira Repiiblica, 0 agente bésico desse controle “nfo repressivo” foi a Igreja, 0 palpito com sua prega¢fo contra a revolugfo foi um instru- ‘mento decisivo para a consolidago do conformismo ¢ dos obstéculos & organizagfo auténoma das classes trabalhadoras. A organizago religiosa dentro das fabricas, verdadeiras “usinas-convento”, onde a exploracao era envolvida em cheiros de santidade pesadissimos que enquadravam a massa de operdrios numa estrutura de associagbes religiosas, rituais, sfo um indicio dessa instrumentalidade.4 No interior mesmo do espaco penitencidrio a Igreja sempre foi uma ala auxiliar desse controle. Em 1922, no Instituto Cortecional de Sto Paulo havia um capelio contra- tado (como em algumas fitbricas em So Paulo), para que, “além da missa aos domingos e dias santos, o ensino da moral crist@” fosse praticado ‘‘com sensivel aproveitamento por parte dos presos”.46 Ainda em 1979, no Rio de Janeiro, 0 bispo auxiliar visita uma penitencidria e atesta, impruden: temente, em relagdo a0s maus tratos e torturas, que “agora, as coisas arecem que estfo melhores” e aproveita para enaltecer a “liberdade inte- riot”, aquela que “muitas vezes os homens livres nfo tém nem nunca terto”.47 Um outro instrumento, que julgo devesse ser explorado para que s¢ rompa 0 quadro estreito com que até agora se tem analisado a questo da violéncia ilegitima, foi o enclausuramento do lazer em atividades disci plinadas. O lazer, enfeixado em limites de tempo e de espago, que permi- tisse as classes subaltemnas acostumarem-se aos ritmos e cadéncias da orga- nizagdo repressiva da fébrica. Certamente no era por mera generosidade que _muitas fabricas se preocuparam com a construgo de campos de futebol (uma em Sao Paulo chegou a dotar uma vila operdria de quadra de ténis ...) © a constituigdo de equipes de futebol. A recreagto industrial funcionou como instrumento de controle social, ao lado da religifo, para impedir a organizagfo autonoma dos operirios, objetivo consolidado com a implantago autoritéria do sindicato corporativo. O esporte, que se estrutura paralelamente a constituigio da “organizagfo cientifica” do trabalho, seré progressivamente percebido como capsz de enfatizar (49) Ver Aum Lembranga de Fbrice Scape (c. 1924) ACOB (46) Relatério SP, 1922, op. cit, ae , (37) Joma do Bris, 26)051399, p21. 56 — Direito e cultura as virtudes do individualismo e da competi¢do, afirmando-se sua rele- vancia numa era de burocratizago e de industralizagdo. Estes aspectos foram percebidos quando essa operagdo estava em germe, por exemplo por Lima Barreto (Assis Barbosa, 1952, p. 275-277.) ¢ apesar do ridiculo com que se tentou cobrir suas observagdes — principalmente por ter 0 futebol se afirmado como um dos valores da nacionalidade ~, estudos reoentes esto proximos daquelas observagGes: 0 lazer nflo organizado era uma ameaga aos valores do trabalho, a esséncia do jogo, sem a orga- nizagfo esportiva, sua falta de regulamentagfo, seu desdém pelas reali- zaghes materiais, sua exaltagdo da incerteza & a antitese dos valores do trabalho e do mundo tecnol6gico. (Goldman e Wilson, 1977, 7 (2): 157- 187.) Durante 0 Estado Novo a exaltagfo fascinante do esporte, da com- petigtio, ampliard as possibilidades entrevistas na Primeira Repiblica. Mas jamais os comunicadores do Estado Novo poderiam supor as imensas possibilidades que teria 0 futebol como elemento desmobilizador politico no governo Médici, em que a nagSo passou a se confundir com os campeo- natos através do esvaziamento (¢ da repressto) a todos os canais de repre- sentagfo e de mobilizacdo. ara entender 0 descolamento ocotrido na repressfo, caberia regis- ‘rar simplesmente mais uma dessas agéncias de controle social, que esca: pam a0 nosso objetivo preciso, que & a escola, a educagio, talvez um dos instrumentos mais poderosos em termos de interiorizar as bases do controle das classes subaltemas. Nao obstante a melhor técnica utili: zada ainda ser a permanéncia do analfabetismo, o que permite 0 exercicio do controle por meio menos onerosos. Essa indicagZo esquemdtica de outros instrumentos de controle social visa simplesmente a indicar que talvez uma boa estratégia para se compreender a percepefo do funcionamento da repressio is classes subal- teas nos perfodos “democrdticos” seja deixar de conceber a repressfo como circunscrita a0 aparelho policial e tentar Jevar em conta outros instrumentos. Ao invés de continuar opondo periodos contrastantes de “autoritarismo” e “‘democracia”, de nenhum significado para as classes subalternas, pelo menos no que diz respeito & violéncia exercida pelo aparelho policial, caberia recuperar a nogo de um continuum de politica de controle social exercida subsidiariamente através de novos instrumentos. Nos momentos de regime autoritério, 0 descolamento ocorrido no interior da repressfio — sem que se abdique dos instrumentos de con- trole social aqui mencionados — se interrompe: os skills repressivos que se haviam separado pelo interregno “democrético” voltam novamente a se unificar. Mas depois da implantagao da ditadura militar em 1964 no foi somente a jungio do que havia sido separado, mas um refinamento da propria repressfo em geral que ocorreu. Quando no inicio dos anos Direito e cultura ~ 57 1960 os Estados Unidos escolhem algumas “ilhas sanitérias” no Brasil {que deveriam ser fortalecidas no processo de “ascensfo dos comunistas”, nos estados de Minas Gerais ¢ da entéo Guanabara, 0 apoio a renovagto da policia vai ser uma das dreas mais beneficiadas. Novas técnicas, novos ‘gadgets, assessoria cientifica no combate 20 crime: 0 policial Dan Mitrione foi simplesmente um no contingente de algumas centenas que passaram 1 auxiliar diretamente as delegacias de policia em virios estados do Brasil (Langguth, 1978, passim). No momento em que as garantias constitu- cionais vém abaixo com o golpe de estado de 1964, a reconversGo é sim- ples e répida: os métodos de interrogatério renovados no tratamento dos ‘presos comuns passam a ser utilizados em relacdo aos “criminosos” pol ticos. Mais uma vez as avenidas, facilmente desbloquedveis, que unem a reptessfo nas duas areas voltam a se interligar. Os espancamentos locali- zados nas regides mais sensiveis do corpo, o pau-de-arara, as diversas tor- ‘turas com sabor local, os choques aplicados com controle médico dos interrogados para evitar 0 mais possivel as mortes, somamse a heranga do Estado Novo que havia sido preservada na repressdo aos crimes comuns, Um natural acimulo de experiéncia: os registros de tortura tém indicado 1 atuago de antigos torturadores dos anos trinta, havendo casos em que interrogados de hoje haviam passado naquele periodo pelas mesmas mos. As necessidades da luta contra a dissidéncia politica, em retorno, provo- ‘cam 2 Sofisticagfo dos meios com que contava o aparelho policial — observese a banalizagdo dos sistemas de comunicagdo por rédio entre as viaturas de captura e os esquemas de concentragdo de informacfo em com- putadores. Além dessas modificagdes mais evidentes, antigos instrumentos de controle, como a carteira profissional, saudada como um grande avango de protegfo ao trabalhador (na verdade criada para atender aos reclamos da classe empresarial para um maior controle da forga de trabalho), sf intensificados. Essa carteira hoje assumiu plenamente seu cardter repres- sivo na medida em que se tomou (ilegalmente) um titulo obrigatério para o controle das classes subalternas fora dos locais de trabalho. Entretanto, diante da profusfo de instrumentos no explicitamente repressivos, que simplesmente indicamos, caberia a pergunta: por que 0 Estado autoritério na sua atual verso ainda tem necessidade de utilizar 4 violéncia como instrumento fundamental de controle das classes subal temas? Creio que o caminho aqui seria agregar a situagdo de deterioragdo social, para usarmos uma categoria de Louis Chevalier (1978, passim.), das classes subaltemnas, provocada pelo processo de concentrago da tenda, arrocho salarial e intensificaggo da taxa de exploragZo no trabalho. Em sessenta anos de observagio extensiva da imprensa, em nenhum perio- do da hist6ria republicana, as sevicias, as torturas, a violéncia ilegitima ‘nas ruas, nas delegacias e nas penitencidrias foram to exteriorizadas. A 98 — Direito e cultura politica econdmica da ditadura @ cada ano ampliou os efetivos daqueles que permanecem & margem dos beneficios do sistema econdmico e social, que no se beneficiam com coisa alguma, tormando imperativa a intensi- ficagdo da violéncia. Nunca, em toda a pritica de uma politica delibe- rada do controle das classes subalternas pelo Estado, as pressdes das con- digdes de vida iniquas da maioria da populagfo foram tio fortes, exigindo, sob a forma de reforgo a “luta contra a criminalidade”, em consequéncia 4 ampliagfo da violéncia do aparelho policial. Mas para que a incorporagfo ra anilise dessa deterioragdo social nfo implique deslizar para um discurso mecanicista (0 bemestar das classes subalternas faria cessar a violencia) € indispensivel discutir essa questZo no contexto das relagdes de poder. Nfo é outra a ligfo que a perverse continuidade da violéncia organizada do Estado na historia da sociedade brasileira oferece 20 observador. Atendendo a sugestfo dos organizadores do seminério, no sentido de que nosso interesse pelo tema nfo se limitasse simplesmente a apontar uma situagfo, creio que seria conveniente nfo deixar passar a oportuni- dade para que se venha examinar @ constituigao de algum instrumento que possa vir a ter alguma intervengfo quanto a violéncia organizada do Estado a que esto submetidas as classes subalternas. Submeto a conside- ago dos participantes da reuniffo a proposta de constituigfo de um grupo de informacées sobre as prisdes. No momento em que nos preocu- amos com @ construgdo efetiva da democracia, esse grupo de informagSes poderia contribuir para a ruptura de uma das continuidades mais perversas, do sistema politico no Brasil, exigindo que as prises e xadrezes se abram as escincaras observagfo do contiibuinte, através da investigacfo dos estudiosos, da imprensa, das associag6es na comunidade, dos represen- tantes politicos. O grupo de informacdo cuidaria de formalizar as dentin- cias, seguir as dentincias formuladas na imprensa e o andamento dos inqué- ritos a respeito de sevicias, prever formas de protecfo aos detentos, pro- mover debates sobre a liquidagZo do sistema penal e carcerério atual, pu blicar estudos e pesquisas sobre as condigGes de vida e de trabalho nas prises, descrever os métodos de tortura empregados nas delegacias para Interrogatérios de presos, denunciar os castigos fisicos e publicar os regulamentos internos das peniteneidrias. Nao seria necessério, a meu ver, que fosse criada mais uma sociedade ou entidade, mas que se constituisse um grupo de trabalho assumido em conjunto, por exemplo, pela Comisso de Justica e Paz, a OAB, a Associago dos Advogados de So Paulo € outras istituig6es interessadas. COMENTARIOS HELIO PEREIRA BICUDO* Quero dizer, antes de mais nada, que estou de acordo em género, niimero ¢ grau com 0 Prof. Paulo Sérgio Pinheiro. Na verdade, quem vem seguindo ‘a histéria da repressdo no Brasil, desde a independéncia e até mesmo antes, vvai chegar a essa conclusfo: as nossas leis penais, a nossa Justiga repressiva, funcionam exclusivamente para a manutengo dos privilégios das classes doninantes. Nos do Ministério Pablico e da Magistratura somos os guardas, ‘os guardiges do status quo existente, da manutengdo dos privilégios das classes dominantes, Os exemplos que 0 Prof. Paulo Sérgio trouxe em sew trabalho sfo bastante elucidativos, e podem ser complementados por ‘outros, igualmente marcantes, que até mesmo eu vivi durante minha vida profissional 'A violéncia policial no Brasill € a regra. A policia sempre bateu, sempre espancou, sofisticou seus meios de tortura para obter aquilo que jamais obteve, que é a prova da realidade criminal, e que nfo se faz dessa Imaneira. Isso decorre exatamente de omisses do Ministério Piblico da Magistratura, que tém por dever de oficio fiscalizar a atuago policial € nfo a fiscalizam, Basta lembrar que em Sdo Paulo tems varios presi- dios e apenas um juiz corregedor desses mesmos presidios e da policia Esse juiz é apenas um funciondrio burocrata que recebe no foro as recla mag6es das partes, de que est4 acontecendo isto ou aquilo, nesta ou naquela delegacia. Procede formalmente, solicita informagBes € decide de acordo com as informagdes que a propria policia fomece. No decorrer das investigages das atividades do Esquadrfo da Morte, tive ocasitio de visitar alguns presidios de Séo Paulo e de verificar alguns casos de tortura, os mais gritaites possivels, os quais, entretanto, jamais foram investigados com profundidade para que seus autores fossem apon- tados e julgados na forma da lei. Lembro-me do caso de um rapaz que (©) Membro do Ministério Pablico © da Comissfo de Justiga e Paz de Sto Paulo. 60 ~ Direito e cultura fo tinha mais 0 antebrago porque fora queimado com a chama de um isqueiro, 40s poucos, a partir dos dedos da mfo; vejam bem, esse caso estd nos arquivos judicidrios de Sdo Paulo e nfo se desvendou, até hoje, quem tenia sido seus autores © mamero de atrocidades que se praticavam no antigo recolhimento Tiradentes, € que se praticam hoje no Presidio do Hipédromo, em S40 Paulo, ainda esta para ser contado. No foram s6 atrocidades praticadas pelo Esquadrfo da Morte; foram atrocidades praticadas por policiais que nele viveram ¢ que o dirigitam, Essas atrocidades se praticam hoje, no Hipédromo, da mesma maneira que eram praticadas no Presidio Tira dentes. Nio faz muito tempo tive oportunidade de fazer, em companhia do cardeal de Sf0 Paulo, uma visita ao Presidio do Hipédromo e Id nos foi feita uma reclamagdo de que as presas que se achavam num deter- minado xadrez eram maltratadas com esguichos de agua fria. O presidio do Hipédromo € de cimento armado, as camas sfo de cimento armado, as celas so de cimento armado € ndo tém vidragas nas janelas; durante © inverno 0 sofrimento fisico dos presos amontoados nesse presidio ¢ muito grande. Seu diretor, inquirido pelo cardeal por que se esguichava gua fria nas presas daquele xadrez, cinicamente afirmou: era para que elas se acalmassem. Iss0 foi levado ao conhecimento do juiz corregedor de presidios. Naturalmente, tudo se perdeu no vaivém dos paptis burocré ticos, nada se apurou e nada aconteceu; e actedito que aquilo que acon- tecia continua acontecendo ainda hoje, ainda neste instante. Lembro-me ainda — para mostrar bem o grau de repressfo que se exerce contra 0 povo em geral — de uma carta que recebi de um detento. Ele estava recolhido na Casa de DetengZo de Sdo Paulo, que é diferente do Presidio do Hipédromo, que € diferente do Presidio Tiradentes. A Casa de Detengfo de Sto Paulo, apenas a guisa de informagio, deveria eceber os condenados a penas de detencZ0; 0 niimero de detentos ali recolhido nfo deveria ser superior a 2.500. Hoje, entretanto, a Casa de Detengo obriga mais de 6.000 detentos; acredito que seja um dos mai- ‘ores presidios do mundo. Contudo, S40 Paulo € grande, temos o maior presidio da América Latina, senfo do mundo. Pois bem, recebi a carta de lum detento desse presfdio; era um comercifrio que havia recebido um aumento de vencimentos ¢ resolvera fazer uma fatra de fim de semana. Passou entdo pelas boates, pelos inferninhos e terminou aqui no centro da cidade, também num inferninho, onde pediu para beber um uisque; pediu a garrafa e, como o ambiente estava muito enfumacado, resolveu tomar 0 uisque Ié fora. O proprietério desse estabelecimento, que tem, naturalmente, um policial que 0 proteje e que recebe para isso, chamou-o; © policial executou a prisdo desse comercidrio pelo furto de uma garrafa de uisque. A prisflo foi feita em flagrante e esse homem ficou 6 meses Direito e cultura — 61 na Casa de Detengfo antes de ser absolvido, porque nfo cometera crime algum. Isto dé bem a idéia do que é € como funciona o aparelhamento punitivo em Sfo Paulo. © Prof. Paulo Sérgio falou da necessidade de que hoje se tem de portar um documento de trabalho. E exato: os “Arrast6es”, as “Garras”™ atravessam a cidade, geralmente a partir das vinte e duas horas, e fazem uma coleta de pessoas que nfo tém carteira de trabalho, que nfo podem identificar-se. E essas pessoas sf0 encaminhadas para o que a policia chama de mofo. Ficam por prazo indeterminado nos xadrezes, na maior promis cuidade, muitas vezes sofrendo violéncias sexuais dos presos e dos poli- ciais que 0s detém, submetidos a toda sorte de maus tratos e a toda sorte de corrupefo, porque nas prises — ¢ isso nfo € demagogia nenhuma © que vale ¢ a lei do clo, € 0 tréfico de entorpecentes, € 0 tréfico de influéncias. E por isso, para legitimar, para legalizar — eu diria melhor este estado de coisas & que se esté falando em pristo cautelar. O que é prisfo cautelar? E a prisfo ilegal, porque quando hoje se efetua uma prisfo a autoridade que a faz estd obrigada por ume determinaggo const- tucional a comunicar imediatamente o fato ao juiz competente. Pergunto a vocés: quantas comunicagbes desse tipo foram feitas numa cidade de 8 milhdes de habitantes como Sdo Paulo? Elas sfo feitas apenas pro forma, depois de varios dias, depois que nada se apurou contra aquele que foi de: tido, ou depois que jé se apuraram, a partir das torturas a que foi subme tido 0 detento, 08 delitos que ele talvez nem tenha cometido. Dai a insisténcia da sociedade na dureza no tratamento do delin- qUente, da sociedade em geral, porque a nossa sociedade ~ a classe média, 4 alta, @ alta sociedade ~ € conivente com esse tipo de procedimento. Quando hoje se fala em Esquadrdo da Morte, repto que se faga uma pes- quisa: vamos verificar que é 2 solugdo desejada pela grande maioria da nossa sociedade. E isto por qué? Porque vivemos numa época de insegu: anga total, em que 0 individuo sai na rua e nfo sabe se volta. Entdo ele se dirige a autoridade patemalista que governa o pais e pede seguranga, em detrimento de nfo importa quem seja, desde que nfo seja em seu pro- prio. Dai, como muito bem frisou o Prof. Paulo Sérgio, esse descolamento de enfoque nos momentos em que a repressto politica toma maiores conotagSes: a partir desse instante o aparelhamento repressivo policial muda de posigo ¢ passa a agir como coadjuvante do aparelho repressivo politico, e € ainda por isso, ainda nesse mesmo sentido, neste desejo de sufocar as classes menos favorecidas, que fala na diminuigfo da idade minima da imputabilidade criminal. Um desembargador do Tribunal de Justiga de S40 Paulo, agora Secretério da Seguranga do Estado de Sao Paulo, declarou existirem “‘menores de até 9 anos, com indice de pericu losidade maior que um homem de 30 anos”, e fala em prisbes infantis. 62 — Direito e cultura H& pouco mais de um més esse Secretério da Seguranga manifestou-se favoravelmente & redugdo da idade minima da imputabilidade penal, fixada em 14 ou 16 anos de idade. Tal qual 0 fazia 0 Cédigo Penal de 1969, que 0 justo fruto do movimento de 1964. Vé-se entfo que a prisfo cautelar ~ que vird — é a regulamentagdo do ilicito, é a maneira de se aplacar a consciéncia de promotores e juizes, porque tudo isso serd feito na forma da lei e de acordo com ela, porque ela jé veio com a Lei de Seguranga Nacional, que ai esti como fruto também do arbitrio de 64, ¢ que fixa a idade da responsabilidade criminal em 16 anos. Ainda quando 0 agente nem sequer pode se qualificar como eleitor e participar da vida politica do pais, ele pode ser incriminado como autor de crime contra a Lei de Seguranga Nacional. Ento, para a fixacGo da idade mi- nima da imputabilidade criminal nos crimes comuns em 14 anos, vai tran- Qhilamente apenas um passo. Vamos ter meninos de 14 anos julgados € jogados nas masmorras que no Brasil tém o nome de prisdes. Isto em nome de qué? Em nome da Justiga? Evidentemente nfo. Isso tudo se faz em nome da manuteng0 dos privilégios da sociedade em que nés vivemos € dos privilégios de que nés mesmos desfrutamos. E € por isso que esta tradigdo de violéncia vem de longe. O Esquadrfo da Morte nfo € novidade nenhuma, apenas escandalizou algumas consciéncias. Mas, antes do Esqua- dro da Morte, e como seu precursor, existiu em So Paulo ~ talvez nem todos aqui tenham idade para lembrarse disso — a célebre Vigilancia e Capture, como era chamada no interior; safam expedigdes punitivas da capital de Sio Paulo para simplesmente liquidar a marginalidade que cords no interior do Estado. E essa a posigfo que existe hoje: uma poli- ia intensamente repressiva, incentivada nos seus atos pelas altas cipulas estaduais federais, que desejam resolver o problema da criminalidade no Brasil talvez com a solugfo de Hitler relativamente a0 problema ju: daico. Ao invés da prisfo, nas condigdes em que ela existe no Brasil, realmente seria melhor para esses infelizes, para esses menores de 9 anos que “so mais perigosos que homens de 30”, seria,gpferivel o paredio, seria preferfvel a solugfo final. isto que as classes dominantes, em iltima anilise, desejam: 0 afastamento total, bésico, de todos quantos mexem com seu bolso. Eu nfo desejaria passar — ¢ nfo vou passar — para a andlise da confusto que se faz no Brasil de hoje e de ontem, como bem demonstrou © Prof. Paulo Sérgio, entre crime comum e crime politico. Ainda agora, a prop6sito do problema da anistia que ninguém sabe como vai ser posto € que talvez esteja sendo posto hoje na reunigo do Conselho de Seguranca Nacional, que é, do meu ponto de vista, 0 érgfo maximo do sistema poli tico brasileiro, a confusto entre crime politico e crime comum, através daquilo que se chama ato de terrorismo. Aqueles que cometeram atos Direito e cultura — 63 de terrorismo ou que de qualquer maneira entraram no esquema da prética de atos de terrorismo, seja como autores diretos, seja como autores inte- lectuais, seriam afastados dos favores da anistia. Por qué? Porque sfo atos de terrorismo € 0 govemo nfo pode compadecer com atos de terroris- mo. E os atos de terrorismo oficial vdo ficar impunes? Aqueles que tortu- raram, aqueles que mataram, que sequestrarsm, vo ficar impunes? Por que entfo vo continuar sofrendo pena aqueles que nfo praticaram atos de terrorismo, porque os atos de terrorismo esto descritos na lei penal ‘comum em varios dispositivos. Esses homens que mataram a partir de 64, ‘mataram no contexto de uma luta armada, e se praticaram atos de terro: ismo também o praticaram os homens que participaram dos movimentos de 22, 24, 30 32. Se fOssemos alongar esta andlise de confusfo que 0 sistema faz, ¢ 0 faz propositadamente, entre crime comum ¢ crime pol tico para sufocar a sociedade civil, iriamos muito longe. Por isso prefiro apenas chamar a atengo para a proposta feita pelo Prof. Paulo Sérgio, que 6, sem davida nenhuma, uma proposta a ser pensada, a ser muito bem pensada, porque na verdade nfo podemos confiar nos organismos oficiais, como 0 Ministério Pablico de Sdo Paulo e do Brasil, os que teriam por obrigacfo de oficio fazer a fiscalizagfo desejada pelo Prof. Paulo Sér- Bio. Mas, desde que o mundo oficial do Brasil se nega, ou nfo pode, ou nfo quer exercer 0 poder fiscalizador, acho que devemos assumir essa fiscalizagf0, porque denunciando, porque pedindo, porque impondo, a sociedade civil brasileira aos poucos ird alcangando os caminhos da rede- mocratizagdo pelos quais nds todos ansiamos, ARTEL REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Andrade, Maria Rita Soates de, Despacho seneador, na agdo entre INPS (autor) ‘e Eloi Rabello e sua mulher (réus), Rio de janeiro, 1972 ~ oSpia xerografada, Burbi, Celso Agricola, Comentérios ao Cédigo de Processo CWvil. Rio de Janeizo, Porense, 1975. Barbosa, Francisco de Assis, A vida de Lima Barreto, 1952. Bourdieu, Pierre, e Jean-Claude Passeron, A reproduedo. Rio, Francisco Alves, 1975. Brandio, Otévio, O caminho, 1950. Cardoso, Fernando Henrique, Autoritrismo e democratizagdo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. A lute pela democracia, Brasilia, Instituto de Estudos Politicos Pedroso Horta (Senado Federal), 1977. Catone, Edgard. 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E 0 caso do Nordeste chama ainda mais atengdo na medida em que se recorda ser essa drea, que detém trés décimos da populagdo brasileira, mais impor- tante demograficamente do que a maioria absoluta dos paises do mundo.? (*) Exte trabalho esti calcado em um estudo anterior do autor, cujas idéis centrais rio mudaram desde a elaboragio do documento em 1976, V. Clévis Cavalcanti et al. Desenvolvimento do Nordeste: rejlexdes sobre e indole de um processo tacilante (Recife, IINPS/CNPq, 1976, xerox). O autor aproveita ocaslfo para externas seu reconhecimento ao Instituto Joaquim Nabueo e ao CNPa pela Sportunidade que Ihe foi oferecida na época — julho/setembro de 1976 — para uina ofganizagio de seus apontamentos acerca do problema nordestino ) Eeonomista © pesyuisidor do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (hecife), (1) Emibora'legalmente constituida como instituigfo em dezembro de 1959, 50 mente em dezembro de 1961 é que a Superintendéncia do Desenvolvimento do Nordeste conseguiu, depois de muita luta, aprovar no Congresso Nacional seu primeico plano diretor. (2) Sfo' apenas 24, da lista praticamente completa do Banco Mundial, 0 paises {que possuem mais habitantes do que o Nordeste: Nigéria e Egito, na Africa China, India, Indonésia, Japio, Bangladesh, Paguistio, Vietnd, Filipinas, Tai 10 ~ Direito e economia Verdadeiro pais, com peculiaridades pr6prias, o Nordeste é bem uma ilus- tragfo da maneira enviesada, pensa, com que 0 pais como um todo eres ceu no periodo posterior a 1945. Tanto isso € verdade que, entre as 126 nag6es do globo com mais de um milhfo de habitantes, a regifo nordes tina localiza-se no grupo das cinguenta mais pobres, enquanto a renda per capita brasileira inscreve-se em quadragésimo terceiro lugar ~ um desnivel ordinalmente semelhante ao que existe entre a lugoslivia e a Bolivia.} Ideais como o de renda suficiente para uma vida digna da popu: lagfo e emprego pleno e produtivo para todas as pessoas, simplesmente nfo parecem fazer parte das cogitagdes relativas ao desenvolvimento contemporineo da economia brasileira, parecendo muito menos no caso nordestino. £ certo que tal afirmativa assume um caréter muito especu- lativo; mas 0s indfcios disponiveis e, mais que isso, a vivéncia que se tem dos problemas regionais, oferecem bastante garantia para que a revelago seja_acgita com mals forga do que se ela constituisse mera conjetura ‘A missfo deste trabalho resume-se precisamente em evidenciar a indole discutivel do desenvolvimento recente do Nordeste, mostrando como ele se afasta de um processo saudavel e robusto, Nao se trata de contestar pura ¢ simplesmente 0 contetido de indiscutiveis progressos ‘materiais, como o aparecimento de todo um novo perfil industrial na regifo ¢ mesmo certas conquistas no tocante a infraestrutura social A questo a examinar é o enorme cysto humano desses progressos e sua propria relevincia. E a formagdo de grupos de individuos eujas expec- tativas de bemestar nfo figuram no rol das realizagBes conquistadas. , enfim, 0 predominio de uma ética desenvolvimentista que reflete a verso das elites econdmicas, ¢ nfo resulta do consenso democritico. Pode-se sugerir que um consenso assim é dificil de fabricar, de compor, de operacionalizar — a menos que exista um miicleo de especialistas que © estabeleca a partir de uma interpretagZo da realidade. Como, entre- tanto, fiscalizar influenciar tal interpretagZo? Que canais permitiriam isso? E legitima a crenga de que tal comité de especialistas, de verdadeiros / sdbios, conseguiria realmente interpretar os anseios coletivos? Afinal de contas, essa divida representa um dos dilemas da formulaglo de poli tica social, uma vez que escolhas como a de mais consumo hoje ou ama- | nha, mais endividamento externo ou mais poupanga nacional, mais eficién \ cia ou mais equidade e quest6es andlogas s6 se resolvem mediante a consi- lindia, Coréia do Sul e Ud, na Asia; Unifo Soviética, Repiblica Federal da Alemanta, Itila, Reino Unido, Franga, Turquia, Espanha e Polbnia, na Europa; € Estados Unidos, o proprio Brasil e México, na América. Apud Banco Mundial, 1978 World Hank Atlas (Washington, 1979), (3) Céleulo com base no Banco Mundial, op. cit. Direito e economia ~ 71 derago de fatores politicos escorados, obviamente, em juizos de valor. E para isso, nada melhor que @ efetiva participago de todos os cidadfos rnas decis6es, seja diretamente, seja através de suas representag6es pol ticas. No resta duvida de que tem faltado esse elemento de participagdo no teceitudrio de medidas prescritas para o Nordeste na maior parte do periodo de vida da SUDENE, com o consequente resultado de se haver obtido um desenvolvimento regional que, sobre parecer legitimo na maioria das vezes, peca pelas graves deformagOes observadas. Para situar a questo, descreve-se a paisagem de problemas macroe- conémicos do Nordeste na primeira segdo deste trabalho. Na segunda, tentase aprofundar um pouco mais a andlise de aspectos da politica recente para 0 desenvolvimento da regifo nordestina, Os fendmenos figados expansfo da agricultura constituem tema da terceira segio. Comentérios adicionais sobre a industrializagfo do Nordeste aparecem rna quarta sego, complementando discuss6es relativas a transformagio industrial contidas nas segdes anteriores. Finalmente, a sexta seco, dando fecho ao trabalho, procura extrair algumas ligSes para a ago politica com respeito ao padrdo defasado de desenvolvimento nordestino. —s\ Problemas macroeconémicos do Nordeste Examinar 0 repert6rio de problemas globais da economia nordes- tina leva inevitavelmente, como ponto de partida, a consideragZo da ques- {fo do desnivel regional em face do sistema do pais como um todo. Na verdade, esta é a caracteristica que se projeta em primeiro plano quando se inspecionam os estudos de natureza s6cio-econdmica realizados em tomo da problemética nordestina. Unanimemente, os trabalhos nfo sé apontam 0 atraso relativo em que vive 0 Nordeste como uma questo de relevo crucial para os habitantes da érea e para a economia nacional, como igualmente ressaltam o inescusdvel dever que representa a corregS0 do hiato entre a regido € 0 resto do pais. E certo que ha interpretagbes diferentes do fendmeno, como a de Francisco de Oliveira (197), nordes: tino e antigo dirigente da SUDENE, segundo quem s6 na aparéncia existi- iam conflitos inter-regionais. Mas mesmo essa compreensdo distinta da situago nfo nega os desniveis entre regides brasileras, situando-os, no que toca ao Nordeste, em termos da divisio regional do traballio vigente ‘no Brasil, cujos impasses se resolveriam pelo planejamento, remédio encon: trado para as “contradigbes entre a reprodug&o do capital em escala nacio- nal e regional”. (Oliveira, 1977, p. 29.) O aumento das disparidades entre © territério nordestino e 0 Centro-Sul é encarado, nessa abordagem, como tum modo de crescimento do capital, em que @ iltima regifo captaria © excedente de outras regides, destruindo assim capitais do Nordeste para 72 ~ Direito ¢ economia facilitar sua concentragio nos centros detentores do monopélio do pro- cesso de acumulagao capitalista. (Idem, ibidem, p. 76). Possuindo 30% da populagfo brasileira (€ 18% do territério do pais), © Nordeste teria gerado em 1975 nfo mais que 10,2% da renda interna do Brasil, seu produto per capita valendo, portanto, quase um tergo (34%) do brasileito4 A situagéo é bem pior do que aquela verificada em 1939, quando 0 produto por habitante da regifo representava 48% da média relativa 20 pais como um todo, com o agravante de que o censo de 1940 evidenciou uma presenga no Nordeste de 35% da populacfo do pais E pior também do que 0 padrfo logrado no perfodo 1962-1969 (razdo produto por pessoa do Nordeste para 0 Brasil em torno de 48%).5 Assim, 4 primeira vista, tudo parece indicar que 0 atraso relativo do Nordeste acentuouse no perfodo 1939-1975 — periodo acerca do qual, é bom ‘que se diga, dispde-se de cifras nem sempre compardveis. Depois do tlti- ‘mo ano a que se reportam os valores da estimativa do ETENE teria havido ligeira recuperagfo da economia nordestina, haja vista que, entre 1975 € 1977, 0 produto brasileiro por habitante cresceu anualmente de 1,7%, contra 2,8% da média no Nordeste. Se isto nfo chega a representar nada de muito substantivo, convém aduzir que a cifra nordestina resulta de cémputo da SUDENE, enquanto a brasileira provém da Fundagdo Get Vargas, entre as duas fontes ngo sendo incomuns as diserepancias num ricas Qualquer que seja a opinigo que se tenha sobre as computagdes * de renda e produto no Brasil, contudo, parece claro que a regifo nordes- tina continua a se arrastar como drea de débil desempenho econdmico, alargando-se em termos relativos ¢ absolutos, 0 fosso que a separa do centro dindmico do Brasil. De fato, se a renda per capita, nos célculos do Banco Mundial, era de 1.300 délares em 1976,? a nordestina ficava pouco acima dos 450 délares, no mesmo patamar do grupo formado por paises como Zambia e Papua Nova Guiné. Por conseguinte, © que se pode afirmar com satisfatéria seguranga € que, dadas as proporgées do espago nordestino, com seu contingente (4) Estimativa do ETENE/Banco do Nordeste, da pesquisa efetuads sobre a desi- ‘gualdade Nordeste/Centro-Sul (Fortaleza, 1978). Convém notar que documento ‘ficial da SUDENE avaliava em 1975, talvez com excessivo otimismo, um ‘quociente de 0,5 para a telagfo produto per capita do Nordeste/produto per capita do Brasil, Ver Brasil, Ministério do interior/SUDENE, 1/ Plano Nacional de Desenvolvimento; Programa de Apdo do Governo para o Nordeste, Kecite, 1995, p. 37, (5) 0s didos de 1939, 1962-1968 ¢ 1969 sfo das contas nacionais prepamdas pela, Fundagdo Getilio’ Vargas (FGV), combinados com estimativas demogréficas da Fundagdo IBGE. (©) Ver, 2 propésito, Clévis Cavalcanti, "Uma avaliagfo das estimativas de renda ‘e produto do Brasil”, Pesq. Plan. Econ, dez., 1972, p. 381-397. (7) Banco Mundial, op. cit Direito e economia — 73 de quase 35 milhoes de pessoas em fins da década de 70 — a situagto do inicio da década ¢ exibida pelo Quadro 1 —, tem-se dentro do Brasil a convivéncia de dois grandes sistemas regionais, verdadeiros paises numa comparago com territérios e populagbes nacionais da América Latina (© Quadro 1 reforga essa crenga). Dai porque sobravam razSes para a afirmativa do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), de que leva a equivoco apresentar a economia brasileira como ‘um sistema nico, equivalente a outras economias subdesenvolvidas de n{vel similar de renda per capita.8 E mesmo que tenha havido reversfo das tendéncias do desnivel inter-regional apontado no Brasil — € nfo houve, antes ocorrendo um esvaziamento demogréfico relativo da regifo nordestina, que em 1920 conservava em seu territério praticamente dois quintos dos brasileiros —, nao desapareceu a gravidade desse descompasso. De fato, conforme jé sublinhava 0 GTDN, tal desnivel (em termos de Nor- deste Centro-Sul) € superior ao que existe entre a ultima regido e os paises industrializados da Europa Ocidental.? O Quadro 1, a tal propésito, de- ‘monstra um produto por habitante no Nordeste que representava em 1970 quatro décimos da cifra correspondente ao Centro-Sul, um resultado que hoje se mostra ainda mais alarmante do que do passado. Basta dizer em que 1976 a renda por pessoa no Nordeste nfo passava de 27,4% da- uela encontrada no resto do pais, isto é, 0 Brasil inclusive o Nordeste. Algumas fontes oficiais j4 sugeriram que o desempenho do Nordeste na década de setenta exibiria padrfo menos sombrio. Isto, no entanto, s6 faz sentido na medida em que se contemplem resultados mais visiveis dos programas de desenvolvimento regional — como o de industrializagao ~ €, estandose em meados do decénio, se tivesse feito uso de projecdes mais do que de elementos palpaveis do mundo real. A SUDENE, em 1975, por exemplo, afirmava que o ritmo de expansfo nordestina acelerava-se continuamente desde 1960, estribando-e para tanto em dados referentes aos perfodos de 1960-1965 (aumento anual do PIB regional de 5,4%), 1966-1970 (6,7%) € 1971-1974 (9,5%).10 Vé-se hoje que, nos anos de 1960-1977, 0 produto interno da regio cresceu de 6,9% a0 ano, inferior ao ritmo de crescimento do pais na mesma época (7,5%).!1 Ainda que fosse verdadeira a indicagio do desempenho favorivel do Nordeste muito mais uma espécie de wishful thinking —, isto teria como combus- iyfl um elenco de politicas especiais concebidas com vistas @ corregfo (8) Brasil, Consetho de Desenvolvimento/GTDN, Uma politica de desenvolvimento econdmico para o Nordeste, Recife, SUDENE, 1967, 24 edigfo, p. 21 (9) Idem, p.9 (10) Brasil, Ministério do Interior/SUDENE, op. cit, p. 37 (11) Apud'ETENE/Banco do Nordeste, pesquisa citada. 14 ~ Direito ¢ economia Quadro 1 (a) Nordeste¢ Centro Sul: indicadoressbclo-econdmicos, 1970 _Diserimina [Ne cs 1, Populagfo (milhdes) [283 | eas 2) Participagio da agricutura na renda | interna, (poreentagens) | asa | 1120) | 1934 3, PIB per capita (USS) | wo | ais 40,2 4 Forga de trabalho como % da popu: lagfo total | 20 | 33 an 5. Renda per capita dos 50% mais po- | ‘bres da forga de trabalho (USS) azz | 22800) 319 6. Consumo per capita de kWh, 1969 103 | 497 207 7. Taxa deanalfabetismo (% ds fora | de tabalho) 548 | 29,20) | 1845 8. Xda populagio urbana servida de | feu x00 | 51.80) | 588 9, Taxa de mortalidade (por 1.000 hab.) | 13,0 97 1340 10. Taxa de mortaidade infantil (por 1.000 rascimentos) ia | 75a 1830 11, Esperanga de vida (anos de idade) 0 61 80,3 12, Consumo diftio de protefnas (% do minimo fixado pela FAO) aso | 1250 680 13. Consumo dirio de caorias (3 do inimo fixado pela FAO) 40_| 1200 a7 Notas: (a) NE =Nordeste; CS =Centro Sul (©) Bras como um todo. Fontes: Osmundo Rebousa, Interegional Effects of Economic Policies: Multi Sectoral General Equilibrium Estimates for Brel, tese de doutoramento, Universidade de Harvard, Cambrige, Massachusetts, dez. de 1974, p. 3, bascado em dados da Fundagio Getilio Vargas, Fundagfo IBGE, Banco do Nozdeste do Brasil (Reltérios) ¢ Banco Mundial (Relaties) ETENE/Banao do Nordeste, pesquisa sobre desnveis epionas do desnivel da regido, de efeito mais epidérmico, uma vez que 0 cerne da desigualdade nfo tem sido atingido através das medidas de intervengto. E de se esperar, assim, que, subsistindo o atual modelo de desenvolvi- mento, as politicas corretivas nfo conseguirfo remover os fatos que cavaram 0 fosso entre 0 Nordeste e 0 Centro-Sul, cuja forga, alids, figu- tava na adverténcia do GTDN de que “processos econdmicos desse tipo sto cumulativos e de dificil reversfo",!? respondendo pelo surgimento de antagonismos € movimentos regionalistas que constituem espelho de iniludiveis diferenciagdes entre os dois sistemas operando no territério nacional. Estas diferenciagSes, se tendessem a desaparecer, possuiriam (12) GTDN, op. cit, p.9. Direito € economia — 75 significago pouco expressiva. Mas ndo este o caso, haja vista o reconhe- cimento de que recentes resultados de politicas, mais favordveis, nfo esconderiam “a incapacidade que a economia regional teria revelado para manter as taxas anteriores de crescimento”. (Goodman ¢ Cavalcanti de Albuquerque, 1974, p. 19.) Uma incapacidade que parece ligarse estrei- tamente a0 fato de 0 Nordeste encontrar-se emaranhado numa armadilha de pobreza, mantida por estruturas que tém a ver diretamente com 0 problema das desigualdades na sociedade brasileira. Registrese, a esse respeito, para ilustrar, que a proporgio de individuos classificados na categoria de pobreza absoluta na regifo representavam, em 1973, duas ve- zes.€ meia a proporcéo relativa a0 Brasil como um todo,!3 nfo havendo indicios de que tal disparidade haja se contraido depois daquela data. E 6 Nordeste, portanto, vitima de processos que concentram renda no pais, tanto em termos pessoais como espaciais ‘Ao contrério da economia do Centro-Sul, que aparenta encontrar-se em condig6es de poder dar apoio ao seu proprio crescimento, conforme {jf testemunhava 0 GTDN,!* 0 sistema nordestino tem necessitado rece ber impulsos externos para sustentar indices de expansfo que o impecam de marchar defesado da economia nacional. Isto, porém, parece mais uma decorténcia de fenémenos estruturais da economia brasileira do que evi déncia de insuperdvel estado de astenia do Nordeste, haja vista a existénc de um conjunto de circunstancias favoriveis que permite que a regio realize um comércio exterior superavitério. Cométcio, incidentalmente, do qual se serviu a industrializaggo centro-sulina para, realizando ver dadeiro confisco, matar sua sede de divisas € assegurar mercado cativo para sua produgdo “ineficiente no estégio inicial”. Nos anos de 1948. 1956, gracas a0 fato de 0 Nordeste vender suas mercadorias nos mer- cados mundiais a pregos de competigZo internacional, sendo concomi- tantemente obrigado @ adquirir no Centro-Sul os bens que estava incapa- citado de produzir — pagando por isso pregos protegidos -, uma média anual de 24 milhdes de délares (a pregos de 1956) de poder de compra es! foi transferida para a regio em mais ripido crescimento industrial.1$ Situago como essa, revertida em alguns anos posteriores ‘em favor do Nordeste,!® s6 pode medrar em fungo da existéncia na (13) Dados do ETENE/Baneo do Nordeste, pesquisa citada (14) GIDN, op. cit, p21. (15) Idem, p. 30. 0 cdlculo do GTDN parece sobrestimado por forga de incorresSes metodoldgicas em sua obtengio, Tratase, todavia, de erro perfeitamente ass milével, (16) Cf, Brasil, SUDENE/Assessoria Técnica, Importincia do comércio exterior ‘no desenvolvimento da economia do Nordeste, versio preliminar. Recife, Julho, 1970, p. 148, 16 — Direito ¢ economia regifo de fatores que geravam suficiente impulso. Isto, com efeito, acon- tecia através do setor exportador, que consistia em auténtica mola pa- ra captagdo de recursos, “tendo por centros motores determinadas ati- vidades basicas de exportagGo” (Barros de Castro, 1975, Il, p. 149) (agi- car, algodfo, cacau, fumo, couros ¢ peles, algumas oleaginosas, ete). Em apoio desse mecanismo, o setor piblico desempenhava papel bésico do lado da despesa, lubrificando de recursos os setores da infraestrutura, um recrudescimento das injeges de fundos federais ocorrendo nas crises climéticas nordestinas com indole, porém, eminentemente de politica compensatéria. Nada disso, entretanto, retira 0 cardter de confiscacfo a que 0 mecanismo de comércio triangular, que coloca o Nordeste, 0 exterior © 0 Centro-Sul nos vértices do poligono, submete @ primeira regifo. Nos anos de 1954-1975, inclusive, constata-se um prejuizo total do Nordeste, causado por esse mecanismo, da ordem de 1.539 milhdes de délares, ou seja 70 milhdes de délares anualmente (0,5% fo PIB da regifo), conforme recentes computagdes do ETENE do Banco do Nor- deste.!7 Tratase de uma cifra que se dilui no panorama da economia brasileira, configurando o prego que o Nordeste paga por sua débil influén- cia na condugdo dos negécios do pais. Ao mesmo tempo, tal constatagfo patenteia a vocagfo econdmica nordestina que, inclusive, estaria sendo prejudicada por esforcos artificiais de implantagfo de uma estrutura industrial na regio prematuramente diversificada. Esse empenho de industrializagfo, levando a um perfil do setor secundério concorrente com o do Centro-Sul e sem obediéncia a uma orientago predeterminada, bloquearia a concepefo de estimulos as ativi- dades tradicionais nordestinas, em que a regio presumivelmente dispOe de vantagens comparativas. Com isso, estas atividades perdem impulso, adquirindo expansfo. meramente vegetativa. Na verdade, 0 GTDN regis trava que a economia agucareira do Nordeste teria esgotado sua condigfo de fator dindmico, cumprindo suprir a falta desse elemento de impulsto. Podese também argumentar que decisbes de politica econdmica, sem considerar, em termos do Brasil como um todo, “a necessidade de uma alocag#o de recursos visando 4 complementaridade inter-regional e a0 equilfbrio dos fluxos econémicos intemos” (Goodman e Albuquerque, 1974, p. 75), levaram a progressiva marginalizago do Nordeste de mer- cados que a regifo poderia haver mantido. Em outras palavras, facultou-se a regifo um modelo de desenvolvimento que, sem um alvo de estrutura ‘econdmica em vista, esqueceu atividades tradicionais e permitiu a emer- géncia de setores que duplicam faixas de atividade instaladas no Centro- (17) Pesquisa citada, Direito e economia ~ 77 Sul. © resultado foi um surto do coeficiente nordestino de importagdes que, no final da década de sessenta, jé se elevava a mais de um tergo da renda interna liquida regional — contra algo mais de um quinto no inicio da década (Idem, p. 81). Parece que € a industrializagfo recente do Nordeste, 0 que nfo neutraliza a forga dos seus equivocos, que se deve creditar grande medida dos aumentos do produto interno regional nos ltimos anos. Mas no se pode esquecer, de outro lado, a importante presenga do setor piblico na regifo, com um nivel de formagfo bruta de capital fixo que ascendeu de 8% do produto interno em 1960, para 11% em 1972 ¢ 13,5% em 1974.18 Esses dois fatores, investimentos industriais e gastos do governo, fizeram com que as inversbes brutas se expandissem a um ritmo anual (cerca de 12,7% no periodo 1965-1972) que supers o do produto nor- destino (7,4% a. a. no mesmo periodo).!9 No entanto, embora o GTDN preconizasse a industrializaco como contrapeso das deficiéncias de fatores naturais do Nordeste, ela, por si, ndo geraria uma transformagio da estrutura econdmica da regifo “com a rapidez que as condigbes atuais exigem”.20 Para tanto, recomendava-se esforgo tendente a reformular © setor agricola, inclusive em virtude da admissfo de que o desenvolvi ‘mento industrial nfo seria suficiente para modificar a estrutura ocupa ional nordestina, minada de excedentes de mfo-de-obra que, no meio urbano, representavam 31% da forga de trabalho.?! © fato é que, na realidade, apesar da emigragZo liquida, no Nordeste as oportunidades de emprego nfo se expandiram, no perfodo 1940-1970, “com rapidez suficiente para manter as taxas de participagdo da forga de trabalho observadas em 1940” (Patrick, 1972, p. 30). Isto indica claramente que a estratégia de desenvolvimento nordestino recente, se propiciou a forma- fo de um setor industrial dinémico, limitou seus efeitos & taxa de cresci- mento do produto. Do ponto de vista do emprego, da seguranga econ6: mica que se deve perseguir para os individuos que estfo na base do uni- verso social, a estratégia de desenvolvimento nfo logrou éxito equivalente. E assim, nada obstante o papel das emigragSes nordestinas para o Centro: Sul, de amortecimento das desigualdades regionais, a industrializagdo teve impacto circunscrito, nfo se podendo conferirlhe a faculdade de catapulta da economia nordestina. Em outras palavras, a industrializag0 (18) Os dados de 1960 ¢ 1972 sio de Roberto Cavalcanti de Albuquerque e Cl6vis de Vasconcelos Cavalcanti, Desenvolvimento regional no Brasil. 23. edigd0. Brasilia, IPEA/IPLAN, 1978, p. 127. O de 1974 ¢ do ETENE/Banco do Nor- deste, pesquisa citada, com base em cdleulos da SUDENE. (19) Dado’ de Roberto C. de Albuquerque e Clovis Cavalcanti, op. cit, p. 114. 20) GTDN, op 34 QL) fade, p. 53: 78 — Direito e economia pode ter fecundado maiores fluxos de bens materiais, mas mostrou-se ineficiente para produzir riqueza em termos de bem-estar humano — como precursoramente 0 concebia Sismondi, no inicio do século passado. Polftica recente para o desenvolvimento da regio Item que figura com a maior projego na politica recente para o desenvolvimento do Nordeste € 0 que trata do programa de desenvolvi- mento industrial. Em tomo dele muitas criticas tém sido formuladas, uma das quais salienta que 0 processo se faz acompanhar de tendéncias concentradoras da distribuigzo de renda. A hipdtese de agravamento na repartigao pessoal do produto do Nordeste, sobretudo no meio urbano, “dada a natuteza capital-intensiva dos investimentos que ali se realizam"” (Goodman ¢ Albuquerque, 1974, p. 8), € comprovada pela comparago dos dados censitérios de 1960 e 1970, os quais testemunham “uma sensi- vel elevago da desigualdade repartitiva na regio”, de que se excetuaria © setor primério. Em termos globais, o coeficiente de Gini de pessoa remunerada — medido como afastamento da igualdade perfeita, quando seu valor se anularia —, teria subido de 0,50 em 1960 para 0,55 em 1970 (idem, p. 44-45), Em Pemambuco 0 agravamento do desnivel na dis- tribuigfo pessoal da renda teria sido mais intenso no setor tercidrio, “levando a existéncia de bolsbes de pobreza urbana, desnutrigfo e mortali- dade infantil nas cidades” (Sampaio, Osério e Ferreira Irmo, 1975, p. 230-231). Neste sentido, o padrdo de desenvolvimento industrial logrado reproduziria 0 entrave da grande concentrago de renda, caracteristica da economia agucareita, que no diagnéstico do GTDN respondia pela falta de incentivo para o alargamento do mercado nordestino, impedindo que a regio passasse, a maneira do Centro‘Sul, da etapa exportadora ara a de substituic#o de importagbes.2? E assim, os beneficios do surto de crescimento industrial recente nfo se espraiariam homogeneamente, determinando a persisténcia de grandes massas populacionais 4 margem das mudangas ocorridas e fazendo com que, socialmente falando, 0 pro- cess em curso ndo passe de experimento frustrado. O fendmeno pode ser percebido nas regides metropolitanos do Nordeste, onde & patente a elevago da desigualdade repartitiva, com formagdo de populagdes marginalizadas em néimeros crescentes, acompanhada de crescimento da criminalidade. No caso do Recife, estudos recentes assinalam a piora da distribuigfo da renda no inicio da década de sessenta até a segunda metade da de setenta.23 Paralelamente, a experiéncia de pesquisadores (22) GDN, op. eit, p. $0. (23) V., por exemplo, Clévis Cavalcanti, Viebilidade do setor informal: a demande de pequenos servicos no Grande Recife, . 53: Direito e economia ~ 79 que atualmente investigam problemas das populagdes de baixa renda tende a revelar que a situagdo econdmica desses individuos em momento algum teria sido mais dramética que agora. Em uma drea miserével, pesqui- sada com recursos do método etnogréfico no Recife, chega-se a encontrar luma média de sete em cada dez chefes de familia ou donas-de-casa que pensam no suicidio como remédio para sua extrema pentria,?+ ‘A evidéncia dispon{vel parece demonstrar, portanto, a incapacidade das politicas corretivas dos desniveis regionais nfo s6 para a consecucfo de seu objetivo primeiro, como para a criagdo de condigSes de um padréo agradavel de bemeestar para a populago nordestina. Vale notar, por outro lado, que um exercicio econométrico com fundamento na anélise de equilibrio geral, sugere que 0 insatisfatério desempenho da politica nor- destina nfo significa necessariamente ineficécia da diretriz seguida, por- {quanto fatores que a neutralizam operariam em diregdo contréria a da politica, como resultado de politicas nacionais concebidas para 0 pais como um todo.?5 Na verdade, o exercicio em questo conclui que a orientagio da politica para o Nordeste da década de sessenta parece ter contribuido para a redugo das disparidades entre 0 Nordeste € 0 CentroSul. A base do argumento jaz na verificagdo de que, se n&o tives- sem sofrido interferéncias procedentes de outras dreas de politica (fiscal, monetéria, tributéria, cambial, etc.), os instrumentos submetidos a0 exer- cicio econométrico (34/18, redugdes de impostos, subsidios as exporta- ges, FGTS) “teriam determinado uma elevagdo na renda real do Nordeste, em termos da renda real do Centro-Sul, que oscilaria entre 15% € 23% na década de sessenta.26 O exercicio deixa, todavia, de levar em conta outras varidveis do proprio quadro nordestino — a transferéncia de recursos pelo sistema bancério privado, g. —, que poderiam afetar as conclusGes obtidas. 'Na mesma linha dos exercicios de Rebougas, © minucioso estudo do ETENE de 1978, a que se tem feito referéncia av longo deste trabalho, De ee nee eee ee eed ake erga papas ease na ese as eae eae ehaepes a maa fe Sees esstastanencsaer ap erect ee cee Seater ena aa a sean sapoie Coane a ee settee Eiteoial oo oneness 80 — Direito e economia demonstra cabalmente que parte substancial dos beneficios gerados pelas politicas para o Nordeste ¢ neutralizada através de mecanismos que dizem respeito aos setores piblicos e privado, pela saida, pela evasto de recursos representada por drenagens de variada natureza. Noutras palavras, hd uma diluigGo dos efeitos multiplicadores das diversas poli- ticas, os quais tendem a se materializar fora do Nordeste nfo sendo, pois, intemalizados. Ademais, as macropoliticas nacionais contribuem para concentragfo regional da renda, tendendo a anular qualquer esforco para que as metas das politicas concebidas para correcfo das disparidades sejam atingidas. Somando, por outro lado, os efeitos Iiquidos imediatos (positivos algumas vezes, negativos outras) da ago do setor piblico sobre a economia nordestina no perfodo 1960-1975, obtémse, na total dade dos anos considerados, um saldo favorivel ao Nordeste de 360,6 miles de cruzeiros, a pregos de 1975, ou seja, uma média anual de apenas 22,5 milhSes (0,15% do PIB nordestino).2” Tal seria a contribui- sfo efetiva do governo — incluindo ai as empresas piblicas, mas nfo a gfo resultante das politicas nacionais (monetéria, fiscal, cambial, comer cial, ete.) — para o desenvolvimento da regido. Se ¢ que se pode taxat de contribuigdo aporte to insignificante, to infimo de recursos reais, Faz sentido, destarte, 0 comentério de Rebougas, de que a maioria dos responséveis pela formulacdo de politica econdmica — na companhia dos analistas da economia — explicita ou implicitamente admite efeitos regionais uniformes para politicas destinadas a0 Brasil como um todo ou, se nflo, procuram ignorar desiguais respostas regionais.2® Vao agindo, portanto, no plano nacional com olimpica despreocupago quanto 20 castigo que impéem a regifo nordestina, ao formularem medidas e provi déncias que tém como feito nico equilibrar as contas do pais global- mente considerado. Some-se isso 0 fato de que, no caso da experiéncia de desenvolvimento do Nordeste nos iiltimos anos, transparece clara inobservincia das recomendag6es que 0 GTDN formulou no seu funda mental e pertinente relatério, o qual, ironicamente, continua sendo reco- nhecido de forma técita ou declarada como o suporte de diagnéstico das politicas para a regio. Na verdade, o cumprimento dos propésitos da GTDN “exigiria profunda reestruturacdo da economia nordestina” (Barros de Castro, op. cit, p. 161), para corregfo das deformidades estruturais encontradas. E isso sabidamente nfo se fez, bastando para comprovacio imediata colocer “em tela de juizo a desejada transformagdo da base agrs- ria” (dem, ibidem), indiscutivelmente 0 cere das atengSes do GTDN e 0 cavalo de batalha da politica que se seguiu. No relatério-diagnéstico (21) Estimativa do ETENE/Banco do Nordeste, pesquisa citads (28) 0. Rebougas, op. cit. p. 4. Direito e economia 81 Uma nova politica de desenvolvimento econdmico para o Nordeste nunca € demais lembrar ~ 0 GTDN, ao lado da diretriz de intensificacgo dos investimentos industrials, advogava trés outras ditetrizes dirigidas para 4 agricultura: a) reformulaggo do quadro da economia canavieira; b) eleva fo da produtividade e fortalecimento da economia semi-érida, ¢ c) expan sfo da fronteira agricola na direggo das areas em que o problema da seca poderia ser contomado.29 A estruturagio do plano de ago proposto tinha como fonte de preocupagfio a necessidade de se proporcionar uma oferta vorreta de ali mentos, especialmente nos centros urbanos do Nordeste, bem como a criagdo de condigdes de adequada incorporagfo de excedentes popula: cionais ao universo humano nordestino, Minimizaramsse, porém, as proposigBes do GIDN com respeito a agricultura e deuse toda énfase 4 industrializagto, que era sé uma das ditetrizes do programa concebido. Acontece que o desenvolvimento industrial imaginado na base da SUDENE nfo tinha em mira a consisténcia que posteriormente Ihe foi atribuida. Com efeito, idealizando um es: quema de abundancia de mfo-e-obra e de escasse2 de recursos naturais, © GTDN defendia um modelo de industrializago guiado pelos exemplos do Japio ¢ Porto Rico.30 Nesse esquema, o primeiro passo seria a reorga- nizago das indistrias tradicionais da regifo, com relevo pare a téxtil algodocira, seguido da instalago de indiistrias de base, com poder de autopropagagfo. Propunhase entfo desenvolver um niéicleo de industria siderdrgica no Nordeste, acompanhado de “indiistrias mecanicas simples” ¢ de atividades secundarias que procurassem se arrimar numa base favoré vel de matérias-primas locais. Tudo isso constava do estudo do GIDN onde, em momento algum, se tratcu de uma formula promocional de investimentos como a que ulteriormente se tomou célebre com a designa- go de mecanismo do 34/18.31 Essa formula fazia parte do projeto do primeiro plano diretor da SUDENE, inspirando-se espuriamente na experi- éncia do Mezzogiomo italiano ¢ constituindo, em sua esséncia, um desvio das recomendagdes do GTDN. Basta atentar, a propdsito, que 0 34/18 cria uma artificial abundancia de capital que inevitavelmente conduz, (29) GIDN, op. cit, p14. (G0) Jem, p. 51 G1) Permitindo abatimentos de $0% no imposto de renda devide para as pessoas juris (empresas) brasleias aplicarem em inversBes industrials no Nordeste, © dispositiv do 34/18 sofreu extensBes que o ampliaram para a agricultura da regio, para a Amazénia ¢ para setores determinados da economia nacional Hoje, ‘xansformado, € conhecido como Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR). Uma deserigfo do mecanismo acha-se em Goodman e Cavalcanti op. cit, p.195-200,

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